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Delito de Opinião

Quando a inteligência fica burra

Pedro Correia, 17.10.22

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"Guardas Vermelhos" com o Livro de Citações do Presidente Mao (Pequim, 1966)

 

A chamada inteligentzia torna-se burra quando se põe ao serviço de tiranias, ensaiando a «fuga da razão», como lhe chamava Paul Johnson.

É uma burrice perigosa porque vem manchada de sangue. Os maiores déspotas – Hitler, Estaline, Mussolini, Mao, Pol Pot – sempre tiveram legiões de intelectuais a justificá-los e a louvá-los.

Censura há em Portugal, não na Rússia...

Vinte assinam dezassete parágrafos sobre a guerra sem condenar Putin

Pedro Correia, 04.04.22

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Os vinte signatários de uma carta aberta publicada no Expresso proclamando-se «pela paz contra a criminalização do pensamento» perderam uma excelente oportunidade de contrariar a legítima dúvida de quem os imagina equidistantes entre vítimas e verdugos na trágica guerra da Rússia na Ucrânia. Podendo até especular-se se manteriam tal equidistância em conflitos de outra natureza e noutras esferas.

Não faltará mesmo quem questione se, com posições públicas como esta, não estarão a beneficiar o agressor.

Li com atenção a missiva, assinada por figuras como Boaventura Sousa Santos, Isabel do Carmo, Viriato Soromenho Marques, a advogada Carmo Afonso, o economista João Rodrigues e um brigadeiro-general que há um mês apareceu na televisão a balbuciar isto: «Agora o mau é o Putin... por amor de Deus! (...) Quando o puseram num beco sem saída, o que é que ele fazia a seguir? Tinha de atacar a Ucrânia, obviamente.»

 

Nos dezassete parágrafos que escreveram não há uma só frase de condenação expressa e explícita a Vladímir Putin, que mandou invadir um país vizinho contrariando todas as suas promessas em contrário e violando princípios básicos da legalidade internacional e da convivência civilizada entre as nações.

Nos dezassete parágrafos que escreveram não há uma só frase de solidariedade concreta ao povo flagelado por esta guerra de agressão que já provocou o maior número de refugiados no continente europeu desde a II Guerra Mundial, com cerca de dez milhões de ucranianos - um quarto da população do país -  forçados a abandonar lares e haveres.

Nos dezassete parágrafos que escreveram, nem uma palavra de repúdio pelas atrocidades cometidas pelas forças armadas russas - maior potência nuclear do globo - em solo ucraniano. Nomeadamente a chacina praticada em Mariúpol - cidade-mártir, como bem lhe chama a imprensa internacional - naquilo que constitui óbvio crime de guerra.

 

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No meio desta barbárie - concreta, palpável, sangrenta - ei-los afinal preocupados com «a criação de um ambiente tóxico, em muitos casos vinculado e estimulado por meios de comunicação social e por responsáveis do poder político, de hostilização, desacreditação pessoal e intimidação de todos os que não sigam a cartilha de uma opinião que se arvora ao estatuto de pensamento único». Ousando até afirmar que existe uma «deriva totalitária» no espaço comunitário europeu.

O terrífico cenário que descrevem é o que melhor se aplica ao existente na Rússia, onde vigoram medidas repressivas sem precedentes neste século e em que até a simples exibição de uma folha de papel, em silencioso protesto contra a guerra, dá direito a detenção na via pública. Porque também os russos, tal como os ucranianos, estão a ser vítimas das pulsões totalitárias de Putin. Mas este nome é cuidadosamente omitido na referida carta aberta subscrita pelos vinte vultos da academia civil e militar, das artes, das leis, das letras e do jornalismo.

«O poder político sente-se proprietário das formas de pensar» e começa a desenhar-se uma «criminalização do pensamento». Dir-se-ia que estão a escrever sobre a Rússia. Engano: estão a escrever em Portugal sobre Portugal. Um país onde todos os signatários têm acesso permanente ao espaço mediático e alguns até pontificam nele há longos anos.

 

Falando em jornalismo - e sendo a carta subscrita por seis personalidades que exercem ou já exerceram o jornalismo, incluindo uma romancista duas vezes galardoada com o Grande Prémio de Romance e Novela - apetece questionar por que motivo tanta gente qualificada no ofício da escrita foi capaz de produzir um texto em que se lê a seguinte frase: «Esta é uma situação em que o Tribunal Constitucional deveria reverter de imediato.» E que exibe vírgula entre sujeito e predicado noutro trecho: «Os que pensam contra a corrente, (sic) são obje(c)to de escárnio, desacreditação social e pressões.»

Esta escrita tão canhestra terá sido proporcionada pelo «ambiente público de crescente intolerância, censura e perseguição ao outro» que dizem vislumbrar não na Rússia mas em Portugal?

Efemérides Sangrentas

jpt, 19.10.21

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Dia de efemérides. Passam hoje 35 anos sobre o incidente de Mbuzini, no qual morreu o presidente Machel e quase toda a sua comitiva. Vários amigos e conhecidos moçambicanos assinalam o facto nos seus murais de Facebook - alguns usando imagens do impressionante monumento idealizado pelo arquitecto José Forjaz para colocação no fatídico local. Acidente ou atentado?, continuam as dúvidas, as versões, as crenças, num processo de interpretação da história algo similar ao acontecido com a morte de Sá Carneiro e comitiva.
 
Por cá cumpre-se hoje o centenário do assassinato do primeiro-ministro António Granjo e de vários vultos da instauração da República, a dita "Noite Sangrenta", um dos momentos maiores do terrorismo político durante a I República, perpetrado pelo que se poderá dizer, sob anacronismo limitado, a "extrema-esquerda" terrorista de então. O Pedro Correia aqui no Delito de Opinião convoca o assunto.
 
O resto da sociedade, a corporação historiadora, os colunistas avençados, os "quadros" da função pública? Seguem fiéis militantes da higienização da I República, da produção da "amnésia organizada" sobre esse directo ascendente (republicano e maçónico) do poder socialista de hoje.
 
Nisso não só vigora o silêncio na imprensa. Mas também o popular, pois poucos (se alguns) se lembram de convocar o assunto nos seus murais. Há que preservar o mito da I República benfazeja. E para isso que faz o Estado, os seus oficiais mais importantes? Usa o dia do centenário deste brutal e tão significativo episódio para se congregar, sob o datado e anacrónico molde panteónico, em homenagem a Aristides de Sousa Mendes, morto há 67 anos, nascido a 19 de Julho e falecido a 3 de Abril. Ou seja, nem sequer há um qualquer vínculo simbólico quase inultrapassável para que a cerimónia decorra hoje.
 
Julgo que nunca tinha assistido a tão descarada manipulação da história política portuguesa. Agora venham-me dizer que é preciso derrubar a estátua do João Gonçalves Zarco. E fazer "introduções contextualizadoras" ao Frei João dos Santos...

 

No silêncio, entre cadáveres

Pedro Correia, 08.12.20

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Albert Camus escreveu um dos melhores textos que conheço para uma alocução proferida em Novembro de 1948, num encontro internacional de escritores. Intitulado "O Testemunho da Liberdade", tem uma actualidade espantosa.

Esta reflexão devia constituir uma espécie de código de conduta para todos os intelectuais contemporâneos.

 

Passo a transcrever alguns trechos*:

«Os verdadeiros artistas não dão bons vencedores políticos, pois são incapazes de aceitar levianamente, ah, isso sei eu bem, a morte do adversário! Estão do lado da vida, não da morte. São os testemunhos da carne, não da lei. (...) No mundo da condenação à morte, que é o nosso, os artistas testemunham o que no homem é recusa de morrer. Inimigos de ninguém, a não ser dos carrascos! (...) Um dia virá em que todos o hão-de reconhecer e, respeitadores das nossas diferenças, os mais válidos de nós deixarão então de se dilacerar, como hoje o fazem. Hão-de reconhecer que a sua profunda vocação é a de defender até ao fim o direito dos seus adversários a não terem a mesma opinião que eles. Hão-de proclamar, consoante o seu estado, que mais vale uma pessoa enganar-se, sem assassinar ninguém e permitindo que os outros falem, do que ter razão no meio do silêncio e pilhas de cadáveres.»

Hoje, mais que nunca, estas palavras devem merecer-nos profunda meditação.



* Tradução (excelente) de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes para a editora Contexto (2001)

Uma década

jpt, 06.04.20

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(Lago Niassa, fotografia feita no Nkwichi Lodge, 6.4.2010)

(Mesmo que seja algo descabido para o registo Delito de Opinião aqui reproduzo um postal que coloquei no meu mural de Facebook)

Meus queridos amigos,

Até cruel, de cego que é, este sistema FB. A lembrar-me que há exactamente dez anos estava com a família em magníficas férias no Lago Niassa, numa maravilhosa reserva natural (hoje em perigo de descontinuação) lá quase perto de Cobué.

Uma década!, como imaginaria tamanha mudança, este outro Algures e deste modo, enclausurado? O rumo não foi o esperado, pois um tipo sempre crente, optimista, até sonhador, por mais que encene o pessimismo antropológico. Mas não me posso queixar, pois a princesa aqui ao lado, a salvo, acoitados em nicho de amizade e carinho. Com ar livre. Cães e ar livre ... E por enquanto sigo isento (ou assintomático) de maleitas, desta inédita ou das outras recorrentes, tão ou mais devastadoras.

Uma década! De perdas dolorosas. O meu pai. O amado presépio. Alguns amigos muito queridos, desses que são arquivo e mesmo bússolas. Um punhado de conhecidos, verdadeira paisagem reconfortante porque fértil. Até, um pouco, o Sul (ou o norte, como os cosmógrafos disseram). Nada de espantar, isto é o envelhecer, nada mais do que isso.

Uma década! Onde envelheço? Do Brasil amigo pede-me um texto sobre o covid no meu Algures. Tento-o e desisto. Pois, onde é o meu Algures, Omar? Há já dias que Bitches Brew toca, auto-repetindo-se. É um sítio, sim. E não é aquele Lago, de há uma década, isso é óbvio. Mas, e só nas últimas horas, falo com queridos durienses, transtejianos, um bruxellois, maputenses e no Cabo Delgado. Sobre os mesmos assuntos. Então, e neste cruzar, onde é o meu Algures?

Um companheiro atira-me "como estás, velho resmungão?". Sê-lo-ei, "resmungão"?, pois velho é certo que já vou. Ontem li uma amiga, com vínculos afectivos ao poder daqui - isto do "pêésse" que tanto conforto a tantos dá - invectivar um qualquer crítico. Através do antigo anúncio do Johnnie Walker, ao outro apoucando como daqueles que vêem "o copo sempre meio vazio". Ora eu bebo (nunca antes do meio-dia, friso). E, como todos os bebedores, sei que o problema não é se o copo está meio cheio ou meio vazio. Pois bebê-lo-emos da mesma maneira. A angústia real é se há outra garrafa. Estás-me a seguir, Tó-Zé? Teremos outra garrafa? Serei "resmungão" por causa desta angústia? Sede, se a quiseres chamar assim?

Onde é o meu Algures, Omar? Não é, decerto, onde os mais graduados se atrevem a escrever que a economia portuguesa vai melhor do que nunca. Li isso por tua culpa e desembainhei a cimitarra do Salgari, a catana "lá da terra". Mas está romba, cansada, deixei cair, em desânimo. Mas o que é isto?, quem é esta gente, por mais "querida" que (te) surja? O que é que aqui, neste meu Portugal, putativo e desejável Algures, se exporta? Metalomecânica, pequeníssimas empresas, industriais e super-industriosas, logo diz o meu amigo Zé, que é da área. E o nosso Carmona, tão louvado nas suas práticas, que escolhe ele para a pantomina do dia, para a "auto-estima nacional"? Vai propagandear a cultura de tomate, produzir folclore cotovelando campónia. Onde é o meu Algures? À mesa destes louvaminheiros? Não.

Onde é o meu Algures? Neste que me é putativo os bem-pensantes clamam por um Plano Marshall. Eu tenho 55 anos, o meu país está sob um Plano Marshall desde os meus 21. Como o sei? Porque quando ele começou baixaram as taxas sobre o uísque, e as tascas e cafés passaram a estar decoradas com prateleiras de Logan, Cutty, JB, Grants e etc. E parámos de beber bagaço e similares - efeito da secular guerra europeia entre as aguardentes frutícolas e as cerealíferas, como Braudel ensinou. Eu lembro-me disso, desse Marshall que ainda aqui está. Mas se eu (e outros) disser isso serei "resmungão"? Não, pior ainda, dirão que sou ressentido, (extremo)direitista, populista, fascista ou afascistado. Ou, pior do que tudo, liberal, qual agente de Pinochet.

Onde é o meu Algures, Omar? É o meu pai. Este fim-de-semana fui visitá-lo, ainda que vigore isto do "fica em casa". Entre outras coisas sobre tudo isto d'agora contei-lhe uma, sobre este meu putativo Algures. Uma simpática colega perguntou - nisto das redes sociais - se os seus amigos (de facto rede de antropólogos) "de esquerda" (mas, frisou entre parêntesis, também algum "de direita" que ela possa ter, nunca se sabe ...) estão a pagar às empregadas domésticas. Dúzias deles, repito, dúzias deles apareceram, ufanos, tão "esquerda" eles são, a confirmar que pagam às empregadas, e até que "algumas delas são como família". Eu ri-me ao contar o detalhe, o meu pai fez aquele seu gesto característico, semicerrando os olhos, baixando ligeiramente a cabeça enquanto a meneia e suspirou pelo nariz. Praguejei e escorropichei o copo, nada mais há a dizer sobre esta gente e suas mentes. E, porque o meu pai morreu há já tanto tempo que pouco fala comigo, apenas breves conselhos, vim-me embora.

É este o meu Algures, Omar? Afinal é isto o envelhecer, ficar confinado com esta gente? Uma "maldita gente má"? Nem isso são ... Vão apenas numa abissal inconsciência. Até viciosa. Horrível.

Aqui em Nenhures é quase meio-dia. Está quase na hora, daqui a bocado vou beber um copo. Aparecei.

Contra a preguiça intelectual

Pedro Correia, 24.02.20

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Vasco Pulido Valente foi meu professor na Faculdade. Leccionava Ciência Política e era uma das celebridades daquele curso. 

Julgo que quase todos o líamos religiosamente na última página do Expresso, numa coluna intitulada "O País das Maravilhas". Eu começava precisamente por ali, sábado após sábado. Por aquele rectângulo destacado na linha gráfica do jornal com uma prosa que parecia saída do bisturi dum cirurgião. Prosa limpa, sem "poréns", sem "entretantos", sem "outrossins". Sem reticências nem pontos de exclamação. Sem atalhos para chegar onde queria. À inglesa, libertando-nos da retórica afrancesada que ainda marcava tantos dos seus parceiros de geração. 

Porque ele não nos ensinava só a pensar. Também nos ensinava a escrever. Este foi um dos seus maiores méritos: mudar a forma como se escrevia nos jornais, traçando linhas de fronteira. Antes dele proliferavam os gongóricos, cultores imoderados do adjectivo e e do advérbio. Depois dele, a nossa escrita ficou mais limpa.

 

Estou a revê-lo no alto do estrado, na Universidade Católica. Era o primeiro dia de aulas e nós, caloiros, tínhamos pela frente aquele professor ainda jovem mas já famoso pela tal coluna onde zurzia nos políticos. 

De blazer e gravata de malha, ele olhou-nos de cima para baixo e rompeu enfim o silêncio com uma lâmina em forma de pergunta: «Algum dos senhores leu Os Fidalgos da Casa Mourisca

Sentiu-se um embaraço colectivo na sala enquanto olhávamos uns para os outros: ninguém havia lido aquele livro. 

«Era o que eu pensava», disparou em tom cáustico, cruzando os braços enquanto continuava a olhar-nos fixamente. O Vasco colunista confundia-se com o Vasco professor: agora éramos nós os zurzidos. 

«Os senhores nunca saberão o que foi a história do século XIX em Portugal sem lerem esse romance», prosseguiu, sem a menor preocupação em cativar-nos pela simpatia. Não era para isso que ali estava, mas para rasgar-nos horizontes. E a primeira lição fora dada: não há limites estanques no domínio do saber. Um romance pode ser a primeira janela aberta para a política. 

 

Meses depois, O País das Maravilhas saiu em livro. Andei com ele literalmente debaixo do braço. Lido e relido, sublinhado, transcrito. Já com as virtudes e até alguns dos defeitos que obras posteriores confirmaram - no campo da crónica, da biografia, do ensaísmo histórico. Obras como Às AvessasPortugal -- Ensaios de História e de Política, Retratos e Auto-Retratos, Os DevoristasEsta Ditosa PátriaMarcello Caetano: as Desventuras da RazãoUm Herói PortuguêsIr Prò ManetaGlória. Até à última, não por acaso intitulada O Fundo da Gaveta, sobre a qual escrevi aqui.

Uma escrita elegante, cáustica, direita ao osso, sem vias sinuosas. A palavra certa estava sempre lá. Mas também uma visão de Portugal marcada por um inabalável pessimismo, ancorado na ancestral geração de 70 e nas torrenciais páginas desse romance excessivo em tudo, até no campo das ideias, que Eça de Queiroz nos deixou em legado: Os Maias. A visão por vezes desfocada de um país asfixiado pela mediocridade irrevogável das suas elites. 

 

Lembrarei sempre Vasco Pulido Valente, acima de tudo, como meu professor. Um dos mais estimulantes que tive - e, felizmente, foram vários. Capaz de nos fornecer pistas de análise, de nos sacudir da tentação da apatia, de nos alistar no combate à preguiça intelectual. Até para discordarmos dele.

Anoto isto e reparo agora que, tantos anos depois, continuo sem ter lido Os Fidalgos da Casa Mourisca. Algum dos senhores o leu?

Robert B. Silvers

Diogo Noivo, 31.03.17

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Uma greve, trabalho voluntário e um parágrafo. Eis a génese da New York Review of Books. O parágrafo, intitulado "To the Reader", é notável pois mostra que não foi preciso escrever muito para definir as baias de uma das publicações literárias e políticas mais relevantes de sempre. O âmago do pequeno texto, publicado a 1 de Fevereiro de 1963, vive em duas frases: "This issue of The New York Review of Books does not pretend to cover all the books of the season or even all the important ones. Neither time nor space, however, have been spent on books which are trivial in their intentions or venal in their effects, except occasionally to reduce a temporarily inflated reputation or to call attention to a fraud". Simples, despretensioso, e apostado no escrutínio de um mundo onde as vaidades e os nepotismos sempre encontraram solo fértil.
Submetida ao impiedoso teste do tempo, a NYRB modernizou-se sem perder o rigor, o espírito crítico e os critérios nos quais se fundou. O mérito é produto de um trabalho conjunto, mas o timoneiro tem nome: Robert B. Silvers. Editor da publicação desde o momento em que foi criada, Silvers mostrou, como escreve Luis Gago no Babélia, que é possível exercer uma influência indelével em várias gerações de leitores sem escrever ou editar livros. A aversão a entrevistas e a aparições em eventos públicos deveu-se a um entendimento zeloso da missão de editor. “The editor is a middleman. The one thing he should avoid is taking credit. It’s the writer that counts”, disse numa das raríssimas entrevistas que concedeu e que o New York Times citou recentemente.
Para Silvers, a NYRB foi, entre outras coisas, um instrumento para espantar as matilhas unipensantes que vagueiam pelo milieu cultural e político, sem nunca se preocupar em demasia com a reacção dos leitores. Aliás, compaginar a adaptação aos tempos que chegam com o respeito pelos princípios fundadores da publicação é, sem dúvida, uma das características mais louváveis, porque é rara, do lendário editor da NYRB. Outra merecedora de destaque, porque também invulgar, foi a constante preocupação de ter textos legíveis, acessíveis a qualquer leitor, embora nunca permitindo que o trabalho de edição ofusque a complexidade dos temas abordados.
Robert B. Silvers morreu no passado dia 20 de Março. Daniel Mendelsohn refere que Silvers trabalhou até ao fim, com a bonomia e a erudição intactas, ainda que a energia já fosse faltando. “I admire great writers, people with marvelous and beautiful minds, and always hope they will do something special and revealing", disse Silvers. O que ele admirava nos outros fez da NYRB aquilo que é.

Penso rápido (81)

Pedro Correia, 12.12.16

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 Simone de Beauvoir, Sartre e Che Guevara em Havana (1960)

 

Sempre houve excelentes escritores em péssimas companhias. O século XX está cheio deles - Pablo Neruda e Rafael Alberti com as suas odes a Estaline, Ezra Pound com as suas loas a Mussolini, Drieu La Rochelle rendido a Pétain, George Bernard Shaw defendendo as purgas em Moscovo.

Nunca mais acabaríamos se alargássemos a lista a todos os escritores que defenderam o indefensável. E que tanto contribuíram para que a palavra "intelectual" tenha caído em desgraça.
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir pavonearam-se na Havana "revolucionária", prestando tributo ao castrismo. Mas, entre Fidel Castro e Che Guevara, preferiam Che. Quando o argentino foi assassinado na Bolívia, morrendo de modo idêntico ao que conduzira tanta gente à morte em Cuba, Sartre escreveu que tinha desaparecido "não apenas um intelectual, mas também o mais completo ser humano da nossa era". Exagero tipicamente parisiense somado à miopia ideológica, com reflexos inevitáveis na perda de prestígio dos intelectuais no mundo contemporâneo.

As palavras, quando mal usadas, gastam-se depressa. O mesmo sucede às ideias no implacável confronto com os factos históricos: nada a fazer quando não resistem ao elementar teste do tempo.

Lucidez

Sérgio de Almeida Correia, 06.11.14

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 "Acontece com os intelectuais o mesmo que acontece com a política: o descrédito (e estou a falar da Europa) em que caíram os políticos europeus e portugueses, e não só, é imenso. As percentagens de abstenção nos actos eleitorais são enormes. Porquê? Porque ultrapassámos aquilo que era normalmente admitido, uma certa taxa de mentira, que é própria do discurso político. E ultrapassámos isso com um descaramento extraordinário. O descaramento passou a ser uma das características do discurso político e em Portugal isso é extraordinário. O chico-espertismo português generalizou-se em Portugal. Isso faz com que a população se afaste cada vez mais e não acredite." - José Gil, numa deliciosa entrevista ao Carlos Morais José, Hoje Macau, 06/11/2014

Sempre a doer de tanta perfeição

Pedro Correia, 27.04.14

 

Há palavras que, por bons ou maus motivos, vão caindo em desuso. Tem acontecido com a palavra intelectual: poucos vocábulos foram tão trivializados e pervertidos como este. Muitos dos chamados intelectuais estiveram na primeira linha da defesa das causas mais indefensáveis, erguendo loas a sistemas totalitários que escravizaram corpos e espíritos. Ao contrário do que a nobre palavra indiciava, padeciam de "fuga da razão", segundo o certeiro diagnóstico feito por Paul Johnson.

Subsistem no entanto alguns intelectuais genuínos: senhores de uma cultura vastíssima, ancorada na reflexão permanente e no estudo constante do lastro milenar da sabedoria clássica de que somos transitórios legatários com a missão indeclinável de transmiti-la às gerações futuras. Com elevado sentido estético jamais dissociado de parâmetros éticos.

O intelectual genuíno recusa render tributo à ignorância travestida de sapiência, mesmo que seja propagada mil vezes pelas trombetas mediáticas: pelo contrário, é aquele que sabe questionar a falsa sabedoria erigida em dogma e tem a noção muito clara de que quanto mais sabemos mais adquirimos a certeza de que nunca saberemos o suficiente para impor a nossa verdade aos outros. Como ainda há dias nos ensinava a cientista Maria de Sousa numa notável intervenção no programa televisivo Expresso da Meia-Noite, mesmo naquele ramo do saber que se convencionou catalogar com o rótulo de ciências exactas a certeza não deve sobrepor-se à dúvida. "O que nos deve motivar não é o que sabemos mas o que não sabemos."

 

Ainda existem intelectuais que honram o carácter primordial desta palavra e do seu ambicioso conceito, mas para nosso mal são cada vez menos. Acabamos de perder um deles: Vasco Graça Moura -- poeta, ensaísta, novelista, cronista, tradutor de Dante, Petrarca, Racine, Molière, Shakespeare, Rilke e Lorca, com mais de meio século de vida literária -- morreu hoje, aos 72 anos. Tinha sido alvo de uma tardia homenagem do Estado -- sempre muito lesto a colectar impostos e demasiado lento a reconhecer o mérito dos cidadãos -- há menos de três meses. Homenagem que se arriscou a ser post mortem: naquela altura já se encontrava muito doente.

Antes disso fora justamente distinguido pela sociedade civil. Com o Prémio Pessoa e os prémios de Poesia do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Escritores, que também lhe atribuiu o Grande Prémio de Romance e Novela. Foi quase imperdoável não ter recebido o Prémio Camões: desde logo porque raros contemporâneos estudaram tanto e tão bem o autor d' Os Lusíadas como ele.

 

Devemos-lhe muito. Também no campo da mobilização cívica, pelo seu infatigável combate ao chamado "acordo ortográfico" imposto pelo poder político à revelia da comunidade científica portuguesa. Fui um dos seus mais modestos discípulos nesta luta contra uma "perversão intolerável da língua portuguesa", como justamente lhe chamou. E devo-lhe palavras simpaticíssimas a que talvez um dia faça pública referência: não é hoje o momento para isso.

Fica-nos dele a memória de um intelectual à moda antiga: alguém que nunca deixa a cultura para segundo plano sem perder um olhar crítico perante a actualidade, como demonstra o seu último texto, publicado há quatro dias no Díário de Notícias

Fica-nos também o exemplo: devemos travar um combate persistente e bem fundamentado pelas causas que acreditamos serem justas.

E fica-nos sobretudo a obra, que merece ser lida e relida -- desde logo a obra poética, notável a todos os títulos.

Como bem demonstra este seu Soneto do Amor e da Morte, que aqui transcrevo em comovido preito ao grande português que agora nos deixou.

 

"quando eu morrer murmura esta canção

que escrevo para ti. quando eu morrer

fica junto de mim, não queiras ver

as aves pardas do anoitecer

a revoar na minha solidão.

 

quando eu morrer segura a minha mão,

põe os olhos nos meus se puder ser,

se inda neles a luz esmorecer,

e diz do nosso amor como se não

 

tivesse de acabar, sempre a doer,

sempre a doer de tanta perfeição

que ao deixar de bater-me o coração

fique por nós o teu inda a bater,

quando eu morrer segura a minha mão." 

A demissão cívica dos intelectuais

Pedro Correia, 01.04.13

 

A morte de José Saramago é também a morte simbólica do intelectual que se indigna. Com o desaparecimento do autor de Levantado do Chão, encerra-se uma era caracterizada pela intensa participação de escritores e artistas na vida pública dos seus países e até na cena política internacional. A separação entre arte e vida não existiu para a maioria dos intelectuais do século XX: uma era o prolongamento natural da outra. Intelectuais como Zola (que, com o seu "J' Accuse", ainda no século XIX, influenciou as gerações que lhe sucederam), Gramsci, Bertrand Russell, Gide, Céline, Pound, Dos Passos, Malaparte, Malraux, Hemingway, Orwell, Sartre, Aron, Koestler, Camus e Simone Weil. À esquerda e à direita.

É certo que muitos desses intelectuais acabaram por apoiar alguns dos regimes mais despóticos da sua época, caucionando-os com a sua pretensa autoridade moral. Mas o reverso desta medalha, igualmente negativo, é a apatia dos intelectuais de hoje, que se comprazem a mirar o próprio umbigo e fogem cuidadosamente de tudo quanto cheire a controvérsia.

Pensemos à escala portuguesa: alguém se recorda de alguma atitude indignada de um intelectual, nos últimos anos, contra a corrupção galopante, a justiça descredibilizada, a economia inviável, as assimetrias sociais, o drama imparável do desemprego, as mentiras dos políticos? Calando-se agora a voz de Saramago, que nunca evitou as polémicas, sobra um silêncio conformista e resignado. Cada qual só se preocupa com a sua "obra", com as suas "vendas", com a sua vidinha, abdicando da intervenção cívica. A própria reforma ortográfica passou perante um generalizado encolher de ombros e quase sem um sussurro crítico dos "intelectuais", com a excepção honrosa de Vasco Graça Moura. Muito ao contrário do que sucedeu no final da década de 80, quando pela primeira vez a Academia de Ciências de Lisboa procurou impingir aos portugueses um "acordo ortográfico" que equivalia a uma rendição incondicional à norma brasileira.

É um sinal dos tempos. Nesta era de feroz individualismo, o intelectual regressa à torre de marfim. Ou imita aqueles distraídos xadrezistas de Bizâncio, de olhos concentrados no tabuleiro enquanto a cidade ardia. Compreende-se: é mais cómodo ser assim. Depois da intervenção cívica, a demissão cívica. E, no entanto, a Terra move-se.

 

Na sequência desta reflexão de Maria do Rosário Pedreira, reedito o texto originalmente publicado no DELITO DE OPINIÃO a 7 de Julho de 2010

 

O País numa caixa de comentários

Pedro Correia, 12.10.11

Tanto se fala e se escreve sobre o pequeno mundo da política. Mas pouco se escrutina o pequeno mundo da cultura. Às vezes, no entanto, vale a pena reparar nele. Porque é uma outra forma de percebermos melhor uma certa maneira de ser e de estar em Portugal. Espreitem, por exemplo, a caixa de comentários deste texto da excelente Maria do Rosário Pedreira e vejam até que ponto se ramifica o fio de polémica nele desencadeado. Não me pronuncio sobre o fundo da questão, até por desconhecer as obras dos dois nomes mais mencionados, mas sugiro um olhar atento a muitos comentários aduzidos. Mostram-nos melhor que mil discursos o que somos e como somos.

Teoria dos limites do potencial humano ou como tentar conferir respeitabilidade a um texto pateta através da utilização de uma citação e de um título pomposo

José António Abreu, 18.08.11

– Queria dizer que o trabalho cerebral debilitava a virilidade, razão por que tantos pintores vivem períodos de depressão profunda.

– E os escultores, não?

– Todos – resmungou Guido. – Todos os loucos que esforçam o cérebro que não sabem quando é tempo de parar.

Cesare Pavese, A Praia.

Edição Ulisseia, tradução de Ana Tomás.

 

Muito bem, isto explica por que motivo tantos intelectuais estão longe de parecerem monstros de virilidade e de optimismo. Pensam demais, logo f...azem outras coisas de menos e isso, naturalmente, entristece-os. Mas não deixa de ser curioso constatar como o inverso também é verdadeiro – como tantos rapazes musculados e raparigas pulposas transmitem a ideia de nunca terem aberto um livro na vida. Vai-se a ver e pode estimular-se cérebro e corpo até ao máximo do potencial de cada um deles mas não até ao máximo de ambos em simultâneo. 100% de intelectualidade exigem 0% de virilidade e 100% de virilidade têm como contrapartida só saber contar com o auxílio dos dedos e perceber o significado de «estúpido» mas não de «mentecapto» ou de «néscio». Se esta teoria estiver certa (e porque haveria de não estar, sendo Pavese um autor digno do maior crédito, mesmo em tempos de crédito difícil?), a maioria das pessoas será uma mistura de intelectualidade com virilidade (dois terços de uma para um terço da outra, por exemplo), sendo que muitas (nem deve ser preciso referi-lo, excepto ao Zezé Camarinha) nem à média de 50% conseguem chegar. Dois ou três exemplos, para além do já indicado? Nah, não vale a pena ferir susceptibilidades que o cérebro, especialmente nos indivíduos com reduzido teor de intelectualidade, é órgão cheio de ilusões. Convém é mencionar as inevitáveis excepções à regra, casos pouco frequentes de gente capaz de furar a escala e de chegar mesmo aos 60% ou aos 70% do potencial teórico, e que configuram o que poderá ser tecnicamente designado por anomalias genéticas ou sacanas com sorte (também poderia usar-se o termo «génios» mas para tal seria necessário que outra pessoa estivesse a escrever isto). Tudo indica que a proporção entre intelecto e virilidade se altera ao longo da vida mas, sem ajuda de comprimidinhos azuis ou de almofadas de silicone, não no melhor sentido. Por seu turno, o dinheiro é um excelente substituto tanto de virilidade como de intelectualidade, permitindo a algumas pessoas com índices corriqueiros viverem como se fossem efectivamente especiais (sim, it's an injustice, it is). 

 

Porém, estabelecida a teoria, tem de ser considerado facto estranho existirem intelectuais: levando em conta aquilo de que se prescinde, qualquer humano com dois neurónios funcionais evitaria tão activamente quanto lhe fosse possível desenvolver os restantes. Por que aceitam então alguns fazê-lo? Talvez a explicação seja simples, ainda que não simpática: ser intelectual é sempre um refúgio, um último recurso. É, no fundo, imaginar uma virilidade.

 

Adenda: julgo que este post é suficientemente idiota para deixar claro que eu estou muito longe de ser um intelectual.

A demissão cívica dos intelectuais

Pedro Correia, 07.07.10

 

A morte de José Saramago é também a morte simbólica do intelectual que se indigna. Com o desaparecimento do autor de Levantado do Chão, encerra-se uma era caracterizada pela intensa participação de escritores e artistas na vida pública dos seus países e até na cena política internacional. A separação entre arte e vida não existiu para a maioria dos intelectuais do século XX: uma era o prolongamento natural da outra. Intelectuais como Zola (que, com o seu "J' Accuse", ainda no século XIX, influenciou as gerações que lhe sucederam), Gramsci, Bertrand Russell, Gide, Céline, Pound, Dos Passos, Malaparte, Malraux, Hemingway, Orwell, Sartre, Aron, Koestler, Camus e Simone Weil. À esquerda e à direita.

É certo que muitos desses intelectuais acabaram por apoiar alguns dos regimes mais despóticos da sua época, caucionando-os com a sua pretensa autoridade moral. Mas o reverso desta medalha, igualmente negativo, é a apatia dos intelectuais de hoje, que se comprazem a mirar o próprio umbigo e fogem cuidadosamente de tudo quanto cheire a controvérsia.

Pensemos à escala portuguesa: alguém se recorda de alguma atitude indignada de um intelectual, nos últimos anos, contra a corrupção galopante, a justiça descredibilizada, a economia inviável, as assimetrias sociais, o drama imparável do desemprego, as mentiras dos políticos? Calando-se agora a voz de Saramago, que nunca evitou as polémicas, sobra um silêncio conformista e resignado. Cada qual só se preocupa com a sua "obra", com as suas "vendas", com a sua vidinha, abdicando da intervenção cívica. A própria reforma ortográfica passou perante um generalizado encolher de ombros e quase sem um sussurro crítico dos "intelectuais", com a excepção honrosa de Vasco Graça Moura. Muito ao contrário do que sucedeu no final da década de 80, quando pela primeira vez a Academia de Ciências de Lisboa procurou impingir aos portugueses um "acordo ortográfico" que equivalia a uma rendição incondicional à norma brasileira.

É um sinal dos tempos. Nesta era de feroz individualismo, o intelectual regressa à torre de marfim. Ou imita aqueles distraídos xadrezistas de Bizâncio, de olhos concentrados no tabuleiro enquanto a cidade ardia. Compreende-se: é mais cómodo ser assim. Depois da intervenção cívica, a demissão cívica. E, no entanto, a Terra move-se.