Instantes em sépia com capa de muitas cores (30)
Sei lá eu
Sei lá eu...
É apenas para viver.
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Sei lá eu
A Luada
Maluquices
Todos temos a nossa dose de loucura, com a qual passamos a vida toda a tentar rastrear, conhecer, manobrar, enfim encontrar habilidosamente o melhor modo de com ela conviver.
O que é que nos faz diferentes e ao mesmo tempo tão iguais não é o conhecimento, nem a aptidão, nem a agilidade, mas sim a capacidade de controlar o animal que somos, de domesticar a selvajaria que nos assola, de reprimir a raiva que nos sufoca. O ténue verniz da civilização que nos reveste estala ao mais pequeno toque e a bestialidade que vive sob o polimento solta-se e vocifera e mata e esfola e grita e espuma e arranha…
É a loucura total.
O que é que nos faz rir incontrolavelmente de coisa nenhuma, o que é que nos faz chorar convulsivamente por rigorosamente nada, o que é que nos faz gritar desvarios a plenos pulmões sem qualquer razão?
Na era da tecnologia, onde tudo está ao alcance dum clique, ainda não há como medir a loucura e o clique é por vezes o bastante para virar tudo de pernas para o ar.
Se eu hoje aventar uma opinião considerada polémica, sou rotulada de louca. Amanhã, noutra latitude, a mesma opinião, com toda a controvérsia inerente, pode ser considerada uma tirada genial.
O louco mais louco, debaixo da sua capa de sanidade, é provavelmente menos suspeito de ser louco do que os reconhecidamente loucos, que não tentam sequer esconder a sua loucura .
Costuma dizer-se que a genialidade e a loucura andam de mão dadas, numa roda talmente acelerada em que o olho incauto não capta a noção de quem é quem ou o quê.
O EAN/UPC de um cérebro em série ainda não traz um dígito de verificação funcional.
Pessoas há para quem escrever é catártico e um modo de expurgarem os delírios e se resolverem em paz com a própria loucura.
"A ciência não averiguou ainda se a loucura é ou não a mais sublime das inteligências." – Edgar Allan Poe
(Imagem retirada da internet)
As gotas de água caiam esparsas mas pesadas, ploc ploc, no nariz, na cabeça, na boca aberta, escancarada num meio sorriso que me rejuvenesce meio século.
Algures nas entranhas da mala que me oscila no ombro, aquele alforge de bufarinheiro que me é tão característico, conservo trezentos e sessenta e cinco dias por ano, um projecto de guarda-chuva, encolhido e amarfanhado. "Nunca se sabe", digo, quando me criticam ... é bem verdade que a mala pesa arrobas e que eu não sei precisar com exactidão o que por lá vai...
Penso um nanososegundo e continuo à chuva. - A senhora quer "boleia" no meu chapéu? - Não, pequeno, obrigada, estou bem assim, faz-me remoçar. Ele riu... remoçar, pois sim.
Preguiça ou vontade de me molhar? Nem eu sei ao certo, mas que sabe bem... uma poça à frente, pulo? Ora, se já estou molhada, porque não ? Fico encharcada até aos joelhos. O rapaz olha para mim atónito ... nunca, mas nunca... que coisa esta !? - Quer esperar aqui enquanto vou buscar o carro ? Ficou lá em cima no largo. - Não, vou contigo, não quero ficar aqui sozinha à chuva a esta hora da noite. - Mas é sempre a subir. - Não faz mal, a caminhada faz-me bem.
Respirei fundo e arrepiei caminho, calçada a cima. Tentei acompanhar a passada. O rapaz é maratonista e eu apenas anafada... controlar a respiração... não sou atleta, cruzes... Inspira pelo nariz... expira pela boca... raio, será que o maldito carro ainda está longe ? Isto de não dar parte de fraca é complicado.
Trauteei mentalmente o " Joana come a Papa", provavelmente por ser um, dois três, uma colher de cada vez... Finalmente ! Deslizei o mais levemente que consegui para o banco. A música metálica jorrava rádio afora e os decibéis disfarçaram o abalo de Richter provocado pelos meus batimentos cardíacos.
O carro cheirava a novo e eu a saltar pocinhas... não admira que o rapaz olhasse de lado aquela mostra de infantilidades nimbosas.
Anatomia de Gray
Depois de mais uma noite com o jetlag resultante da falta de repouso a reaparecer assim do nada, como um post-it do subconsciente a relembrar que as intermitências do descanso e do cansaço andam de mãos dadas e são inseparáveis univitelinas, saltei do calor que já sentia quente demais para a amenidade do tapete afegão, provavelmente contrafeito em Taiwan e vendido aos incautos com um preço promocional fantástico, um autêntico negócio da China, como acreditei na altura.
Quando se tem 6 ou 7 anos, crenças, verdades absolutas e mitos (que não sejam o Papão ou o Pai Natal) ainda estão longe das nossas questões existenciais mais prementes e queremos pouco saber quem somos, de onde viemos, para onde vamos, se somos uma criação divina ou apenas uma espécie mais evoluída, se a essência precede mesmo a existência... dentre todas questões que nos assolam na idade dos porquês, estas não são seguramente as que martirizam a nossa realidade.
Ser belo
Charadas
São os enigmas mistérios ? São os mistérios enigmas?
Será um mistério mais enigmático quanto mais misterioso se apresentar, ou vice versa, como diz Newton com a sua encriptção do calculo 6accdae13eff7i3l9n4o4qrr4s8t12vx ?
A ambiguidade do inexplicável explica que a explicação é um simples anagrama cuja cifra decifrada diz que "Data aequatione quotcunque fluentes quantitates involvente, fluxiones invenire; et vice versa"( “Dada uma equação que contenha um número qualquer de quantidades fluentes, encontrar as fluxões, e vice-versa”) , o que para muitos continuará a ser o enigma dos enigmas.
Será mais misterioso o enigma da Esfinge ou mais enigmático o mistério dos rapanuis ?
Será a Enigma criptográfica e decifradora mais um dos mistérios da criação humana ?
Será o amor um enigma repleto de mistério, ou o mistério mais enigmático de quantos mistérios existem ?
Será o mistério indecifrável duns olhos negros o enigma - chave do códice duma alma em ebulição ?
Será o enigma da sombra de um sorriso um dos mistérios maiores dos iluminados renascentistas ?
"Misteriosos são os caminhos do senhor" diz a enigmática frase que à luz do sagrado explica ao profano o enigma da existência, como se fosse o bastante para aplacar a inquietude e a dor.
Se a vida for um enigma e a morte um mistério, como explicaremos o Mistério do Ovo, o que apareceu no quintal, o que não era da porca, ou da gata ou da coelha e estava cheio de vida ?
E o que dizer do enigma das pirâmides que eram túmulos que glorificavam a morte?
E que direi eu de refeições light onde pululam verduras enigmáticas e moles, de paladar duvidoso e indefinido , que misteriosamente me fazem ganhar o peso que deveria de perder? Se amanheci com 4 pernas e conquistei o uso de duas, gostaria de conseguir alcançar tranquilamente o crepúsculo da terceira sem ser a rebolar, mas esse mistério é um enigma de palavras tão cruzadas, que por muito que as descruze não sei se saberei se será o bastante para me cruciar.
Redacção :
Gosto de viver nos livros.
O livro é aquele companheiro silencioso que tem o poder de te abstrair do espaço e do tempo, de te transportar na crista de uma onda, cabelos ao ar e borrifos salgados de mar e sangue, alvoroço e aventura, por entre troar de canhões, gritos e mastros quebrados que tombam gementes, arrastando consigo as cruzes derrotadas, trapos rasgados e sujos que o orgulho oco não insuflará mais.
Os meus livros falam comigo. Abrem-me portas para o espaço brilhante de nebulosas prenhes de mundos esdrúxulos tão atípicos e monumentais como as criaturas que neles habitam e que, como o livro que seguro, comunicam sem falar, sem som nem movimento, límpida e cristalinamente como se eu fosse um náufrago sequioso de saber e o conhecimento a única panaceia.
Aquele terceiro acolá na estante, acompanhou-me na caravana de mercadores que atravessou meio mundo até Cathay e Manji; dois tomos a seguir sorri-me o que me levou à ilha dos homens pequenos e de regresso pela terra dos gigantes. Na prateleira de cima sinto o cheiro das Ramblas à noite, de Macondo ao entardecer, e oiço o pregão das Bahianas coloridas com perfume de cravo na areia do Agreste.
Baixo-me e retiro o último do transmontano dos países baixos, que me intriga pela objectividade da escrita, que me faz sempre pensar em biografia, sempre, sempre que o leio.
Lá no alto, inacessíveis e ostensivos, estão os grandes. Os maiores em tamanho e preferência também. O que canta o peito ilustre lusitano ao lado duma série de lombadas iguais em cor e diferentes em tamanho, todos da família daquele que nos mostra o interior austero do Ramalhete. Com um pequeno busto do cego a separá-los ressalta a sua própria obra épica, bem como o clássico do romano que lhe dá seguimento. Este último confidenciou-me que o amor é algo terrível, que destrói corações e leva à loucura e à morte. Os russos, na prateleira abaixo, confirmam que sim, que a confidência do colega é exacta, basta lê-los também.
São tantos, tão interessantes e fartos no saber das coisas que contam, que me encantam e fazem desejar mais e mais, cada ver mais, dezenas, centenas, muralhas de cultura e fantasia, camaradas de muitas horas, amigos de sempre.
Os meus livros falam comigo, são meus confidentes, contam-me coisas, fazem-me rir, chorar, ficar suspensa dum gesto, reter a respiração, acelerar a pulsação, vibrar o coração.
Viver nos livros é poder viver muitas vidas, é enganar o tempo e renascer continuamente no mar, nos céus, nos desertos, com o sol ou com a lua, em descrições tão vivas como quadros renascentistas ou fotos de alta definição.
Sem palavras com falas audíveis, sentimos apenas o feitiço e a emoção que te sussurra ao olhar enquanto a seguras e avidamente lhe mudas a página.
Mescalina
Embarquei no Karaboudjan numa tarde cinzenta de Junho. Quis fugir aos arraiais, ao cheiro a peixe assado à folia e aos autos de fé que emergiam das brasas de cada fogueira, ao som da excomunhão pimba, esganiçada na voz de um qualquer debochado animador de 5ª categoria. Que local melhor para enterrar recordações do que a bordo dum pesqueiro enredado em mistério e vício, onde caras lúgubres desapareciam em cada canto de cada sombra, como enguias negras viscosas e escorregadias, deixando no ar promessas de aventuras ilícitas, tórridas e tão sujas como o chão do passadiço, que fedia ao negrume duma noite que se anunciava breve.
Não gosto de barcos. São prisões flutuantes repletas de enjoo e perversão, onde gritos e gemidos se confundem com o marulhar das ondas que fustigam incessantes de bombordo a estibordo, entontecendo, agoniando, golfando espuma e vinagre sob aquele odor permanente a mofo e sal.
Dois dias sem largar a enxerga, sem noção da irrealidade que se dependurava da parede numa lâmpada fraca e suja, sem conter sustento nem reconhecer hálitos nas faces desfocadas que iam e vinham.
Ao terceiro dia avistámos a ilha Kirrin, encimada pelo triste e pequeno castelo em ruínas. Atracámos e vi-os olharem-me, fixos e vazios na escarpa mais alta. Contei-os. Eram cinco. A sua presença sobrepunha-se a todos e a tudo ao seu redor, enormes e assustadores gigantes de pedra. Estavam dois meses, quase três atrasados: a Páscoa fora em Abril.
Uma velha escura e enrugada de mãos postas e ancas bamboleantes, pôs-me um Katak ao pescoço e ofereceu-me um galo preto e um Cohiba, enquanto subíamos pelo trilho dos druidas, vereda estreita e frondosa, pontuada com dolmens do tamanho de casas em que o musgo criara cabelo dançante à passagem das almas e onde por debaixo dos nossos pés se movimentavam exoesqueletos maiores do que punhos fechados.
Sob a sombra dum salgueiro ululante, serviram-me um gumbo de peixe quase em papa numa marmita amolgada que fedia a ranço e amarelo, acompanhado duma zurrapa alcoólica com sabor a cacto e a miragem.
Do promontório, o azul do mar era uma bênção. Lembrei-me das Célticas e de Puck, e deixei-me chorar as tristezas que correram pelo glaciar do fiorde maior e se transformaram imediatamente num gelo cinzento, tão cinzento como os meus dias.
O Delta via-se já ao longe, por entre a folhagem e o serpentear do rio. A chaminé fumegava e a grande roda girava, ruidosa. Era o Mary, orgulhoso e imponente, rodando as pás em volta do eixo, como a terra no seu periélio após cada solstício! Espreitei para dentro da manga e vi lá o às de espadas. Apertei o passo, louca de alegria, como se tivesse 7 anos e um brinquedo novo. Estava quase lá.
Carrossel
A música não é sequer musical, não é melodiosa, não flui no ar como bolhas de sabão que reflectem rostos contentes e arco-íris de satisfação. É mais um som de ruidoso contentamento, misturado com tinir de vidros e porcelanas, risos e choros de crianças, gargalhadas e reclamações de indignação.
A luz é doce e difusa, entrecortada permanentemente pelas sombras dos que sobem e dos que descem, sombras grandes, pequenas, largas, estreitas, amargas ou confortadas.
É a magia do carrossel, no seu esplendor centenário, que atrai as idades como insectos para luz, em filas intermináveis e ordeiras, todos expectantes e entusiasmados, todos contando os minutos ao segundo, todos desejando chegar rápido a sua vez de subir no carrossel.
A velha que carrega no botão olha-os a todos já sem os ver. São tantos, tantos anos, tantas caras, tantas vozes, tantas e tão diferentes auras de emoção. Vão entrando e ocupando os lugares, a cavalo num alazão de madeira, numa girafa ou num leão, numa carruagem sem corcel, numa chávena de chá que rodopia incessante. A velha faz soar a buzina e começa mais uma volta. São minutos de deleite em que a realidade fica à porta e a fantasia se segura pelas rédeas daquela crina de palha. São momentos para saborear, para degustar com a sensibilidade e a pureza da infância, que se intromete por um instante e abafa a acrimónia da soberba e a alienação da existência.
A velha não precisa de ver para saber. O carrossel é antigo, mas é sólido. Como qualquer carrossel que se preze, ondula pelos altos e baixos do seu percurso fixo naquele mastro central, transportando os seus passageiros num arrebatamento de doçura e emoção, com pequenos objectos espelhados, reflectindo trejeitos mélicos de bulício colorido e adocicado.
A velha sabe que os tempos são outros e que todos querem a atenção dispensada a monarcas, sentar-se em tronos de reis, que as vénias não demorem e que se lhes afague o ego com aquele unto repelente que segregam e os torna semi-deuses no seu feudo particular.
A velha sabe que não há tronos no carrossel. É para todos, para todas as bolsas, para todas as cores, para todas as greis. Mas a velha também sabe que a ilusão da felicidade se obtém em dando a todos o que cada um pensa que o faz feliz. É por isso que a velha murmura, sorri e inventa tronos em montes de pedras.
Dias há em que os auto-reis se creem sentados no carrossel em cadeirões magistrais de veludo bordado a ouro. Então a velha sabe que esteve bem, apesar de não poder deixar de pensar no quão ocas e tristes de viver serão aquelas vidas arrogantes.