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Delito de Opinião

Magris de luxo

Sérgio de Almeida Correia, 02.03.18

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"Entre as coisas que distinguem a vida sentimental dos seres humanos está também a modesta, mas não irrelevante, diferença entre quem tem a vocação de "andar com" e de quem tem, por sua vez, a de "estar com". A primeira tem uma dignidade moral que supera a segunda. "Andar com" é um eros claro e honesto, que não promete falsamente, nem a si próprio nem aos outros, uma duração, nem simula a partilha do bem e do mal da existência – como se se tratasse de um casamento ou de uma união completa, profunda e duradoura – e, precisamente por este franco desencanto, pode também transmitir ternura, afe[c]to e amizade destinados a durar além do breve encontro.

"Estar com", ao invés, é frequentemente a auto-enganatória paródia do casamento, significa partilhar a existência durante seis meses ou um ano, mas com todas as obrigações e as regras do casamento: fidelidade recíproca pro tempore, um casal fixo que deve ser convidado em conjunto, coabitação, laços de família a tempo determinado incluindo sogros e sogras, simulação melancólica ainda que sincera de serem uma só carne, incapacidade de viverem sozinhos. "Estar com" é bem diferente de reconstruir uma existência ou fundar uma nova união sentimental depois do falhanço ou, todavia, do fim de uma relação precedente, interrompida pela incompreensão, pela morte, pela incompatibilidade ou pelo esgotamento afe[c]tivo. "Estar com" é a programação, consciente e inconsciente, de muitos sucessivos mini-casamentos, já previstos a priori.

A minha vizinha tem um rosto terno e temerário; na sua boca não existe nem uma prega acídula gravada pela presunção agressiva, nem tampouco a repulsiva dureza muitas vezes esculpida, em certas classes, pelo hábito e sobretudo pelo desejo de sublinhar a própria pertença aos Senhores. Com aquele rosto, que se intui ser capaz de paixões e de ternura, aquela mulher merecia um verdadeiro companheiro ou o amante de uma noite, em vez de um namorado, como se costuma dizer quando se "está com", recorrendo a uma palavra que, já como prelúdio aos casamentos de outrora, soava a qualquer coisa bastante insulsa."

 

Cada vez mais incontornável. O que se aprende com um tipo destes, e como se torna tão fácil olhar para dentro, para trás e para a frente. Para o que somos, para o que nunca fomos, para o que deixámos no passado. Não é possível resistir à sua simplicidade profunda, à forma como nos descontrai página a página para nos tornar mais humanos, mais reais, mais sensíveis. Ternura ..., há quanto tempo não lia essa palavra. 

Incontornável. Por estas e por outras. Magris soberbo, dilacerante. Em 1.ª edição. De luxo, pela Quetzal, não fora o acordês. Ainda assim. Genuíno. Puro. Para ler e reler.