Gólgota fiscal
Tcharããã! Patati, patata, isto e aquilo, nos termos do art.º tal, à luz da sua alínea xis, e conjugando com o diploma assim e assado, não obstante o entendimento que se poderia alcançar do estatuído além, e no uso de competência própria réu-que-ta-péu:
“Tendo em conta a existência desta preterição de formalidade essencial que inquina as liquidações reclamadas na parte que tem por base a aplicação de métodos indiretos, será de deferir a pretensão do reclamante nesta parte, mantendo-se a correção aritmética efetuada e, que, não é posta em crise neste procedimento. Relativamente aos restantes argumentos alegados pelo reclamante… a sua análise fica prejudicada, pois não vai acrescentar mais ao deferimento já alcançado com o primeiro argumento”.
Ou seja: Com base em métodos indirectos (isto é, presunções porque sim, esta contabilidade é uma confusão e além disso não está sol e o gerente tem um ar suspeito) uma empresa viu cativadas restituições de IVA – o que, só por si, numa exportadora, é uma sentença de morte – e de IRC, a culminar um processo de cerca de 100 notificações diferentes, ao longo de meses, a penhorar veículos de trabalho, materiais, incluindo já consumidos no processo produtivo, saldos bancários, etc.
Mas, ups, não devia ter sido assim. E o gerente da empresa, para quem todas as dívidas fiscais reverteram, vê agora com indisfarçável gosto reconhecido que era talvez um pouco demais ser responsável pelo pagamento de impostos em falta que tinham o vício insanável de não existirem.
Então, acabou tudo bem? Nem por isso, porque ficou para trás o IMI de 2017 (aleluia, um imposto que realmente era devido), que a empresa não pagou porque já estava praticamente manietada. Coisa de uns 900 Euros mais juros, que o tribunal virá provavelmente dizer, em devido tempo, que devem ser pagos pela massa insolvente e não por quem viu a empresa que cofundou há mais de duas décadas ser arrasada por um blitzkrieg fiscal. Aliás, mesmo depois da decisão cuja parte final foi acima transcrita, foi ainda necessário requerer a um departamento do Fisco que anulasse o processo de reversão em curso, visto que quem decidiu tinha competência para o fazer mas não se deu ao excessivo trabalho de informar o serviço em questão nem de apurar se não haveria acertos que era preciso fazer nem, muito menos, de apresentar um mea culpa pela inépcia, o abuso e a prepotência. O qual departamento, graças a Deus, reconheceu que, efectivamente, reverter impostos que não são devidos exorbitava um tanto do seu múnus, que consiste em pilhagens com a devida cobertura legal.
Mas o IMI não conta porque é uma coisinha. As pontas soltas é que devem ocupar fartos anos: dos dois bancos credores de dívidas integralmente garantidas por avales, um já se fez pagar, mesmo que nunca tivesse provado que o montante da dívida era o que reclamava, mas o outro tem vindo penosamente a ser pago, através de penhoras de pensões de velhice, não sendo porém credível que o assunto cause especiais preocupações, já pelo montante da dívida, que empana, pela sua exiguidade, o prestígio do empresariado do Vale do Ave, já porque vence juros; e a restituição das verbas indevidamente cativadas, que não pode ser feita à empresa porque esta já não existe, nem aos gerentes porque são titulares de responsabilidades mas não de direitos, tem ainda de correr a via dolorosa de apuramento dos montantes, prova da cativação, requerimento bem fundamentado e orações a gosto porque os serviços pertinentes do Estado têm enraizada a convicção de que não o aviltam quando não agem como pessoas de bem.
De resto, o patrão político desta escumalha infecta, que é o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, tem sido de há uns anos a esta parte uma personagem sinistra que julga que a sua missão consiste em aumentar a receita do Estado seja como for, desde que tenha o cuidado de passar para a opinião pública a ideia de que toda a lei iníqua, interpretação capciosa e abuso do familiar do Santo Ofício que é o funcionário se justificam em nome do combate à evasão fiscal.
Os trabalhadores e restantes credores juros não recebem. Nem nada, dado que a situação do edifício e das máquinas é hoje a mesma que existia quando foram vendidos em leilão em 19 de Dezembro de 2019, isto é, a que se descrevia neste post. Os antigos fornecedores que ficaram a arder nem sequer puderam deduzir o IVA que suportaram e nunca receberam – o respectivo processo é um percurso abracadabrante porque a simples ideia de que ninguém deveria ser obrigado a pagar o que não cobrou não entra nas socialistas cabeças que engendram estas mecânicas.
É esta a quarta vez que regresso, com actualizações, a esta história. Será bom sinal se puder um dia contar-lhe o fim porque a blogosfera ainda existirá talvez, e eu também.