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Delito de Opinião

Gólgota fiscal

José Meireles Graça, 06.04.22

Tcharããã! Patati, patata, isto e aquilo, nos termos do art.º tal, à luz da sua alínea xis, e conjugando com o diploma assim e assado, não obstante o entendimento que se poderia alcançar do estatuído além, e no uso de competência própria réu-que-ta-péu:

“Tendo em conta a existência desta preterição de formalidade essencial que inquina as liquidações reclamadas na parte que tem por base a aplicação de métodos indiretos, será de deferir a pretensão do reclamante nesta parte, mantendo-se a correção aritmética efetuada e, que, não é posta em crise neste procedimento. Relativamente aos restantes argumentos alegados pelo reclamante… a sua análise fica prejudicada, pois não vai acrescentar mais ao deferimento já alcançado com o primeiro argumento”.

Ou seja: Com base em métodos indirectos (isto é, presunções porque sim, esta contabilidade é uma confusão e além disso não está sol e o gerente tem um ar suspeito) uma empresa viu cativadas restituições de IVA – o que, só por si, numa exportadora, é uma sentença de morte – e de IRC, a culminar um processo de cerca de 100 notificações diferentes, ao longo de meses, a penhorar veículos de trabalho, materiais, incluindo já consumidos no processo produtivo, saldos bancários, etc.

Mas, ups, não devia ter sido assim. E o gerente da empresa, para quem todas as dívidas fiscais reverteram, vê agora com indisfarçável gosto reconhecido que era talvez um pouco demais ser responsável pelo pagamento de impostos em falta que tinham o vício insanável de não existirem.

Então, acabou tudo bem? Nem por isso, porque ficou para trás o IMI de 2017 (aleluia, um imposto que realmente era devido), que a empresa não pagou porque já estava praticamente manietada. Coisa de uns 900 Euros mais juros, que o tribunal virá provavelmente dizer, em devido tempo, que devem ser pagos pela massa insolvente e não por quem viu a empresa que cofundou há mais de duas décadas ser arrasada por um blitzkrieg fiscal. Aliás, mesmo depois da decisão cuja parte final foi acima transcrita, foi ainda necessário requerer a um departamento do Fisco que anulasse o processo de reversão em curso, visto que quem decidiu tinha competência para o fazer mas não se deu ao excessivo trabalho de informar o serviço em questão nem de apurar se não haveria acertos que era preciso fazer nem, muito menos, de apresentar um mea culpa pela inépcia, o abuso e a prepotência. O qual departamento, graças a Deus, reconheceu que, efectivamente, reverter impostos que não são devidos exorbitava um tanto do seu múnus, que consiste em pilhagens com a devida cobertura legal.

Mas o IMI não conta porque é uma coisinha. As pontas soltas é que devem ocupar fartos anos: dos dois bancos credores de dívidas integralmente garantidas por avales, um já se fez pagar, mesmo que nunca tivesse provado que o montante da dívida era o que reclamava, mas o outro tem vindo penosamente a ser pago, através de penhoras de pensões de velhice, não sendo porém credível que o assunto cause especiais preocupações, já pelo montante da dívida, que empana, pela sua exiguidade, o prestígio do empresariado do Vale do Ave, já porque vence juros; e a restituição das verbas indevidamente cativadas, que não pode ser feita à empresa porque esta já não existe, nem aos gerentes porque são titulares de responsabilidades mas não de direitos, tem ainda de correr a via dolorosa de apuramento dos montantes, prova da cativação, requerimento bem fundamentado e orações a gosto porque os serviços pertinentes do Estado têm enraizada a convicção de que não o aviltam quando não agem como pessoas de bem.

De resto, o patrão político desta escumalha infecta, que é o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, tem sido de há uns anos a esta parte uma personagem sinistra que julga que a sua missão consiste em aumentar a receita do Estado seja como for, desde que tenha o cuidado de passar para a opinião pública a ideia de que toda a lei iníqua, interpretação capciosa e abuso do familiar do Santo Ofício que é o funcionário se justificam em nome do combate à evasão fiscal.

Os trabalhadores e restantes credores juros não recebem. Nem nada, dado que a situação do edifício e das máquinas é hoje a mesma que existia quando foram vendidos em leilão em 19 de Dezembro de 2019, isto é, a que se descrevia neste post. Os antigos fornecedores que ficaram a arder nem sequer puderam deduzir o IVA que suportaram e nunca receberam – o respectivo processo é um percurso abracadabrante porque a simples ideia de que ninguém deveria ser obrigado a pagar o que não cobrou não entra nas socialistas cabeças que engendram estas mecânicas.

É esta a quarta vez que regresso, com actualizações, a esta história. Será bom sinal se puder um dia contar-lhe o fim porque a blogosfera ainda existirá talvez, e eu também.

Destruição não-criativa

José Meireles Graça, 16.02.22

Em Agosto de 2019 contava a história verídica de uma empresa que foi assaltada pelo Fisco e obrigada a insolver.

Em 19 de Dezembro do mesmo ano o edifício e recheio foram à praça, o conjunto tendo sido arrematado pelo valor base da licitação. E mais de um ano volvido repegava na história para informar que ninguém tinha ainda visto um cêntimo dos 840.950,00€.

Já antes dois bancos credores haviam demandado os avalistas.

O país, impressionado pelos casos do BES, do BCP e dos outros, julga que os devedores à banca se ficam a rir e que quem encosta a barriga ao balcão é o contribuinte. Será, mas isso é para quem bebe do fino. O pequeno empresário tem como única defesa preventiva o não ter bens em seu nome, nem rendimentos declarados; e não faltaram no momento próprio advogados dos bancos (em sentido adjectivante: não propriamente advogados, antes com frequência economistas preopinando na comunicação social e no Parlamento) que, no que toca ao tratamento a dar às dívidas emergentes do crédito à habitação, defenderam com lata que quando o contratante, por ter perdido o emprego, deixasse de poder pagar as prestações, a entrega do bem não fosse ainda assim suficiente para extinguir o remanescente da dívida.

Desses dois bancos um já foi integralmente ressarcido (por valores que excediam o da dívida e com base em contas obscuras – o banco diz que se deve e pronto – mas nem por isso deixou de figurar como credor na lista respectiva, que se saiba), e o outro penhorou as pensões de dois ex-gerentes mas, nos mais de dois anos entretanto decorridos, recebeu aparentemente zero (se foi assim, graças a Deus não envia informação, senão ainda a debitava) porque os penhorados lá sem o dinheiro ficaram e continuam a ficar, mas a punção fica à guarda do processo, se é assim que se diz.

Ou ficava. Porque recentemente (e daí o ter regressado a este filme) fui notificado de que do bolo até agora recolhido o senhor Agente de Execução recebe, a título de honorários, 7.303,33€ mais 1.961,06€ de IVA, bem como um pouco mais de 800 Euros para despesas e alcavalas, e doravante o arame vai ter directamente ao credor, assim como o que já sobra depois destas deduções.

A dívida é que não para quieta porque entretanto conta juros (à taxa de 4%). E como com o produto da venda, conforme expliquei no segundo dos posts acima lincados

(… o edifício e as máquinas referidos na história para que remete o primeiro parágrafo foram leiloados em Dezembro e o conjunto foi arrematado por um valor que, mesmo sendo como foi de uva mijona, excedia largamente a totalidade do endividamento da firma, se excluirmos as indemnizações ao pessoal (decorrentes da insolvência que o Fisco induziu), a parte do endividamento que era, na realidade, capital, por não ser exigível nem implicar serviço de dívida, e a imaginária dívida fiscal, baseada em vendas sem factura que nunca existiram nem poderiam ter existido dada a natureza dos bens, os destinatários, que eram em mais de quatro quintos clientes de outros países, e o volume, por se tratar de bens de equipamento de grande atravancamento que implicariam gigantescas movimentações de TIRs clandestinos – uma fantasia que só poderia caber na cabeça retorcida de umas moças ou moços que ganham a vida estragando a de outros, sob a férula de uma hierarquia de agentes da Gestapo…)

uma parte, ou a totalidade, da dívida (obscuramente calculada, mais uma vez), já deveria ter sido liquidada há muito, isto vem a significar na prática que o executado paga juros pela inoperância de quem não escolheu e não tem qualquer incentivo para pôr termo a este escândalo em forma de exacção. Na prática, é isto: um banco fez um bom negócio e o outro está fazendo, a menos que se entenda que a taxa de juro de 4% não é suficiente; os agentes de execução (há vários) cumprem ronceiramente o seu papel; o administrador da insolvência não trabalhará de graça e, no fim, se se der ao trabalho de informar (porque direitos tem todos e obrigações menos) talvez se possa saber quanto ganhou; o arrematante não pagou até agora nada, não obstante as máquinas já lá não se encontrarem; o edifício degrada-se e o logradouro é hoje parque de estacionamento dos vizinhos; e o Fisco já fez reverter pressurosamente a imaginária dívida fiscal, que estadeia em tribunal.

Casos como este haverá muitos. E nada, absolutamente nada, nesta história, releva do domínio das inevitabilidades: a propósito do sistema fiscal português fala-se muito das taxas de imposto e pouco do regime de cobrança, mas é neste que se alojam absurdos inquisitoriais como a inversão do ónus da prova e a obrigação de pagar (ou apresentar garantias bancárias) para ter o direito de impugnar. E cabe lembrar, por exemplo, que o regime predatório do IVA (pagar impostos não recebidos como se fosse obrigação própria é apenas uma forma de racketeering, e quem o defende ou é ignorante, ou desonesto, ou comunista) só na propaganda tem de ser como é, sob a desculpa de o arranjo ser europeu.

Sobre fiscalidade tenho escrito muito e sobre o nosso instituto falimentar nada. E todavia, como este caso ilustra, os assuntos andam ligados: um Estado de onde está ausente o conceito de pessoa de bem não pode senão produzir, em casos limite, aberrações.

Estas aberrações não o são apenas porque o espírito das leis, numa sociedade civilizada, resulta ofendido quando um cidadão o é nos seus direitos; também porque a pitança que alguns ganham com o arrastar das coisas é o preço de unidades fabris decaírem sem proveito para ninguém. Liberais agudos, intelectuais profundos e economistas tontos, com perdão da redundância, são adeptos da destruição criativa. Eu acho que se ela resultar do jogo das forças do mercado está na ordem natural das coisas; e se resultar de intervenções do Estado na ordem antinatural do intervencionismo pateta.

Advogados neste processo há alguns, com diferentes especialidades e níveis de competência. Até o do Sindicato confessa: temos de esperar. Coitados: se lhes perguntasse responderiam decerto que vivemos num Estado de Direito.

Estado de Não-direito

José Meireles Graça, 14.03.21

“Um dos pedidos que ouço mais frequentemente sobre o efeito das medidas não farmacêuticas na evolução da epidemia é o da apresentação dos estudos que demonstrem que as medidas não farmacêuticas não têm qualquer efeito. Devo dizer que é um pedido profundamente estúpido”, afirma Henrique Pereira dos Santos, que a seguir invoca apropriadamente o monstro do Loch Ness:

“Corresponde a alguém pedir-me a demonstração científica de que não existe o monstro de Loch Ness, o que não faz o menor sentido porque a ciência não pode demonstrar que uma coisa não existe, o que pode é demonstrar que existe e, na ausência dessa demonstração, levantar a hipótese de que não exista”.

Está, como de costume, coberto de razão e, também como de costume, a bradar no deserto. A razão que não cessa de ter ser-lhe-á dada retrospectivamente, quando suceder aos covidistas de hoje o mesmo que sucedeu aos eleitores de Sócrates: ou não se lembram de o terem apoiado ou só o fizeram porque foram enganados.

Mas não é da Covid que quero falar. O bicho não tem cor discernível, não tem peso nem superfície apreciáveis, mesmo que em cima dele surfem cobardes políticos, oportunistas sortidos, pobres diabos que se deixaram tolher de medo, e cientistas estreitos transmutados em estrelas da televisão; e nem sequer é um bicho, mas fede.

Este exemplo da prova que não se pode fazer serve-me para analogicamente ir buscar os métodos indirectos que o Fisco usa para “calcular” a matéria tributável, uma porta legislativa por onde se enfiou todo o abuso, toda a prepotência, todo o atropelo que uma burocracia inimputável, como a Autoridade Tributária, é capaz de perpetrar.

Contei em Agosto de 2019 a história de uma empresa que o Fisco fez falir (agora diz-se insolver porque o legislador vê, nas mudanças semânticas, progresso) e concluía com uma série de perguntas às quais dava as respostas que, à época, era possível dar. Eram as seguintes as perguntas:

  1. Que acontece às simpáticas duas inspectoras que estão na origem do processo, e a quem nelas superintende?
  2. Que acontece aos trabalhadores?
  3. Que acontece aos credores?
  4. Que acontece às máquinas, às existências e ao edifício?
  5. Que acontece aos sócios?

Quanto ao ponto 4. em Novembro de 2020 acrescentei:

“… o edifício e as máquinas referidos na história para que remete o primeiro parágrafo foram leiloados em Dezembro e o conjunto foi arrematado por um valor que, mesmo sendo como foi de uva mijona, excedia largamente a totalidade do endividamento da firma, se excluirmos as indemnizações ao pessoal (decorrentes da insolvência que o Fisco induziu), a parte do endividamento que era, na realidade, capital, por não ser exigível nem implicar serviço de dívida, e a imaginária dívida fiscal, baseada em vendas sem factura que nunca existiram nem poderiam ter existido dada a natureza dos bens, os destinatários, que eram em mais de quatro quintos clientes de outros países, e o volume, por se tratar de bens de equipamento de grande atravancamento que implicariam gigantescas movimentações de TIRs clandestinos – uma fantasia que só poderia caber na cabeça retorcida de umas moças ou moços que ganham a vida estragando a de outros, sob a férula de uma hierarquia de agentes da Gestapo”.

Foi, portanto, tudo vendido em leilão judicial. Mas o comprador não tinha pago até então, isto é, não tinha pago entre Dezembro de 2019 e Novembro de 2020, e não pagou até hoje.

Quer dizer que está toda a gente a ver navios e ousa-se esperar que o administrador de execução e o tribunal tenham um bom sono porque os credores, esses, não há maneira de pregarem olho.

Tanto que os bancos credores já executaram os avalistas (os do ponto 5., grandes patifes) e o Fisco já fez reverter os seus imaginários créditos sobre o antigo gerente da extinta sociedade, que calha ser este escriba. O que pode ser difícil de compreender para quem julga que estas coisas não são possíveis: A entidade responsável pela falência nem espera para se pagar pelo produto da venda dos bens que parcialmente inutilizou, por lhes anular a função, e vai (ou quer ir) sobre o património da principal vítima.

O rateio pelos credores haverá de ser feito um destes lustros, logo que administrador acorde e o arrematante pague; os trabalhadores que não se reformaram já encontraram trabalho, e uns e outros continuam à espera da indemnização; o tal gerente está em tribunal mais uma vez e ser-lhe-á dada, ou não, razão; e os milhares de câmaras frigoríficas que a firma produziu continuam a trabalhar em talhos, padarias, restaurantes, em mais de dez países, o mesmo não se podendo dizer das que nunca existiram senão na hedionda cabeça do Fisco.

Moralidade da história: e a legitimidade da comparação com a Covid? Há pessoas que julgam que o Estado de Direito se pode cortar às fatias, funciona para umas coisas e não para outras. Mas não: de cedência em cedência, hoje atropelam-se os direitos dos contribuintes que forem empresários porque são ladrões salvo prova em contrário; em nome do combate à Covid, faz-se tábua rasa da Constituição; e já se encara como natural que António Costa, à boleia da Covid, se enfeite com os fasces de ditador, como aqui se denuncia.

Como o país

José Meireles Graça, 25.11.20

Em Agosto do ano passado contava uma história, verídica mas inverosímil, sobre uma empresa destruída pelo Fisco com base em acusações suportadas em irregularidades contabilísticas que foram interpretadas, sem qualquer base probatória ou sequer senso comum, como indícios seguros de evasão fiscal.

O texto era extenso e mesmo assim cortei nos detalhes, para não o tornar intragável, mas arrolava o essencial. Com desconto das proporções, e desculpa pela hipérbole, a historieta era um exemplo da banalidade do mal.

Ao falar deste conceito, diz a Wikipédia:

“… agiu segundo o que acreditava ser o seu dever, cumprindo ordens superiores e movido pelo desejo de ascender em sua carreira profissional, na mais perfeita lógica burocrática”.

“… o mal não é uma categoria ontológica, não é natureza, nem metafísica. É político e histórico: é produzido por homens e se manifesta apenas onde encontra espaço institucional para isso - em razão de uma escolha política. A trivialização da violência corresponde… ao vazio de pensamento, onde a banalidade do mal se instala”.

Temos um alegado crime – a evasão fiscal; temos a derrogação de uma regra básica do direito criminal – quem acusa tem o ónus da prova; temos o abandalhamento total de qualquer consistência da acusação – nem precisa de ser razoavelmente indiciária; temos a recompensa dos agentes – merecem o louvor das chefias na proporção das exacções que praticam, em cujos proveitos participam; temos a aprovação pública – o cidadão que recebe do Estado mais do que para ele julga contribuir entende que quem é acusado de evasão o está a roubar e o que contribui mais do que recebe entende que, se todos pagarem mais, seja como for, é menos esbulhado; temos a ignorância da opinião pública e da publicada – a primeira é confortada na ideia de que, salvo prova em contrário, quem detém meios de produção é caracteristicamente, além de inepto, ladrão, e a segunda dá todos os dias provas da sua prodigiosa ignorância, embrulhada num parti-pris estatista e anti iniciativa privada; e temos um poder político que encontra sempre boas razões para aumentar a punção fiscal, com a qual compra votos por distribuição de benefícios, e não acha nunca oportuno, ou justo, ou desejável, aliviar a pressão fiscal porque, fazendo-o, corre o risco de ser apeado.

Altos níveis de fiscalidade, baseados em escolhas políticas, são aceitáveis desde o momento que o regime tenha, como tem, legitimidade democrática. Com isso compromete-se o desenvolvimento, mata-se a iniciativa e garante-se a dependência das esmolas dos países ricos (um ouro do Brasil que, tal como o original, se julga que não terá fim), a par de um lento e firme deslizar para o último lugar da riqueza no nosso continente, mas é a receita que o eleitorado tem comprado.

Mas não comprou um corpo de funcionários inimputáveis nem poderes demenciais sem escrutínio válido. O recurso aos tribunais implica ou pagamento do que não é devido, ou a apresentação de garantias de valor equivalente, que inexistem tanto mais quanto delas se necessite, e recursos para esperar porque as sentenças vêm com o vagar que se toma como uma respeitável tradição. Mesmo para quem a eles possa aceder, executar as sentenças é um calvário; nas despesas incorridas o Estado não participa; e a Administração pode tranquilamente pontapear o Direito, mesmo o que ela própria redigiu e o político acéfalo de serviço assinou, porque a sentença que exonera o contribuinte não castiga o funcionário que levantou o auto – é como se o cidadão, que se queixa de ter sido agredido numa esquadra de polícia, visse o tribunal dar-lhe razão e o polícia agressor, além do prémio de desempenho, pudesse tranquilamente continuar a escaqueirar as trombas não suficientemente humildes de quem teve o azar de com ele tropeçar no caminho.

O eleitorado esta realidade não comprou, mas ela mantem-se porque ignorada pela opinião pública, a qual  se inteirada decerto pensaria: ora bem, se os acusaram alguma coisa devem ter feito – que é o que dizem as pessoas que têm um reflexo condicionado de acatamento da autoridade e acreditam que para privar as pessoas da sua liberdade é necessário o respeito de um conjunto de regras que a civilização impôs, mas para as privar da sua fazenda não.

Ignorada pela opinião pública, uma velha rameira que de todo o modo o cidadão dono do seu nariz deveria tratar com sobranceria, mas também pelos jornalistas, uma turba decaída que se quer encostar ao Estado na exacta medida em que perdeu, por razões várias, o seu modo de vida pouco antes de ter perdido a gramática, e pelos decisores políticos, que com razão recuam com horror nas obscuras matérias fiscais, que são deixadas para os especialistas.

Destes, o principal é a invariavelmente sinistra figura do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, cuja missão é garantir a quem o nomeou que não haverá quebra de receitas, agradar aos esbirros que nominalmente estão sob a sua direcção, lisonjear a comunicação social confortando-a na ideia de que está a combater eficazmente a evasão fiscal e aldrabar os parlamentares fazendo-os crer que não vivemos num Estado de Polícia fiscal. O actual é igual a esse título aos anteriores (incluindo o dos tempos da troica, um ostensivo desastre que tenho vergonha de reconhecer ter sido escolhido pelo partido de que sou militante), e todos têm sido pessoas moralmente desprezíveis. É moralmente desprezível quem, em nome da perseguição a infractores, não se importa de coonestar procedimentos que não pode deixar de saber que triturarão inocentes.

Deixemos lá isso, o que lá vai lá vai.

Não vai. Porque o edifício e as máquinas referidos na história para que remete o primeiro parágrafo foram leiloados em Dezembro e o conjunto foi arrematado por um valor que, mesmo sendo como foi de uva mijona, excedia largamente a totalidade do endividamento da firma, se excluirmos as indemnizações ao pessoal (decorrentes da insolvência que o Fisco induziu), a parte do endividamento que era, na realidade, capital, por não ser exigível nem implicar serviço de dívida, e a imaginária dívida fiscal, baseada em vendas sem factura que nunca existiram nem poderiam ter existido dada a natureza dos bens, os destinatários, que eram em mais de quatro quintos clientes de outros países, e o volume, por se tratar de bens de equipamento de grande atravancamento que implicariam gigantescas movimentações de TIRs clandestinos – uma fantasia que só poderia caber na cabeça retorcida de umas moças ou moços que ganham a vida estragando a de outros, sob a férula de uma hierarquia de agentes da Gestapo.

Pois bem: volvido quase um ano sobre o leilão, nenhum credor recebeu um centavo, o arrematante não pagou um cêntimo, e nenhum antigo fornecedor pôde sequer fazer encontro de contas com o IVA que perdeu porque a celerada legislação existente não o permite sem o reconhecimento definitivo dos créditos, e mesmo isso com apertados prazos já excedidos. Tudo isto porque o edifício foi construído sobre três lotes num parque industrial pertencente a uma câmara municipal, que os vendeu, licenciou devidamente a obra há mais de vinte anos e passou a competente licença de utilização, como o fez uma miríade de serviços públicos envolvidos, incluindo o ministério da Indústria.

A Câmara em questão não deveria ter vendido três lotes contíguos e autorizado a construção em cima deles porque o Plano de Pormenor da zona não o permitia; ou então deveria ter previamente alterado o Plano, coisa que não podia fazer porque tinha de estar em vigor por dez anos, como explicou candidamente, muitos anos volvidos, um diligente funcionário da edilidade; e quando o maldito Plano foi alterado a autarquia exigiu um novo processo de licenciamento para corrigir a sua asneira, com as competentes despesas, taxas e sabe Deus que alterações, como se a fábrica não tivesse estado a funcionar no maior respeito da legalidade desde que o Parque nasceu.

É esse licenciamento que, oficialmente, está a encravar tudo; e o que sobre este derradeiro embaraço realmente penso peço licença para guardar para mim.

Até porque, a esta altura do texto creio que quem começou a ler já deve estar farto – mas que embrulhada.

Como o país.