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Delito de Opinião

Trilho

Patrícia Reis, 22.04.12

Tudo se resume à imagem da criança. Não é uma qualquer. Consegue descrevê-la, apenas para si, em silêncio. Será um bebé a dormir com as asas dos sonhos, com a calma do desconhecido, no conforto dos braços dela. E esta imagem, a criança de olhos fechados, ao colo, não tem sexo, é apenas um consolo, um prolongamento de vida. Sabe que não pode explicar nada disso, esses pensamentos que assaltam, que a invadem sem deixar espaço para qualquer outra coisa são, ao mesmo tempo, um inimigo. A mente enche-se com a ideia e a ideia impede-a de viver o resto. O resto a vidinha, as decisões, as maleitas.

A palavra doença deixa-a paralisada. Não está doente. Tem dores. Tem muitas dores e não se queixa, não chora, por isso não lhe podem dar esse rótulo de doente. Seria injusto. Ela consegue fazer imensas coisas e conseguiria ter um bebé ao colo, vê-lo dormir. Ou ela. Não importa. Mas não. É preciso sair da cama, trabalhar, ser razoável, responder com calma, ter ideias, ver as falhas que os outros não vêem, corrigir textos e textos, textos sem ligação de espécie alguma e passa do futebol para a alimentação, de um ensaio para um poema, de uma entrevista para uma crónica.

De uma forma concentrada consegue fazer sete coisas ao mesmo tempo, consegue pensar em nove, se incluir aquela em que conta os outros pensamentos. Poucos conseguirão fazer o mesmo, está convencida. Sabe que poucos se preocupam com as camadas de pensamento e que tudo isto é obsessivo. Precisa das duas mãos para colocar a mudança da marcha atrás, dá-lhe vontade de rir. As mãos só lhe obedecem em cima do teclado. Não têm força. São autónomas, são livres de dizer que não fazem, que não conseguem. Ossos. O problema são os ossos. Quantos ossos temos no nosso corpo? Mais de duzentos. Não tem importância. O irmão tem mais: quatro costelas bífidas detectadas quando era pequeno. Nada a fazer.

O médico disse: Faça natação e esse alto desaparece. Certo.

Ela? Pior, o médico começou por dizer que aos dezoito teria de ser operada. Usou botas ortopédicas, horríveis, azuis, feias, discriminatórias, más e feias, feias, feias. Usou talas para dormir. E nunca lhe perguntaram se estava bem, se queria outra coisa. Cumpriu. Aliás, cumprir é um verbo comum na sua existência.

O que sente agora é que não está pronta para seguir no mesmo trilho e vê, sente, que irá, rapidamente, ser desobediente. Não será como roubar um rebuçados da mala da tia avó ou algo assim. Não.

Será pior. Quando se é adulto tudo é pior. É suposto fazerem-se escolhas e não sair do tal trilho. Ela já não tem sapatos para percorrer este caminho. São duas da manhã, a mulher toma uma pastilha (gosta de dizer pastilha e esquecer a ideia de comprimido ou medicamento ou indutor de sono ou soporífero) e sonhará com ela. A criança no seu colo. Ela no colo que não se lembra de ter tido. O colo que tem agora de pessoas que só querem isso: dar-lhe colo. Então, a tal pastilha permitirá essa bondade e só isso é um consolo. Uma medida razoável de consolo.