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Delito de Opinião

Emissão em directo

Pedro Correia, 10.04.24

Um "repórter no terreno" irrompe na pantalha debitando não-notícias em catadupa. Fala sem dizer nada até a voz lhe claudicar. Segue-se um mono em estúdio comentando interminavelmente a não-notícia. Quando este acusa os primeiros indícios de esgotamento vocabular, minutos infindáveis mais tarde, avança outro "repórter no terreno" especializado em encher chouriços, na desesperada tentativa de sobressaltar os escassos telespectadores com outra não-notícia. A mesma depois comentada por dois monos e meio que se atropelam com frases despidas de qualquer ideia. Perde-se o fio à meada, mas ninguém quer saber porque torna-se mentalmente impossível acompanhar tanto palavreado a propósito de coisa nenhuma.

Assim vai seguindo a emissão em directo, hora a hora, até tudo recomeçar no minuto inicial do dia seguinte.

O culto dos paradoxos

Pedro Correia, 07.09.21

«Uso de máscaras ao ar livre deixa de ser obrigatório a partir da próxima semana», noticiaram ontem alguns órgãos de informação. Assim mesmo, como se estivessem a descobrir a pólvora.

Disparate. Nunca o uso de máscaras «ao ar livre» foi de uso obrigatório. Nem poderia ser. "Livre" e "obrigatório" na mesma frase é algo que não faz qualquer sentido.

África do Sul em chamas

Pedro Correia, 14.07.21

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A África do Sul está há vários dias em convulsão. Ocorrem ali os maiores distúrbios e os mais graves actos de violência desde o fim do regime de minoria branca: 72 mortos confirmados, mais de 1200 pessoas já detidas. A tal ponto que o Governo mobilizou as forças armadas para reforçar os contingentes policiais, impotentes perante tanta devastação.

Protesta-se contra a detenção do antigo presidente Jacob Zuma, condenado pelo Tribunal Constitucional sul-africano a 15 meses de prisão por recusa em comparecer perante a justiça que o acusava de envolvimento em actos de corrupção. 

Mas há motivos muito mais profundos e graves para esta espiral de violência, já com vários episódios dramáticos. Desde logo o facto de a África do Sul ser o país com maior índice de desigualdade à escala planetária, segundo dados do Banco Mundial. Um em cada cinco dos seus habitantes, de acordo com um recente relatório da ONU, sobrevive em condições de pobreza extrema.

Há oito dias consecutivos que esta onda de pilhagens e assassínios sem precedentes desde a implantação do regime pós-apartheid varre o país aparentemente mais próspero do continente africano. O embaixador de Portugal na África do Sul já recomenda aos compatriotas que se recolham em casa. Não são poucos: cerca de 450 mil estão radicados no país.

Reparo entretanto que as televisões portuguesas só ontem despertaram para a questão com as primeiras notícias e as primeiras imagens. E penso no contraste: se tivesse ocorrido nos EUA, com apenas um morto fosse em que local fosse, o alarido que não teriam feito, dias a fio, até agora.

Os novos censores andam aí

Pedro Correia, 08.06.21

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Há leis que deviam envergonhar os legisladores. Se essas leis são aprovadas na Assembleia da República sem sequer um honroso voto contra, a vergonha aumenta. E quando o Presidente da República - supremo vigilante dos direitos, liberdades e garantias - as promulga sem sombra de hesitação, a vergonha redobra.

Aconteceu a 17 de Maio, com a aprovação da Lei 27/21 no hemiciclo de São Bento - um diploma com o pomposo (e algo ridículo) título de Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. Com votos favoráveis do PS, PSD, BE, CDS e PAN, e abstenções do PCP, PEV, IL e Chega.

No seu artigo 6.º, esta Lei condiciona a liberdade de imprensa, tornando-a pasto de tentações autoritárias de qualquer governo de turno. Cinicamente, a pretexto do reforço do exercício da cidadania e do jornalismo.

Em vez de incentivar a auto-regulação dos meios de comunicação social, tenta impor-lhes cangas administrativas através de um órgão composto por comissários políticos e moços de fretes ao serviço de estruturas partidárias.

Em vez de reforçar a isenção e a independência das empresas editoriais, tenta impor-lhes controleiros e certificados de bom comportamento a pretexto da instituição de mecanismos de verificação de factos. Cinicamente, uma vez mais, invocando um louvável motivo: o combate à desinformação e ao boato tornados notícia.

 

Li com atenção este artigo 6.º, que me suscita sérias reservas e as objecções que sintetizo aqui:

«O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Acção Contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou colectivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou dinfundam narrativas consideradas desinformação.» (art. 6.º, n.º 1)

Este dispositivo legal, em interpretação extensiva, permitiria reintroduzir em Portugal a Comissão de Censura, justificada aliás, em termos legais, com terminologia semelhante à que vigorou no salazarismo. Destinada a "proteger" os incautos cidadãos, colocados sob a asa vigilante do Estado paizinho e protector. A expressão "narrativas" deixa evidente que já não está só em causa a componente noticiosa dos conteúdos informativos: há via aberta para o delito de opinião. Não este blogue, mas o delito mesmo.

 

«Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.» (art. 6.º, n.º 2)

Dizendo-se proteger a democracia, os legisladores condicionam seriamente a democracia. E lesam uma das principais receitas dos órgãos de informação: toda a actividade publicitária, "criada para obter vantagens económicas". Algo tão simples como "Omo lava mais branco" corre risco de interdição. Esta linguagem ambígua, imprecisa e vaga propicia a criação de um Ministério da Verdade de inspiração orwelliana. Endeusando e glorificando as "políticas públicas", eufemismo para o exercício da actividade governativa.

 

«Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os actos previstos no presente artigo.» (art. 6.º, n.º 5)

Compete aos tribunais, mediante apresentação de queixas-crime, ajuizar sobre eventuais abusos da liberdade de imprensa. Não à ERC, entidade que não emana de qualquer poder auto-regulador da actividade jornalística nem tem vínculos ao poder judicial: é mero órgão administrativo, com membros nomeados pela Assembleia da República e que age ao sabor das conveniências políticas. Basta lembrar que um dos seus presidentes, Azeredo Lopes, viria depois a exercer funções de chefe de gabinete do presidente da Câmara Municipal do Porto (com Rui Moreira) e de ministro da Defesa (com António Costa).

 

«O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.» (art. 6.º, n.º 6)

Compete aos próprios meios de comunicação social, mediante o cumprimento do Código Deontológico em vigor, avaliar em permanência a veracidade dos factos antes da publicação de qualquer notícia. O Estado não tem vocação para o exercício do jornalismo, mas para a instituição de mecanismos de propaganda. Os "selos de qualidade", equiparando órgãos de informação a restaurantes recomendados, são insultuosos para o jornalismo ao instituir certificados de bom comportamento - isto é, de respeitinho e veneração ao poder político.

 

Esta lei vergonhosa, que infelizmente o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa já promulgou, só entra em vigor no dia 27 de Julho. Ainda há tempo para travá-la, suscitando a apreciação da constitucionalidade.

Vem a propósito lembrar o artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa: «Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de se informar, sem impedimentos nem discriminações. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.»

Aldrabice

Pedro Correia, 07.06.21

Vai agora por aí um enorme alarido no combate às aldrabices - a que alguma intelectualidade indígena, sempre pronta a agachar-se perante a última moda "amaricana", chama fake news sem sequer reparar que foi Donald Trump a popularizar tal expressão. 

Põem-se aos gritos insistindo na institucionalização de mecanismos de confirmação de factos - a que adoram chamar fact check, como se fôssemos todos "amaricanos" - esquecendo que a produção jornalística é, toda ela, constituída por confirmação de factos. Quando essa confirmação é omitida não existe jornalismo mas aldrabice (insisto no termo). 

Andam aí de lupa em punho, procurando distinguir entre facto e boato. Mas vasculham sobretudo nas franjas mais duvidosas das redes sociais, talvez por falta de coragem para escrutinarem os órgãos de informação, que - ao contrário das redes - têm o estrito dever de cumprir normas deontológicas.

Querem um exemplo de mentira servida como verdade? Vai realizar-se em breve o Campeonato da Europa em futebol. Todos lhe chamam Euro-2020 como se ainda estivéssemos nesse ano ou fôssemos protagonistas daquele filme intitulado O Feitiço do Tempo. Acontece que estamos em 2021. Este certame desportivo realiza-se um ano depois do previsto devido à pandemia. Mas a UEFA e as autoridades oficiais mantiveram a designação inicial, que não podia ser mais enganosa.

Viram alguém insurgir-se contra isto? Eu também não. Mas é aldrabice, mesmo assim.

Penso rápido (98)

Pedro Correia, 26.11.20

Demasiadas pessoas passam um ano sem ler um livro, seja de que género for. Há gente que se gaba até de nunca ter aberto um livro desde os bancos escolares. Há indivíduos que nunca folheiam sequer uma revista, excepto nas salas de espera dos consultórios médicos. Muitos eleitores presumem andar informados e esclarecidos passando ao lado de conteúdos certificados pela deontologia jornalística: preferem imaginar o que se passa espreitando tuítes da trincheira mais próxima, vídeos acéfalos na Rede ou o primeiro boato que lhes é remetido através de compinchas no WhatsApp. 

Alguém que jamais trocaria o cirurgião pelo curandeiro, o hotel pela pensão manhosa ou o produto de qualidade pela quinquilharia do chinês prefere "informar-se" recorrendo às versões digitais da intriguista do prédio, do bisbilhoteiro do bairro ou do tasqueiro fala-barato.

Quando se fala na degradação da cidadania, não podemos culpar só os políticos. Há que começar a apontar o dedo a quem anda desinformado e ainda se orgulha disso.

Contra a pirataria

Pedro Correia, 10.04.20

Aos meus amigos que por estes dias se tornam coniventes com a pirataria, partilhando livros inteiros, jornais inteiros e revistas inteiras por via digital ou acedendo "grátis" a filmes e séries, como já fazem com a música, chamo a atenção: os profissionais da escrita, do cinema e da televisão vivem do seu trabalho. No dia em que ninguém pagar por um livro, um jornal, uma revista, um filme ou uma série deixaremos de ter acesso a estes bens de serviço público e utilidade social. Pelo mais simples e lamentável dos motivos: eles deixarão de existir.

Ao fazermos um banalíssimo clique num dispositivo electrónico, distribuindo por outros aquilo que não pagámos, estamos a dar mais uma machadada em profissões que em larga medida já caminham sobre o fio da navalha, condenando-as à extinção a curto prazo.

Um mundo sem cultura, nem informação nem entretenimento de qualidade será um mundo mais árido, mais pobre, mais primitivo, mais inóspito. Será um mundo muito menos livre.

Um mundo em que nenhum de nós desejaria viver.

E não é um cenário de ficção: pode mesmo acontecer. Só depende de nós.

Portas de regresso ao jornalismo

Pedro Correia, 07.04.20

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Detesto perder tempo com tudólogos que nada percebem sobre coisa alguma e começam cada frase por «eu acho que»: abundam nas televisões e fujo deles a sete pés. Abomino os trombeteiros do apocalipse que não perdem uma oportunidade para atemorizar e deprimir os compatriotas, reproduzindo em antena os piores rumores que circulam sobre o nosso futuro colectivo: trocam factos por "cenários", pintados em cores bem negras, convictos de que isto lhes garante gordas "audiências".

O paleio é imenso, mas as alternativas são mais escassas do que parecem: muitos destes palpiteiros limitam-se a copiar o que outros dizem, numa espécie de confraria do plágio mútuo consentido. Devemos ser criteriosos nas escolhas para nos mantermos realmente bem informados, preservarmos o quociente de inteligência que nos coube em sorte e ampliarmos o prazo de validade da nossa sanidade mental. Isto leva-me, por estes dias, a reservar o direito de admissão em termos ainda mais severos: não é qualquer um que me entra em casa a impingir mercadoria contrafeita.

Daí valorizar tanto as excepções à regra. Destacando, desde logo, as intervenções de Paulo Portas no Jornal das 8 da TVI, agora com uma rubrica intitulada "Estado da Emergência", que costuma funcionar como remate dos telediários. Vale a pena ouvi-lo: ficamos sempre a aprender alguma coisa com ele a propósito desta pandemia sanitária à escala global que ameaça ter efeitos económicos e sociais devastadores. Com base factual, argumentos serenos e a atitude didáctica de quem procura persuadir pela razão em vez de procurar "transmitir emoções", como está hoje em voga. 

Percebe-se que há ali investigação séria e pesquisa junto de fontes credíveis a caucionar o que debita em dez minutos diários. No fundo, é um Paulo Portas de regresso ao jornalismo. Mostrando a muitos jornalistas como devem proceder para difundir informação fundamentada e rigorosa.

Parece fácil, mas não é. Fácil é espalhar boatos e semear o alarmismo nas redes sociais, aterrorizando os incautos. A isto temos que dizer basta. E aprender, em definitivo, a separar o trigo do joio, distinguindo informação de lixo. É um acto de elementar higiene cívica.

Notícias sobre coisa nenhuma

Pedro Correia, 11.08.19

Terceiro dia consecutivo a ver "directos" atrás de "directos" nos telediários cá do terrunho, com repórteres perorando sobre coisa nenhuma junto a postos de abastecimento de combustível literalmente às moscas. Enchendo chouriços, como se diz na gíria jornalística.

Esta manhã ouvi duas repórteres dizendo que lá onde estão «há hoje até menos gente do que é habitual». Azar para quem previa grande movimentação: as tão ansiadas corridas às gasolineiras não aconteceram.

Alguns pivôs televisivos - com ordenados superiores a um ministro - querem criar um clima de alarmismo nacional responsabilizando os motoristas de matérias perigosas,  em greve para conseguirem melhorar o miserável salário-base de 630 euros, que na melhor das hipóteses subirá apenas para 700 euros a partir de Janeiro de 2020. Mas - lamento muito - não estão a conseguir. E talvez ainda sejam forçados a pagar direitos autorais ao aposentado Artur Albarran, celebrizado pela trilogia «O drama, a tragédia, o horror».

Podem, no entanto, continuar a tentar. Assim, ao menos, acabam por encher o depósito noticioso. De chouriços.

Director, um lugar precário

Pedro Correia, 29.03.19

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Como aqui escrevi em 2016, não existe hoje em Portugal um lugar tão precário como o de director de um órgão de comunicação social.

Nesse texto, publicado no DELITO vai fazer três anos, pronunciei-me com dados e nomes sobre a chocante rotação existente na maioria dos títulos jornalísticos diários ou semanários de expansão nacional. Para concluir que esta escassa permanência de um director à frente de um meio de comunicação fragiliza todo o projecto editorial, tornando-o ainda mais vulnerável às pressões - não apenas do poder político mas dos chamados poderes fácticos, da banca à bola, passando por maçonarias de vários matizes e pelas marcas comerciais que funcionam como financiadoras enquanto anunciantes.

Nesse artigo acentuei que 16 dos principais títulos jornalísticos (72,7% do total) tinham directores em funções havia menos de dois anos.

Revisitando hoje o mesmo texto, verifico que doze dos 22 directores ali mencionados - mais de metade, portanto - deixaram de exercer tais funções. Alguns abandonaram a profissão e houve um título que entretanto desapareceu. Mais sintomático ainda: em alguns casos, os referidos responsáveis tiveram não apenas um mas já dois sucessores de então para cá.

 

Desde então já se registaram várias mudanças. Bárbara Reis anunciou em Maio de 2016 que deixaria a direcção do Público, ao mesmo tempo que se tornava conhecida a transferência de David Dinis da TSF para o diário da Sonae, dando por sua vez lugar na rádio a Arsénio Reis, que ali iniciou funções em Setembro de 2016. Em Junho desse ano, André Macedo demitiu-se de director do Diário de Notícias, sendo substituído em Setembro por Paulo Baldaia. Também em Junho de 2016, João Garcia cedeu o lugar de director da revista Visão a Mafalda Anjos. Na revista concorrente, a Sábado, Eduardo Dâmaso assumiu a Direcção a partir de Abril de 2017. E André Veríssimo ascendeu em Novembro de 2017 ao posto de director do Jornal de Negócios.

Entretanto o Diário Económico, que vegetava já só na edição digital, encerrou de vez. Passou a haver duas novas publicações nesta área: o Jornal Económico, surgido em Setembro de 2016 com Vítor Norinha como director, logo promovido a director-geral da empresa proprietária, passando o seu anterior lugar a ser ocupado a partir de Dezembro por Filipe Alves, até aí director-adjunto; e desde Outubro de 2016 o Eco - só com edição em linha -, sob a direcção de António Costa.

Rotação acelerada noutras publicações: em Abril de 2018, Ferreira Fernandes substituiu Baldaia como director do Diário de Notícias; em Julho desse ano, David Dinis cedeu o lugar de director do Público a Manuel Carvalho; em Setembro foi a vez de Afonso Camões ser rendido por Domingos de Andrade no posto máximo do Jornal de Notícias; em Outubro, Luísa Meireles era anunciada como sucessora de Pedro Camacho na Direcção da Lusa; no mesmo mês, Maria Flor Pedroso substituía Paulo Dentinho à frente da informação da RTP.

Mais mudanças, estas já no ano em curso: há duas semanas, António Magalhães cedeu o lugar de director do diário Record a Bernardo Ribeiro. E hoje mesmo João Vieira Pereira foi anunciado como director do Expresso, substituindo Pedro Santos Guerreiro.

 

Apontamentos adicionais:

André Macedo não chegou a completar dois anos no posto cimeiro do DN: só lá esteve 22 meses.

Paulo Baldaia, o sucessor, ficou apenas ano e meio à frente do centenário matutino, agora já fora da Avenida da Liberdade.

Raul Vaz também só se manteve ano e meio como director do Jornal de Negócios.

João Garcia foi director da Visão durante um ano exacto.

David Dinis não permaneceu mais de quatro meses ao leme da TSF. Foi depois dirigir o Público, onde esteve dois anos - entre Julho de 2016 e Julho de 2018. Hoje é anunciado como novo director-adjunto do Expresso.

Pedro Santos Guerreiro aguentou-se três anos à frente do semanário Expresso. Tantos como Pedro Camacho enquanto director da Lusa.

Rui Hortelão manteve-se quase três anos e meio no posto de comando da Sábado. Idêntico ao período em que Paulo Dentinho esteve a dirigir a RTP.

António Magalhães resistiu quatro anos e meio como director do Record.

 

Dos 22 directores dos órgãos de informação diários ou semanários de carácter nacional (televisão, rádio, jornais, revistas informativas e agência noticiosa), só cinco ocupam essas funções há mais de cinco anos. E 15 iniciaram-nas desde Fevereiro de 2016, o que diz muito sobre a instabilidade do cargo. Apenas um ultrapassou a década e meia como director: Vítor Serpa, que lidera A Bola desde 1992. Algo impensável em qualquer outro jornal.

Embora a grande distância deste caso único, é já considerável a longevidade no exercício do cargo de Octávio Ribeiro (que dirige o Correio da Manhã desde Março de 2007), Graça Franco (directora da Rádio Renascença desde Janeiro de 2009) e José Manuel Ribeiro (director do diário O Jogo desde Maio de 2011). Cada vez mais excepções que teimam em contrariar a regra.

Resta ver por quanto tempo.

Santo padroeiro da ignorância

Pedro Correia, 14.03.19

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É chocante a falta de memória nas redacções dos órgãos de informação. Que, assim amnésicos, não informam: só desinformam.

Ainda esta noite aconteceu. Morreu o actor Amadeu Caronho, que se tornou muito conhecido em várias produções televisivas, sobretudo na SIC, e de imediato a notícia do seu falecimento foi ilustrada com a fotografia de outro actor, Carlos Santos, que morreu em 2016.

Um jornal cometeu um erro, os outros foram atrás. Sem confirmarem, sem verificarem, sem ninguém se lembrar de perguntar a quem sabia. Percebe-se como é que aconteceu: invocaram São Google, que tantas vezes funciona como o padroeiro da ignorância, e este transmitiu-lhes a imagem errada. Ninguém ousou pôr isso em causa: a santidade não se questiona.

Deu asneira colectiva, claro. Inclusive na página digital da televisão em que o actor agora falecido mais colaborou, o que é talvez o aspecto mais lamentável.

Horas depois, há poucos minutos, várias edições em linha - no Observador e no Sol, por exemplo - continuavam a difundir a asneira.

Com uma chocante falta de respeito pelos mortos e seus familiares. E uma falta de respeito não menos chocante pelos leitores.

Jornalismo "agit-prop"

Pedro Correia, 02.12.18

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Ontem, como de costume, em quase todos os canais "informativos" portugueses só havia bola. Com "notícias" como esta: «Benfica supera a crise goleando o Feirense.»

Deslizei para os raros recantos onde ainda não chegara o futebol - que entre nós é considerado sinónimo de desporto, vá lá entender-se por quê.

Num desses poisos alternativos, logo na frase de abertura, evocava-se o agora falecido presidente norte-americano George Herbert Walker Bush dizendo logo na frase de abertura que tinha "liderado durante oito anos" o poder em Washington: bastaria uma rápida consulta à Wikipédia para perceber que Bush pai esteve apenas quatro anos na Casa Branca, entre 1989 e 1993.

Mas este "jornalismo" que nos entra em casa não peca apenas pela falta de memória: peca também por excesso de activismo político. Noutro canal, a propósito dos distúrbios em Paris, provocados por extremistas de vários matizes, Fulano aludia à Revolução Francesa, Beltrano invocava o espírito da "revolução de 1848" e Sicrano dava por praticamente consumada a demissão de Emmanuel Macron, por pressão "do povo que se revolta nas ruas". Todos contactados por telefone, todos arengando contra a democracia representativa, todos fazendo tábua rasa da genuína vontade popular expressa no voto. Agit-prop em directo e ao vivo.

Voltei a zapar, de comando na mão. Despedindo-me dos cúmplices morais da anarquia parisiense, regressei ao reino da bola. Mal por mal, antes a crise do Benfica, "superada" pela vitória caseira contra o Feirense.

Os bolsonaros de cá

Pedro Correia, 12.10.18

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Ontem os órgãos de informação portugueses - incluindo todos os canais de televisão - tiveram o seu enésimo momento Bruno de Carvalho. Preenchendo, uma vez mais, manchetes e tempo de antena com uma não-notícia, logo desdobrada em infindáveis horas de comentários em estúdio, serão adiante, sempre a propósito de coisa nenhuma.

Foi assim: o antigo presidente do Sporting anunciou que iria comparecer voluntariamente no campus da Justiça, em Lisboa, para proferir declarações perante os órgãos de investigação criminal num processo para o qual não havia sido convocado, nem como arguido nem como testemunha. De imediato uma chusma de jovens jornalista, obedecendo certamente à pressão de editores em pânico por perderem o "exclusivo", se precipitou para o local, de telemóveis e câmaras em riste, para registar o depoimento da desvairada personagem. Que nada tinha a dizer excepto que estava à disposição da justiça, como compete a qualquer cidadão, blablablá patati patatá. Falou na rua, claro, pois dentro das instalações do Ministério Público, para as quais não havia sido chamada, ninguém teve tempo nem pachorra para lhe prestar atenção.

Repito: esta não-notícia mereceu parangonas, ultrapassando tudo o resto na hierarquia informativa da tarde de ontem - e prolongou-se, na requentada forma de "debate em estúdio", noite adiante.

«Bruno de Carvalho foi ao DCIAP, passou para o DIAP mas não vai ser (para já) ouvido no caso da Academia», apressou-se a titular o Observador. «Soube que seria emitido um mandato (sic) em seu nome, na sexta-feira - portanto, decidira antecipar-se e apresentar-se perante os procuradores», pormenorizou o Expresso. «Bruno de Carvalho não foi ouvido», esclareceu a TSF. Tudo isto debitado hora a hora, minuto a minuto, nas sofisticadas plataformas tecnológicas de que dispomos, moderníssimos meios de propagar vacuidades à moda antiga.

 

«Ex-presidente do Sporting foi bater à porta errada», rezava o jornal i, informando que esta foi a sua "notícia" mais lida do dia. Sem surpresa, o Correio da Manhã não descolava da figura em causa: «Actriz revela que Bruno de Carvalho lhe liga "quando precisa"», assim se intitula a mais lida deste matutino. Com previsivel sofisticação, fazendo a diferença, o Expresso em linha revela-nos que a sua notícia mais lida tem este título: «A meio da viagem o bebé começa a chorar. Alguém pede para calar o bebé. Não se calou. Atiraram-no borda fora.»

Estes e outros meios de comunicação estão cheios de sisudos comentadores que nos alertam o tempo todo contra os riscos da vaga populista em curso. Sem perceberem que, do Brasil às Filipinas, de Itália ao Reino Unido, eles próprios fazem parte do problema. Porque difundem boatos em vez de notícias, porque abusam do sensacionalismo mais rasteiro, porque andam a reboque do alarido das redes sociais.

Sim, cá também existem bolsonaros. Por enquanto, apenas no jornalismo - alguns, curiosamente, disfarçados de anti-Bolsonaro. Enquanto recitam a ladainha contra o "populismo", fazem tudo para fabricar o líder ultrademagogo, desbragado e radical que está para desembarcar na política. Potenciais candidatos não faltam. Basta perceber quem são aqueles a quem os repórteres de turno mais estendem o microfone.

Primeiro o Bruno, depois o acessório

João Pedro Pimenta, 04.06.18

Eu sei que a crise do Sporting interessa muito aos portugueses e é motivo para especulações e discussões infinitas. Mas era mesmo preciso que a RTP abrisse o noticiário da noite de sexta-feira com a conferência "de imprensa" de Bruno de Carvalho num dia em que a Espanha e a Itália ganharam novos governos? Já nem falo das últimas medidas proteccionistas de Trump em busca da quimera do renascimento da indústria do aço no Midwest. Se isto são as prioridades de informação da televisão pública, então nem quero imaginar as das privadas. Na volta até são mais sensatas.

Vestais ofendidas aos gritinhos

Pedro Correia, 03.05.18

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Cristina Cifuentes apanhada pela videovigilância num supermercado em 2011 

 

1

O excelente conjunto de  grandes reportagens feitas pela SIC a partir dos depoimentos prestados por José Sócrates e outros arguidos do caso Marquês em sede de investigação criminal - e que nos permitiu conhecer melhor a dimensão da golpada - chocou alguns deontólogos da nossa praça, que rasgaram as vestes em sinal de escândalo.

Credo, pode lá ser, ai Jesus, Nossa Senhora!

Não sei em que limbo vegetam estas vestais agora aos gritinhos que parecem não habitar o mesmo planeta em que as gravações secretas do ex-Presidente norte-americano Richard Nixon - que tanto contribuíram para o seu afastamento da Casa Branca - foram reproduzidas em tudo quanto se assumia como imprensa de referência nos EUA e deram a volta ao mundo a partir daí.

Nem parecem viver a escassas centenas de quilómetros da capital espanhola, onde a presidente da Comunidade de Madrid, Cristina Cifuentes, acaba de ser forçada a demitir-se na sequência imediata da divulgação pública das imagens de uma câmara de videovigilância colhidas em 2011 num supermercado madrileno que a mostravam a enfiar na mala dois cosméticos no valor de 43 euros.

Estas imagens, que há muito deviam ter sido apagadas por imperativo legal, foram afinal guardadas para utilização no momento político mais propício - que chegou agora. Primeiro, difundidas no jornal digital OK Diario, depois em todos os restantes órgãos de informação. Sem vestais indignadas com a violação do "direito à imagem" da senhora, que vinha sendo apontada como possível sucessora de Mariano Rajoy na liderança do Partido Popular.

 

2

Alguma utilidade teve o meritório trabalho assinado pelos jornalistas Amélia Moura Ramos, Luís Garriapa e Sara Antunes de Oliveira. De então para cá, certamente por coincidência, não têm faltado enfim as vozes socialistas que foram quebrando um pesadíssimo silêncio de quatro anos imposto por António Costa em torno do famigerado caso Sócrates.

Agora já não temos apenas a indómita Ana Gomes, clamando contra o esbulho em termos inequívocos: «Há um facto insofismável: a relação especial e privilegiada de Sócrates com Ricardo Salgado. Pelos vistos, estava às ordens dele e até fez negócios à conta dele. O PS não pode pôr isto debaixo do tapete.»

Agora já ouvimos o outrora esfíngico presidente e líder parlamentar socialista falar sem rodeios em entrevista à TSF: «Ficamos entristecidos e até enraivecidos com isto: que pessoas que se aproveitam dos partidos políticos, e designadamente do PS, tenham comportamentos desta dimensão e desta natureza. Evidentemente que ficamos revoltados com tudo isto.»

E até um dos deputados que noutro ciclo político se destacou entre os mais ferozmente socráticos, como João Galamba, vem desabafar desta forma desabrida na SIC Notícias: «Um ex-primeiro-ministro que foi secretário-geral do PS acusado de corrupção, branqueamento de capitais, etc, é algo que envergonha qualquer socialista. E o caso de Manuel Pinho, idem.»

 

3

Cada vez mais isolado está o ex-jornalista, ex-secretário de Estado da Comunicação Social e ex-membro da Entidade Reguladora para a Comunicação Social Arons de Carvalho.

Quase só ele é hoje capaz de declarar, referindo-se ao antigo primeiro-ministro, de quem sempre foi muito próximo: «Não acho reprovável uma pessoa viver com dinheiro emprestado. (...) Quer o Manuel Pinho quer o José Sócrates não foram ainda condenados. Temos de esperar sem intervir e sem comentar.»

Tese que, levada à prática, nos forçaria a esperar cerca de uma década para comentar casos que prometem arrastar-se nos tribunais.

Felizmente, de dia para dia, há cada vez menos gente no próprio Partido Socialista a pensar assim.

Felizmente nos órgãos de informação dignos deste nome não vigora a doutrina Arons, com a sua lei do silêncio.

Felizmente o jornalismo resiste. Contra todas as vestais que pretendem transformá-lo numa sessão de chá das cinco com amáveis torradinhas barradas de manteiga.

Olhar o Mundo (RTP 3)

jpt, 02.12.17

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Tendo vivido duas décadas fora o que me mais me marcou no regresso a Portugal foi o estupor patrício face ao mundo. O que se nota nas opiniões individuais, quando peroramos diante de cervejas, uísques ou vinhos (é de ti que estou a falar; é de si que estou a falar). Mais ainda nos opinadores privados, antes frenéticos nos blogs, agora no FB. E imenso na mediocridade dos profissionais jornalistas, absortos entre o umbigo europeísta e o prepúcio lusófono (e laivos da obamaland saídos de um digest qualquer, claro). A desatenção, o desconhecimento, o "estar nas tintas" sobre o mundo - e, como tal, não compreendendo o que vai aqui à volta acontecendo - é uma espécie de gripe, toca a todos. Em três anos de Portugal nunca, repito, nunca encontrei alguém medianamente informado sobre o mundo. Encontrei, claro, a Helena Ferro de Gouveia, mas ela vivia fora (e vale ouro, o que a isenta da nossa demissão colectiva), e encontrei-a fora daqui, entre o Maputo e a Terra Blogal. De resto não vejo nada de jeito, escrito ou audível. A RTP, que vive dos nossos impostos em nome de um falsário "serviço público", é uma desgraça. Espancável, literalmente falando. O resto é mais ou menos inexistente. Ou narcísico, como as coisas de Rogeiro.

Isto vem a propósito da minha surpresa. Por mero acaso, face a um penne take away tão mau que me levou ao fora-de-moda zapping, acabo de ver o programa "Olhar o Mundo" na RTP 3. O já velho António Mateus, que conheci na África do Sul e reencontrei, brevemente, em Maputo, aqui um bocadinho engravatado demais, com uma universitária (não apanhei o nome), a abordarem com densidade, informação, reflexão, rapidez (o Mateus deixa-a falar, o que é excelente), as questões do mundo. É às 14 horas, no sábado, na RTP 3, pouca gente verá. Servirá como álibi para a RTP, se calhar. É evidente que poderia ter um pouco mais de meios, para animar a emissão, e assim ser transmitida num belo horário generalista. Seria um acto de civilização. Contra o estupor actual. Que é tão gigantesco que as pessoas nem o percebem. Entenda-se, que nele vão.

 

(Adenda: à procura da imagem para encimar este postal escrito de rajada chego à página de FB do programa e percebo que há vários colaboradores e que um deles é Francisco Seixas da Costa. Aconselhar (e louvar) um programa que integra um colaboracionista destes impele-me a apagar o texto. Mas retenho-me. Continuo fiel ao meu princípio, há que os combater "rua a rua, prédio a prédio, flete a flete". Para isso é melhor ouvi-los. Escutá-los, na sua perfídia.)

A abundância e monocultura da informação

João André, 14.08.17

Quando surgiu a internet (ou, pelo menos, quando a World Wide Web se popularizou e expandiu), não faltou quem argumentasse que um novo iluminismo surgiria, sustentado pelo acesso livre à informação que o novo meio proporcionava. Pessoalmente não tinha opinião e estava na altura mais interessado nas possibilidades de trocas de ficheiros que se me abriam. No entanto sempre me pareceu que tais ideias eram excessivamente optimistas. Não o pensava porque tivesse uma visão do que iria (ou sequer poderia) suceder, mas porque sempre me pareceu que um meio não determina nada. É o uso que a população faz do mesmo que decide o futuro.

 

O que temos hoje é uma riqueza de informação inigualável na história humana. Não só inigualável mas inclusivamente inimaginável apenas há 20-30 anos. Há 100 anos este futuro não seria tanto de sonho mas de pesadelo para quem tinha acesso, mesmo que limitado, à informação. Mesmo os arautos desse e-iluminismo não sonhariam com a expansão que vimos, não imaginariam a existência de Google, Facebook, Twitter, YouTube ou tantos outros.

 

Só que tal acesso ao conhecimento vem com um problema: perante tanta informação, como escolher aquilo que se deseja aprender ou, uma vez feita essa escolha, como decidir qual a informação mais fiável. Em parte este dilema de escolha reflecte aquele o que o consumidor ocidental moderno enfrenta cada vez que entra num supermercado: há tanta escolha de produtos que se torna impossível saber qual a escolha certa. E isto apenas num espaço limitado onde a decisão e a justeza da escolha reflectem apenas e só preferência pessoais.

 

Na internet, quando procurando informação, a escolha torna-se mais complicada, uma vez que em múltiplos casos existe uma escolha correcta (no que á sua exactidão ou conclusões diz respeito), a qual não depende das nossas preferências ou convicções pessoais, por muito que delas estejamos... convictos.

 

Há actualmente dois tipos de situações que sofrem com isto: acontecimentos políticos e factos científicos. Um exemplo claro do primeiro é o fenómeno trump e clivagem esquerda/direita que se vê cada vez mais na sociedade (a dos EUA, como canário na mina de carvão, serve de aviso). A população, na presença de enormes quantidades de informação, vê-se na situação de ter de escolher qual aquela que usa. Nesta decisão cada vez mais vemos que a exactidão da mesma pouca importância tem. Nos EUA os partidários da direita preferem crer num tweet de Trump mais que nas reportagens de jornais e televisões com décadas de reputação de honestidade; enquanto que há muitos na esquerda que ignoram a realidade para crer que Bernie Sanders não só teria trucidado Trump como o fará novamente (ou Elizabeth Warren por ele) se receber a oportunidade.

 

Outros exemplos são as narrativas alternativas que vemos na Polónia, Hungria, Venezuela, Brasil, Portugal, Inglaterra, etc, etc, etc... dependendo de qual o meio de comunicação que seja usado. Para quem queira informação de qualidade, o dilema chega ao ponto de deixar de se acreditar no próprio meio preferido perante o bombardeamento de informação alternativa e contraditória.  Se eu ler o Washington Post estou de facto a ler notícias solidamente construídas e analisadas ou a ver propaganda anti-Trump e anti-GOP? De certa forma, mesmo estando eu contra os argumentos da direita estridente que domina parte dos media americanos, torna-se um caso em que deixo de saber se as minhas referências não começarão a optar pelas mesmas tácticas para combater os opositores. Não é uma mentira repetidas vezes o suficiente para se tornar verdade, mas nesta guerra basta provocar dúvida.

 

O mesmo vemos no segundo caso: factos científicos. Aqui o problema é a liberdade de opinião. A liberdade de opinião não é um direito, ao contrário do que se costuma afirmar. A liberdade de opinião, seja ela qual for e esteja ou não bem ou mal sustentada em factos, é absoluto facto para todos nós. Ninguém é privado da sua opinião, por muito repressiva que uma sociedade seja. Aquilo de que podemos ser privados é da liberdade de expressar essa opinião ou de a criar de forma livre. Há formas repressivas de reduzir o acesso à informação não desejada, mas há também a forma não repressiva: o bombardeamento da informação falsa. E não há campo onde isso seja mais visível que o da ciência.

 

Os cientistas, por treino, são pesosas altamente cépticas, não só do que os rodeia como dos próprios resultados. É quase impossível encontrar um cientista a afirmar que uma determinada teoria está correcta a 100%. Há sempre espaço para a dúvida, para casos especiais, para excepções causadas por variáveis não conhecidas. É por isso que a ciência avança: porque há sempre alguém que tem dúvida que a explicação existente seja suficiente.

 

No entanto a sociedade não funciona assim. A sociedade acredita na democratização da informação, no poder do contaditório. Isso faz com que se dê peso a mais às dúvidas, quais brechas no edifício teórico, e se dê mais tempo a quem expressa as suas ideias de forma categórica e convincente. É por isso que movimentos como o anti-vacinas ou anti-estatinas conseguem enorme destaque. Porque os seus proponentes pegam em pequenas excepções, em dúvidas ou faltas de convicção dos cientistas, bem como na ignorância científica da população e preconceitos da mesma, para fazer avançar as suas agendas motivadas exclusivamente pelo interesse pessoal.

 

O caso mais claro que existe deste problema do acesso à informação boa e má na internet é o da execrável Jenny McCarthy, que afirmou ter obtido o seu grau académico na "universidade do Google", demonstrando perfeitamente como é possível encontrar informação em favor das convicções pessoais, por mais que estejam demonstradas como erradas. O mesmo se poderia referir à mania da comida orgânica, anti-glúten, veganismo radical, anti isto e anti aquilo.

 

No fundo, e voltando ao meu ponto inicial, o problema torna-se o acesso à informação. Esta está democratizada e não hierarquizada em função da sua veracidade ou verificabilidade. A isto acresce a noção, errada, que toda a gente tem direito à sua opinião (confundido opiniões e factos) sem que tenha que a defender ou sustentar de alguma forma. A internet permite que todas as opiniões sejam tratadas da mesma forma, independentemente do seu valor. E, sendo um repositório de todas as opiniões do mundo, resulta que cada vez menos as teremos.

 

De certa forma, após o quase deserto de informação do passado, temos um jardim do Éden da informação a dar lugar a monoculturas da informação. E isto não é bom.

Os mortos não são números

Pedro Correia, 24.07.17

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Trinta e cinco dias depois da tragédia de Pedrógão Grande, o semanário Expresso, cumprindo a sua missão jornalística, rompeu enfim o bloqueio oficial e divulgou ao País as identidades dos mortos já confirmados naquele dia fatídico. Anotando as circunstâncias dramáticas em que morreram e acrescentando uma vítima mortal ao número que tinha sido difundido pelos organismos do Estado.

O mais impressionante, desde logo, é que numa sociedade aberta como a portuguesa este tema, por contraste, tenha sido tão opaco.

Como se aquelas vítimas, ao confinarem-se a um dado estatístico, estivessem destinadas a morrer uma segunda vez.

Como se fossem apenas um número.

Como se tivessem perdido o direito ao nome.

Surpreende que outros órgãos de informação, aparentemente, se tivessem resignado todo este tempo à "verdade" oficial, aos números oficiais, a um pretenso "segredo de justiça" que impusesse aos mortos o anonimato post mortem.

 

As vítimas de Pedrógão eram pessoas concretas, de carne e osso, com identidade.

Não eram dados estatísticos.

Era fundamental pôr fim à "lei da rolha" também neste domínio. Foi o que o Expresso fez. Revelando, desde logo, que a contabilidade oficial deixara de fora as chamadas "vítimas indirectas".

Uma autêntica missão de serviço público.

«Para que a Comissão Independente não se perca no exercício académico, para que seja mais importante o Estado salvar do que os presumíveis responsáveis salvarem os seus empregos. Para que se saiba que entidades poderão ser acusadas pelo Ministério Público de homicídio por negligência, se for esse o destino das investigações. Para que as investigações apurem em vez de denegar.» Palavras do director do semanário, Pedro Santos Guerreiro, num  notável texto que merece leitura atenta e reflexão de todos.

O Expresso garante que continuará a investigar até ao limite do possível para esclarecer a opinião pública se houve mais vítimas mortais, conferindo o rigor de algumas  listas que circulam na Rede em evidente desmentido à contabilidade oficial.

 

Os familiares são os primeiros a queixarem-se da opacidade e da inacção dos organismos públicos. Familiares como Nádia Piazza, que perdeu um filho em Pedrógão e critica a ausência de informação útil, a burocracia, a não divulgação da lista oficial de mortos e a falta de apoio psicológico. O Estado falhou antes e volta a falhar depois. Daí estar em vias de criação a Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande, que pode avançar com processos em tribunal contra instituições oficiais.

De uma vez para sempre, temos de saber quem e como morreu naquele fatídico 17 de Junho. Não pode haver "segredo de justiça" em torno desta informação fundamental num país que se orgulha de ser livre.

Só é óptimo se parecer péssimo

Pedro Correia, 24.04.16

20120926_ZubrinDDTNaples[1].jpgSoldado americano utiliza DDT para prevenir malária (Nápoles, Janeiro de 1944)

 

Vi há dias um interessante debate sobre o rumo e o destino da chamada "comunicação social" num programa televisivo da RTP3, O Último Apaga a Luz, dedicado à análise dos media contemporâneos. Sem clichês, sem chavões, sem o pensamento pronto-a-papaguear que é habitual escutarmos noutros programas. Com Joaquim Vieira, Raquel Varela, Rodrigo Moita de Deus e Virgílio Castelo.

A certa altura a Raquel Varela disse uma frase que não resisti a transcrever aqui: "A comunicação social está permanentemente a mostrar aquilo em que a Humanidade é incapaz e a ocultar aquilo de que a Humanidade é capaz."

 

Penso com muita frequência nisto: o discurso jornalístico reflecte hoje uma crescente tabloidização da realidade, descrevendo-a como um local infrequentável. O mundo retratado na generalidade dos órgãos de informação contemporâneos está povoado de calamidades e cadáveres, de fobias de todo o género, de anátemas lançados ao modo como vivemos e convivemos.

O sangue vende como nunca, o medo instala-se, o temor de sair à rua devido a um milhão de causas - desde os assaltos nos multibancos aos raios ultra-violetas potenciados pelo "aquecimento global" - induz cada um a entrincheirar-se nas quatro paredes domésticas, trocando o real pelo virtual.

"O inferno são os outros" - nunca a frase de Sartre pareceu tão actual como nos nossos dias.

 

E no entanto há outro mundo que pulsa e vibra além das manchetes da imprensa. Um mundo que "não sai no jornal", parafraseando o verso de Chico Buarque. Esta semana, ao fundo de uma página interior do El País, na secção de Tecnologia e Ciência, li este título: "Europa livre de malária".

A Organização Mundial de Saúde declarou este continente onde habitamos finalmente imune à doença, que matou 438 mil pessoas em todo o mundo só no ano passado e era endémica no sul da Europa - incluindo Portugal - até à geração dos meus pais. Vinte dois mil soldados norte-americanos adoeceram com malária na Sicília durante a campanha militar para a conquista da ilha, no Verão de 1943. Apenas no pós-guerra os mosquitos portadores da doença começaram a ser combatidos com eficácia, graças à generalização do DDT, o primeiro pesticida moderno.

Uma boa notícia, portanto. E daí ter sido varrida para a parte inferior da hierarquia informativa. Não é má, não transmite receio nem angústia - portanto, não vende. Logo me lembrei, perante este exemplo concreto, de uma reunião de editores no Diário de Notícias. Ousei sugerir que todos os anos - num dia apenas, coincidindo com o aniversário do jornal, a 29 de Dezembro - fizéssemos aquilo que me parecia, e parece ainda, um estimulante exercício intelectual: produzir uma edição em que todos os temas fossem escritos num ângulo positivo. Seguindo o princípio de vermos o copo meio-cheio, não meio-vazio.

Quase todos os meus colegas olharam para mim como se eu estivesse afectado por loucura momentânea. E logo a questão foi arrumada em duas palavras: "Não vende."

 

A mesma lógica que leva o fim da malária na Europa a merecer apenas uma nota de rodapé: de acordo com este raciocínio dominante, só as más notícias parecem verdadeiramente boas.

Se em vez de mau for péssimo, ainda melhor.

Mas - convicto ainda de ter apresentado uma sugestão que devia ter merecido luz verde nessa reunião de editores, há mais de uma década - interrogo-me: se só a tragédia e a catástrofe "vendem" por que motivo continuam a fechar tantos jornais?

A verdade deve estar algures

Sérgio de Almeida Correia, 04.02.16

"Não há memória de documentos tão arrasadores para uma proposta orçamental vindos de entidades tão diferentes e tão respeitadas.

Sem surpresa, depressa percebemos que o problema não estava no eventual erro de miopia de todos quantos em Portugal se pronunciaram sobre o dito “esboço”. Em Bruxelas o choque foi frontal. Tão frontal que, passada apenas uma dúzia de dias sobre a entrega desse esboço, as notícias esparsas que nos vão chegando apontam para que dele já pouco restará. Foi sendo estraçalhado em boa parte das suas metas e indicadores.

Só para se ter uma ideia de como as coisas evoluíram basta recordar que as “contas” dos economistas do PS apontavam para um crescimento de 2,4% da economia em 2016, o Programa do Governo desceu essa previsão para 2,2%, o “esboço” encolheu-a ainda mais para 2,1% e agora estará nos 1,9% e toda a gente continua a dizer que é irrealista. Aconteceu o mesmo com todos os outros grandes números, o que mostra a pouca seriedade e o nenhum rigor das “contas” que nos têm vindo a ser apresentadas." - José Manuel Fernandes, Observador

 

"Quando o Executivo apresentou o esboço do Orçamento, a Comissão Europeia evidenciou erros graves de classificação de medidas para o défice estrutural. Ora, os técnicos de Bruxelas aceitaram algumas medidas com a classificação proposta pelo Governo e recusaram outras.

Houve uma negociação intensa e o problema já não estará na classificação das medidas, mas na dimensão do ajustamento. Tanto que durante o dia de hoje, apenas se falou da percentagem de consolidação do défice estrutural que o Governo iria fazer e não do facto de precisar de compensar mais por Bruxelas recusar a leitura portuguesa das regras.

O Governo não conseguiu convencer Bruxelas a inscrever a reposição dos salários dos funcionários públicos como medida extraordinária. Uma das medidas que tem grande peso no Orçamento. O mesmo não aconteceu com a sobretaxa de IRS.

Para o Governo de António Costa, tudo dependia da classificação que vinha de trás. O argumento utilizado pelo Executivo é que aquelas medidas extraordinárias nunca deviam ter contado para a consolidação do défice estrutural e que, como tal, deveria ser agora corrigido para trás esse valor. No caso dos salários, foi vencido no argumento, não o foi noutras medidas." - Liliana Valente, Observador

 

"O Orçamento do Estado, na sua última versão com as medidas adicionais de austeridade acordadas na terça-feira entre o Governo, o BE e o PCP, recebeu luz verde dos técnicos da Comissão Europeia na terça-feira ao fim do dia. E, segundo apurou o Expresso junto de fonte próxima do processo, tanto bastou para o comissário europeu dos Assuntos Financeiros, Pierre Moscovici, dar também o seu aval ao OE português.

Depois de toda a tensão dos últimos dias, falta apenas o aval político, que depende do Colégio de Comissários. A próxima reunião é na quarta-feira da semana que vem. É a única pedrinha que ainda pode entrar na engrenagem - mas o ok de Moscovici, depois do ok da missão que o comissário francês mandou a Lisboa, já permitiu ao Governo suspirar de alívio.

Bruxelas queria uma redução do défice estrutural de 0,6 pontos percentuais, Lisboa responde com 0,4 pontos (quando a proposta inicial incluída no esboço do OE era de apenas 0,2 pontos de redução do défice estrutural).

Quanto à previsão de crescimento para este ano, e tendo em conta o impacto negativo das novas medidas introduzidas no OE nos últimos dias, o Governo deixou cair os 2,1%, apontando agora para um crescimento do PIB de apenas 1,9%.

Apesar de não cobrir em nenhum dos casos o que era exigido pela União Europeia, o esforço do governo português satisfez os técnicos comunitários." - Filipe Santos Costa, Expresso

 

"A Comissão Europeia mantém as negociações em aberto e continua à espera de receber do Governo medidas adicionais de 950 milhões de euros. Sem elas, insiste um alto representante comunitário, o esboço do Orçamento do Estado (OE) para 2016 não passa no crivo de Bruxelas.(...)

Ao Económico, fonte comunitária explica que havia um problema técnico, relacionado com divergências na contabilização das medidas, e um político, sobre o ritmo do ajustamento. A negociação técnica fechou entretanto, com Bruxelas a fechar a porta à ideia do Governo retirar o impacto de medidas como a reposição dos salários do saldo estrutural (avaliada em cerca de 440 milhões de euros).

A parte política tem a ver com o facto de o Executivo querer que a Comissão aceite um esforço de “apenas” 500 milhões, fechando os olhos aos 450 milhões em falta. Uma ideia que continua a não reunir muitos adeptos no colégio de comissários, de onde amanhã sairá a decisão final." - Diário Económico

 

"Equipas técnicas chegaram a entendimento sobre o valor das medidas e ainda há divergências quanto à natureza e momento em que devem ser contabilizadas."- Jornal de Negócios 

 

"Todas estas medidas deverão encurtar, mas não eliminar, a diferença entre as projecções do Governo e as metas exigidas por Bruxelas. A partir daqui, para que a Comissão Europeia aceite não classificar o OE português como estando em “incumprimento particularmente sério” das regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, será necessária uma avaliação favorável cujos critérios são mais subjectivos.

A decisão final da Comissão Europeia só deve ser conhecida na sexta-feira, após a reunião do Colégio de Comissários, mas no Governo português existe a convicção de que o assunto “está muito perto” de ser resolvido.

Durante esta quarta-feira surgiram informações de que o próprio comissário para os assuntos económicos e financeiros, o francês Pierre Moscovici, teria dado luz verde ao esboço orçamental português. Mas mesmo que o tenha feito, essa não é nenhuma garantia de aprovação. Acima de Moscovici, e em conflito político com o socialista francês, está o vice-presidente da Comissão para os assuntos do Euro, Valdis Dombrovskis. Este, conservador do PPE, será um dos mais irredutíveis entre os 14 comissários da família política do centro-direita, que tem metade dos assentos na Comissão." - Público

 

“O diálogo com as instituições europeias correu muito bem. Acho que ninguém tem motivos para estar preocupado com a seriedade do trabalho que foi feito de parte a parte.” - António Costa, em Évora

 

Entre o orçamento "estraçalhado" de José Manuel Fernandes e o optimismo do primeiro-ministro deve haver alguma coisa que seja verdade, penso eu.