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Delito de Opinião

Entretanto, no mundo

Cristina Torrão, 11.10.24

Saudosismo

Coisas da meninice neste Dia da Criança

Maria Dulce Fernandes, 01.06.23

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As aulas começavam às 8 horas e de casa ao Liceu eram 15 minutos de autocarro, ou meia hora a pé. A minha mãe dava-me diariamente 1 escudo para os bilhetes do 27, um verde da Carris, ou do 18, um amarelo que saía de Belém para a Praça do Comércio e passava pela Rua da Junqueira. Eu preferia sair mais cedo, ir a pé e guardar o dinheiro para comprar coisas boas na cantina. Havia de tudo e era tudo muito bom. Os bolos, os bombons, as bombocas, as batatas fritas, os nougats e as sandes de queijo ou fiambre, feitas num pãozinho enfarinhado e leve com muito miolo e um fiambre delicioso. Preferi muitas vezes a sandocha aos doces.
Lembro-me das sandes de fiambre do Liceu sempre que se compra fiambre para ter em casa. O pão é o que é, uma tristeza, mas o fiambre, esse então é aguado, não dura mais do que um dia, não sabe a fiambre, não presta. Mesmo aquele xpto da marca nacional mais conhecida em produtos de charcutaria, comprado ao balcão e cortado na hora, passado um dia  já sabe mal, independentemente das caixas de vácuo onde o acondiciono.
As saudade que eu tenho de uma bela sandes de fiambre saborosa, num papo-seco enfarinhado e com miolo, que se podia comer no dia seguinte sem partir um dente ou dois, que comprava na cantina do Liceu e que marcou mais vivamente a memória dos meus doze do que ter sido "senhora" ou um buço escuro persistente ter começado a despontar, realçando ainda mais o meu nariz de Cleópatra.

(Imagens Google)

Lá do alto

Maria Dulce Fernandes, 05.07.22

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"Alto está alto mora todos o vêem ninguém o adora", dizia-me a avó para eu adivinhar que aquele gesto abaulado de mãos significava sino, naquele jogo de adivinhas com rima e senso a que tanto adorávamos brincar. Para mim esta era uma adivinha triste, porque morria de pena do sino, que todos viam e ninguém adorava, apesar de ele tocar para chamar os fiéis à celebração da Eucaristia Dominical, apesar de ele tocar quando se anunciava uma efeméride, apesar de  dobrar a finados.
E depois a Avó recitava :


O sino dobra a finados.
Faz tanta pena a dobrar!
Não é pelos teus pecados
Que estão vivos a saltar.

E eu condoía-me do imponente sino solitário que todos viam, ouviam e seguiam os tinidos enquanto tocava, mas quase imediatamente o som que nos emocionara, que nos avisara, que nos entristecera ou jubilara, caía rapidamente no esquecimento e praticamente ninguém o apercebia lá no alto, até lhe voltar a ouvir a voz grave e metálica.
O mal de crescer é perder a inocência, a candura de acreditar, de aceitar a simplicidade duma palavra, a ternura dum gesto. O mal de crescer é entender, é cada um ter os seus pareceres e fazer os seus juízos.
Eu cresci e continuo a olhar o sino, agora à luz da experiência de vida que a minha condição de pessoa antiga me conferiu. Já não o olho com os olhos puros da minha infância, nem me condoi vê-lo só lá no alto donde nunca saiu. Provavelmente acha-se importante de mais para descer do seu pináculo.
Também aconteceu assim com Gulliver em Lilliput e ilustra na perfeição a ilusão da realidade inversa:

 
                   Vozes de burro chegam aos céus (Ou pelo menos a altas instâncias)
 
(Imagem do Google)

A História devida de um dos nossos leitores

Paulo Sousa, 31.08.20

Na sequência do meu texto de há dias, o nosso leitor que se indetifica por o cunhado enviou num comentário a sua História Devida. O relato e o episódio merece um destaque que não teria se ficasse apenas como um comentário. Por isso aqui fica ela, com o devido agradecimento ao cunhado pela sua partilha.
Um abraço

"Dois anos depois do meu pai nos ter deixado naquela pequenina casa daquela ainda mais pequenina aldeia incrustada no sopé da grande serra; à minha mãe, a mim com quatro anos e às minhas irmãs, uma com cinco e outra em ventre materno e ter abalado em demanda de terras africanas onde se constava que era só abanar a árvore, embarcávamos no “Mouzinho de Albuquerque” numa viagem que juntaria a família em Angola, onde, tudo o indiciava, o meu pai soubera com arte e proveito abanar devidamente a árvore.

O navio era velho e pequeno, navegava devagar e às vezes até parava. Essa seria mesmo a sua última viagem. A minha mãe enjoou logo ao início e a minha irmã mais nova, essa embarcou já doente mercê de uma malga de azeitonas galegas que a tia Rosa lhe dera, pitéu a que a miúda não resistia. Esteve mesmo em risco de vida, mas escapou. De modo que com essas duas de cama, foi a minha irmãzinha mais velha com os seus responsáveis sete aninhos a ter de assumir a responsabilidade por todos, mais concretamente por aquelas duas inúteis, que eu sabia bem tomar conta de mim e não dava trabalho a ninguém. Tinha liberdade, por mim estava tudo bem e não carecia de mais nada. Assim, corria o barco de popa à proa, à minha maneira sem ser minimamente molestado com parvas recomendações disto e daquilo, e ao contrário da minha mãe e irmãs que se lamentavam que aquilo nunca mais acabava, só pedia que tivessem razão porque não me incomodava nada viver o resto da minha vida lá dentro.

Ia também nessa viagem um contingente militar, desses que o Governo mantinha nas colónias, com quem no primeiro minuto travei conhecimento e por quem ainda mais rapidamente fui adoptado como mascote. Andava com eles para todo o lado, comia com eles, via-os beber vinho pelos garrafões, jogarem às cartas e cultivar-me-ia a preceito na sublime retórica do palavrão. Enfim, a minha felicidade era plena e só me queria ver grande depressa para envergar aquela bela farda de caqui amarelo e combater em todas as guerras deste mundo, porque guerra foi a palavra mais ouvida na minha infância. Nasci em 40 e estava-se agora em 47.

Declinava um certo dia quando eu me passeava por ali, frustrado por não ver ninguém, quando reparo num militar que de costas para mim debruçado sobre a amurada contemplava o mar, perdendo-se sabe-se lá em que estranhas divagações. Era um homem grande, ainda o estou a ver. Corri para ele, contentíssimo pelo ocaso da minha solidão ter chegado ao fim, e ele quando me viu pareceu ficar muito surpreendido. Baixou-se ao meu nível e vi-o olhar receoso para todas as direcções. Ninguém nas imediações. Então soergueu-se, comigo segurado pelos braços, estendeu os dele comigo nas suas mãos, colocou-me fora o barco e disse-me numa voz rouca e segredada, que ainda hoje estremeço quando a recordo:

- E se eu te deixasse cair?

Não soube o que senti. Olhava para baixo, para o que me parecia um abismo interminável, e na medida em que a escuridão que já caíra me permitia, via água ondulante lá em baixo. Então algo explodiu na minha cabeça pedindo-me para não gritar. Depois ele jogou comigo. Largava-me e apanhava-me, largava-me e apanhava-me. Por vezes jogava-me mais acima, deixava-me cair e apanhava-me no último instante. Subitamente soube que me ia deixar cair. Vi-lhe nos olhos a decisão, até lhe senti o afrouxar das mãos. E exactamente nesse momento, um barulho fez-se ouvir mais acima, que se foi gradualmente tornando mais distinto à medida que se aproximava. Dois marinheiros vinham por ali conversando. Provavelmente com medo que eu gritasse ao ser largado, recolheu-me rapidamente, pousou-me atabalhoadamente sobre o tombadilho e fugiu a correr para a parte oposta.

Nos quatro dias restantes para término da viagem nunca mais saí do nosso cubículo, pomposamente alcunhado de camarote. Tinha feito há pouco seis anos. Todas estranharam a minha súbita dedicação familiar, mas nunca souberam nada, nem nunca saberiam. Mas soube eu, e saberia tudo. A partir desse episódio nunca mais esqueceria nada e recordo todos os factos da minha vida até à data de hoje. Todos! até o mais insignificante."

A minha história devida

Paulo Sousa, 28.08.20

Julgo que tudo começou pela experiência lançada por Paul Auster numa rede de rádios norte-americanas. A ideia baseava-se na leitura de histórias enviadas pelo público, que poderiam ter desde dois parágrafos a duas páginas, e teriam de ser verdadeiras. O sucesso traduziu-se em mais de 4.000 histórias envidas pelo público, que após uma rigorosa seleção alimentaram um programa de rádio durante alguns anos, assim como o livro True Tales of American Life editado pelo escritor.

A Antena1 criou há uns anos uma rubrica inspirada nesta ideia. A História Devida, de seu nome, esteve no ar durante algum tempo e ainda andou pelo Canal Q. Julgo que já tenha terminado.

As histórias que ouvi nesta rúbrica eram na generalidade bastante interessantes. E porque todos temos uma história para contar, que era o mote do programa, um dia também quis participar e enviei a minha história. Foi para o ar em dezembro de 2006, e partilho-a aqui convosco.

Castelos no ar

Maria Dulce Fernandes, 18.06.19

 As Minhas Casinhas*

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É muito vaga a minha recordação da Casa Onde Nasci, mas tenho a certeza que ali morei durante muitos meses a partir do momento em que respirei pela primeira vez, fora do ventre da minha mãe.  

Sei que era uma casinha alegre e mimosa, um T1, pelos padrões de hoje, género de aconchego onde noivos vão noivar. Tinha flores coloridas nos parapeitos das janelas e muito sol incrustado nos umbrais. 

Não me traz recordações. Lembro- me de ir lá com a minha mãe ver a “Avó Augusta", a senhoria, que me levou a ver onde nasci e, melhor ainda, ofereceu-me um cartuchinho de papel cheio de rebuçados de alteia e mel com o carimbo do confeiteiro. Desses lembro-me bem. 

A Casa da Avó era antiga, de tectos altos e soalho esfregado. Havia o quarto escuro da Avó Júlia onde sobressaíam os verdejantes números e ponteiros de grande despertador com duas campainhasA cozinha era enorme, com imensas talhas de barro que lembravam sarcófagos e uma walk-in chaminé, por onde o Avô Américo fazia subir no Natal, por artes lá muito dele, um boneco que eu acreditei durante muito tempo ser o Menino Jesus. As escadinhas para o sótão, onde o sol brincalhão bailava por entre as telhas, eram um mundo encantado de mistério e um caleidoscópio de cor. Encravada entre a Memória e o Restelo numa zona de quintas, compõe o quadro mais vivo das minhas lembranças.  

Não me recordo de outro local onde, em toda a minha vida, fosse tão amada e tão feliz. 

Já a “Casa Velha" no número 21 da mesma rua onde moravam os meus avós e onde a minha mãe nasceutinha paredes grossas e pouca luz, um denso ninho de pássaros, tal qual o número 5 de Pollock, era como o quadro plena de texturarebuliço e contrastes. 

Foi ali que tive a primeira televisão e o primeiro irmão. Ambas ocasiões marcantes nos meus tenros 4 anos. Apesar de gostar mais da televisão e adorar a mira técnica e o Mascarilha, tenho que admitir que o meu irmão era um bebé encantador. Primeiro da sua espécie numa longa linhagem de fêmeas, fez as delícias da mãe, do pai e do avô, era o ai jesus de todas as anciãs genitoras, mas sem nunca ter chegado a atingir a entronização que me pertencia  

Numa época em que se criava um mundo com paus, pedras, folhas, papéis e terra, o meu irmão descobriu uma pequena fresta entre duas tábuas do soalho e pedia tostões para lá meter à laia de mealheiro. Nunca entendi bem qual a sensação de realização infantil em ver desaparecer dinheiro, tampouco porque é que tanta gente lho dava e achava aquilo o máximo. 

Pelos meus 6 anos mudámos para a “Casa Nova", um terceiro andar acabadinho de estrear no número 37 da mesma rua. Tinha - e tem ainda - uma das mais belas vistas sobre o Tejo, como um fantástico postal, da Ponte à Torre de Belém.  

A minha vista daquela varanda transbordou de confidências de estudante de primeira classe, irmã pela segunda vez, estudante de preparatória, de liceu, de faculdade, criança, menina, namorada, mulher, esposa e mãe. 

Casei cedo. A Casa do Cacém, comprada em 1980, num local com um ribeiro junto ao qual pastavam cabrinhas, tinha arvores frondosas e muito sossego, um verdadeiro cenário idílico para se criar um filho. Os fantásticos primeiros dois anos enovelaram-se num pesadelo de trânsito sufocado num inferno de betão. Foram 19 anos de muita luta. Era a minha casa. Foi lá que criei as filhas. Nunca foi mau, mas não me deixou saudades. Trocar Belém e Tejo por uma selva de pedra, claustrofóbica e poluída foi necessário, mas nunca definitivo. 

A Casa de Alfragide, actualmente, é o meu castelo no ar. Não tem prédios que enclausurem o olhar  que se perde até ao horizonte, no mar. Vê-se céu até fartar e pores do sol de arrepiar. À noite, lua e estrelas acenam para me saudar. Ao longe tem mil luzes a brilhar. Dá-me paz. Deixa-me respirar. 

Casei uma filha, tenho outra quase a casar. Tenho uma neta, e um neto quase a chegar. Dois gatos e salas imensas, prenhes de céu, serra e mar. Se será o meu derradeiro ninho, não sei, mas não anseio mudar. É o aconchego perfeito para poder descansar.  

 

*Repto deixado pelo Pedro Correia para escrevermos sobre as casas da nossa vida

Quando a Realidade se Cruza Com o Imaginário

Francisca Prieto, 04.05.16

Quando tinha a idade da minha filha Rita passava longas temporadas em casa da minha avó paterna. A minha avó era modista, proprietária e mestra da “Casa da Costura”, um estabelecimento reconhecido pelo esmero e rigor em prazos e pespontos.

Eu andava por ali, entre aprendizas e costureiras, a forrar botões, a arrumar carrinhos de linhas e a escolher restos de tecidos para fazer mantas para as bonecas. 

Como era tagarela, gostava de me sentar num banco baixinho e meter-me em conversas muito compridas com as costureiras. Havia a Gigi, um amor de senhora que, por ter tido um problema qualquer na juventude, tinha ficado com um olho de vidro. E a Cristina, que me fazia ovos estrelados sem a ranhoca da clara por cima.

Naquela altura a minha mãe já tinha percebido que passear por um palco a fazer macacadas não era coisa que desse de comer a cinco filhos, de maneira que passava semanas fora a dar e receber formação para se reinventar noutra coisa qualquer.

Escrevia-me cartas e postais dos quatro cantos de Portugal e eu pedia à Gigi e à Cristina para as lerem muitas vezes e elas enganavam-se de propósito porque já sabiam que eu dava logo por isso. Riam-se muito quando as emendava e eu amuava.

A minha conversa preferida era sobre o Parque Eduardo VII. Passava tardes inteiras a pedir-lhes que me contassem como era. Onde ficava o lago dos patos, onde era melhor pousar uma toalha para um piquenique, qual a árvore que fazia a maior sombra ou como era o café onde se podiam comer Super-Maxis.

Para mim, o Parque Eduardo VII era um cenário mítico que não existia senão na minha imaginação. Uma espécie de jardim babilónico que idolatrava porque podia ser tudo aquilo que eu quisesse.

Um dia resolveram pedir licença a mestra Dorotheia para me levar lá. Fizeram-se grandes preparativos, muito zumzum à volta do grande dia, que roupa ia vestir, que eléctrico havíamos de apanhar, que gelado me iam oferecer, a que horas era a partida, eu sei lá.

No momento em que me vestiram o casaco de fazenda para sair porta fora, fui invadida por um pavor inexplicável e desatei num pranto tão aflitivo que se desistiu da epopeia. Era como se me estivessem a propôr a visita à caverna de um ogre.

Só hoje, e passados tantos anos, consigo perceber o fenómeno. É que quando nos atrevemos a cruzar as fronteiras do real com o imaginário, causamos danos irreparáveis.

E a mim, deram-me cabo do Parque Eduardo VII.