Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

A hora da indignação

Paulo Sousa, 07.05.21

Apesar da aparente unanimidade relativa à recente polémica sobre os alojamentos dos trabalhadores temporários das explorações agrícolas intensivas, a questão encaixa no que podemos apelidar "a hora da indignação".

Li numa das várias reportagens que têm sido feitas sobre o assunto nos últimos anos, que ao perguntarem a um desses trabalhadores o que achava das condições em que vivia, e ele terá respondido que eram boas, especialmente comparando com as que tinha junto da sua família. Assim, sem mais enquadramentos, se não existisse no concelho de Odemira procura de mão-de-obra agrícola, não seria improvável que aquele trabalhador especifico estivesse a viver no seu país de origem, em piores condições do que ali, e sem que a sua família pudesse auferir das transferências que ele lhe envia.

Como se ninguém antes conhecesse aquela realidade, agora, que são a sensação da semana em todos os noticiários, convencionou-se chamar-se estes trabalhadores de invisíveis. Se os mirtilos, framboesas, morangos e demais frutos vermelhos que dão cor aos pequenos almoços das cavalonas do Instagram fossem produzidos noutras paragens, ninguém em Portugal estaria a falar neles. Por isso, acho que a proclamada indignação perante tudo isto resulta, mais do que outra coisa, de isto se passar em Portugal. Claro que é, dirão. Mas então onde é que está a indignação para com as condições de trabalho dos operários que produzem os processadores dos nossos computadores, os leds que iluminam a nossa cozinha e os brinquedos com que as nossas escassas crianças brincam?

Há umas décadas atrás, estudava-se nas disciplinas ligadas à economia um conceito que hoje está fora de moda, e que é o dumping social. Segundo o que então se estudava, essa prática consistia em obter vantagem competitiva a partir da falta de condições dadas aos trabalhadores. Hoje em dia, o não cumprimento das condições de trabalho que são exigidas na UE esgota-se no singelo conceito de competitividade. Isso é uma consequência da globalização e da transferência de uma imensidão de indústrias para o Extremo Oriente. E, estando longe da vista, está igualmente longe do coração. Acabamos por não ter de pensar que aquele custo de produção não seria possível sem operários a viver em condições piores que as de Odemira, e ainda por cima com os trabalhadores a serem controlados por um algoritmo totalitário, com piores remunerações e a conviver com todo o tipo de poluição.

Cresci a ouvir relatos na primeira pessoa dos portugueses que chegavam de noite a Champigny-sur-Marne, dormiam no meio da lama e dos ratos e todas as madrugadas eram contratados para trabalhar ao dia. Hoje os seus filhos não aceitariam essas condições, mas sem que alguém já tivesse passado por isso poderiam ser eles a estar nessa situação.

O mundo é desigual, mas o que mata é a pobreza e não a desigualdade. Sendo nós inquestionavelmente iguais na dignidade, temos expectativas desiguais. Por isso alguns de nós aceitam coisas que outros nunca chegariam a considerar.

Depois de se indignarem com os abusos do grande capital, os indignados com a polémica da semana em breve puxarão pelo comando remoto do seu televisor, que está ligado à router do seu fornecedor de telecomunicações e navegarão pela imensidão da rede. Quando quiserem desentorpecer as pernas, irão ao frigorífico, e em jeito de boicote trocarão os frutos vermelhos pelos tropicais. Às 23:00 acaba a hora da indignação, e depois disso,tudo regressará à normalidade.

Insultar Marega vale 714 euros

Pedro Correia, 11.03.20

img_920x518$2020_02_24_02_37_21_1667666.jpg

 

Lembram-se da comoção nacional gerada pelo chamado caso Marega, quando este jogador do FC Porto, logo após ter marcado um golo ao Vitória de Guimarães, sua antiga equipa, abandonou o estádio D. Afonso Henriques em protesto contra insultos racistas que lhe dirigiram das bancadas? O país reagiu quase em uníssono: o Presidente da República apressou-se a mostrar indignação; o primeiro-ministro não quis ficar atrás; a coordenadora do Bloco de Esquerda proclamou-se «adepta  de Marega» mesmo sem ir em futebóis; o Observador noticiou o sucedido num título com 20 palavras, inovando na técnica jornalística.

Não faltou até quem bradasse «Somos todos Marega», com aquela habitual ponta de exagero que há cinco anos levou muitos a gritar «Somos todos Charlie» - incluindo aqueles que hoje se mostram prontos a aplaudir restrições ao direito à crítica e à liberdade de expressão, desde que ocorram num campo político ou ideológico adverso ao seu. E logo despontaram historiadores e sociólogos de pacotilha a sustentar que «somos um país de racistas».

 

Moussa Marega decidiu abandonar o campo a 16 de Fevereiro - faz hoje 24 dias. Como sucede nestes surtos de indignação, pontuados pelo frenesim das redes sociais, foi tudo muito intenso e ficou logo esquecido. Parece ter ocorrido há uma eternidade. 

Ninguém quis sequer saber como é que aquele coro de grunhidos racistas acabou punido pela chamada "justiça desportiva" deste doce país. Mas eu anotei: a Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, numa deliberação de 3 de Março, decidiu multar o Vitória Sport Clube (de Guimarães) em 714 euros - repito,  por extenso: setecentos e catorze euros - pelo comportamento de parte dos seus adeptos naquele jogo, tendo até o cuidado de esclarecer que este irrisório montante em nenhum momento se relacionou com insultos racistas.

Siga para bingo. A indignação do momento agora é outra, seja qual for.

Onde andam os indignadinhos?

Pedro Correia, 07.03.20

Onde andam os indignadinhos que no tempo da prisão preventiva do antigo primeiro-ministro José Sócrates ferviam de comoção contra esta suposta indignidade e derramavam protestos diários em lençóis nos periódicos e uivavam jeremíadas nas pantalhas? Que horror, o "abuso da prisão preventiva". Que mancha na justiça. Que vergastada no sistema democrático.

Acontece que um jovem chamado Rui Pinto foi detido em 17 de Janeiro de 2019 e está sujeito desde 23 de Março a prisão preventiva. Há mais de um ano que se encontra encarcerado, portanto. Como é possível que alegados crimes de intromissão e violação de correspondência electrónica originem medidas preventivas tão duras?

É chocante e revoltante. No entanto, com raras e honrosas excepções, a gritaria de outrora deu lugar ao pesado silêncio actual. Os tais que dantes bradavam e rasgavam vestes devem ter esgotado toda a indignação na defesa de Sócrates: para Rui Pinto não sobrou nada.

Indignações

José Navarro de Andrade, 16.11.13

Daniel Albrigo, "sem título", 2009 

 

Sempre que alguém se declara indignado (indignadíssimo, zangado, quase revoltado, etc…), de quem me lembro irremediavelmente é de Dona Maria I, a Louca. Ninguém mais do que ela se terá indignado e com justa razão.

Enquanto pela Europa começavam a bruxulear as Luzes, em Lisboa Maria de Portugal não conseguia dormir, porque mal fechava as pálpebras via seu augusto pai lambido pelas labaredas do inferno, onde fora sem dúvida parar por conivência com as impiedades do Pombal, esse pé-de-cabra e cúmplice dos pedreiros. Como se não fosse punição que bastasse, durante o seu reinado Maria I padeceu o terramoto, soube da decapitação de Luís XVI de França pela turbamulta tricolor e morreram-lhe nos braços, em menos de um par de anos, seu marido (o apagadíssimo Pedro III, que além de real consorte era não menos real tio da Rainha), seu primogénito, José como o avô, sua filha e genro, todos levados pelas bexigas doidas. Que também lhe usurparam Frei Inácio de São Caetano, confessor privado da Rainha e a luminária que lhe fizera ver quão grandes seriam os pecados dos Braganças para que tantas desgraças amaldiçoassem o reino que lhes fora confiado pela natureza divina das coisas.

Isto sim é que é de pôr alguém louco de indignação.

Nesta era, provavelmente menos feroz, em que vivemos, ainda há, todavia, quem se indigne imensíssimo, mas em vez de rojar-se em penitências descabeladas como Dona Maria I, reclama estranhamente uns quaisquer diretos conexos por via da superioridade moral inerente à indignação. É confuso mas é mesmo assim. Tenho cá as minhas dúvidas que não seria para impedir que se indignassem que a pide espancava democratas, porque naqueles calabouços e em tais aflições sabia-se que a indignação é um mero estado de espírito intangível às sevícias, logo, quem lá fosse parar alguma coisa de útil haveria de ter praticado.

Mas hoje em dia, dir-se-ia que é suficiente para ter ar de justo que um se indigne e continue de camisa abotoada nos punhos, sem fazer nada por si nem pela vida. Talvez por isso – há-de ser defeito meu – me pareçam os indignados contemporâneos assim a dar para o reaccionário.

A manif.

Luís M. Jorge, 17.10.11

AltermundialismoNovos modelos de desenvolvimento? Um protesto contra as medidas de austeridade? Deixem-se de merdas: preocupei-me com a austeridade na altura própria, quando metade dos nossos pategos punha bandeirinhas à janela pela selecção nacional. O motivo que me levou ao Marquês de Pombal no dia 15 foi este.

 

Um Governo que recebe a família Espírito Santo enquanto discute o Orçamento de Estado é um governo que reconhece, tão bem como o anterior, a voz do dono. E se eu puder chatear, chateio.

Os verdadeiros sonhadores, segundo Zizek

Fernando Sousa, 16.10.11

Slavoj Zizek visitou a Liberty Plaza, em Nova Iorque, para falar aos indignados do movimento Occupy Wall Street. "Não se apaixonem por vocês próprios, nem pelo momento agradável que estamos a ter aqui. Os Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como a nossa vida normal e quotidiana será modificada", avisou. “Dirão que estão a sonhar, mas os verdadeiros sonhadores são os que pensam que as coisas podem continuar tal como estão por um tempo indefinido, como acontece com as mudanças cosméticas”. Deixo-vos com as palavras do filósofo esloveno, publicadas no Verso Books. No fim, talvez vos pareça também que enquanto uns ainda semeiam em terra cansada, outros lavram ao lado.

Há por aí alguém que não esteja indignado?

Rui Rocha, 15.10.11

A avaliação das marchas dos indignados em Portugal fica condicionada pela comparação com os protestos de 12 de Março. Menos manifestantes num contexto social e economicamente mais degradado do que o de então permitem a conclusão de que se tratou de um relativo fracasso. Por outro lado, não faltarão as críticas relativas à falta de consistência da manifestação. Que objectivos, alternativas e caminhos têm os manifestantes para propor? Para além disso, confundir-se-á ainda a mensagem com o mensageiro: o Zé que nunca fez nada, o Alfredo que acredita que a violência é solução, os entusiasmadinhos da democracia directa  (a deles) e tantos outros cromos e pintas também por lá andaram. Criticar-se-ão, ainda, todos os actos violentos e as faltas de respeito, o lixo e o despeito. Mas, para lá de tudo isso, das comparações, dos mensageiros, dos propósitos e do contexto, sobra uma mensagem que é impossível ignorar. A de que paira sobre nós um nevoeiro de injustiça, de desequilíbrio, de distribuição enviesada que não pode deixar-nos indiferentes. E, se os motivos, os percursos e as soluções não são consensuais ou mesmo aceitáveis, fica, apesar de tudo, um sentimento de indignação que merece ser partilhado e que tem muito mais adesão do que aquela que hoje foi visível nas nossas ruas.