Uma das virtudes da ortografia do português pré-Novo Acordo Ortográfico é que não permite substituir factos por fatos. Qualquer que seja a roupagem, aquilo que constitui um facto é imutável. Ao contrário dos fatos que se vestem e despem à medida das circunstâncias e conveniências, um facto está temporalmente situado, sabe-se o que estava antes e o que vem depois, o que em nada altera a respectiva natureza. O combate à evasão fiscal não é uma tendência, será uma necessidade, eventualmente uma contingência destinada a baralhar as contas eleitorais, mas não é um facto. Se fosse um facto seria escusado perder tempo a escrever estas linhas e bastar-me-ia mudar de fato, dirigir-me ao Coliseu dos Recreios e aplaudir o primeiro discursante que aparecesse. Hoje vou retomar o tema com uma nova experiência que, depois da ignorância revelada pelos responsáveis sobre o que se passava com a lista "VIP", dá conta de mais uma "reforma" em matéria fiscal, desta feita na área do arrendamento. Vejamos os factos.
Em final de Maio de 2015 foi celebrado um contrato de arrendamento, cujo início de vigência ficou estipulado para 1 de Julho de 2015. Os senhorios, como resulta da lei, ficaram com o ónus de comunicarem a celebração desse negócio ao Fisco e de liquidarem e pagarem o respectivo imposto de selo. Nos termos da "reforma" operada na Administração Fiscal, os contratos de arrendamento deixaram de ser celebrados em triplicado e a comunicação e registo dos contratos e seus elementos essenciais passou a ser feita pelos contribuintes directamente no Portal das Finanças.
No caso em apreço, os senhorios são casados no regime da separação de bens. O cônjuge marido, através da sua página electrónica, procedeu ao registo do contrato e de imediato foi gerada pelo sistema uma guia para pagamento de metade do valor devido ao imposto de selo (verba 2), isto é, correspondente a 5% do valor da renda. Logo de seguida, esse mesmo contribuinte tentou obter a guia para pagamento do remanescente do imposto devido, isto é, do valor relativo à metade titulada pelo seu cônjuge.
Revelando-se impossível a emissão da guia por via electrónica, através do novo portal dedicado ao arrendamento, o contribuinte, ciente das suas obrigações, cinco dias depois, contactou os serviços para saber como poderia obter a guia e pagar o imposto, uma vez que, além do mais, já constava na página electrónica do seu cônjuge a liquidação da metade em falta do imposto de selo e a indicação de que estava "em processamento".
Às 9:58 o contribuinte obteve a sua senha e ficou a aguardar, pacientemente, a sua vez, até que pelas 11:20 vê o número da senha no painel electrónico e é direccionado para o balcão 14. Quando aí chega expõe o seu problema: registou o contrato, obteve uma guia relativa a metade do imposto de selo devido, pagou, e não conseguiu obter a guia para pagamento da outra metade. Como resposta recebe a indicação de que terá de falar com o colega do balcão 18, mas que vai ser rápido porque a sua senha será encaminhada para lá e só tem um contribuinte à frente.
Passados mais cinco minutos, o contribuinte volta a expor o problema que o levou até à repartição e acrescentou que, como não reside em Portugal, gostaria de deixar a situação resolvida antes da sua partida para o estrangeiro, na semana seguinte.
A resposta é a de que o "problema" não pode ser resolvido ali, por aquele funcionário para onde fora encaminhado, porque " o sistema não o permitia". Seria necessário falar com outro colega, o do balcão 20, e ordena: "ponha-se aí e logo que aquele senhor acabe fale com o meu colega".
Mais alguns minutos volvidos, a cena repete-se com o funcionário do balcão 20. Ou seja, a história é repetida pelo contribuinte e os papéis são mostrados, reafirmando-se a intenção de pagar o tributo de imediato. Depois de uma consulta ao dito sistema o funcionário concluiu que efectivamente a guia respeitante ao remanescente do imposto não podia ser emitida porque "o sistema é novo e não o permite". "Novo?", pergunta o contribuinte, ao que o respeitoso funcionário responde que "sim, só foi introduzido em Abril". Pacientemente, o contribuinte limita-se a dizer que se o sistema foi introduzido em Abril agora já estamos em Junho, mais concretamente a 5 de Junho, pelo que não percebia por que razão não estava já resolvido esse problema que impedia a emissão da guia na descrita situação.
O funcionário diz então que o contribuinte, embora parta na semana seguinte para o estrangeiro, não tem de se preocupar (bestial!) porque oportunamente será notificado para pagar. "Mas notificado aonde?", pergunta o contribuinte. "Na morada fiscal". Perante isto, o contribuinte volta a referir que não reside em Portugal. Logo o funcionário replica perguntando se o contribuinte não pode pedir a alguém que receba a notificação, que fique com a chave do correio, e que, se quiser, poderá deixar o dinheiro e pedir para lhe pagarem o imposto de selo quando a notificação for remetida.
O contribuinte insiste: "então não pode emitir a guia para eu pagar a parte do imposto relativa à minha mulher?". E acrescenta, exasperado: "eu não tenho que andar a pedir a terceiros para me ficarem com o dinheiro, abrirem a caixa do correio e virem pagar o imposto de selo quando eu estou aqui para pagar e quero pagar; não estou disposto a que haja um extravio ou esquecimento e depois isto acabe com coimas e a habitual execução". "Pois, o senhor tem toda a razão mas nós não temos possibilidade, nem autorização superior para poder emitir a guia e o senhor pagar. Antigamente, o contribuinte vinha cá, fazia-se a liquidação, emitia-se a guia e o contribuinte pagava, agora o sistema não permite. O senhor terá de aguardar pela notificação para depois pagar", retorquiu o funcionário.
É evidente que tudo isto seria evitável - o tempo perdido, a estupidez do sistema, o atraso na arrecadação de receita - se o schumpeteriano e inexperiente Passos Coelho não tivesse querido fazer uma reforma prussiana na Administração Fiscal com a mentalidade dos medíocres a quem incumbiu a tarefa. Em vez de uma burocracia especializada, eficaz e célere, de tipo weberiano, apta a servir os interesses do Estado e dos seus contribuintes, o que fez foi melhorar estragando o pouco que funcionava anteriormente, subsituído por "sistemas" (na Justiça aconteceu o mesmo com o Citius) que revelam a irracionalidade das decisões e a incompetência de quem dirige, coisas que seriam evitáveis se nos lugares de responsabilidade política, em vez de carreiristas profissionais e de funcionários sem visão e elasticidade mental a desempenharem funções políticas, tivesse gente qualificada que estivesse apta a desempenhar essas funções.
Com um sistema que está a funcionar desde Abril, e que terá sido pensado e testado antes, não se percebe por que razão não se solucionou um problema tão simples. Bastava que numa situação como a descrita qualquer um dos co-titulares do imóvel, nomeadamente aquele que efectua o registo do contrato no Portal das Finanças, que também não é feito por metades, emitisse a guia correspondente ao imposto pela totalidade, postulando-se a regra da responsabilidade solidária entre os senhorios co-devedores. Aquele que efectuasse a comunicação e registo do contrato seria igualmente responsável pelo pagamento. Quaisquer outras questões alheias à liquidação e pagamento do tributo seriam dirimidas no âmbito das relações pessoais entre os co-titulares.
O contribuinte em causa regressará ao seu local de residência no estrangeiro. O imposto ficará por pagar devido à incompetência de quem dirige a máquina das Finanças. O contribuinte levará consigo mais uma preocupação e ficará dependente da boa vontade de terceiros que irão, também eles, perder o seu tempo para pagar o que podia ter ficado pago a tempo e horas.
Quando uma questão destas, de tão fácil solução, leva tantos meses a ser resolvida, e sê-lo-á, como se viu, pela forma mais onerosa para o contribuinte, é legítimo perguntar se o senhor Núncio e a senhora D. Maria Luís, para além de fazerem contas de mercearia e de extorquirem o devido e o indevido aos contribuintes, sabem para que serve a máquina fiscal e se têm a noção do que é um contribuinte. Eu duvido.