Françoise
Não sei como, menos ainda em que circunstâncias; se por ouvir uma melodia, ver uma foto, ou simplesmente escutar o seu nome, numa daquelas tardes quase-noite em que me estirava nas almofadas, junto ao móvel gira-discos da Schaub-Lorenz, na velha casa da Avenida da República, na Beira, onde passei alguns dos dias mais felizes da minha infância, é que ela me foi apresentada.
Talvez não tivesse então mais do que oito ou nove anos, mas confesso que já nessa altura vivia apaixonado. Paixões tão duradouras, sensíveis, inebriantes, que me acompanharam ao longo da vida, deixando-me alternar intensamente entre umas e outras, sem que alguma vez me arrependesse da inconstância dos dias, ou visse nisso, por muito incompreensível que fosse para os outros que me escutassem, um lampejo reprimível de promiscuidade sentimental.
Não sei mesmo, porque também nunca perguntei, e já cá não está quem me poderia esclarecer, qual a música que tocava quando nasci. Lá em casa. Não creio que seja importante quando a maior parte delas surgiu, naquilo que me respeita, depois de eu já estar deste lado. Do lado em que tudo acontece. Do lado em que se sente. E se vive.
Em pequenos discos de vinil de 45 rpm, ou nos maiores de 33, sei que fui escutando melodias que nunca me deixariam perder o norte, nem se perderiam na voragem dos anos.
Mais tarde, quando para lá da pura paixão pela voz, e da brincadeira descomprometida, comecei a aperceber-me da realidade circundante, e à medida que conhecia outros nomes, outros sons e outras líricas, me perdia nas páginas dos jornais e revistas que chegavam, vendo o que noutras latitudes acontecia, apercebi-me da sua verdadeira dimensão, apesar de tudo ofuscada por uma época que valorizava mais a malícia de Gina ou o atrevimento voluptuoso da Bardot.
Talvez por essa razão, espreitando os “esses” da Loren, da Welch, da Ekberg, da Schneider, da Bisset, de tantas outras, fiquei ainda mais fascinado com a figura feminina e especialmente discreta e elegante, com toda aquela beleza etérea, por vezes tão infantil no olhar, que parecia bem mais alta do que o seu metro e setenta e dois, perdida numa voz que por vezes me soava estupidamente melodiosa, cativante, ao mesmo tempo perigosa, de onde saíam murmúrios de sonhos e paixões a quem começava a construir os seus sem ainda saber por onde o conduziriam.
Creio que para lá dos discos e de um ou outro documentário ou gravação que vi, foi com as primeiras fotos, anos mais tarde, e com a visualização do consagrado filme de John Frankheimer, Grand Prix, de 1966, que sem ser nenhuma obra-prima arrecadou três Óscares, e em que ela contracena ao lado de James Garner, do incontornável Yves Montand (Oh, je voudrais tant que tu te souviennes / Des jours heureux où nous étions amis / En ce temps-là la vie était plus belle / Et le Soleil plus brûlant qu'aujourd'hui/Les feuilles mortes se ramassent à la pelle / Tu vois, je n'ai pas oublié / Les feuilles mortes se ramassent à la pelle / Les souvenirs et les regrets aussi /Et le vent du nord les emporte / Dans la nuit froide de l'oubli / Tu vois, je n'ai pas oublié / La chanson que tu me chantais ...), de Antònio Sabato, de Jessica Walker e outros, numa recriação ficcionada do Mundial de F1, as suas imagens e a proximidade às pistas e à velocidade contribuíram em muito para o fascínio que já então em mim crescia.
Durante anos continuei a ouvi-la, a ver as suas fotografias, a ler as suas histórias – Mick Jagger por alguma razão considerou-a o seu “ideal feminino”; Bob Dylan perdeu-se de amores e dedicou-lhe um poema na contracapa do seu álbum Another Side of Bob Dylan; tão depressa era admirada por David Bowie, Morrissey, Brian Jones ou, mais tarde, por Iggy Pop – “No one can sing like Françoise”(1997), como servia de musa inspiradora de poemas de Jacques Prévert e de Montalbán, ou surgia como convidada de Salvador Dalí, junto de quem, em 1968, passou uma semana em Cadaqués.
Havia ali qualquer coisa de absolutamente extraordinário, algo de transcendente, que fazia de mim, já adolescente, um miúdo eternamente apaixonado pela sua figura – a tal “silhueta extraterrestre”, sublimada por Yves-Saint Laurent e Paco Rabanne, escrevia-se há umas semanas no Paris Match, dentro da imagem “longilínea e andrógina” que no seu próprio entender lhe deu a sorte de se inserir no ideal de beleza de André Courrèges.
Em Dezembro de 1963 era ela uma das convidadas na inauguração da boutique de Ted Lapidus BJ, em Paris, sentada na primeira fila entre Charles Aznavour e Jean-Claude Brialy. Olho para a fotografia a preto e branco e sinto a sua voz inaudível na lonjura do tempo, apenas imaginada nos diálogos da sua discreta reserva com os interlocutores mais próximos.
Ali, como em muitas outras ocasiões, o olhar de relance e fugidio para a objectiva parece delimitar o seu espaço reservado, dentro de uma elegância impossível de disfarçar, perfumada por um charme tão distante quanto ebriático que fazia as delícias de quem com ela teve a sorte de se cruzar num café de Paris, numa sessão de autógrafos em Bruxelas, vendo-a passear a sua classe pela Gala da Seda, num concerto em Birmingham, encantando numa mini-saia londrina ou escapando-se por uma viela nas imediações de uma qualquer 5.ª Avenida na Nova Iorque de culto de Andy Warhol.
Depois do lançamento do seu primeiro disco, em Outubro de 1962, não obstante a sua timidez, pisaria pela primeira vez o palco do Olympia, num espectáculo de Richard Anthony, onde a obrigaram a voltar sete vezes para agradecer os aplausos, num sucesso que seria complementado ao longo da vida com mais três dezenas de álbuns, numa carreira em que ainda encontrou tempo para se dedicar, para lá das canções, à escrita de livros (Le désespoir des singes et autres bagatelles, Un cadeau du ciel, L' amour fou, Chansons sur toi et nous, Avis non autorisés) e à astrologia.
Da sua relação com Jacques Dutronc, que conhece em 1965, nasceu o seu único filho, Thomas, em 1973, acabando por se casar com aquele somente em 1981, numa relação que se revelaria conturbada e perturbada pelas relações dele com outras mulheres, como aconteceu com Romy Schneider. Chegaram a viver no mesmo imóvel em pisos separados, mas a relação formalmente nunca se quebraria, mesmo depois dela lhe ter dito “un jour, au sujet d’une autre relation, qu’il se devait s’engager”, ao que ele lhe respondeu “je ne divorcerai jamais”. E assim ficaram.
Apesar de sofrer de um linfoma desde 2004, que muito a terá debilitado, continuou a aparecer – até que a radioterapia lhe anulou o funcionamento das glândulas salivares, impedindo-lhe o uso da voz e com efeitos sobre a audição –, e a intervir publicamente sobre várias questões sociais e políticas que nos últimos anos fracturaram o seu país.
Embora nascida numa Paris ainda ocupada, no seio de uma família que esteve sempre próximo do gaullismo, e identificada à direita, não raro esteve em desacordo com esta, não sendo poucos, aliás, os seus amigos de esquerda. Nem tudo o que lhe chegava de um lado ou de outro a segurava. Feroz opositora de Hollande, mais recentemente ter-se-á definido como centrista para terminar os seus dias preocupada com as questões da ecologia. A sua aversão ao movimento feminista não deixou de fazer dela uma defensora do aborto legal.
Em 2023 a Rolling Stone incluiu-a entre as 200 melhores vozes de sempre, figurando como única representante de França nessa lista. Não será difícil de se perceber porquê sabendo-se que também foi ela quem esteve por detrás de algumas das composições de Serge Gainsbourg, legando-nos o genial “Comment te dire adieu”, de Etiénne Daho, de Julien Clerc ou como referência, o que até há pouco desconhecia, do grupo Cigarrettes After Sex.
Quando há um mês, ao chegar a Paris, fui confrontado com a notícia da sua morte, senti que havia uma parte de mim, da infância e adolescência à vida adulta, que com ela se evanescia. No ar, no asfalto, em muitas imagens que por esses dias me vieram à memória, até na chuva que durante horas caiu sobre o circuito de La Sarthe, a sua imagem não deixou de surgir.
Embora, como ela disse, "la mort n’est que celle du corps, lequel est d’essence matérielle", e que se possa admitir, "en mourant, le corps libère l’âme qui est d’essence spirituelle", custa sempre acreditar, por muitos anos que passem, que alguma vez será possível deixar de recordar aquele rosto, aquela figura tão discreta, a ternura infinita que tantas vezes víamos emanar dos seus gestos e de alguns sussurros carinhosos.
Outros, à ternura, também foram capazes de imortalizá-la. Cada um no seu estilo, pelas palavras, quase sempre pelo génio ou pela beleza. Alguns com uma avassaladora, Brel era mesmo dilacerante, presença em palco. Outros foram mais fugazes, distantes e ausentes na interpretação. A todos eles vamos continuar a ouvir. Em francês. Passando-os, se possível bem, às próximas gerações. Para que outros possam continuar a escutá-los, seguindo essas composições. E outras a compor e a cantar como tão bem ela fez. Mas nenhum deles, ou delas, será capaz de fazê-lo com a mesma elegância, com a mesma entrega.
Não ousarei dizer, como Françoise, que “toute ma vie, j'ai été à l'affût des belles melodies”, embora seja verdade que não sendo insensível, muito menos à beleza que daquelas se liberta, ao escutá-las também me sinto elevado a um sétimo céu muito pessoal. Pela dimensão da beleza que fica gravada.
Mas em rigor, bem mais importante do que tudo isso seria neste momento deixar aqui esta breve nota.
Como se ainda fosse um qualquer adolescente que um dia se apaixonou pela voz e pela imagem da mulher que estava do outro lado do disco. E que aqui e ali a foi encontrando ao longo da vida. Naquela que era a sua figura, ou transformada numa outra, mais próxima, nas situações menos esperadas, nas mais diversas circunstâncias com que nos cruzámos. E que, afinal, em tantos momentos avulsos me acompanhou, e acompanha, vida fora, em casa, na rua, no carro, entre dois dedos de conversa. Enquanto houver memória. E um pouco de ternura que nos aconchegue os dias.
Há pessoas, gente que não conhecemos, com quem nunca privamos, de quem não podemos deixar de nos despedir. A Hardy é uma delas.
Não o pude fazer lá, há um mês, quando logo pela manhã me chegou a edição do Le Maine Libre. Nem depois quando tantos a recordaram.
Tinha de o fazer agora. Eu não podia deixar de lhe dizer adeus.