Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Nabeiro

Sérgio de Almeida Correia, 20.03.23

Rui_Nabeiro_5.jpg(foto daqui, do Público)

Tal como muitos portugueses, fui ontem surpreendido pela notícia do falecimento de Manuel Rui Azinhais Nabeiro, o visionário da Delta Cafés que projectou Campo Maior muito para lá das suas fronteiras geográficas.

Durante os meus anos de faculdade tive a sorte de conhecer algumas pessoas que se viriam a tornar dos meus melhores amigos, entre eles o Rui, que era sobrinho do senhor Nabeiro e que durante aqueles anos de solteiro e estudante habitava na sua vivenda da antiga Av. do Aeroporto, depois baptizada de Almirante Gago Coutinho, onde por aquele tempo também ficavam os escritórios da Delta em Lisboa.  

Nos intervalos das aulas, por vezes ao final da tarde ou à noite, lá íamos uns quantos jantar a casa do Rui, que se encarregava de invariavelmente nos fazer, na maior parte das vezes, um saboroso bacalhau à brás de cujas batatas nunca mais me esqueci, de tão bem que me sabiam. Era sempre uma festa. Com o convívio e a camaradagem cresceu a amizade, e lá fui ouvindo as histórias que o Rui me tinha para contar do tio e da sua família.

Um dia, logo após os nossos últimos exames, e terminado o curso, o Rui convidou-me para irmos ao Porto. Ele lá trataria do transporte, com alguém da Delta que tivesse carro, fosse para o norte e nos pudesse dar uma boleia, e do alojamento, em casa de amigos, ou de amigas que nos pudessem acolher, que nesse tempo todos tesos. Eu ainda sou, embora um pouco menos do que naqueles tempos de estudante recém-licenciado à espera do que a vida me trouxesse.

Lá fomos até à Invicta, e depois a Paços de Ferreira, onde o Campomaiorense jogava para a Taça de Portugal e o meu amigo iria representar o clube da sua terra. Ficámos os dois, que nem uns perus, no camarote destinado ao visitante, quase directores, na ausência destes devido ao facto de ser um dia de semana. Foi uma jornada memorável, que se completou com a viagem do Porto até Campo Maior, nos carros da Delta, ele num, eu noutro, por ocasião de uma caçada em Espanha e de um convívio oferecido pela Delta, no fim-de-semana seguinte, aos seus melhores clientes, creio. Foram tempos inesquecíveis de camaradagem e amizade, que perduram até hoje.

Graças ao Rui conheci os pais, os irmãos, os tios, os primos, a amiga Beatriz, o João Manuel, a Helena e o saudoso Joaquim Bastinhas, a quem numa dessas noites fomos visitar para conhecer a sua nova quadra, logo aproveitando para "cravar" um jantarinho na Pousada de Elvas, e mais uma série de gente de cujos nomes já não me recordo, mas cujos sorrisos permanecem tão vivos na minha memória como se tivesse sido ontem.

Recordo-me de uma outra vez ter sido convidado para visitar a nova fábrica, quando a Delta deu o salto que a tornaria num verdadeiro portento em Portugal e em Espanha, onde pude apreciar óptimo café e aprender alguma coisa de útil desde o processo de produção à distribuição. 

De uma outra vez, tendo sido convidado para o baptizado de um dos netos, o Rui lá tratou de me instalar, como habitualmente, na Estalagem de Campo Maior, gerida pela sua mãe. Quando nessa noite, ao jantar, chegou o senhor Nabeiro e o fomos cumprimentar, logo ele perguntou ao sobrinho quando chegáramos e onde é que eu, o amigo vindo de Cascais, o "pendura", iria dormir, e se estava bem instalado.

Ontem, quando estava a ler os jornais do dia e fui surpreendido com a triste notícia do falecimento do senhor Nabeiro, a quem não sabia enfermo, e à noite vi as notícias nos vários canais de televisão, não pude deixar de me recordar de tudo isto, e de muito mais que não posso nem seria adequado aqui contar porque diz respeito à nossa intimidade e aí ficará; porque há coisas que só aí podem ser devidamente preservadas e recordadas.

Um destes dias, quando puder, hei-de voltar a Campo Maior, para rever a terra, as gentes e os amigos. E nesse dia, quando aí levar a M.T., se voltar a haver Festa do Povo, hei-de poder mostrar-lhe todos aqueles lugares que um dia me fizeram feliz, mostrando-lhe o tanto que a vida nos dá, pela simples, desprendida e genuína amizade, tantas vezes sem que nada façamos para merecermos tamanhas honras e privilégios. Tudo em razão da grandeza, da bonomia, da simplicidade e da ternura de um homem por todos aqueles que o rodeavam, que por uma razão ou por outra o faziam feliz, e que jamais deixarão de lhe estar reconhecidos.

Houve um dia em que o Rui e mais uns amigos de Campo Maior vieram aí a um congresso qualquer e aproveitaram para me fazer uma visita. Levei-os a jantar ao Clube Militar, no tempo em que o José Manuel Braz-Gomes ainda marcava o ritmo do compasso, e a casa, que ainda não se tornara numa cantina barulhenta, se preocupava em fazer boa figura. Recordámos então dias curtos e noites longas de interminável amizade.

Que Manuel Rui Azinhais Nabeiro, o senhor Comendador – um dos poucos, num país que distribui medalhas como quem oferece caramelos de Badajoz, verdadeiramente merecedor e digno do título –, depois de uma vida dedicada aos outros, criando riqueza e melhorando o dia a dia de todos, possa agora finalmente descansar e tomar em paz e sossego a sua chávena de café, sentindo aquele aroma tão característico das coisas que nos dão prazer e nos inebriam. Das coisas que valem sempre a pena. Como a autenticidade, a discrição, a preservação do carácter na adversidade e a amizade.

Ao meu amigo Rui e a toda a família vai daqui, dos cafundés de uma Macau que se foi perdendo e que eles não reconheceriam, um agradecido, forte e sentido abraço.