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Delito de Opinião

Na Morte de Eduardo Gageiro

jpt, 07.06.25

Na morte de Eduardo Gageiro convido quem me leia a visitar o mural de Facebook do Miguel Valle de Figueiredo. Pois agora ele recolocou um magnífico retrato (verdadeira homenagem) que de Gageiro fez, em plenas comemorações do 25 de Abril, em 2024.

Gageiro foi muito (muitíssimo) mais do que o “fotógrafo de Abril” - e, entre tanto trabalho, fez um espantoso manancial de fotografias que não sendo “etnográficas” deliciam qualquer antropólogo. Mas noto que dele só tenho este livro-catálogo de uma sua exposição comemorativa, “25 Textos de Autores Portugueses Sobre Fotos de Abril” (Festa do Avante, 1999) - herdei-o do meu pai, que enquanto pôde não falhou uma Festa.

(Nem gosto muito do livro. Pois se aprecio um ensaio sobre uma fotografia, já torço o nariz a esta tendência, recorrente, de fazer ombrear imagem com um texto alusivo. Ou seja, as boas fotografias desnecessitam de serem atravancadas com palavreado, aceitam - no máximo - uma legenda significativa. Mas entendo o propósito, então o da celebração dos 25 anos da revolução, congregando algumas das mais conhecidas fotografias da época e dizeres e sentimentos de autores “camaradas e amigos” do fotógrafo.)   

E uso a morte de Gageiro e as suas fotografias para falar do (meu) quotidiano. Há poucos dias, em roda alargada de esplanada, uma amiga recente, mais-nova, de súbito perguntou-me em quem voto eu. Resmunguei mudo “raisparta, ando eu a blogar sobre o assunto e nem os amigos me lêem…”. E respondi-lhe. Aduzindo um assim legítimo porque recíproco “e tu, votas em quem?”. Para ser surpreendido - pelo parco saber que do seu contexto tenho e, ainda mais, por ser ela uma mais-nova - pelo seu “voto PCP”. Devo ter esbugalhado os olhos pois ela quis justificar a opção. Cortei-a cerce, “hei, o meu pai era o Camarada Pimentel, foi-o até à morte…”. Ou seja, avancei, “votas PC? Ok, discordamos. Eu salto na cadeira é com os do BE - e não por razões ideológicas, morais ou racionais, é mesmo fisiológico…”.

Nisso o seu namorado, também meu mais-novo, simpático que eu mal conheço, avançou “eu votei no CHEGA”. E eu aí devo ter arqueado a sobrancelha, até pela surpresa da disparidade entre eles. E como tal também ele se quis justificar num “votei como protesto contra isto, contra estes tipos”. Tudo bem, cada um como cada qual, inflecti, para que não nos puséssemos ali a discutir política. Pediram-se mais umas cervejas e fomos para outros temas.

Mas fiquei com o episódio, a matutar. Por um lado, porque demonstra a superficialidade destas “identidades políticas” que as minorias sobre-politizadas continuam a brandir. Pois duas pessoas seguem imunes ao histrionismo dos comentadeiros, às arengas militantes, e nisso vão-se amando - ou, pelo menos, gostando - tendo planos conjuntos, de curto, médio ou longo prazo, isso é lá com eles, divertem-se, carnal e socialmente, partilham-se. E, entretanto, cada um vota no oposto do outro. Sem qualquer problema. Magnífico.

Por outro lado, foi-me o episódio comprovativo. O voto no CHEGA é muito isto, não ideológico ou “preconceituoso” ou “intolerante”. É o protesto contra “o estado a que isto chegou”, para glosar o capitão de Abril.

Mas o problema - e foi isso o que eu me eximi de resmungar com o mais-novo, e escrevo-o agora, talvez ele me venha a ler o postal - é que esse voto de protesto alimenta um partido cujos dirigentes e muitos militantes abominam estas fotografias. E tudo o que significam.

São os que se dizem “deputados da Nação”, chorosos do Estado Novo. Irados contra o apear da imagem de Salazar (magnífico momento de Gageiro, se encenado ou não pouco importa), pois ao ditador apondo virtudes. Revanchistas contra as liberdades individuais - de facto crentes na necessidade de amordaçar, alguns que sejam, até algemar se possível. Saudosistas do colonialismo, vendo traição na justeza histórica. E que votando nesta gente, por protesto contra estes trastes que entretanto vão mandando, mais eco lhes é dado. Mais capacidade de influenciarem outros, de lhes inculcarem as suas abjectas ideias.

Que assim se vão disseminando. É agora notório que no país democrático do grande Rui Manuel Trindade Jordão, de Shéu Han, de Gil, de Oceano, de Éder, de tantos outros, vitoriosos ou não, célebres talentosos, esquecidos medianos, desconhecidos medíocres, surgem agora - como nunca antes - nas catacumbas da internet bramidos contra “negros” nas selecções desportivas nacionais. Pois, para essa escumalha, antes menor e menos ruidosa, o “preto” não é digno de nos representar. Há que os esconder, pelo menos, a esses tais. Ou até escorraçar. E o voto “de protesto” anima, alimenta, esta cáfila asquerosa.

E - mesmo sendo hoje - não nos chega a arte do Nuno Mendes para opor a tal gente. Ou a garra dos putos Sub-17. Pelo contrário, ira-os ver “pretos” com sucesso.

Será para isso adequado voltar às fotografias de Gageiro. Que nos mostrou como “povo” daquelas maneiras. E também como “povo” querendo paz (contra os malvados do “Império”) e liberdade (contra os melifluos da “Nação”). E nisso virar costas a esta gentinha. Que é verdadeiro “Lixo Branco”, como dizem lá nos EUA.

Franciscus

Pedro Correia, 27.04.25

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Interior da Basílica de Santa Maria Maior, última morada terrena do Papa

 

Vimo-lo pela última vez faz hoje uma semana, Domingo de Páscoa. Debilitado, enfraquecido, mas com vontade indómita de pronunciar uma última mensagem urbi et orbi, tão inspiradora como a primeira que nos transmitiu mal fora eleito Papa, a 13 de Março de 2013. «Boa noite», afirmara então, mal assomou nesse instante inicial como Pontífice ao balcão da Basílica de São Pedro antes de pedir aos 1400 milhões de católicos que rezassem por ele.

«Boa Páscoa», disse neste dia 20, em cadeira de rodas, à multidão de fiéis que o escutava. Já tão próximo do seu limite físico, pronunciou a palavra que - mais do que qualquer outra - significa a transição da morte para a vida.

 

Repousa desde ontem na Basílica de Santa Maria Maior, no chão de uma nave lateral. Tendo inscrito apenas o seu nome em latim no mármore oriundo da Ligúria, região natal dos seus avós.

«Franciscus».

Ei-lo ali, humilde até ao fim, no termo da sua peregrinação terrena, após os grandes do planeta se despedirem dele numa soalheira manhã em Roma e cerca de meio milhão de pessoas comuns terem acompanhado a urna ao longo do cortejo de seis quilómetros. 

 

Pedra tumular rasa, sem luxo nem ornamentos, para aquele que foi sem dúvida um príncipe da Igreja Católica neste primeiro quartel do século XXI. Quem lhe suceder no trono de Pedro tem um encargo muito pesado: permanecer à altura do legado de Jorge Mario Bergoglio, o bom pastor que veio dos confins do planeta com a missão de unir o mundo. Cumprindo a Parábola dos Talentos, uma das estimulantes lições de vida que podemos colher dos Evangelhos.

Os seus restos mortais moram agora na laje do templo mariano onde nenhum pontífice era sepultado desde Clemente IX, em 1669. O último chefe da Igreja antes dele a escolher como derradeira morada terrena um cenário alternativo à Basílica de São Pedro havia sido o grande Papa Leão XIII, sepultado há 122 anos em São João de Latrão.

 

Ninguém deve invejar a tarefa de quem irá seguir-se, por eleição dos seus pares, no conclave dos cardeais. Terá de prosseguir, sem desfalecimentos, a marcha contra a globalização da indiferença. Por uma igreja sem muralhas, onde «todos possam entrar», na senda deste belo lema que Francisco nos transmitiu.

Acusam-no alguns de se ter desviado da rota. Gente de pouca fé: esta mensagem está inscrita desde o início, na Parábola do Bom Samaritano (Lucas X, 25-37). Pronunciada de viva voz por Jesus no seu apelo de amor ao próximo que nos leva a socorrer os mais necessitados, venham de onde vierem, por imperativo moral. 

«Amarás o teu próximo como a ti mesmo.» Dois mil anos depois, nenhum estribilho ideológico conseguiu ser mais inspirador e luminoso do que este mandamento, pedra angular da civilização. 

«Sou apenas um passo»

Pedro Correia, 21.04.25

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Ainda ontem, no balcão de São Pedro, o ouvimos desejar «boa Páscoa» aos fiéis da cidade de Roma e ao mundo. Já com a voz muito enfraquecida mas mantendo o ar bondoso que lhe conhecemos desde que, ali mesmo, pronunciou há 12 anos as primeiras palavras como pastor universal da Igreja Católica.

A um marco histórico - a primeira renúncia de um Pontífice máximo em mais de meio milénio - sucedia outro: o primeiro não-europeu em 1200 anos, o primeiro oriundo do continente americano, filho de imigrantes italianos radicados na Argentina. Cardeal de Buenos Aires, vivia num modesto apartamento, deslocava-se em transportes públicos, cozinhava as suas próprias refeições.

Encorajava os jovens a descobrir Cristo entre os pobres.

 

Francisco - que escolheu chamar-se assim em homenagem explícita ao santo de Assis - foi uma extraordinária figura à escala global. Daí a notícia da sua morte, ao início da manhã de hoje, ter mergulhado grande parte do mundo em profunda tristeza. O mundo católico, sim. Mas a dor é partilhada por muita gente de outras confissões e até por pessoas que não professam religião alguma. Ecoando o brado que Francisco soltou em Lisboa, na memorável Jornada Mundial da Juventude, em Agosto de 2023: «Todos, todos, todos!»

A voz de uma Igreja que não exclui. A voz de uma Igreja que não prega no deserto, mas no coração das urbes contemporâneas, atenta aos pecados perpetuados por incontáveis gerações. Como ensina frei Bento Domingues, «uma Igreja só pode ser católica, isto é, universal, quando é uma escola de aprender a servir, sem olhar a quem».

Servir as pessoas, não ideologias, como Francisco acentuou na sua peregrinação de 2017 a Cuba.

 

No próprio dia em que foi eleito, a 13 de Março de 2013, anotei aqui: «Também ele apareceu com ar despojado, fraterno, repassado de fragilidade humana. De braços caídos, sem pedir aplausos, com um sorriso tímido, parecia querer dizer aos mil e trezentos milhões de crentes que o reconhecem a partir de hoje como dirigente espiritual que está disposto a aceitar este imenso desafio que o destino lhe proporciona embora não se sinta verdadeiramente digno dele.»

Nunca perdeu o sorriso tímido, jamais se deslumbrou com as ilusórias luzes do poder terreno. «Sou apenas um passo», insistia em dizer. Sem humildade existencial ninguém é verdadeiro discípulo de Jesus. 

 

Nos doze anos do seu pontificado, revelou-se mais inspirador do que qualquer líder político do nosso tempo. Com a palavra e o exemplo, tornou-se «pároco do mundo», na feliz definição da revista italiana Panorama

«Regressa à Casa do Pai» - terminologia oficial hoje usada na Santa Sé - neste momento em que tanto precisávamos dele, neste momento em que a Igreja tanto necessita de um sucessor à altura do seu legado - o do retorno à pureza da mensagem evangélica, contrariando a volúpia da guerra e a cupidez da plutocracia.

«O mundo de Francisco acabou. O todos, todos, todos deu lugar a um mundo assente no tudo, tudo, tudo», lamentava há menos de um mês Jorge Botelho Moniz num amargurado texto de reflexão no Público.

Deus queira que não.

Lembrar Mario Vargas Llosa

Pedro Correia, 14.04.25

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Mario Vargas Llosa morreu ontem em Lima, capital do seu Peru natal, aos 89 anos. Era, sem favor algum, um dos maiores escritores dos dois últimos séculos - justamente distinguido, em 2010, com o Prémio Nobel da Literatura.

Foi sempre um nome de referência no DELITO DE OPINIÃO. Pelo seu talento ímpar, pela manifesta qualidade da sua escrita, pela clareza das suas ideias, pelo desassombro das suas opiniões. 

Pela minha parte, nunca o escondi: era um dos meus autores preferidos. Equiparo-o a Kafka, Orwell, Camus, Hemingway, Greene. Escritores que não apenas admiro e considero, mas que estimo muito. Como se integrassem a minha família alargada - desde os anos da adolescência, quando comecei a conhecê-los e a conviver com eles sem nunca me cansar.

 

Tendo escrito sobre três livros de Vargas Llosa, é o momento de recordar esses textos aqui publicados.

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Sobre Conversa na Catedral (1969):

«Recorrendo à técnica da diluição cronológica, Vargas Llosa povoa esta magnífica obra de múltiplas personagens e narrativas secundárias sem abandonar a denúncia dos governos que suprimem a liberdade e condenam sucessivas gerações a um futuro sem esperança.»

 

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Sobre A Tia Julia e o Escrevedor (1977):

«Acontece que a sua história pessoal, sendo verdadeira, parecia trama de ficção. Puro radioteatro. Impensável confusão entre biografia e folhetim. Quanto mais inverosímil, mais emocionante ou divertida – e, num certo sentido, mais verdadeira. Lembrando-nos que a vida é um romance - percorrido por momentos delirantes ou lancinantes de riso e choro, varrido por horas alternadas de partilha e solidão.»

 

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Sobre La Llamada de la Tribu (2018):

«O liberalismo não é uma ideologia, não é uma doutrina fechada que suscite aplausos acéfalos ou seguidores incondicionais. Em tempo de trincheiras, potenciadas pelas chamadas redes sociais, um liberal à moda antiga – cultor da tolerância, da moderação, da justa medida, da liberdade apenas condicionada ao império da lei – é menos mobilizador do que um populista incendiário apelando ao encerramento das fronteiras. Mas nem por isso deixa de ter a razão do seu lado.»

 

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É também o momento propício para lembrar alguns dos seus pensamentos que mereceram destaque neste blogue. Aqui ficam, nos parágrafos que se seguem, em modesta mas comovida homenagem à sua memória.

«A literatura é o alimento de espíritos indóceis e propagadora de inconformismo, um refúgio para aqueles a quem sobra ou falta algo, na vida, para ser infeliz, para não se sentir incompleto, sem realizar as suas aspirações.»

«Agora, graças à grande revolução audiovisual e cibernética, a privacidade deixou de existir, e em qualquer caso ninguém a respeita: transgredi-la é um desporto praticado diariamente pelos órgãos de informação perante um público que assim o exige com avidez.»

«Por detrás da crise financeira, existe uma moral degradada pela ganância. Esta é uma forma terrível de incultura.»

«A magia e o hipnotismo colectivos podem conduzir ao poder qualquer demagogo sem escrúpulos, tanto numa ditadura como numa democracia.»

«Todo o nacionalismo foi sempre uma catastrófica epidemia para os povos.»

«A paixão pode ser generosa e altruísta quando inspira a luta contra a pobreza e o desemprego. Mas a paixão também pode ser destruidora e feroz quando é movida pelo fanatismo e pelo racismo.»

«A literatura francesa fez o mundo inteiro sonhar um mundo melhor. A literatura francesa permitiu que sejam hoje realidade muitas democracias, preservando a razão contra pesadelos e revoluções, após tantos fracassos e mortos.»

«As democracias mais imperfeitas são sempre preferíveis às ditaduras mais perfeitas.»

 

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(1936-2025)

Miguel Macedo

Pedro Correia, 14.03.25

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Foi injustiçado. Foi vítima de uma acusação infame que liquidou a sua carreira política. Foi alvo de uma investigação sem provas e de uma acusação irresponsável que o destruiu por dentro - e talvez lhe tenha deteriorado a saúde a um ponto que até ele mal pôde avaliar. Tinha sido secretário de Estado, deputado, líder parlamentar. Era um competente ministro da Administração Interna.

Talvez pudesse ter sido presidente do PSD - o seu partido de sempre. Nunca saberemos. Acusado de "prevaricação e tráfico de influências", abandonou de imediato funções públicas e remeteu-se à vida privada. Aconteceu em 2014. Se ocorresse uns anos depois, teria visto provavelmente o seu retrato exposto em obscenos cartazes de propaganda política chamando-lhe "corrupto" - alvo da demagogia mais rasteira para ajustar contas com o regime democrático.

Não se escondeu, não virou a cara, não optou pela litigância de má-fé para estender prazos rumo à prescrição.

Negou todas as acusações, comportando-se com irrepreensível dignidade.

 

Seis anos depois, ao ser ilibado na sede própria, o tribunal, a notícia não fez manchete: foi varrida para discretos rodapés. Os "justiceiros" da imprensa estavam de folga ou assobiaram para o lado nesse dia. 

Recebeu-a com alegria, mas também com amargura: a tardia sentença judicial absolveu-o de qualquer suspeita, mas a sua morte cívica fora decretada muito antes. Mesmo assim, ninguém lhe ouviu uma palavra de azedume. Nem lhe passou pela cabeça "processar o Estado" ou pôr-se aos gritos, declarando guerra ao Ministério Público. Deu, também com isto, um notável exemplo de contenção republicana. 

Ressurgiu há um ano, como discreto comentador político longe do chamado "horário nobre": o último foi exibido há escassos dias. Morreu ontem aos 65 anos, vítima de fulminante síncope cardíaca.

A sua voz apagou-se cedo de mais. Faz-nos falta como alerta contra os demagogos de turno que andam por aí sem freio nos dentes, mais assanhados que nunca. Agitando o espantalho da insegurança para apertarem o torniquete à liberdade. 

 

A minha respeitosa homenagem a Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva, que agora nos deixa, para dolorosa surpresa geral.

A Assembleia da República prestou-lhe merecido e justo tributo póstumo, como se impunha. É triste que só a morte sirva para convergirmos no essencial. Conscientes de que a democracia política é tão frágil como a vida humana: pode apagar-se com demasiada facilidade se não cuidarmos bem dela em cada dia que passa.

A última das três Marias

Teresa Ribeiro, 04.02.25

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Entrevistei-a o ano passado para o Público, a propósito do relançamento da obra de Maria Lamas "As Mulheres do Meu País". Então com 86 anos, a última das 3 Marias conservava no olhar a fibra da rebeldia, algo que contrastava em absoluto com a sua evidente fragilidade física. Esse desconcerto enterneceu-me, expôs de forma explícita o que ela era, o que sempre fora. Na altura estava a ser requisitada para várias coisas ao mesmo tempo. Entrevistas na televisão, noutros jornais, coisas que tinham a ver com as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Não escondia o cansaço nem a felicidade de ter de ser obrigada a andar numa roda-viva. Se nunca ninguém a impedira de fazer da sua vida o que queria, não seria a idade a dobrá-la.

Falámos de feminismo, perguntei-lhe o que pensava das mulheres – tantas – que fazem questão de se declarar “femininas e não feministas”. Respondeu-me: “Sinto que há muitas mulheres que não têm consciência de tudo o que foi conquistado. Durante anos e anos andaram mulheres a lutar pelos seus direitos e sofreram muito. Foram presas, espancadas, humilhadas. Eu fui insultada e espancada na rua. Enquanto me batiam disseram-me ‘Isto é para aprenderes a não escreveres como escreves’.”

 Ela e as outras duas marias (Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa) tiveram a ousadia de escrever um livro, “As Novas Cartas Portuguesas”, onde se falava das necessidades afectivas das mulheres e do seu desejo de emancipação. Lançado em 1972, foi considerado pornográfico pelo anterior regime e imediatamente apreendido. Estas recordações ainda lhe incendiavam o olhar. Era um orgulho. O seu e o das mulheres que sentia representar.

Na hora da despedida, agradeço-lhe tudo o que ajudou a conquistar para mim, para a minha filha e, quem sabe, para uma futura neta. E fica a promessa: pela parte que me toca, sempre honrarei a memória das feministas do meu país.

Marianne Faithfull

jpt, 31.01.25

(Marianne Faithfull - Broken English Live)

Eram mesmo outros tempos, tínhamos muito menos informações. À Marianne Faithfull cheguei na adolescência apenas por apanhar este LP "Broken English" - comprado na do Apolo 70?, na loja de discos baratos da Baixa? - que teria ouvido num ápice na rádio. Não sabia quem era ela, o enorme pedigree rock que tinha - sabia lá eu que teria sido a musa da canção da minha vida, a "You Can’t Always Get What You Want" dos Stones, sabia lá eu do implícito desta "Broken English"... Ficou-me ela para sempre. E ainda mais quando fui crescendo e sabendo quem era ela.
 
Morreu agora. Lembro-a não como a beldade do panteão rock. Mas como esta matrona imensa... intensa.

Jimmy Carter (1924-2024)

Pedro Correia, 30.12.24

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Escrevi sobre ele duas vezes em 2024. Não há duas sem três: faltava esta. Em tom de elegia, ao contrário das anteriores. Para dar nota do falecimento de Jimmy Carter, Presidente dos EUA durante a minha adolescência, triunfador da corrida à Casa Branca de 1976 - a primeira que segui em pormenor do primeiro ao último dia, como se acompanhasse as peripécias de um campeonato de futebol.

James Earl Carter Jr, 39.º inquilino da Casa Branca (na verdade foi o 38.º pois Grover Cleveland ocupou duas vezes o emblemático edifício do n.º 1600 da Avenida Pensilvânia em Washington) entre 1977 e 1981, esteve longe de ser um chefe do Executivo norte-americano bem-sucedido. Apesar de alguns sucessos no campo internacional, como os acordos de Camp David que selaram a paz entre Israel e o Egipto, os tratados do Canal do Panamá que permitiram a restituição a este país da faixa de território que Washington ali administrava desde o início do século e um acordo para a redução de mísseis balísticos assinado com a URSS.

Em Novembro de 1980, este vulto do Partido Democrata era o rosto de um país enfraquecido, que parecia à beira da decadência. Foi derrotado nas urnas pelo republicano Ronald Reagan - que prometia «um novo amanhecer na América».

Mas Carter soube reconstruir a sua imagem. E é hoje considerado, sem favor, um dos melhores antigos presidentes dos EUA, tendo recebido em 2002 o Nobel da Paz. Pelos seus esforços na promoção da democracia, da justiça social, das condições sanitárias e dos direitos humanos um pouco por todo o globo.

O Centro Carter, que fundou em 1982 com a sua mulher, Rosalyn, é uma organização de referência, à escala mundial, para avaliar campanhas e resultados eleitorais. Em Julho, não hesitou em considerar fraudulento o escrutínio presidencial na Venezuela, ganho por Edmundo González, o candidato da oposição - que acabou perseguido, ameaçado e exilado pela ditadura militar de Caracas.

 

Em Maio mencionei-o no DELITO: figurava na galeria dos escassos sobreviventes actuais entre os militares mobilizados na II Guerra Mundial. Com Mel Brooks, Dick Van Dyke e alguns outros.

A 1 de Outubro assinalei aqui o centésimo aniversário deste homem de perpétuo sorriso. Tornara-se já o chefe do Executivo norte-americano com maior longevidade de sempre, ultrapassando George Bush, falecido aos 94 anos em 2018. Mas permaneceu activo quase até ao fim. E ainda fez questão de votar na eleição presidencial de Novembro, optando naturalmente por Kamala Harris.

«Aliviar o sofrimento» era um dos lemas deste cristão convicto, que se manteve fiel à fé que professava. Quando falhou, nunca foi por défice de idealismo mas talvez por acreditar em excesso na bondade humana. Até nisto dir-se-ia hoje um homem de tempos muito distantes. De tempos que parecem nunca mais voltar.

Obrigado

Sérgio de Almeida Correia, 31.10.24

André Freire CM Pedro Simões 2024-10-30-17-03-(créditos: CM/Pedro Simões)

Choque pela notícia matutina. Choque pelas circunstâncias. Choque pela confrontação com a realidade.

A notícia caiu de chofre.

Figura de referência no estudo, investigação e ensino da moderna Ciência Política portuguesa, que ajudou a colocar no mapa internacional das escolas de referência, sempre disponível para com os seus alunos, rigoroso, aberto e amigo, o Professor André Freire partiu subitamente.

Sem aviso prévio e numa intervenção cirúrgica, tanto quanto me apercebi, corriqueira.

Os milhares de páginas que deixou escritas em livros e artigos científicos, que terão feito dele um dos mais citados politólogos nacionais, jamais servirão para colmatar a sua ausência na academia e no espaço público, nas televisões, em jornais, em múltiplos seminários e conferências, nas quais sempre participava com gosto e total disponibilidade.

Exemplo de integridade, de intervenção cívica desinteressada e oportuna, em especial nas cíclicas crises da política portuguesa, parte numa altura em que tinha ainda tanto para nos dar.

Os seus alunos ficarão órfãos. Os portugueses estão desde hoje imensamente mais pobres.

Fundamental no meu regresso ao universo académico, à orientação definitiva da agulha para a minha área de vocação e interesse, motivando-me para a investigação e a fixação de metas das quais, tanto ele como o saudoso Professor Farelo Lopes, nunca me deixaram desistir, dando-me sempre a sua opinião informada, a última sugestão de leitura e os incentivos para desenvolver, aperfeiçoar e depurar.

Concluído o doutoramento, que acompanhou com interesse e visível satisfação pelo cumprimento de todos os prazos e o interesse do tema que então investiguei, e sem cuja ajuda jamais teria concluído, lá íamos mantendo contacto virtual, sempre com uma palavra, da parte dele, de interesse sobre o que ia fazendo em terras longínquas, e de estímulo a um eventual regresso a Portugal, que sempre viu com bons olhos.

Uma vez por outra, quando passava por Lisboa, lá participava nas conferências de que me dava nota, visitando-o de caminho no gabinete do ISCTE que partilhava com a minha antiga orientadora, sua colega e amiga.

A sua voz continuará a ouvir-se, e a ser recordada, por mais anos que passem.

O vazio permanecerá de cada vez que ler uma página dos seus escritos ou o citar.

Tristeza maior por saber que já não terei o gosto de o ouvir comentar e criticar aquilo que for escrevendo.

Até sempre, Professor.

Até sempre, André, e obrigado.

Marco Paulo

jpt, 24.10.24

As reações à morte de Marco Paulo - SIC Notícias

 

[Marco Paulo - Maravilhoso coração]

Desprezado pelos gentrificados - e de que maneiras soezes o foi, vilipendiado por ser quem era e por ser de quem era. Pois amado, verdadeiramente, pelo povo. Cantou, deu-se, até ao fim, muito após a voz lhe doer. Morreu hoje o Marco Paulo. Decerto, tanto assim o surgiu durante décadas, um "maravilhoso coração". E um excelente cantor romântico.

Augusto M. Seabra

Sérgio de Almeida Correia, 06.09.24

1936200.jpeg(créditos: Público, Pedro Martinho)

Não havia texto dele que não fosse lido. Não havia apreciação que não fosse fundamentada. Não havia crítica que não fosse, como no Letra de Forma escreveu citando Baudelaire, "parcial, política e apaixonada". Eu acrescentaria livre. Goste-se ou não.

Muito terá ficado por dizer e por escrever. A morte chega sempre cedo quando ainda há perspectiva de tanto para fazer, desenvolver, concluir. Viver.

Restará a memória e tudo o que ficou registado. Muito, nele, terá sido sempre pouco, mas o melhor mesmo é ler o excelente Destaque, escrito a várias mãos, da edição de hoje do Público sobre esse português que nos deixou.

Às vezes, no meio de tanta mediocridade, fico a pensar como é que em Portugal ainda sobrevive gente assim. E que deixa obra.

Sven-Göran Eriksson

Sérgio de Almeida Correia, 27.08.24

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A primeira vez que ouvi falar dele foi quando vi em directo os jogos da final da Taça UEFA de 1982 entre o IFK Göteborg e os alemães do Hamburgo. Os suecos venceram a primeira mão por 1-0. E a seguir deram três secos aos alemães, levando o troféu para casa. O primeiro conquistado por uma equipa sueca.

Nesse dia fiquei impressionado com a qualidade e a velocidade do contra-ataque dos nórdicos, que nessa caminhada até à final eliminaram o SK Sturm Graz, o FC Dinamo Bucuresti, o Valencia CF e o FC Kaiserslautern. O IFK Goteborg ainda ganhou no mesmo ano  o Campeonato e a Taça da Suécia.

O homem por detrás do êxito era Sven-Göran Eriksson. E nunca pensei que meses volvidos estivesse a desembarcar em Lisboa para orientar o Sport Lisboa e Benfica.  Acabaria por fazê-lo por duas vezes, entre 1982 e 1984 e depois nas épocas de 1989 a 1992, e creio que em ambas foi feliz, contrariando a ideia de Pavese.

Com Eriksson ao leme o Benfica venceu três campeonatos, conquistou uma Taça de Portugal e uma Supertaça, esteve presente em duas finais europeias (Taça UEFA e Taça dos Campeões). Era um tempo de grandes jogadores e de grandes presidentes: Fernando Martins e João Santos. No final da sua segunda passagem por Lisboa, a partir de Abril de 1992, chegaria Jorge de Brito, outro incontornável do universo benfiquista.

Os êxitos desportivos, o estar na ribalta do futebol europeu, era importante para todos, ninguém o negará. Isso era certo. Porém, creio que aquilo que verdadeiramente nos cativou em Sven-Göran Eriksson foi a sua cultura desportiva, a generosidade do seu carácter, a calma com que perfurmava todas as suas intervenções, o trato com os adeptos, a disponibilidade para ouvir as críticas e esclarecer as opções da equipa.

Acima de tudo, o respeito para com a instituição e os adversários, o amor ao clube, à cidade e a Cascais, o que aliado à sua educação e à elegância com que fazia as coisas e as transmitia para a equipa, dentro e fora das quatro linhas, elevavam-no à categoria de homem de excepção.

Treinou grandes clubes em Itália (Roma, Florentina, Sampdoria, Lazio), em Inglaterra (Manchester City e numa fase mais avançada o Leicester), na China (Guangzhou, Shanghai SIPG e o Shenzhen), dirigindo nos intervalos as selecções nacionais de Inglaterra, onde foi o primeiro estrangeiro a fazê-lo, do México, da Costa do Marfim e das Filipinas, sem jamais esquecer o primeiro clube que treinou fora da Suécia e o projectou para uma grande carreira internacional. 

Voltou várias vezes a Portugal e ao Estádio da Luz, local onde se sentia em casa e era justamente acarinhado por quem sempre o reconheceu como um dos da família. Foi um dos poucos que percebeu a dimensão do clube e era capaz de sofrer connosco nos maus momentos sem desatar a insultar tudo e todos.

A visita que fez ao Estádio da Luz em Abril passado, na sequência do prémio que lhe foi atribuído na Gala Cosme Damião, que celebrou os 120 anos do Benfica, e a justíssima homenagem que lhe foi prestada a anteceder o jogo com o Marselha para a Liga Europa, onde, ciente da irreversibilidade da sua doença, aproveitou para se despedir dos adeptos, num momento de grande emoção, serão por todos recordadas.

De Eriksson, tal como sucede com um outro grande homem que recentemente nos deixou, Manuel Fernandes, mais do que os títulos, as vitórias e as homenagens, recordarei o modo como sempre se comportou, encarou amigos e adversários, e a todos deu uma lição de humildade e de esperança nos bons e nos maus momentos.

Isto sempre distinguirá os homens de carácter dos outros; traçará a fronteira entre os que estão sempre presentes depois de partirem e os que, por muitos títulos e muita riqueza ostentada, nunca se erguerão acima da massa, do patamar da suficiência. Nunca farão a diferença.

E continuará a distinguir no futuro.

Sempre com a mesma simplicidade, a mesma ternura, a mesma educação, o mesmo amor pela vida. 

Até ao fim, sem jamais deixar de sorrir e de agradecer a sorte que foi ter podido ser ele.

O Barbeiro do Alain Delon

jpt, 19.08.24

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In illo tempore fugi de Direito, primeiro, e de Sociologia, depois, e fui estudar Antropologia. Um erro, crasso (desaconselho-o às novas gerações - não por causa dos saberes disciplinares acumulados, esses louváveis...). Tal se deveu à complacência dos meus pais, crentes de que eu, de facto então petiz, mesmo se barbado, saberia do melhor para o meu destino.
 
No final da licenciatura (que cumpri de modo trôpego, arrastado e sofrido) tinha de concluir uma disciplina, mal leccionada - sei do que falo, pois vim a leccionar tal coisa, anos depois e alhures, fazendo-o de modo muito melhor e ainda assim mal. Para esse êxito era necessário escrever um trabalho e apresentá-lo oralmente. Era uma "história de vida", coisa então muito em voga, fruto do sucesso de "Os filhos de Sanchez" do célebre O. Lewis e, menos, do anterior "Juan Perez Jolote, biografia de um tzotzil", do mexicano Arciniega. A ideia, nada má de per se, era que da "história de vida" (que não da biografia) de alguém se induziam os feixes constitutivos / constrangedores de determinado contexto histórico.
 
A colegada, impregnada de "sensibilidade etnográfica" - ainda que à bolina naquele Portugal "europeu" que tornou a velha etnografia em meros "salvados", sem que nenhum dos funcionários públicos doutorais a avisasse disso - correu a buscar um qualquer vizinho vulto típico, pitoresco, que lhes contasse a sua "história". Já não me lembro, mas presumo que tenham saído do armazém a velha criada, o pescador curtido pelo Sol, um oleiro ou amolador, etc.. Eu, "do grupo dos Olivais" - como ainda hoje me apresentam - disse uns palavrões, peludos e líquidos, sobre isso de andar a estudar durante os melhores anos da vida para depois ir à procura do "típico". Em monólogo mudo insultei colegas e professores. E fui entrevistar o meu querido barbeiro.
 
Esse era um excepcional "cabeleireiro" (como exigia ser chamado, dado que tinha formação profissional, e disso era ufano) de homens. Aos seus clientes regulares oferecia dois cortes: o da tropa - e quando segui para Mafra fez-me um pente zero à mão (!!!!), tão rapado que o mancebo alferes me veio a dizer que não era preciso tanto... uma obra de ofício mesmo espantosa; e o de casamento, coisa que algo depois fui cobrar, chegado de Maputo na antevéspera do meu feliz enlace.
 
O seu salão olivalense, de labor imparável, era também um refúgio. Ali se acoitavam os jovens depressivos do bairro, "drunfados" claro, os outros "drunfados" oficiosos, pois voluntários, alguns ex-junkies mais mansos, enfim, o colectivo dos desamparados sem mais. E mesmo amigos e vizinhos que ainda seguiam inteiros, ou isso julgavam. Crente Ba'hai, e algo prosélito, mas sem excessos, a todos acolhia e, com imensa generosidade, aconselhava. Num saber que os pobres doutos diriam de "senso comum" mas que a todos acalentava - e por isso sempre regressavam os seus ouvintes. Verdadeiras terapias de grupo...
 
Enquanto nos aparava - com a sua, de facto, magnífica técnica - perorava, incansável. Não só sobre os rumos que cada um presente naquela plateia, real congregação, deveria seguir. Mas também, e essa era tema constante, sobre a sua experiência de vida. Pois ele era um magnífico, grandiloquente, mitógrafo de si mesmo. E o que mais me fascinava era o facto daquela sucessão de mirabolantes episódios ser contada e recontada sem falhas, sem aquelas alterações que desvendam a ficção e, muito mais, a autoficção. De facto, ele era um talentoso mitógrafo, pois crente irredutível do mito que construía, ele-mesmo...
 
E basto credível nisso  - ainda hoje os que o frequentaram afiançam da veracidade dos detalhes então narrados: a participação na resistência armada antifascista, o mergulho na clandestinidade, a partida "a salto" para o estrangeiro, as desavenças com o (micro)movimento em que militava. E o ressurgir da "normalidade", fazendo-se cabeleireiro no Sul de França, estudando isso e estabelecendo o salão em Marselha. Tendo-se seguido a fuga daquele país, para Norte, para mais um mergulho na clandestinidade da resistência armada antifascista. Depois viera o 25 de Abril, a liberdade e o seu regresso ao país. E só então o remanso - laborioso, é certo - da vida familiar, vivida naquela religiosidade bonacheirona, até anafada, de uma imensa generosidade, esse a que nós assistíamos, acompanhávamos. Que tanto me encantava. E a tantos dos meus vizinhos, seus fiéis clientes.
 
Nesse rodopio que lhe fora o vivido narrado havia um episódio que me era mais sonante, a causa da sua fuga de Marselha, norte afora e regresso à luta antifascista clandestina. Pois o seu salão marselhês havia tido um rápido sucesso, a clientela crescera desmesuradamente. Alain Delon cedo se tornara cliente habitual. Mas esse tinha um defeito: julgava que o seu estrelato lhe concedia estatuto privilegiado. Um dia, farto das irrupções de Delon no seu salão, o cabeleireiro disse-lhe, sem rodeios: "Ó Alain, tens de ir para fila como os outros, espera a tua vez...". Claro, o actor, despeitado, mandou os seus capangas violentá-lo, tendo ele fugido, felizmente antes de ser seviciado. E nunca a história faltava, e nunca tinha versões adulteradas...
 
E talvez a lembrança dessa prazerosa, mas convicta, encarnação do Delon de Borsalino seja exemplo maior de como através do cinema a ficção se pode tornar real - verdadeiramente real. Sendo assim uma grande homenagem ao actor que agora morreu. E que fez das suas personagens parte da nossa vida, de forma tão... viva.
 
(Claro, escolhi como meu objecto de "história de vida" o maior mitógrafo que conhecia, o menos típico "informante" que tinha à mão. Porque acreditava, e ainda acredito, que era o mais significante para ser ouvido... Apresentei o trabalho final na minha última aula de licenciatura, dia grande... A assistente do regente, jovem ainda, quando expliquei as causas daquela minha opção, respondeu-me, crítica, lá do meio da sala: "isso é o contrário do que qualquer manual de investigação recomenda!"... Eu, também jovem, ripostei, até sem querer: "se eu estivesse preocupado com manuais tinha ido estudar Gestão" - coisa que, de facto, deveria ter feito, estaria agora numa prateleira algo remunerada, em teletrabalho pré-reforma. 
 
Dispensava-se de exame final se obtida uma nota de frequência bastante acessível, até medíocre. Mas tive de o ir fazer, foram implacáveis... Mesmo assim ainda hoje penso que "O Barbeiro do Alain Delon" foi o melhor texto que já escrevi.)
 
 

In Memoriam

Alain Delon (1935-2024), belo e sábio

Maria Dulce Fernandes, 18.08.24

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Numa ida ao Salão Portugal para uma matiné de dois filmes, o primeiro deles a ser apresentado foi "A Piscina". Como de costume, ir ao cinema era um hábito quinzenal ou semanal, dependia do tempo que os filmes demoravam em cartaz, e não íamos propriamente ver o filme X ou Y, íamos ao cinema. Este filme deslumbrou-me pela superlativa beleza dos actores principais, Alain Delon e Romy Schneider. A partir daí, tentei ver todos os filmes que saíam, com ambos os actores ou com apenas um deles, e fui apresentada ao sombrio e fantástico mundo da máfia de Marselha. Quando recebi o meu primeiro ordenado, comprei um Borsalino.

É com pesar que nos despedimos de um actor que marcou uma geração. Alain Fabien Maurice Marcel Delon nasceu em Sceaux a 8 de Novembro de 1935 e faleceu hoje em Douchy, desencantado com a vida e com o mundo.

"Vou deixar este mundo sem me sentir triste. A vida já não me atrai. Eu vi e experimentei tudo. Odeio a era actual, estou farto dela! Vejo pessoas realmente detestáveis o tempo todo. Tudo é falso, tudo é substituído. Todos riem uns dos outros sem olhar para si mesmos! Nem há respeito pela palavra dada. Só o dinheiro é importante. Ouvimos falar de crimes o dia todo. Sei que vou deixar este mundo sem me sentir triste por isso! 

Até à vista, Roch Siffredi, Rocco, Tancredi Falconeri e tantos mais. Um forte e merecido aplauso.

Morreu o Mário "do B'artis"

jpt, 14.08.24

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(Bar Artis, Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Recém-octogenário morreu ontem o Mário Pilar, o qual sempre dizíamos Mário "do B'artis". Discreto, fez do seu bar um dos grandes pólos daquele Bairro Alto que mudou Lisboa na década de 80.  Abrira-o no início de 1983, na Diário de Notícias, mesmo no centro do que veio a ser a nova azáfama noctívaga do velho e então decadente bairro. Pouco antes estabelecera-se a discoteca "Rockhouse" também na Diário de Notícias, que cedo mudou para "Jukebox", e logo depois o celebrizado "Frágil", ali ao lado, na Atalaia. E para suporte daquilo havia apenas a vetusta "Tasca Azul", como lhe chamávamos, de seu nome "Arroz Doce", que logo gentrificou (como então não se dizia) a clientela, pois defronte ao "Frágil" e pertença da Tia Alice, irmã do Alfredo que sargentava (e sargentou durante décadas) a portaria do então novo bar-discoteca, desde cedo feito coqueluche lisboeta.

E logo o "B'artis" abriu portas. Num registo diferente dessas casas e das que vieram a pulular na área, o qual manteve durante o quarto de século de existência. Uma pequena sala sob decoração levemente bric-a-brac, com mesas fresquíssimas pois com tampos de brecha da Arrábida, música jazz gravada emitida em tom baixo, a convocar conversas, e preços nada especulativos - apetecíveis naquela era de FMI, louváveis anos depois, já na era das "vacas gordas" europeias. E servindo produtos que se tornaram clássicos locais, pois corriam quantidades do excêntrico "Favaios" e, acima de tudo, ali nos socorríamos de umas decentíssimas e sempre lembradas tostas de frango, que nos escoravam noites afora. A clientela era heterogénea, descomprometida no sentido de descomplexada. Ou seja, isenta da real pinderiquice dos modismos, de vestes, modos e ademanes, que preechiam o sacrossanto "Frágil" e adjacentes. Lembro-me de ter lá chegado, aquilo muito recente, eu ainda caloiro universitário, e ter resumido o ambiente: "é um sítio de professores do liceu", naquele sentido de gente não pintalgada de parvoíces...

O Mário era afável, sem falsos companheirismos com a clientela, e isso vinculava-nos. Rapidamente me tornei, e alguns dos meus, residente naquele curto balcão - mais tarde, num aniversário meu, um amigo chegou com um pequeno presente, tinha mandado imprimir na máquina de multibanco um pacote de cartões de visita meus: a morada era a do "B'artis"! 

De facto, o "Bairro" passou a ser o "B'artis". Claro que havia outros sítios apetecíveis. De início passava-se lá a beber um copo, ou mais, depois ia-se até ao "Lábios de Vinho", onde pontificava o Hernâni, espreitar um "Ocarina" ou outro, e subia-se ao "Frágil". Com o passar dos anos esse roteiro foi mudando mas a base, o ponto de encontro (e de fuga, também) sempre era o "B'artis". Ali se continuava a bebericar, antes de se partir à volta obrigatória. O "Frágil" foi-se tornando cansativo, crescentemente homossexual e suburbano, ia-se lá, até com fastio blasé, para se dizer que se fora, e voltava-se ao "B'artis", para depois, claro, avançar até aos "Três Pastorinhos", tornado o grande sítio, belo ambiente e excelente música. E se houvesse dinheiro (e força) seguia-se ao "Lontra" na Rua de São Bento, ou às "Caves Adão", mais tarde até aos poisos nas Escadinhas do Duque e à inicial 24 de Julho. Anos depois, ainda no Bairro Alto abriram casas apelativas, como o "Mahjong", mais coito das gentes cinéfilo-artísticas, e o "Targus", do sempiterno Hernâni, esta mais abrilhantada pelos núcleos da então viçosa publicidade e da explosiva comunicação social. Mas picava-se o ponto por lá, "viam-se as modas", e "B'artis" connosco, até porque a casa cada vez ia fechando mais tarde, e sempre cheia... Pois era ali o sítio, por estar lá o "ambiente". Sem poses, entenda-se.

Sendo ele discreto poucos lembram ter sido o Mário Pilar, casapiano desde sempre, que cativou o palacete do Casa Pia Atlético Clube para aquelas loucas "Noites Longas", que durante cerca de três anos agitaram - e mudaram - a noite lisboeta, não só alongando-a até às alvoradas como também miscigenando os convivas, como nunca antes naquela ainda velha e provinciana cidade. Mais tarde, já na Lisboa Capital de Cultura de 1994 ao Mário Pilar surgiu-lhe mais uma iniciativa de conjugação, metendo-se a empurrar as Noites de Jazz no Café Luso, esse seu vizinho, pondo o tradicionalista mundo do fado a dar espaço aos melhores músicos de jazz nacionais. Então uma quase heresia...

Desde finais dos 1980s, o Mário Pilar foi-se para a Comporta e investiu o fruto do seu industrioso e incansável labor em casas no Possanco e Brejos da Carregueira, pensando numa explosão turística por aquelas zonas. As quais se tornaram o seu mimo. E orgulho. Um precursor, como é agora evidente, sorrimos nós ao lembrá-lo. Atento. Em 2007 decidiu-se a fechar o "B'Artis", trespassando-o (ainda lá está, com o mesmo nome mas outro perfil). Há alguns anos, pouco antes do COVID, fui jantar nas cercanias do Largo do Caldas, estava à porta do restaurante a fumar e passou ele - vivia ali perto. À minha mesa estava gente da "velha guarda", também antigos residentes do balcão do "B'Artis", levei-o até lá. Foi uma festa, horas de conversa, ele notoriamente agradado com o rosário de memórias ali percorridas, e com o agrado, genuíno, que mantínhamos pelo seu bar. Contou-nos da sua vida, fruindo então de uma velhice saudável e bem-disposta. Viajava imenso, pelo Oriente, Japão e isso, chegara há pouco do Irão, preparava-se para partir para a Coreia do Norte (!), naquelas viagens guiadas pelo escritor Peixoto...

"Foi na casa dele que a gente verdadeiramente se divertiu aos 20 e 30 anos", sumarizava o amigo que me telefonou ontem a anunciar a sua morte. "Quando ainda nos divertíamos!", resmunguei, pesaroso, para sua imediata concordância.

O funeral do Mário Pilar é amanhã, quinta-feira, dia 15 de Agosto. A cremação é às 14.00 horas no cemitério do Alto de São João. Lá irei, por causa de tudo isto que narrei. E talvez encontre algum antigo residente do balcão do "B'Artis". E depois da cerimónia teremos de encontrar um qualquer sítio para se beber um "Favaios".

Na morte do João Paulo Guerra

Pedro Correia, 05.08.24

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Outros falarão da sua vertente como jornalista radiofónico. Eu destaco-o sobretudo como cronista da imprensa, um dos melhores que conheci - e tive oportunidade de elogiá-lo aqui, estava ele bem vivo e com saúde.

Falo do João Paulo Guerra, que ontem morreu aos 82 anos. Ourives da escrita, capaz de escrever centenas de textos sem os polvilhar de palavras inúteis. Mestre dessa arte de narrar pequenas histórias de que é feito o grande jornalismo. Homem coerente, de causas assumidas, mas sem cortar pontes com quem pensava de maneira diferente. Excelente conversador, com discurso mesclado de ironia fina.

Era também um tímido, à sua maneira: evitava pôr-se em bicos de pés, pavoneando-se, ao contrário de tanto medíocre que por aí pulula. Costumava dizer: «Uma revolução tecnológica mudou tudo na minha profissão, só não mudou, antes reforçou, as condições para exercer com paixão e rigor o jornalismo.»

Admirava-o há muitos anos. Com a partida dele, a comunicação em Portugal fica um pouco mais pobre, o pluralismo político fica um pouco mais amputado, a memória colectiva fica um pouco mais diluída e descartável.

 

Leitura complementar:

Este belíssimo texto do João Paulo Guerra evocando sua mãe, Maria Carlota Álvares da Guerra, que também foi jornalista, fundadora da Crónica Feminina. Agora republicado na Mensagem, jornal digital de Lisboa.

Manuel Leal-Henriques (1937/2024)

Sérgio de Almeida Correia, 01.08.24

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Ainda há dias pensei nele.

Habitualmente, duas ou três vezes por ano, por altura das quadras festivas e no Verão, comunicávamo-nos por escrito. E desta vez eu queria antecipar-me para não ser sempre ele a tomar a iniciativa de me escrever, de procurar saber de mim e dos combates que ia travando, comentando o que ia sabendo.

Não fui a tempo. E não haverá próxima vez. 

Quando uma enxurrada começa é difícil estancá-la. E ultimamente chegam mais carregadas de más notícias. De todo o lado. 

Apercebi-me ontem de que quando o funesto evento aconteceu, desta vez no Canadá, há mais de mês e meio, estava em viagem. E foi por um jovem advogado estagiário de língua materna chinesa que tive nota do seu passamento, o que muito me entristeceu. 

Sei bem que a velhice caminha de braço dado com a idade, embora esse passeio nem sempre se faça à mesma velocidade. No seu caso, a sua extraordinária capacidade de trabalho continuou após a jubilação e não o impediu nos últimos anos de dar aulas e intervir em seminários, ajudando à formação de magistrados e advogados, ao mesmo que tempo que publicou mais de uma dúzia de livros, códigos anotados, comentários e manuais, a maior parte deles sobre o Direito de Macau. Incansável. 

O último testemunho da sua amizade, e labor em prol da comunidade, foi-me entregue por amigo comum. Chegou com um cartão manuscrito por outro insigne jurista ligado à formação de magistrados, a acompanhar um exemplar do seu “Direito Disciplinar de Macau”, mal saído da tipografia, pelo qual me dava nota daquele me ser enviado por “especial recomendação” do autor. 

Após uma vida de dedicação aos tribunais e ao Direito português, onde deixou um rasto de sabedoria e entrega, citado em todas as instâncias e constituindo o seu trabalho objecto de estudo incontornável nas Faculdades de Direito, foi a Macau que rumou dando um contributo inestimável à localização jurídica e judiciária, à preservação das raízes lusófonas e ao desenvolvimento do direito local, em especial nas vertentes penal e processual penal, onde a qualidade do seu trabalho sempre fez a diferença. 

Exerceu funções no pioneiro Tribunal Superior de Justiça de Macau e deixa-nos, sozinho e em co-autoria com o Dr. Simas Santos, um estupendo repositório de obras e anotações jurídicas, que se somam aos milhares de decisões lavradas pela sua pena. Sempre numa escrita simples, depurada e de grande sentido pedagógico. 

Mas mais do que registar a sua herança jurídica e judiciária, quero neste breve apontamento realçar a sua humanidade, simplicidade, cortesia, o modo como a todos tratava, da senhora da limpeza ao advogado, do ministro ao sem-terra, do amigo ao desconhecido, sempre com a mesma educação, desvelo para com o próximo, atenção, bondade. Sem esquecer o seu espírito profundamente democrático, arreigado até às entranhas, sempre pronto para escutar o outro, perceber a sua perspectiva, colocando-se no seu lugar. 

Alguns, felizmente poucos, baixinhos, de espírito pequenino e medíocre, a quem a sua sombra impunha respeito, entredentes iam urrando e vituperando nas sacristias, pelos fretes que não lhes fazia; mais ainda quando as decisões que assinava ignoravam os recados previamente transmitidos pelos poderosos. 

Nos últimos anos mereceu algumas desconsiderações do poder político, mais preocupado com a burocracia e a norma estúpida do que com a protecção da civilização, do sentido da vida e das coisas. Essas aleivosias, ainda que o magoando, como a qualquer pessoa séria e decente fariam, em nada o afectaram. Sempre esteve muito acima da mediocridade de algumas seitas. 

Os residentes de Macau, a sua comunidade jurídica, magistrados, advogados, juristas em geral, muito lhe ficam a dever. Os seus livros continuarão a ser diariamente consultados, é certo, mas faltará sempre alguém para esclarecer mais uma dúvida e nos ajudar a pensar melhor. 

O Dr. Manuel Leal-Henriques, que me deu a honra de ser seu amigo, constituirá um farol para as futuras gerações de juristas de Macau, um marco indelével da dignidade e lisura da magistratura portuguesa, um exemplo dos portugueses com honra que não se prostituem por um saco de lentilhas. Em casa ou fora de portas. Nem mesmo depois de reformados. 

Perante o que hoje é público, espero que alguém – seja o Governo da RAEM, através do Secretário para a Administração e Justiça ou do Centro de Formação Jurídica e Judiciária, seja a Faculdade de Direito, os Tribunais ou a Associação dos Advogados –, se lembre de organizar uma homenagem condigna em memória do Dr. Manuel Leal-Henriques. 

O legado do juiz conselheiro jubilado Manuel Leal-Henriques, e não falo de Portugal, não é uma nota de rodapé numa sebenta, ou um parágrafo num comunicado discreto. 

E a sua obra é, certamente, bem mais merecedora de destaque, para que seja por todos conhecida e ganhe maior utilidade nos tempos difíceis que atravessamos, do que alguns eventos que por aí ocorrem para louvar bípedes sem vergonha, cujos maus plágios são venerados de cada vez que se colocam em bicos de pés, proferem um dichote para a imprensa ou fazem um jeito aos poderosos.

Françoise

Sérgio de Almeida Correia, 10.07.24

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Não sei como, menos ainda em que circunstâncias; se por ouvir uma melodia, ver uma foto, ou simplesmente escutar o seu nome, numa daquelas tardes quase-noite em que me estirava nas almofadas, junto ao móvel gira-discos da Schaub-Lorenz, na velha casa da Avenida da República, na Beira, onde passei alguns dos dias mais felizes da minha infância, é que ela me foi apresentada. 

Talvez não tivesse então mais do que oito ou nove anos, mas confesso que já nessa altura vivia apaixonado. Paixões tão duradouras, sensíveis, inebriantes, que me acompanharam ao longo da vida, deixando-me alternar intensamente entre umas e outras, sem que alguma vez me arrependesse da inconstância dos dias, ou visse nisso, por muito incompreensível que fosse para os outros que me escutassem, um lampejo reprimível de promiscuidade sentimental. 

Não sei mesmo, porque também nunca perguntei, e já cá não está quem me poderia esclarecer, qual a música que tocava quando nasci. Lá em casa. Não creio que seja importante quando a maior parte delas surgiu, naquilo que me respeita, depois de eu já estar deste lado. Do lado em que tudo acontece. Do lado em que se sente. E se vive.

Em pequenos discos de vinil de 45 rpm, ou nos maiores de 33, sei que fui escutando melodias que nunca me deixariam perder o norte, nem se perderiam na voragem dos anos.

Mais tarde, quando para lá da pura paixão pela voz, e da brincadeira descomprometida, comecei a aperceber-me da realidade circundante, e à medida que conhecia outros nomes, outros sons e outras líricas, me perdia nas páginas dos jornais e revistas que chegavam, vendo o que noutras latitudes acontecia, apercebi-me da sua verdadeira dimensão, apesar de tudo ofuscada por uma época que valorizava mais a malícia de Gina ou o atrevimento voluptuoso da Bardot.

Talvez por essa razão, espreitando os “esses” da Loren, da Welch, da Ekberg, da Schneider, da Bisset, de tantas outras, fiquei ainda mais fascinado com a figura feminina e especialmente discreta e elegante, com toda aquela beleza etérea, por vezes tão infantil no olhar, que parecia bem mais alta do que o seu metro e setenta e dois, perdida numa voz que por vezes me soava estupidamente melodiosa, cativante, ao mesmo tempo perigosa, de onde saíam murmúrios de sonhos e paixões a quem começava a construir os seus sem ainda saber por onde o conduziriam.

Creio que para lá dos discos e de um ou outro documentário ou gravação que vi, foi com as primeiras fotos, anos mais tarde, e com a visualização do consagrado filme de John Frankheimer, Grand Prix, de 1966, que sem ser nenhuma obra-prima arrecadou três Óscares, e em que ela contracena ao lado de James Garner, do incontornável Yves Montand (Oh, je voudrais tant que tu te souviennes / Des jours heureux où nous étions amis / En ce temps-là la vie était plus belle / Et le Soleil plus brûlant qu'aujourd'hui/Les feuilles mortes se ramassent à la pelle / Tu vois, je n'ai pas oublié / Les feuilles mortes se ramassent à la pelle / Les souvenirs et les regrets aussi /Et le vent du nord les emporte / Dans la nuit froide de l'oubli / Tu vois, je n'ai pas oublié / La chanson que tu me chantais ...), de Antònio Sabato, de Jessica Walker e outros, numa recriação ficcionada do Mundial de F1, as suas imagens e a proximidade às pistas e à velocidade contribuíram em muito para o fascínio que já então em mim crescia.

Durante anos continuei a ouvi-la, a ver as suas fotografias, a ler as suas histórias – Mick Jagger por alguma razão considerou-a o seu “ideal feminino”; Bob Dylan perdeu-se de amores e dedicou-lhe um poema na contracapa do seu álbum Another Side of Bob Dylan; tão depressa era admirada por David Bowie, Morrissey, Brian Jones ou, mais tarde, por Iggy Pop  – “No one can sing like Françoise”(1997), como servia de musa inspiradora de poemas de Jacques Prévert e de Montalbán, ou surgia como convidada de Salvador Dalí, junto de quem, em 1968, passou uma semana em Cadaqués.

Havia ali qualquer coisa de absolutamente extraordinário, algo de transcendente, que fazia de mim, já adolescente, um miúdo eternamente apaixonado pela sua figura – a tal “silhueta extraterrestre”, sublimada por Yves-Saint Laurent e Paco Rabanne, escrevia-se há umas semanas no Paris Match, dentro da imagem “longilínea e andrógina” que no seu próprio entender lhe deu a sorte de se inserir no ideal de beleza de André Courrèges.

Em Dezembro de 1963 era ela uma das convidadas na inauguração da boutique de Ted Lapidus BJ, em Paris, sentada na primeira fila entre Charles Aznavour e Jean-Claude Brialy. Olho para a fotografia a preto e branco e sinto a sua voz inaudível na lonjura do tempo, apenas imaginada nos diálogos da sua discreta reserva com os interlocutores mais próximos.

Ali, como em muitas outras ocasiões, o olhar de relance e fugidio para a objectiva parece delimitar o seu espaço reservado, dentro de uma elegância impossível de disfarçar, perfumada por um charme tão distante quanto ebriático que fazia as delícias de quem com ela teve a sorte de se cruzar num café de Paris, numa sessão de autógrafos em Bruxelas, vendo-a passear a sua classe pela Gala da Seda, num concerto em Birmingham, encantando numa mini-saia londrina ou escapando-se por uma viela nas imediações de uma qualquer 5.ª Avenida na Nova Iorque de culto de Andy Warhol. 

Depois do lançamento do seu primeiro disco, em Outubro de 1962, não obstante a sua timidez, pisaria pela primeira vez o palco do Olympia, num espectáculo de Richard Anthony, onde a obrigaram a voltar sete vezes para agradecer os aplausos, num sucesso que seria complementado ao longo da vida com mais três dezenas de álbuns, numa carreira em que ainda encontrou tempo para se dedicar, para lá das canções, à escrita de livros (Le désespoir des singes et autres bagatelles, Un cadeau du ciel, L' amour fou, Chansons sur toi et nous, Avis non autorisés) e à astrologia.

Da sua relação com Jacques Dutronc, que conhece em 1965, nasceu o seu único filho, Thomas, em 1973, acabando por se casar com aquele somente em 1981, numa relação que se revelaria conturbada e perturbada pelas relações dele com outras mulheres, como aconteceu com Romy Schneider. Chegaram a viver no mesmo imóvel em pisos separados, mas a relação formalmente nunca se quebraria, mesmo depois dela lhe ter dito “un jour, au sujet d’une autre relation, qu’il se devait s’engager”, ao que ele lhe respondeu “je ne divorcerai jamais”. E assim ficaram.

Apesar de sofrer de um linfoma desde 2004, que muito a terá debilitado, continuou a aparecer – até que a radioterapia lhe anulou o funcionamento das glândulas salivares, impedindo-lhe o uso da voz e com efeitos sobre a audição –, e a intervir publicamente sobre várias questões sociais e políticas que nos últimos anos fracturaram o seu país.

Embora nascida numa Paris ainda ocupada, no seio de uma família que esteve sempre próximo do gaullismo, e identificada à direita, não raro esteve em desacordo com esta, não sendo poucos, aliás, os seus amigos de esquerda. Nem tudo o que lhe chegava de um lado ou de outro a segurava. Feroz opositora de Hollande, mais recentemente ter-se-á definido como centrista para terminar os seus dias preocupada com as questões da ecologia. A sua aversão ao movimento feminista não deixou de fazer dela uma defensora do aborto legal.

Em 2023 a Rolling Stone incluiu-a entre as 200 melhores vozes de sempre, figurando como única representante de França nessa lista. Não será difícil de se perceber porquê sabendo-se que também foi ela quem esteve por detrás de algumas das composições de Serge Gainsbourg, legando-nos o genial “Comment te dire adieu”, de Etiénne Daho, de Julien Clerc ou como referência, o que até há pouco desconhecia, do grupo Cigarrettes After Sex. 

Quando há um mês, ao chegar a Paris, fui confrontado com a notícia da sua morte, senti que havia uma parte de mim, da infância e adolescência à vida adulta, que com ela se evanescia. No ar, no asfalto, em muitas imagens que por esses dias me vieram à memória, até na chuva que durante horas caiu sobre o circuito de La Sarthe, a sua imagem não deixou de surgir. 

Embora, como ela disse, "la mort n’est que celle du corps, lequel est d’essence matérielle", e que se possa admitir, "en mourant, le corps libère l’âme qui est d’essence spirituelle", custa sempre acreditar, por muitos anos que passem, que alguma vez será possível deixar de recordar aquele rosto, aquela figura tão discreta, a ternura infinita que tantas vezes víamos emanar dos seus gestos e de alguns sussurros carinhosos. 

Outros, à ternura, também foram capazes de imortalizá-la. Cada um no seu estilo, pelas palavras, quase sempre pelo génio ou pela beleza. Alguns com uma avassaladora, Brel era mesmo dilacerante, presença em palco. Outros foram mais fugazes, distantes e ausentes na interpretação. A todos eles vamos continuar a ouvir. Em francês. Passando-os, se possível bem, às próximas gerações. Para que outros possam continuar a escutá-los, seguindo essas composições. E outras a compor e a cantar como tão bem ela fez. Mas nenhum deles, ou delas, será capaz de fazê-lo com a mesma elegância, com a mesma entrega.   

Não ousarei dizer, como Françoise, que “toute ma vie, j'ai été à l'affût des belles melodies”, embora seja verdade que não sendo insensível, muito menos à beleza que daquelas se liberta, ao escutá-las também me sinto elevado a um sétimo céu muito pessoal. Pela dimensão da beleza que fica gravada. 

Mas em rigor, bem mais importante do que tudo isso seria neste momento deixar aqui esta breve nota.

Como se ainda fosse um qualquer adolescente que um dia se apaixonou pela voz e pela imagem da mulher que estava do outro lado do disco. E que aqui e ali a foi encontrando ao longo da vida. Naquela que era a sua figura, ou transformada numa outra, mais próxima, nas situações menos esperadas, nas mais diversas circunstâncias com que nos cruzámos. E que, afinal, em tantos momentos avulsos me acompanhou, e acompanha, vida fora, em casa, na rua, no carro, entre dois dedos de conversa. Enquanto houver memória. E um pouco de ternura que nos aconchegue os dias.

Há pessoas, gente que não conhecemos, com quem nunca privamos, de quem não podemos deixar de nos despedir. A Hardy é uma delas.

Não o pude fazer lá, há um mês, quando logo pela manhã me chegou a edição do Le Maine Libre. Nem depois quando tantos a recordaram.

Tinha de o fazer agora. Eu não podia deixar de lhe dizer adeus.