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Delito de Opinião

Tina Turner

jpt, 24.05.23

 Tina Turner durante apresentação na O2 Arena, em Londres, em março de 2009 — Foto:  REUTERS/Stefan Wermuth/Arquivo

 

Vi a Tina Turner em 1991, talvez, depois dos Stones e do Bowie, antes do Santana, lá no José de Alvalade, então sede lisboeta do rock... - aquilo dava-nos cabo do relvado mas valia bem a pena, pelas receitas para dissipar pelo clube e pelos grandes espectáculos. Lá cheguei um bom bocado antes do concerto, como sempre dirigi-me ao nosso "ponto de encontro" - "onde nos encontramos?", perguntavam os neófitos mais ansiosos. "No sítio onde o Oceano joga", respondia, veterano, para desnorte alheio, logo acabrunhados num "isso é onde?" para acolherem um ríspido e rústico "em qualquer lugar do lugar do relvado!!", tão omnipresente era o nosso grande Oceano, que eles decerto desconheciam. Ou seja, ia lá para o rock e não para o convívio.

Enfim, lá aportei, aproximei-me da velha Bancada Central. Estava apinhada. A Tina original, a Turner, havia ressurgido há anos, estava no topo dos topos, o grande Mad Max também ajudara. Lembro bem que ao lusco-fusco do crepúsculo, ainda ao som de música gravada, o público já dançava exultante. Mas mais do que isso, estava pejado de Tinas - negras, mulatas, até brancas. E de Tinos também, que não Ikes. Tudo dançando. Depois encheu o relvado. Sim, ela reaparecera anos antes neste pop-rock até manso, mais do que tudo sexy, um embrulho abrangente que a tantos agradava - será que os miúdos de hoje poderão perceber o impacto daquilo? E nisso a quantidade de noites bamboleando nestas cançãozinhas que ela tornava um "must"? Um caldo comum?

Não tenho qualquer vinil ou cd dela. Mas ficou a memória dessas imensas danças. E de um grande concerto, esfuziante. E de como - perceba quem quiser - este embrulho amalgamado, produtor de amálgamas, era virtuoso. Por isso aqui deixo esta versão ao vivo. Com ela cantando e dançando de calças - porque era muito mais do que umas "hot legs".

Nabeiro em Bruxelas

jpt, 20.03.23

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(Rui Nabeiro, fotografia presumo que da autoria de Ricardo Palma Veiga)

Há pouco tempo passei um ano em Bruxelas. Na vizinhança arranjei dois poisos refúgios da intempérie solidão que me acometera: em Etterbeeck o "Etcetera", um barzito de bairro algo "bobo" (como se dizia, não sei se ainda) - ufano do Depardieu por lá ter passado - e com uma simpática clientela, imensamente acolhedora deste excêntrico português, pois cinquentão nem eurocrata nem nas "obras" e que, talvez mesmo mais por isso, sabia bastante de banda desenhada. E em Schaerbeek o "Ponto de Encontro", reduto português mas aberto a quem viesse por bem - lá decorriam encontros do campeonato nacional de dardos, por exemplo -, um simpatícissimo casal proprietário e um gentil núcleo de fregueses. Entre os quais também eu era excêntrico, notado pois não só o único homem que não trabalhava nas "obras" como, gabavam-me, era o único sportinguista que aparecia após as (então) habituais derrotas. Para me encaixarem foi decidido que eu era "jornalista" - coisa que não levei a mal pois percebi ser a forma de não me resumirem ao naúfrago que ali estava. E pareceria.
 
 
 

In Memoriam

Maria Dulce Fernandes, 19.03.23

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Manuel Rui Azinhais Nabeiro

(Campo Maior, 28 de Março de 1931 - Lisboa, 19 de Março 2023)

Quem é bom, nunca morre. Viverá para sempre no coração de quem o amava como o homem de bem que sempre foi. 

Foi um bom homem e um homem bom. Fez bem a muita gente.

Partiremos todos um dia, os maus e os bons. Se há vida para além destes momentos fugazes, deveria haver por lá guardado um lugar especial para homens como o Comendador Rui Nabeiro.

Adeus, Senhor Comendador, até sempre.

Crosby...

jpt, 20.01.23

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O velho hippie morreu agora. E nunca cortou o cabelo, justiça lhe seja feita... Aqui o(s) deixo, em especial para os que julgam que o rock de estádio começou no Live Aid... (A minha irmã e o meu cunhado tinham o LP Crosby, Stills & Nash e também o Déjà Vu, daqueles Crosby, Stills, Nash & Young - este último bem antes do Rust Never Sleeps e de ser avoengo do agora também já velho grunge. E assim cresci com eles).

CROSBY & STILLS & NASH & YOUNG - Almost Cut My Hair ( Live In Wembley Stadium , London, 1974)

E qui uma das minhas muito preferidas do trio "original" (o célebre CS&N), em excelente versão... septuagenária: vale a pena ouvir, qual posfácio da selecção de 20 canções de David Crosby feita pela Rolling Stone...

Dez anos sem o João

Pedro Correia, 14.01.23

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«A imortalidade é esse dom que os deuses depositam na memória dos amigos.»

Manuel Vicent

 

Já passaram dez anos. Cumprem-se hoje. Uma data dolorosa neste blogue, para todos quanto o conheceram. Para mim, sobretudo. O nosso João Carvalho despediu-se da vida, rumo à eternidade, a 14 de Janeiro de 2013.

Foi demasiado cedo, tinha apenas 60 anos. Com ele, apagou-se parte da força vital que tornou o DELITO DE OPINIÃO numa referência na blogosfera, onde centenas de pessoas já escreveram - gente anónima, gente célebre, gente das mais diversas tendências. Um blogue plural, participativo, atento aos outros, dialogante com os leitores, com um olhar crítico e mordaz sobre figuras e factos sem perder a elegância.

Muito à semelhança, no fundo, do que ele próprio era. Foi assim que o conheci, bem longe de Portugal: alegre, sociável, capaz de fazer amigos com imensa facilidade, desassombrado mas tolerante. Uma vez disse-lhe: «Não és engenheiro, mas sabes construir pontes.» Assim era, de facto, o João Manuel Machado de Castro Carvalho, um dos edificadores deste projecto que teima em permanecer, uma década depois de ele nos deixar de forma não inesperada mas prematura.

Nos primeiros quatro anos de existência do DELITO, deixou aqui centenas de textos. Com uma transbordante capacidade de contagiar os colegas e estabelecer diálogo com os leitores. Desde o momento inicial: era um dos pilares desta equipa que se foi renovando e transfigurando (e envelhecendo, conforme a inelutável lei da vida).

 

Devo-lhe muito. Era padrinho da minha filha, quase como um irmão. Costumo dizer que fazemos um grande amigo por cada década de existência. Sucedeu-me isso: as verdadeiras relações de amizade deixam um rasto que perdura da infância à velhice. Mas os desencontros da vida vão esmorecendo alguns laços. Com o João isso nunca aconteceu - e nem sequer a distância geográfica diminuiu a nossa calorosa e fraterna camaradagem. Desde aquela tarde em que ele me bateu à porta na pousada de Mong-Há, onde eu então vivia, e me convidou para «tomar um copo» com um amigo comum para nos conhecermos. Escrevíamos os três em jornais de Macau sem que, até àquele dia, nos tivéssemos encontrado pessoalmente.

Nasceu aí uma amizade de um quarto de século que havia de perdurar até ao dia em que ele nos disse "até sempre" e me despedi dele, a 15 de Janeiro de 2013, na comovente cerimónia fúnebre no Porto, sua cidade natal. Com a Igreja do Foco cheia de gente amiga, ainda incrédula com aquela partida tão precoce. 

 

Tanto tempo depois, ainda por vezes me questiono o que diria o João deste ou daquele acontecimento. Ou, quando leio algum erro gramatical mais estapafúrdio, me interrogo como reagiria ele com um sentido pedagógico que cultivava como poucos. Foi um dos melhores copy-desks que conheci no meu longo trajecto profissional. Rigoroso como poucos a escrever - com os outros, sim, mas também com ele próprio. 

Os textos aí estão, no nosso arquivo, testemunhos vivos de um percurso demasiado curto mas suficientemente rico para construir um precioso legado em sua memória. Não apenas na página principal do blogue: também nas caixas de comentários, onde nunca deixava um leitor sem resposta - quase sempre amável, por vezes contundente, sem nunca baixar o nível. 

Pertencia a uma espécie rara: era um perfeccionista, abominava a vulgaridade, só se contentava com o melhor. No estilo, no grafismo, no respeito pelo idioma que é património de todos. E era imbatível no sentido de humor, atributo que o acompanhou até ao fim. Ainda detectei nele esse traço distintivo na última vez em que falámos, por telefone, três semanas antes da sua morte.

Como escrevi no próprio dia em que o perdemos, a um amigo nunca se diz adeus. Cá estou, no lugar do costume, a sublinhar o mesmo. Entre os ruídos do quotidiano, recolho-me uns minutos em sentida evocação da sua memória. Convicto, mais do que nunca, desta evidência: a amizade é um posto. O João faz falta, à família e aos amigos. O que é mau e bom ao mesmo tempo. Sinal inequívoco de uma vida que não decorreu em vão.

Pelé

jpt, 29.12.22

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O que me lembro de Pelé? O enorme "frisson" - de facto a entrada no mundo da economia global - que provocou quando veio a Portugal, e também ao "Visita da Cornélia", o concurso televisivo da burguesia que se imaginava popular, publicitar a Pepsi-Cola num país onde a Coca-Cola ainda não entrara.

Do que ele jogava ficam-me os elogios, tantas décadas passadas, que dele me fizeram - na Associação Portuguesa, no Piripiri, na Feira Popular, até no bar do Polana - o nunca destronado King, Eusébio, e o Monstro Sagrado, o gigante Mário Coluna. Pelé foi único. E há uma coisa magnifica na sua morte: sabermos que teve uma bela vida!

Na sua morte deixo saudações aos meus amigos brasileiros. E aos meus amigos que gostam de futebol. E, mais ainda, aos que gostam que a vida seja bela.

Chefe Evaristo, "in memoriam"

Pedro Correia, 21.12.22

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Morreu o chefe Evaristo Cardoso, que em 1974 fundou o Solar dos Presuntos - templo da gastronomia minhota no coração de Lisboa. Inesquecível, o seu cordeiro à moda de Monção. Sem esquecer o folhado de vitela, a paelha de porco preto com gambas e mexilhões e o cabrito no forno com batata assada e arroz de forno.  

Chefe em português, não em francês. Cozinheiro e empresário de restauração da mais genuína cepa nacional.

Este sim, merecia honras de Panteão.

Fernando Gomes, o Bibota

jpt, 26.11.22

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O Grande Bibota Fernando Gomes é, acima de tudo, um património do Futebol Clube do Porto - onde teve uma gloriosa carreira, avançado letal que foi. Mas nos últimos anos do seu extraordinário percurso ainda veio jogar no Sporting. Contratação então recebida com gáudio, tamanha a admiração pelo grande goleador. E o respeito pelo homem, alguém muito decente no arisco mundo da bola.

Palmas para o Bibota. Em ovação.

Gal Costa

jpt, 09.11.22

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Modinha Para Gabriela - Gal Costa (Gabriela) 1975

Houve uma época - um pouco cândida - em que o "Brasil" era importante. A omnipresente "Livros do Brasil", as prateleiras de todas as casas pejadas nem tanto de Machado de Assis mas obrigando-se a Lins do Rego, Veríssimo, o pai Erico, Jorge Amado - ao qual alguns, e nem tão poucos assim, não perdoavam ter-se tornado quase Lampedusa, no "tudo mude para que tudo se mantenha", naquilo de ter inflectido na presciência de ser Mundinho Falcão afinal igual a Ramiro Bastos ,- o poeta de Andrade, mais o "Chico" de "Tanto Mar", o enorme Milton, o Caetano - do qual ainda nem sabíamos a demagogia nativista -, enfim a MPB exultante e ainda chegariam o excêntrico Hermeto, o gigante Gismonti, a Cor do Som e etc, para além do sempre rei Roberto Carlos (e o meu "Portão", ao qual apenas ascendi nos anos 90s, já com idade para me comover nas alvoradas), esse que os "bem-pensantes" já então "cancelavam" devido à pirosice que lhes é natureza. E o tão esquecido Josué de Castro, presente nas prateleiras daqueles que olhavam o mundo - tão diferentes esses dos pacóvios d'agora, liberais "chic" ou "pós"-marxistas ..., avessos a prescrutar o mundo que se escapa às certezas de manual que apregoam. 

E foi essa também a era desta "modinha", que nos encantou, arrebatou para um outro mundo tão mais rico e saboroso. Gal Costa morreu agora, e a nós faz-nos imensa falta outro choque, sem manifesto nem panfleto, como "Gabriela" o foi. Quanto àquele Brasil não sei o que lhe aconteceu, há muito que dele não ouço falar. Nem quero. Morreu Gal Costa, vou ouvir a minha juventude:

Gal Costa "in excelsis"

Pedro Correia, 09.11.22

 

Em tarde outonal, recebo com mágoa a inesperada notícia de que a voz de Gal Costa se calou para sempre. Ela foi a doce e calorosa intérprete de algumas das canções da minha vida. Com um timbre único. De uma sensualidade transbordante. Em discos que nunca me cansarei de ouvir: Fa-tal - Gal a Todo o Vapor, Índia, Cantar, Doces Bárbaros... 

Associada a canções inscritas no meu património afectivo: Índia, Volta, Que Pena, Pontos de Luz, Meu Nome é Gal, Vatapá, Atiraste uma Pedra, Balancê, Força Estranha, Modinha Para Gabriela, Chuva de Prata, Só Louco. Com as sílabas arrastadas, a afinação exemplar, aqueles agudos que tocavam o tecto, tornando-a inconfundível.

Romperam o tecto e chegaram ao céu. Ao Olimpo da Música onde a partir de hoje ela mora. Cantará só para os anjos, não mais para os pecadores como qualquer de nós.

Uma vida cheia, inspiradora, realizada

Adriano Moreira (1922-2022)

Pedro Correia, 23.10.22

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Uma vida cheia, inspiradora, certamente realizada. Adriano Moreira apaga-se aos cem anos, recém-completados. Numa espécie de círculo perfeito, tanto quanto pode ser uma existência humana - que, mesmo quando longa, nunca deixa de ser breve.

«Dou graças a Deus porque foi uma vida feliz e o fim também não está a ser desagradável», afirmou numa das últimas entrevistas que concedeu.

O mundo seria melhor se todos soubéssemos partir assim.

 

Ler (11)

Na morte de Javier Marías (1951-2022)

Pedro Correia, 18.09.22

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Durante anos, li Javier Marías com prazer e proveito na revista dominical do El País. Bastavam as crónicas dele (e guardei várias, arquivando-as entre as páginas de livros, como sempre faço quando gosto muito de certos textos) para justificar a compra do jornal, que há mais de um ano deixou de se publicar nos quiosques portugueses, ao contrário do ABC ou do El Mundo, outros diários do reino vizinho.

Era culto, cáustico e corajoso - três características que aprecio num cronista. Não hesitava em remar contra a maré das modas dominantes, não perdia tempo com bajulações nem ocultava a erudição para seduzir "novas camadas de leitores" em busca da facilidade. Se havia que romper consensos, contassem com ele. Para integrar coros afinados, podiam dispensá-lo.

Este meu interesse pelo Marías cronista alargou-se ao Marías ensaísta. Há um livro dele sobre escritores e leituras que sempre recomendo: Vidas Escritas, em que nos fala de vários dos seus autores preferidos em textos concisos mas luminosos. Ali desfilam Faulkner, Conrad, Rilke, Stevenson, Mishima, Nabokov. E mulheres mestras das letras, como Emily Brontë e a fabulosa Isak Dinesen. 

Daí passei ao Marías romancista. Com obras como Todas as Almas (1989) e Coração Tão Branco (1992), em que exibe sem complexos a sua formação anglo-saxónica, a experiência como professor em Oxford, o gosto em ter traduzido Laurence Sterne e Thomas Hardy, a eleição de Shakespeare como autor de cabeceira.

 

Obra-prima da literatura espanhola, que incluo sem favor entre os cem melhores romances do século XX, Coração Tão Branco (título inspirado em frase de Lady Macbeth) tem um dos melhores parágrafos iniciais que conheço em ficção literária. Daqueles que nos agarram de imediato e nos prendem ao livro do princípio ao fim.

Eis essas primeiras linhas (com sábia tradução de Fátima Alice Rocha para a editora Alfaguara):
«Não queria saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e tinha regressado da viagem de núpcias havia pouco tempo, entrou na casa de banho, pôs-se diante do espelho, abriu a blusa, despiu o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que se encontrava na sala de jantar com alguns membros da família e três convidados.»

Perguntem-me o que é escrever bem. Respondo com esta admirável frase de abertura.

 

Grande escritor, Marías - prematuramente desaparecido, a escassos dias de completar 71 anos. E sem o Nobel, em nova injustiça cometida pela academia sueca: há muito que o merecia.

Ser politicamente incorrecto, e fazer gala disso, não o favoreceu nesta época de consensos bem comportados. Ele, que não fingia modéstia e exibia «o sorriso da inteligência», como dele disse Juan Cruz. Atributos nada valorizados nos dias que vão correndo.

Até por isso o aprecio. E continuarei a escrever sobre ele no presente, não no passado.

Rui Mateus Pereira

jpt, 16.09.22

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A última edição da revista Etnográfica inclui um In Memoriam dedicado a Rui Mateus Pereira, morto em 2020 - com textos de Adolfo Yáñez Casal, Ana Isabel Afonso, Frederico Delgado Rosa e Laura Almodôvar, colegas que lhe foram próximos e que com ele constituiram amizades. Tive com o autor um relacionamento muito mais distante e esparso. Mas, e até porque a nossa interacção não se enquadrou no espaço universitário, aqui deixo a minha memória. Na qual, e porque escrita em blog próprio, não tenho o espartilho dos limites de caracteres - comum em publicações institucionais - nem prescindo do exclusivo tom de memória pessoal.

 

 

Cumpriu o dever até ao fim

Pedro Correia, 09.09.22

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A última imagem da Rainha ao receber Liz Truss, terça-feira passada, em Balmoral

 

Cumpriu o dever até ao fim. A imagem mais recente mas já crepuscular que guardamos dela foi colhida terça-feira, no castelo de Balmoral, ao receber a nova líder conservadora, Liz Truss, indigitando-a primeira-ministra. De aspecto frágil mas ainda gracioso, como sempre a conhecemos, neste último acto formal em sete décadas de palco institucional que assinalava também a despedida de uma vida longa e frutuosa, ao serviço do Reino Unido e da Commonwealth, que congrega 2,4 mil milhões de seres humanos em todos os continentes. 

Muitos dos seus súbditos nunca conheceram outro titular da coroa britânica. Isabel II - que ontem se apagou em paz na sua amada Escócia, no preciso local onde passou as horas mais felizes da sua longa existência - sucedera em 1952 ao pai, Jorge VI. Era uma jovem de 25 anos, tímida, insegura, certamente imatura: ganhava projecção mediática universal graças a inesperados golpes do destino. Primeiro à abdicação do tio, Eduardo VIII, que a colocou na linha directa da sucessão dinástica; depois devido à morte prematura do pai, fulminado por um cancro.

 

Essa jovem viria a tornar-se ícone de várias gerações muito para além das fronteiras da ilha onde nasceu. Como chefe do Estado da Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Jamaica, Bahamas, Granada, Papuásia-Nova Guiné, Ilhas Salomão, Tuvalu, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Belize, Antígua e Barbuda, e São Cristóvão e Névis. Ultrapassou em longevidade física e política a sua trisavó Vitória, rainha entre 1837 e 1901. 

Ninguém viajou tanto como ela, não apenas às antigas parcelas do império britânico mas a todos os recantos do mundo.

Ninguém coexistiu com tantos líderes políticos e espirituais - 15 Presidentes norte-americanos, de Harry Truman a Joe Biden; sete Papas, de Pio XII a Francisco; 15 primeiros-ministros do Reino Unido, começando por Winston Churchill, quando era já lenda ainda em vida. Mais nove conservadores além dele e da recém-empossada (Anthony Eden, Harold MacMillan, Alec Douglas-Home, Edward Heath, Margaret Thatcher, John Major, David Cameron, Theresa May e Boris Johnson) e quatro trabalhistas (Harold Wilson, James Callaghan, Tony Blair e Gordon Brown).

Num tempo que presta culto ao provisório, ela simbolizava a permanência - desde logo pelos laços de sangue que a ligavam aos seus remotos antepassados normandos fundadores da monarquia há quase mil anos. Parecia imune a toda a erosão e nunca se deixou contaminar pelas paixões políticas. Robusteceu o trono ao colocá-lo acima de todos os jogos partidários: era uma das suas facetas mais relevantes de serviço público, do qual nunca abdicou - como deu mostras na vibrante mensagem dirigida aos britânicos, em Abril de 2020, no auge do pesadelo da pandemia.

 

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Isabel II, por Andy Warhol (1985)

 

Reforçara a sua legitimidade histórica na firme resistência da família real britânica às hordas nazis, mesmo com o palácio de Buckingham bombardeado pela Luftwaffe, nos dias de terror da II Guerra Mundial. Quando lhes foi sugerida a evacuação urgente para o Canadá, a mãe fez uma declaração que dissipou todas as dúvidas: «As crianças [Isabel e a irmã mais nova, Margarida] não vão sem mim. Eu não irei sem o Rei. E o Rei nunca partirá.»

Assim se forjou o carácter desta monarca que aos 18 anos, ainda durante a guerra, integrou as fileiras do serviço territorial como motorista e mecânica. Sempre em cumprimento do dever, como confirmaria ao honrar todas as responsabilidades constitucionais que assumiu ao ascender ao trono. Funcionando como traço de união entre povos e nações. Dando expressão concreta a conceitos abstractos como dignidade e majestade. Nunca as liberdades fundamentais, cada vez mais escassas noutras latitudes, correram o menor risco em dia algum do seu reinado. 

 

Não admira, por isso, que mesmo tendo já completado 96 anos mantivesse níveis estratosféricos de popularidade que nenhum presidente de nenhuma república granjeia hoje, seja onde for.

Não admira, por isso, que a triste notícia da sua morte - talvez pressentida mas ainda assim inesperada - tenha sido recebida com genuína dor e consternação um pouco por toda a parte, não apenas na chuvosa noite londrina mas muito para além das fronteiras dos 15 Estados ou territórios que a mantinham como suprema guardiã do império da lei e da magistratura do exemplo - o mais parco, precário e precioso de todos os poderes.

 

«Perdemos não apenas a nossa monarca, mas a matriarca da nação», afirmou um comovido Tony Blair numa mensagem de condolências. Enquanto David Cameron se declarava «afortunado» por ter recebido o conselho «da maior diplomata a nível mundial». Mick Jagger, voz dos Rolling Stones, falou por milhões ao escrever estas singelas linhas numa rede social: «Ao longo da minha vida, Sua Majestade, a Rainha Isabel II, esteve lá. (...) Lembro-me dela desde que era uma bela jovem até se tornar na muito querida avó desta nação.»

O filho mais velho, Carlos, sucede-lhe no trono. Mas ninguém preencherá o lugar que ela agora deixa em aberto nesta viagem para a eternidade.

 

Leitura complementar:

A Rainha (6 de Fevereiro de 2009)

«Ser imparcial não é humano» (24 de Fevereiro de 2018)

Uma rapariga do meu tempo

Pedro Correia, 11.08.22

Eu era miúdo, mal saído da infância, ela já adulta. Foi um dos meus primeiros amores de adolescência. Linda: parecia uma princesa. Invejei o imbecil do Travolta: queria estar no lugar dele na película que ambos fizeram lá para finais dos anos 70. Filme foleiro, disseram alguns, sem perceberem que aquilo era uma festiva celebração da vida. Fugaz instante que tão cedo se esvai.

Demasiado cedo, no caso da minha sempre amada Sandy, também chamada Olivia Newton-John

Chalana, o Gentil Gigante

jpt, 10.08.22

Morreu Fernando Chalana. Histórico jogador do Benfica sofria de Alzheimer

Chalana, ídolo dos vizinhos ali de Carnide, foi um jogador extraordinário. naquele genial jeito jongleur, e se houve um Garrincha português foi ele - tudo sublinhado pelo estilo pessoal, naquela bigodaça, e também na peculiar personalidade tão tímida, contrastante com a monumental exuberância em campo - que convocava universal simpatia. E mesmo que jogando no clube rival - ao qual chegara oriundo daquele alfobre benfiquista que era o Barreirense de então, onde naquela era os encarnados iriam também buscar Araújo, Frederico e Carlos Manuel - dele fui grande admirador, naquele encanto devido aos Artistas. 

Chalana era único, enorme, o jogador "alegria do povo", e naquela era ainda de poucas transmissões televisivas e sem internet espantou o mundo no magnífico Euro-84. Tanto brado deu que o Benfica não conseguiu segurá-lo e - a troco da quantia necessária para o fecho do "terceiro anel" da Luz - ele partiu para França, então destino mítico do emigrante português, onde foi infeliz, num calvário de lesões.

Tive ocasião de o conhecer pessoalmente, num breve contacto. Em 2006 o Benfica cessou contrato com Ronald Koeman e Chalana foi, como treinador principal interino, a Maputo para um torneio quadrangular de fim de época, comandando uma equipa de reservas e jovens. Antes dos jogos a delegação benfiquista foi à Escola Josina Machel (o antigo Liceu Salazar, na denominação colonial), sita no centro da cidade. Não resisti e fui lá ver a reacção dos miúdos. Estes estavam esfuziantes por ver os “ídolos” e nas instalações da escola congregaram-se mais de mil miúdos ululantes, num verdadeiro triunfo para aquela comitiva. 

À saída, rumo aos autocarrros estacionados perto do célebre Hotel Cardoso, cada um dos jogadores fora rodeado de dezenas de miúdos, em busca de autógrafos, sorrisos, uma palavra, um "estar perto" que fosse. E era óbvio que entre aquela petizada ninguém conhecia Chalana - que fora, e sem demérito por nenhum atleta - muitíssimo melhor jogador do que qualquer daqueles ali deslocados. Assim saía ele descansadamente, olhando sorridente aquela azáfama toda. Não resisti, aproximei-me, aproveitei para me apresentar, "Zé Teixeira, adepto do Sporting e seu grande admirador e muito lamento que a miudagem não o conheça" e ele riu-se, até um bocadinho atrapalhado e expressando que era normal, nada mais do que isto do "passar do tempo". E ali ficámos um pouco à conversa, no passeio defronte ao Museu de História Natural. E nesses breves minutos, menos de um quarto de hora, deu-me para perceber que o Artista era um homem gentilíssimo. E interessado pelo circundante, bem para além do futebol, pois logo indagando sobre Moçambique, a situação, a pobreza local, mas também sobre mim, como ali me corria a vida, como se adaptava a minha família, etc. Uma atenção pelos outros, coisa tão rara entre os inúmeros patrícios ali visitantes - que quando chegados a Maputo sempre se desdobravam em avaliações apressadas sobre o que acabavam de conhecer e, quantas vezes, discorriam sobre si mesmos e o que ali estavam para fazer, como se fossem realmente significantes.

Um Senhor, na sua modéstia, parecendo até que se desculpava de ter sido um Gigante. Um Gentil Gigante, literalmente. Fiquei dele ainda mais fan...

(No seu sexagésimo aniversário, sendo já público o seu delicado estado de saúde, deixei em blog uma bem humorada "hommage à Chalanix").

Na morte de Jô Soares

Pedro Correia, 08.08.22

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Quando morre um actor que conhecemos há longos anos, e com quem partilhámos lágrimas e sorrisos, é como se nos desaparecesse uma pessoa de família.

Senti isso na sexta-feira, ao saber da notícia do desaparecimento de Jô Soares. Nesta era das mil graçolas por minuto à solta nas redes sociais, em que o humor se confunde com o sarcasmo mais grosseiro  e se vai perdendo a ironia em transição acelerada, regressei ao tempo em que o grande comediante brasileiro nos fazia rir com a sua graça natural, os seus trocadilhos inteligentes, a sua malícia contida nas entrelinhas. Porque era não apenas actor, mas autor - também literário, e de sucesso, como se comprovou.

Mas o que mais guardo na memória são dois dos seus programas televisivos de início da carreira: O Planeta dos HomensViva o Gordo. Com quadros inspirados na actualidade política, em tempo de ditadura em Brasília, sabendo fintar a censura com inteligência e argúcia. Em quadros que geraram frases depois incorporadas na linguagem comum não apenas no Brasil, mas também em Portugal.

Lembro algumas: «Não me comprometa»; «Tem pai que é cego...»; «Estão mexendo no meu bolso!»

 

Eis outras frases dele, já de fase posterior, quando acumulava a participação em programas televisivos em nome próprio com a escrita de livros sem perder as características que o celebrizaram:

«A comissão faz o ladrão.»

«No Brasil, quando o feriado é religioso, até ateu comemora.»

«Gordo, quando está fazendo dieta, sempre faz a barba antes de se pesar.»

«Em uma coisa os bêbados e os geógrafos têm razão: a Terra gira.»

«O material escolar mais barato da nossa praça é o professor.»

«Era tão azarado que, se quisesse achar uma agulha no palheiro, era só sentar-se nele.»

«Era um sujeito realmente distraído: na hora de dormir, beijou o relógio, deu corda no gato e enxotou a mulher pela janela.»

 

Jô era mais que um intérprete ou humorista: era uma genial criação de si próprio. Soube superar eventuais problemas de imagem, transformando defeito em virtude e assim se tornou ídolo de multidões. Sem ceder à facilidade. Muito menos à ordinarice própria dos ineptos, infelizmente hoje tão em voga.

Com ele ausente, ficamos um pouco mais tristes a partir de agora.