(foto daqui)
“In order to get rid of the blindness which exists to a serious extent in our Party, we must encourage our comrades to think, to learn the method of analysis and to cultivate the habit of analysis.” (Mao Tse-Tung, Our Study and the Current Situation, April 12, 1944, Selected Works, Vol. III, pp. 174/175)
1. Como resulta do elegante título do comunicado da PSP [“Quanto à questão sobre se os não residentes que se encontrem em Macau estão ou não assegurados pela Lei n.º 2/93/M (Direito de Reunião e de Manifestação), ultimamente há ainda alguns indivíduos com dúvidas sobre a questão, pelo que, o Corpo de Polícia de Segurança Pública vem por este meio efectuar, mais uma vez, a declaração”], publicado na página oficial do Governo da RAEM, e na sequência dos argumentos que têm vindo a ser avançados pelo Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, e a PSP, eu serei um dos “alguns indivíduos com dúvidas”, pelo que fazendo jus a esta qualidade gostaria de aqui trazer mais algumas que, estou certo, ajudarão a clarificar aos olhos da opinião pública (cidadãos, residentes, turistas e afins) a excelência das posições oficiais.
2. Da argumentação da PSP, um corpo de qualificados juristas que usa farda e bastão, resulta que:
a) O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos não poderá ser aplicado automática e directamente em Macau, necessitando de legislação local para ser aqui aplicado indirectamente;
b) O direito de reunião e manifestação destina-se às pessoas que adquiriram o estatuto de residente de Macau, e não a todas as pessoas que aqui se encontram;
c) A Lei n.º 2/93/M (Direito de Reunião e de Manifestação), apenas proporciona garantias aos residentes de Macau no exercício do direito de reunião e manifestação, mas não regula as garantias dos direitos dos não residentes.
3. Sobre a alínea a) já houve quem com saber e paciência explicasse as posições oficiais da RPC (cfr. Jorge Menezes, Ponto Final, 03/03/2021, p. 15). Sobre as alíneas b) e c) só posso dizer que não contesto as verdades oficiais. Sou apenas um residente, um “indivíduo com dúvidas” (podiam-me ter chamado outra coisa mais feia), e não um “cidadão”, que é um “conceito jurídico definido na Constituição portuguesa”, referindo-se “a uma pessoa que tem a nacionalidade de um país e goza de direitos civis e assume obrigações cívicas nos termos das disposições legais desse país”.
4. Diz o Secretário, no que será aclamado pelo seu escol de jurisconsultos requisitados a Portugal, que “[o]bviamente, os trabalhadores não residentes e turistas, etc., não têm bilhete de identidade de Macau, pelo que não são residentes de Macau”. Será mesmo assim?
5. O art.º 24.º da Lei Básica (LB) estatui que “os residentes da Região Administrativa Especial de Macau, abreviadamente denominados como residentes de Macau, abrangem os residentes permanentes e os residentes não permanentes”. Ainda nessa norma refere-se que “os residentes não permanentes (...) são aqueles que, de acordo com as leis da Região, tenham direito à titularidade de Bilhete de Identidade de Residente de Macau, mas não tenham direito à residência”.
6. Ou seja, os residentes não-permanentes terão, quando muito, um direito a aqui permanecer, embora, de acordo com art.º 43.º da LB, gozem, “em conformidade com a lei, dos direitos e liberdades dos residentes de Macau, previstos neste capítulo”.
7. Esse reconhecimento, conforme se elucidou aos “indivíduos”, “é apenas um princípio geral, não absoluto”, podendo ser restringido em conformidade com a lei. Óbvio.
8. E se assim é, o que nos vieram dizer foi que o legislador da LB se “esqueceu” de estabelecer uma distinção clara entre os tais “não residentes”, que têm “direito à titularidade do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, mas não tenham direito à residência”, e os simples portadores daquilo a que as autoridades chamam “Título de Identificação de Trabalhador Não-residente (TI/TNR)”, que gozam de uma “autorização de permanência”.
9. Estava quase totalmente elucidado quando dou de caras com o artigo 26.º da LB que afirma que “os residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau têm o direito de eleger e de ser eleitos, nos termos da lei”.
10. Homessa? Então o legislador da LB considerou neste artigo, e apenas neste, ser necessário esclarecer, preto no branco, que só os “residentes permanentes” têm o direito de eleger e de ser eleitos? E em todas as outras situações onde se fala de residentes não sentiu necessidade de acrescentar “permanentes”, deixando isso ao critério do Governo da RAEM e da PSP?
11. De acordo com a lição do Secretário é tudo muito linear: o princípio consagrado no art.º 43.º da LB pode ser objecto de limitação porque não é um princípio absoluto. Ora bem. Bom, assim, face ao disposto no citado art.º 26.º da LB, e à interpretação do art.º 43.º, quanto aos direitos de reunião, desfile e manifestação por parte dos não-residentes, o que o Secretário quis dizer foi que, concluo eu, a LB não é tão perfeita como dizem. O legislador não se soube exprimir? Não faz mal. Temos a sorte de ter quem corrija e faça a interpretação autêntica. Um semideus.
12. Para quê que o legislador sentiu necessidade de escrever “residentes permanentes” no art.º 26.º? Bastaria ter escrito “residentes”. Depois, o Governo da RAEM viria dizer que esse direito não era absoluto, e que todos os outros, isto é, os não-residentes, TI/TNR, turistas, e até pangolins que por aqui andassem, estavam excluídos do direito de se fazerem eleger e de serem eleitos porque tal direito estava reservado aos “residentes permanentes”.
13. De facto, o legislador esteve mal (isso resulta dos esclarecimentos do Secretário), porque em todos os outros artigos incluídos no Capítulo III, com o título “Direitos e deveres fundamentais dos residentes”, dever-se-ia ter escrito sempre “residentes permanentes”, pois que dessa forma os outros estariam sempre excluídos. E poupava-se ao Secretário e à PSP o trabalho de andarem a interpretar e esclarecer o sentido da lei. Nesses tempos de antanho em que a LB foi redigida (1993), o legislador foi pouco esclarecido. De outro modo, não teria reservado em exclusivo aos residentes permanentes apenas os direitos de participação política, mas também todos os outros.
14. Isto é hoje de tal forma perceptível aos olhos de todos que, por exemplo, e voltando ao direito de reunião, desfile e manifestação, temos de também considerar que o artigo 34.º da LB também não se aplica aos não-residentes, TI/TNR e turistas (pelo menos quanto à segunda parte, já que sobre a liberdade de consciência ainda se está a estudar a forma de a limitar em exclusivo aos residentes permanentes que não usem os neurónios).
15. Porquê? Muito simples. O Secretário para a Segurança e a PSP ainda não o disseram, mas certamente que irão iluminar os “indivíduos” que ainda têm dúvidas de que esse artigo 34.º da LB deverá ser interpretado em termos tais que impeça aos não-residentes a liberdade de pregar, de promover actividades religiosas em público e de nelas participar.
16. A liberdade religiosa era de há muito um dado adquirido em Macau. E não se fazia a distinção entre os residentes permanentes e os outros em matéria de culto. Agora essa distinção, face à posição do Secretário e aos esclarecimentos da PSP, terá de ser equacionada.
17. As procissões católicas do Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos e de Nossa Senhora de Fátima entraram para a lista de património intangível de Macau em 2017. Uma procissão é um cortejo, um desfile solene de carácter religioso, uma manifestação da fé. Na via pública! Ora, não sendo permitido aos não-residentes, TNR, turistas e afins participarem em reuniões, desfiles e manifestações, ser-lhes-á também vedada a participação na procissão do Senhor dos Passos?
18. De acordo com o que consta da Lei n.º 5/1998, de 3 de Agosto, que regula a liberdade de religião e de culto, a liberdade de religião compreende, nomeadamente, o direito a “exprimir as suas convicções”, a “manifestar as suas convicções, separadamente ou em comum, em público ou privado”, a “difundir, por qualquer meio, a doutrina da religião que professam”, podendo inclusivamente “criar e utilizar meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades”, e, ainda, “praticar os actos de culto e os ritos próprios da religião professada” (art.º 5.º), e “as pessoas podem reunir-se para a prática comunitária do culto ou para outros fins específicos da vida religiosa”, não dependendo para tal de autorização prévia. Acresce que às “reuniões ou manifestações [religiosas], designadamente as que utilizem locais públicos, aplicam-se, com as necessárias adaptações, as regras gerais sobre reuniões e manifestações”.
19. Que fará a PSP na próxima procissão? Manda parar o andor? Interrompe o desfile e começa a identificar as pessoas, mandando residentes permanentes para um lado e levando os outros para a esquadra numa ramona, como fez às filhas de um deputado? Parece-me sensato. E a seguir cancelam-se os títulos aos participantes na procissão? Nega-se o BIR permanente aos não-permanentes que completaram sete anos depois da procissão? Com os bufos e o sistema de reconhecimento facial é fácil saber quem lá esteve.
20. Aqui chegados, creio que o melhor será introduzir mais uma excepção à lei. Para que fiquem na RAEM alguns TNR antes de se cancelarem todos os títulos. Proíbe-se-lhes a reunião em missas, a participação em desfiles e a manifestação em procissões, sem prejuízo de aqui poderem trabalhar. Para que Macau não pare. E a deputada Chan Hong não tenha de suportar salários de 7 mil patacas pagos aos compatriotas do interior.
21. A interpretação do Secretário para a Segurança leva à conclusão de que o legislador da LB se esqueceu de estabelecer, ao contrário do que sucedeu com o direito de eleger e ser eleito, um exclusivo de participação nas manifestações religiosas para os residentes permanentes. Convirá, pois, também limitar esse direito. Uma procissão é um perigo. Sabe-se bem o que os polacos fizeram.
22. Escreveu Mao que “when we study the causes of the mistakes we have made, we find that they all arose because we departed from the actual situation at a given time and place and were subjective in determining our working policies.”* Tivesse o legislador lido isto e a LB teria sido outra.
23. Posto isto, importa perguntar ao Secretário para a Segurança quando é que o Governo manda para a Assembleia Legislativa a proposta de lei contendo a proibição de participação dos não-residentes, TNR e turistas em actos de culto em locais públicos e manifestações religiosas? É que a este tipo de situações se aplicam, “com as necessárias adaptações, as regras gerais sobre reuniões e manifestações”.
Haja paciência, coragem e coerência. Levemos isto até ao fim (não tresler “para o fim”) e cumpramos, uma vez mais, a LB e o princípio “um país, dois sistemas”.
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(* Speech at a Conference of Cadres in the Shansi-Suiyuan Liberated Area, April 1, 1948, Selected Works, Vol. IV, pp. 229-30)