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Delito de Opinião

A Evolução do Esticão

Maria Dulce Fernandes, 15.12.23

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Numa noite quente de Agosto há cerca de dez anos, tinha eu acabado a burocracia das 20 horas e ansiava que as três horas em falta para acabar o turno da noite passassem breves. O toque da campainha fez-me sair da casa forte e verificar no vídeo-porteiro que a Laura estava à porta com cara de choro. Fi-la entrar e sentar-se. Vinha cheia de arranhões nos braços e nas mãos. As calças estavam rotas e ensanguentadas. Segurava, com uma mão crispada, a mala contra o peito e chorava copiosamente. Dei-lhe água, acalmei-a e por fim  entre soluços conseguiu contar que fora vítima de uma tentativa de roubo por esticão. Dois meliantes numa mota que abrandou junto dela. O pendura puxou pela corrente da mala, mas ela não largou. Ele também não, e a mota arrancou levando a Laura de cangalhas, aos trambolhões, arrastada  pelos paralelepípedos de basalto preto das ruas estreitinhas de Belém, junto ao muro do jardim, desertas àquela hora da noite. A nossa primeira reacção é pegar nas compressas e no Betadine, mas num caso destes há que pensar no que não salta à vista e fazer a diligência para que a Laura fosse observada e tratada e pudesse participar a ocorrência à PSP. Pedi a um colega que a levasse ao hospital, onde seria assistida em todas as vertentes da situação.

Tinha um ombro e o braço deslocados, algumas escoriações profundas e alguns meses de tratamentos. Agarrou-se sempre à ideia do “ acto heróico “ de nunca ter largado a mala, mas no meu íntimo nem sei se não teria sido melhor ter deixado ir. A partir desse dia, a Laura ficou sempre com medo de sair sozinha.

Este ano, a minha comadre, mãe do meu genro mais velho, foi passar as festas ao Utah, com a filha mais velha e com o genro e netos. Há uns dias, à tarde, sozinha em casa e entretida a navegar pelas redes sociais, recebe uma mensagem por Whatsapp do filho (o meu genro mais velho) com este teor: “Olá, mãe. Parti o telemóvel e este é o meu número provisório enquanto o outro está a arranjar. Preciso que me faças um favor. Tenho de pagar uma conta com urgência e os dados bancários estão no outro telefone e não consigo aceder. Vou enviar a entidade, a referência e o montante e pagas que, quando chegar a casa, faço uma transferência." Preocupada, tentou telefonar para o “número provisório” mas não conseguiu contactar. Recebeu mais uma mensagem a perguntar se havia problema, porque não podia falar, estava numa reunião. A minha comadre fez a transferência e de imediato recebeu uma mensagem a informar que não tinha resultado e que teria de repetir com uma entidade e referência diferentes. Repetiu quatro vezes e quem sabe repetiria mais vezes o pedido se o genro não tivesse chegado a casa e, vendo-a tão confusa e  atrapalhada pela anormalidade de tudo aquilo, tomou conta da situação, telefonando para o número de telefone que supostamente estaria “a arranjar”. Tudo não passava de uma fraude. 

A minha comadre tem 77 anos e o burlão usou com ela o tipo de discurso que o meu genro, seu filho, costuma usar, numa caixa de diálogo com a sua fotografia. Extorquiu-lhe cerca de quatro mil euros com grande proficiência sob falsos pretextos de urgência e é uma situação irrevogável.

Foi um senhor esticão. Depois de participar às autoridades competentes, depois de chorar e conseguir acalmar-se, a minha comadre, com a bonomia que sempre a caracterizou, assumiu a precipitação e como o que não tem remédio remediado está, disse que, enfim, seria pior uma perna partida.

Quedei-me a pensar na fractura...

(Imagem Google)