Como muitos saberão, costumo ter umas discussões - por vezes intensas, por vezes engraçadas, por vezes irritantes - com o nosso comentador lucylucky. Aqui há uns tempos pedi-lhe numa caixa de comentários que me explicasse o seu pensamento, como via o papel do Estado. Gentilmente respondeu-me em comentário. Por o considerar interessante, decidi dedicar-lhe um post que espero ser pouco maçador. Um ponto: caro luckylucky, não pretendo em momento nenhum do texto ser ofensivo ou menorizar as suas ideias. Apenas apresento as minhas razões para as refutar. Como sempre, pode fazer o mesmo com o meu texto na caixa de comentários.
Começo sendo facilitista: vejo o mecanismo de pensamento de luckylucky como semelhante ao de um comunista ou de um religioso fundamentalista. Tem uma visão a que chamarei em provocação d'os amanhãs que cantam e nela crê com todas as fibras do seu ser. É semelhante aos comunistas que crêem que a igualdade absoluta pode ser atingida. São visões dogmáticas que selectivamente ignoram os obstáculos. A maior diferença é que o luckylucky tem perfeita noção que as pessoas são diferentes umas das outras, algo que o comunismo puro e duro (nem sei se em versão marxista-leninista ou adicionando-lhe o -estalinista) prefere ignorar ou simplesmente negar.
Escreve o luckylucky, grosso modo, que quanto mais leis, mais probabilidades de cercear as liberdades. Em termos puramente abstractos é verdade. Mesmo quando as leis protegem as liberdades, estarão a restringir alguma liberdade de alguém. Se impedirem o homicídio estarão certamente a limitar a liberdade dos homicidas. É a tal questão da diversidade. Por outro lado, luckylucky defende que qualquer grupo de pessoas poderia viver num sistema comunista, desde que tal desejassem. Da mesma forma, quem quisesse viver fora desse (ou de outros) sistemas, deveria ter possibilidade de o fazer.
Não preciso de apontar as falhas deste raciocínio porque o próprio luckylucky já o faz. Aponta como caminho o estabelecimento de colónias, no mar, debaixo da terra, noutros planetas, etc, para poder criar o espaço físico capaz de englobar toda esta diversidade. Tem consciência que se um determinado grupo de pessoas quiser criar um sistema político numa determinada região, um outro grupo de pessoas não poderá viver dentro dos seus critérios no mesmo espaço físico. Se 99,99% dos habitantes de uma cidade decidirem que querem viver num espaço sem fumo, não podem permitir que dois ou três indivíduos fumem. Aqui entramos no óbvio problema: exercer a liberdade de uns limitará a liberdade de outros. Isto é verdade independentemente dos números de indivíduos que estejam de um lado ou outro da barricada. A situação complica-se quando em relação a outro tema a separação dos indivíduos é feita de forma diferente (por exemplo, 99,99% dos indivíduos não querem o roxo na cidade e outros dois ou três apenas desejam essa cor, mas esses três indivíduos não são os mesmos que desejam fumar). No limite, por cada indivíduo teremos um sistema político diferente.
E é por isso que surge a ideia de colónias. Cada um poderia encontrar um espaço onde vivesse de acordo com as suas próprias regras. É uma ideia simples, mas faz-me lembrar as "Robot series" de Isaac Asimov, que descrevem um planeta, Solaria, onde os seus habitantes não suportam encontrar-se fisicamente, vivem em propriedades com o tamanho de países e onde se encontram com o/a cônjuge apenas e só para poderem reproduzir-se (numa versão mais tardia os habitantes usam engenharia genética para se tornarem hermafroditas e cortarem todos os laços físicos com outros habitantes). Nestes livros, esta sociedade contrasta com a da Terra, onde existem mega-cidades que contêm toda a população humana, o espaço pessoal é mínimo, as casas de banho e os refeitórios são públicos e partilhados entre todos e apenas aqueles de mais elevada casta teriam alguns privilégios extra.
No fundo, luckylucky descreve a sua utopia, esperando que um dia a tecnologia a permita. Asimov, na sua clarividência, descreve como esse caminho estaria cheio de obstáculos numa direcção (pseudo-comunismo) ou noutra (liberdade pura). Inteligentemente, Asimov não toma um partido óbvio, procurando simplesmente um meio-termo. Pessoalmente opto pelo mesmo. "A Democracia é o pior de todos os sistemas à excepção de todos os outros" é uma frase que deveremos lembrar sempre. A Democracia, num sistema ou noutro, é imperfeita. Mas num mundo onde temos, imperativamente, que partilhar recursos (espaço, água, terra, ar, etc), ainda é aquele que nos tem servido melhor.
O mundo (ou universo) de luckylucky talvez um dia venha a ser possível. Até lá, vejo-o simplesmente como um sonho de criança que ainda não despertou para a realidade.