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Delito de Opinião

Uma revolução silenciosa

Pedro Correia, 16.11.23

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Dirigentes da Internacional Socialista reunida no Porto em 1976: François Mitterrand, Isaac Rabin, Willy Brandt, Mário Soares, Olof Palme, Harold Wilson e Joop den Uyl. Outros tempos, bem diferentes dos actuais

 

O título já diz muito: «A demissão de António Costa, uma estocada para a esquerda a sete meses das eleições europeias». Mas todo o texto justifica leitura atenta. Este artigo no Público espanhol é uma excelente radiografia das encruzilhadas e bloqueios da social-democracia europeia. Que hoje só governa com maioria absoluta em Malta, o menor dos 27 Estados da UE. Em Espanha, acaba de ajoelhar perante extremistas e separatistas. Em Portugal, com poucos anos de intervalo, vê dois primeiros-ministros a contas com a justiça.

Tudo isto reflecte a mudança do eixo político ocorrida nas últimas quatro décadas, fragmentando o espectro ideológico e reduzindo drasticamente as famílias partidárias clássicas - democracia-cristã, socialismo democrático e comunismo. Uma autêntica revolução silenciosa que tem mudado o nosso continente muito para além das mais arriscadas previsões feitas por académicos e politólogos na já longínqua década de 80.  

O que sobra do "socialismo real"

Pedro Correia, 30.08.23

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O chamado socialismo real não era uma ideologia, mas uma teologia alternativa que teve em Karl Marx o seu principal profeta: assim nos ensinaram pensadores como Raymond Aron e George Steiner.

Noutros tempos, dizia-se comunismo. Acontece que hoje ninguém fala em comunismo: eclipsou-se de vez. Começando pelos próprios comunistas que restam, cada vez menos. Estes só aludem ao «socialismo».

Nunca mais regressarão as ilusões do passado, quando multidões de fanáticos se proclamavam dispostas a dar a vida por Estaline, jurando-lhe fidelidade com devoção inquebrantável. Tempos de idolatria à solta, com a razão entorpecida, que desembocaram no pesadelo totalitário e nas vítimas do Arquipélago Gulag, dos campos da morte no Camboja, do "Grande Salto em Frente" e da pseudo-revolução cultural maoísta. Simon Leys contabiliza, só na China, 50 milhões de mortos.

Religião despótica, como a definiu Bertrand Russell. Irremediavelmente condenada ao caixote do lixo da História.

O socialismo nominal é o que resta deste catecismo doutrinário que se manchou de sangue sempre que passou da teoria à prática. Como teologia de substituição, fracassou. Por ter ambicionado não apenas refundar a sociedade, mas reconstruir a própria natureza humana - quimera condenada ao insucesso desde o primeiro instante. 

De Marx quase já não restam vestígios nos dirigentes socialistas do nosso tempo, tornados meros gestores do sistema capitalista, que não pretendem derrubar nem desfigurar. Proclamam-se interclassistas, sem a menor alusão ao velho dogma da luta de classes. Nenhuma sociedade alternativa têm para propor: só ligeiros retoques à que já existe. Sobram-lhes tautologias como esta, expressa por Felipe González: «O socialismo pode ser definido como o aprofundamento do conceito de democracia.»

A utopia sumiu-se pelo caminho. 

Fé e ideologia

Paulo Sousa, 20.01.21

Gostei de ouvir, e recomendo que oiçam o José Manuel Fernandes no Contra Corrente de hoje no Observador.

Destaco as seguintes notas.

O Director do NHS inglês é um técnico superior que responde ao Parlamento e não ao Governo. Está em funções desde 2014, o que significa que já trabalhou com vários PM.

Tem ao seu dispor a rede hospitalar do país, pública e privada, e é com base nela que planeia a evolução das necessidades, sem a pressão de ir embora quando houver eleições, nem a desculpa do governo anterior.

A pandemia chegou a todos, mas nem todos têm a mesma proporção de mortos não-covid.

O apego à ideologia na actualidade, o ódio ao privado, a demonização do lucro e o desprezo pelas consequências, só será comparável ao apego à fé cristã noutros tempos da nossa história. Os ingleses eram uns merceeiros que não entendiam nada de tradição, nem de honra e muito menos de fé. Só queriam fazer comércio e ganhar dinheiro, mas nós é que iríamos converter o mundo na verdadeira fé. No fim de contas, bem sabemos o resultado.

Hoje, embora com uma crença diferente, agimos rigorosamente da mesma forma. É a sina da grandeza a que aspiramos mas que nunca conseguimos concretizar.

Os relatos que aqui tivemos no texto do João Sousa e nos comentários do nosso leitor Carlos Sousa e da nossa leitora Susana V, lembram-nos como as rupturas do nosso SNS são frequentes nesta época. As queixas dos utentes que são assistidos pelo mesmo médico de manhã nas urgências e à tarde no privado, e que empurram assistências de um lado para o outro, só existem por não haver coragem nem condições políticas para fazer reformas, para fixar médicos e enfermeiros e a mantê-los motivados.

A maravilha da geringonça bloqueou qualquer hipótese de reformas e nós (alguns) insistem em ficar encantados a apreciar as habilidades do nosso PM. É ele a fazer habilidades e malabarismos, e nós a ficarmos para trás nos rankings europeus que interessam e à frente nos que nos envergonham e entristecem.

Até quantos mortos estamos dispostos a sofrer, sem exigir reformas efectivas?

O regresso da ideologia

Paulo Sousa, 24.09.20

A chegada da IL ao hemiciclo permitiu o regresso do saudável e saudoso debate ideológico ao espaço público.

Durante demasiado tempo, sempre que dois políticos se encontravam à frente das câmaras de uma televisão discutiam apenas a espuma do dia. Fora disso, o melhor que conseguiam era garantir que conseguiriam vedar as sempre incontinentes contas públicas, o que nunca foi mais de que uma redonda mentira.

Como já foi aqui referido pelo nosso colega José Meireles Graça, há poucos dias na SIC Notícias debateu-se a proposta da IL para a adopção de uma taxa única de IRS. Além da proposta em si havia como pano de fundo as declarações proferidas pelo Dr. Anacleto no seu programa da SIC. O deputado da IL, João Cotrim Figueiredo, acusou-o nas redes sociais de ter mentido e deturpado o conteúdo da proposta de flat rate. Esse foi o tema de arranque do debate. No decorrer da troca de argumentos o deputado bloquista enredou-se nas suas fintas semânticas e, provavelmente sem dar por isso, confirmou a mentira do seu chefe. Nada de novo para um conselheiro do Estado Português.

Olhando com atenção, dá para apreciar ainda a forma como o jovem delfim de Louçã afirma que esta proposta não é esta proposta, porque 'eu é que sei bem o que lhe vai na alma'. Esta é uma técnica que consiste na recusa do debate e avança para o julgamento moral. É populismo mas do bom. Se fosse usado pela direita seria asqueroso.

Eu, que gosto de enquadramentos históricos, gostaria de lembrar ao mano mais novo do Daniel Oliveira (aquele que faz rir) que nesta conversa ele assumiu a defesa da situação, ou seja, a defesa de um sistema fiscal que lhe permita (sem óculos escuros ele não consegue esconder a chispa) acabar com os ricos, mas que na prática nos empobrece a todos.

Já aqui referi que os partidos da esquerda unidos à volta do OE, constituem as forças conservadoras da actualidade. O BE e o PCP, os acólitos do PS, são tão coerentes como um apenas um revolucionário conservador poderá ser. Admito que tenham consciência do ridiculo, mas não conseguem resistir a uns biscoitos de reforço positivo.

Os irrecuperáveis vinte anos de estagnação económica, que marcarão estes anos da nossa vida, estão ligados a este modo de esmifrar a riqueza produzida pelos portugueses.

Li não sei onde que o debate político deverá trazer sempre à liça o passado, o presente e o futuro. Estes três diferentes tempos não deverão ter sempre o mesmo peso nas decisões, mas nenhum deverá ser humilhado. Os socialistas que há décadas nos governam são uns amantes obsessivos do presente. Eles desprezam o passado e odeiam o futuro. De facto, eles são os inimigos do futuro. Para os socialistas, em troca do poder imediato não existe nenhuma questão de princípio que não seja negociável. Manter o poder é a sua ideologia. É o seu alfa e o omega. Por ele, tudo.

Pragmatismo político em tempo de crise

João Pedro Pimenta, 17.04.20
A prova de que as ideologias não morreram é que as encontramos em todas as discussões da actualidade, e a pandemia que atravessamos não é de modo algum excepção. Com menor ou maior discrição, erguem-se vozes a vituperar o neoliberalismo e o seu abandono dos cidadãos e das funções essenciais do estado, a começar pela saúde, ou o socialismo, responsável pela crise, pelo seu encobrimento e pelas suas respostas ineficazes. Isto a juntar às inevitáveis teorias da conspiração, em que se vê de tudo. Já encontrei dedos apontados aos chineses, aos americanos, a Bill Gates, à maçonaria, ao globalismo e não há de faltar muito para que se incluam George Soros, os judeus (com a sub-secção dos Rotschild), os extreterrestres e os Iluminatti.
 
Mas o que interessa aqui é mesmo a ideologia. É sabido que em graves crises a tendência é para unir esforços e dar-se importância ao pragmatismo. Veja-se o governo nacional no Reino Unido, durante a II Guerra, em que Churchill formou um Gabinete de Crise e um governo de unidade nacional chamando Clement Attlee para número dois, além de outros membros dos partidos Trabalhista e Liberal. Em tempos da maior ameaça, com as ilhas britânicas como único baluarte europeu contra a agressão nazi, houve necessidade de reunir forças na luta contra a ameaça à pátria e a civilização.

Lembrei-me disso depois do discurso de Páscoa de Boris Johnson, quando saiu do hospital. Para além dos elogios pessoais aos enfermeiros Luís "near Porto" e à neozelandeza Jenny, que tanto ecoaram nos respectivos países, o primeiro-ministro não se cansou de exaltar e elogiar o afamado Serviço Nacional de Saúde britânico. Tem a sua graça ver estes elogios da parte de um líder conservador. O National Healthcare Service é, não nos esqueçamos, uma criação do governo trabalhista pós-guerra de Attlee, que sucedeu a Churchill (que voltaria a tomar o lugar do trabalhista depois). Na altura, muitos acusaram a "deriva socialista" da medida, mas o certo é que mais nenhum governo, nem o de Thatcher, que apostava na diminuição do peso do estado, se atreveu a acabar com ela, ainda que tivesse havido cortes, emagrecimentos e concorrentes. O serviço nacional de saúde tornou-se ele próprio num instituição britânica, que como se sabe, são coisas particularmente defendidas naquele país. Como dizia alguém recentemente, o National Healthcare Service é "the closest thing the english people have to a national religion", não esquecendo a igreja anglicana.

Tem o seu significado ver essa criação trabalhista de Attlee ser tão elogiada por um primeiro-ministro conservador, logo Boris que tantas vezes evoca Churchill, sobre quem até escreveu livros. A sua experiência recente no hospital ajudou, claro. Mas em tempos de crise, repito, opta-se pelo pragmatismo em lugar das trincheiras ideológicas. As ideias e a política não desapareceram, mas pode-se extrair o que de melhor há nelas - neste caso, um serviço nacional de saúde forte e preparado e a contribuição generosa da sociedade e dos particulares. Ambos são necessários e preciosos. Não para se curvar perante unanimismos mas para unir esforços no sentido de defender a nação, os cidadãos e o bem comum.
 
Churchill and socialist Attlee putting country before party is ...

Um modelo falível

Alexandre Guerra, 12.08.19

Tentar prever o comportamento de um governante no âmbito de um tema fracturante, atendendo ao seu perfil político-ideológico, pode e deve ser um exercício válido, mas nem por isso infalível. Partindo de um determinado modelo de pensamento previamente conhecido, poder-se-á antecipar a decisão de um líder perante uma problemática sócio-política instalada na comunidade. Em tese, e dando um exemplo clássico, poder-se-á presumir que alguém ideologicamente de “esquerda” seja mais favorável à intervenção do Estado nos assuntos da “polis” do que alguém de “direita”, ou vice-versa.

Tendo como base este paradigma, consegue-se vislumbrar potenciais decisões de governantes em matérias relacionadas com o papel do Estado na esfera comunitária, seja na saúde, na educação ou nos transportes. Ou antever a sua relação política com temáticas culturais ou religiosas. Da mesma maneira que se poderão tornar previsíveis as decisões de um decisor, à luz de um registo mais conservador ou progressista, mais tradicionalista ou liberal, face a temas como o aborto, a eutanásia ou a engenharia genética.

O conhecimento e estudo das ideologias dá-nos um certo grau de previsibilidade no processo de decisão no âmbito do sistema político. Quando um candidato se apresenta a eleições assumidamente debaixo de um manto ideológico, é natural que o eleitor crie expectativas quando ao desfecho legislativo de determinadas matérias.

Mas esta fórmula está longe de ser exacta, até porque muitas das vezes os políticos estão desprovidos dessa carga ideológica, regendo-se exclusivamente pelo pragmatismo técnico-burocrático, podendo tomar decisões circunstanciais, de acordo com as necessidades (ou sondagens) do momento. E, mesmo aqueles decisores que, convictamente, se entreguem a uma determinada ideologia, podem ver-se confrontados perante uma realidade impositiva que se sobreponha aos seus princípios políticos originários.

Tome-se como exemplo o caso prático que por estes dias tem ocupado horas de telejornais e páginas de jornais: a greve dos motoristas de pesados de mercadorias, nomeadamente de matérias perigosas. Não são aqui chamados os contornos ou os efeitos da greve em si, mas sim o seu enquadramento político-ideológico feito por diferentes intervenientes. E se este caso é aqui referido, é porque é um bom exemplo da falibilidade da “fórmula” acima apresentada.

Na óptica do tal quadro de análise “esquerda-direita”, não seria descabido prognosticar, há umas semanas, que, perante um cenário extremado de greve, o Governo (esquerda) assumisse uma posição suavizada perante aquilo que tem historicamente considerado um princípio constitucional intocável ainda herdeiro da boa e velha tradição sindicalista dos tempos do “proletariado” marxista. Partindo dessa “fórmula”, dir-se-ia também que a oposição (direita) seria menos conivente com o tom radicalizado dos grevistas e viesse defender uma acção mais “musculada” por parte das autoridades no garante da normalidade da sociedade.

Porém, os últimos dias vieram demonstrar o contrário, assistindo-se a uma inversão de papéis, pelo menos à luz daquilo que seria o cenário expectável: a esquerda fortemente empenhada na limitação aos direitos “excessivos” dos grevistas; a direita bastante permissiva perante o discurso extremado dos grevistas. Ideologicamente, será abusivo extrapolar estas posições para uma realidade mais definitiva, onde a esquerda e a direita alteraram os seus princípios face ao instrumento da greve.

Em Portugal ainda é bastante clara a fronteira doutrinária entre a esquerda e a direita em relação a algumas matérias, verificando-se algum conservadorismo ideológico em ambos os campos. A questão é que as circunstâncias políticas que se vivem acabaram por empurrar o Governo e a oposição para terrenos que não são habitualmente os seus. E quando assim é, rapidamente as ideologias são “metidas na gaveta” e os discursos mudam.