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Delito de Opinião

Judiarias

Ana CB, 04.05.22

 

Sou mais de pensar no futuro do que no passado, mas nas minhas viagens gosto de visitar bairros antigos. Presto atenção particular à arquitectura, sobretudo quando não está “maquilhada” pelas falsas reconstituições que tantas vezes alteram o carácter original dos lugares (assunto com pano para mangas, que poderá ser motivo para outro artigo). Estes bairros são muitas vezes a linha que me conduz a conhecer um pouco da história de cada lugar, frequentemente a posteriori, e também frequentemente para tentar separar o trigo do joio, ou seja, o que é facto histórico verificado daquilo que é efabulação ou exagero para chamariz turístico. Nos últimos anos, o acaso tem levado os meus passos até algumas antigas judiarias em cidades e vilas europeias, e tenho vindo a interessar-me progressivamente por estes bairros, que de uma forma geral mantêm algumas das suas características originais e terão sido menos adulterados pelos modismos da passagem dos séculos.

 

HERVÁS

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Diz a publicidade turística que o seu bairro judeu é um dos mais interessantes e melhor conservados em Espanha. Para mim, foi um dos que mais gostei de visitar até hoje. Hervás fica a pouco mais de 100 km da nossa fronteira, entre Plasencia e Salamanca, entre florestas de castanheiros e carvalhos na região do vale do rio Ambroz. A vila tem as suas raízes em finais do século XII, quando as terras foram doadas por Afonso VIII a monges templários, que ali erigiram uma ermida e apoiaram o povoamento local, submetido à autoridade do Duque de Béjar.

 

Em 1391, estalou em Sevilha uma revolta contra a população judaica, que se alastrou depois a várias cidades dos reinos de Castela, Aragão e Navarra. A Europa sofria os efeitos devastadores da peste de 1348, e no imaginário colectivo havia que atribuir a tragédia a alguém. Ferrán Martínez, arcediago de Écija, foi o grande instigador da revolta, no culminar de vários anos de pregação antijudaica, e os seus seguidores ficaram conhecidos como “matadores de judeus”. Para escaparem aos assassinatos em massa, muitos judeus foram obrigados a assumir a fé católica, e outros fugiram para localidades mais pequenas, onde a convivência religiosa era pacífica e os senhores feudais asseguravam alguma protecção aos habitantes das suas terras. As primeiras referências documentadas sobre a presença de judeus em Hervás datam de 1464, mas é provável que algumas famílias já se tivessem instalado na localidade em datas anteriores.

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Em 1492, quando finalmente unificaram o Reino de Espanha, os Reis Católicos decretaram a expulsão de todos os judeus. Das 45 famílias judaicas que viviam em Hervás, apenas 14 decidiram ficar na localidade, convertendo-se ao cristianismo; as restantes foram conduzidas à fronteira com Portugal, onde se refugiaram. No entanto, vários desses exilados regressaram a Hervás dois anos mais tarde, beneficiando de um édito régio que conferia uma carta de segurança aos conversos castelhanos que quisessem retornar ao reino, garantindo-lhes também formas de recuperarem os seus bens. Uma das pessoas regressadas foi o rabino Samuel, que ingressou na confraria de São Gervásio e pôde assim continuar dissimuladamente a apoiar a prática judaísta e a coesão desta comunidade em Hervás. Apesar de tudo, a aceitação de cristãos-novos na vida da localidade permaneceu difícil e demorada, com estatutos discriminatórios e perseguições que levaram alguns deles à fogueira até que, em 1661, a duquesa D. Teresa Sarmiento de la Cerda aboliu as discriminações impostas e a integração das famílias de cristãos-novos pôde finalmente prosseguir sem grandes entraves.

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O bairro judeu de Hervás começa junto ao rio Ambroz, na ponte medieval da Fonte Chiquita, que é o monumento mais antigo da vila. Vai depois subindo suavemente por ruas estreitas e sinuosas (a Callejilla tem apenas 55 cm de largura!), cheias de recantos e becos, até ao local simplesmente conhecido como La Plaza, uma confluência de ruas marcada por uma oliveira e uns bancos de jardim. As placas toponímicas com uma estrela de David ajudam a identificar as ruas do bairro, que foi declarado conjunto histórico-artístico em 1969 e alvo de uma reabilitação profunda nos anos 90, na qual os próprios habitantes também se empenharam. A arquitectura das casas é tradicional, com paredes de pedra e adobe ou taipa, e tabique em madeira de castanheiro – construções irregulares que ignoram a simetria, com dois ou três pisos, o último sendo muitas vezes saliente ou até mesmo unido à casa do lado oposto da rua. As paredes estão ocasionalmente cobertas por telhas árabes invertidas, colocadas na vertical, ou por pranchas de madeira em sobreposição – soluções de isolamento térmico pensadas para aligeirar os rigores do calor estival e os ventos frios que sopram do Pico Pinajarro. Cabos eléctricos e tubos metálicos convivem com varandins de ferro forjado e vasos de flores, e as portas e janelas ainda não sucumbiram à tentação do alumínio.

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Para capitalizar o potencial turístico da judiaria de Hervás, desde 1997 que se realiza em inícios de Julho a festa “Los Conversos”. Há exposições, música, degustações e uma recriação histórica teatralizada da vida na localidade em tempos medievais e de eventos marcantes na história da sua comunidade.

 

 

BOLONHA

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A história da comunidade judaica em Bolonha remonta à segunda metade do século XIV, quando cerca de quinze famílias se instalaram na cidade. Apesar de verem as suas actividades continuamente controladas e das limitações que lhes foram sendo impostas ao longo dos anos, e envolvida sobretudo no comércio da seda e da joalharia, nos empréstimos bancários e na medicina, esta comunidade prosperou de tal forma que em meados do século XVI as sinagogas já eram em número de onze – mais do que as existentes em Roma – e Bolonha tinha uma prestigiada academia rabínica. Famosas eram também as oficinas gráficas da cidade, onde em 1482 foi impressa a primeira versão física do Pentateuco com comentários do Rabi Shlomo Yitzhaki, mais conhecido como Rashi.

 

Em 1555, um decreto do Papa Paulo IV ordenou que os judeus fossem separados do resto da população, e em Bolonha ficaram confinados a um bairro definido por muros e por portões que eram abertos quando o sol nascia (para que os seus habitantes pudessem ir trabalhar noutros locais, pois a segregação religiosa tinha o cuidado de não abranger as suas actividades, muito importantes para a cidade), fechados ao anoitecer, e constantemente vigiados. Além disso, eram obrigados a usar uma marca distintiva, para serem facilmente identificados, e apenas foi permitido que uma sinagoga continuasse em funcionamento. Uma das entradas deste gueto ficava na Via de’ Giudei, uma rua estreitinha e sombria que principia na Piazza di Porta Ravegnana, onde se erguem as famosas Duas Torres de Bolonha (durante o período fascista e anti-semita em Itália, a Via de’ Giudei passou a chamar-se precisamente Via delle Due Torri); outra encontrava-se no cruzamento da Via del Carro com a Via Zamboni; e uma terceira entrada fazia-se pelo arco que liga a Via Guglielmo Oberdan ao Vicolo Mandria.

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A criação do gueto judaico de Bolonha suscitou óbvia agitação e alguma resistência, e apesar de ter sido escolhida a zona da cidade onde a maioria das famílias já vivia, muitas outras foram forçadas a vender as suas casas e mudar-se. Por outro lado, cristãos que viviam dentro do perímetro definido para o gueto tiveram de sair dos seus domínios e arrendá-las aos novos habitantes (os judeus passaram a não estar autorizados a possuírem propriedades). Tendo uma área disponível tão pequena, a comunidade aproveitou todo o espaço o melhor que podia, construindo em altura e até mesmo por cima das ruas, num puzzle tridimensional de que hoje ainda restam muitos vestígios. A espinha dorsal do bairro é a Via dell’Inferno, onde até 1943 existiu uma sinagoga (no actual número 16), que foi destruída pelos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial. O nome da rua não se devia a nenhum motivo religioso: resultou de uma mera associação do fogo às chamas do inferno, pois antes da criação do gueto existiam na rua várias oficinas de ferreiro.

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Uma nova bula pontificial expulsou em 1569 os judeus que viviam em quase todos os territórios directamente governados pela Igreja Católica Romana. Readmitidos por Bolonha em 1586, voltaram a ser banidos sete anos depois, desta vez por mais de dois séculos, até à chegada dos franceses de Bonaparte em 1796, que libertou a cidade da influência papal.

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O traçado do gueto judeu de Bolonha permanece bem identificável na actualidade, definido por um labirinto de becos e ruelas que se entrelaçam, arcadas e passagens suspensas, casas muito próximas umas das outras, com janelas pequenas e várias portas (algumas delas falsas, estando as entradas verdadeiras mais dissimuladas), varandas que se misturam com semi-arcadas, e onde a pedra e os grafitis alternam com as cores soalheiras das casas renovadas, que têm portadas garridas nas janelas e plantas que se derramam pelas paredes abaixo.

 

 

BUDAPESTE

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A presença judaica na área de Budapeste data do período romano, e há documentos que atestam a sua importância e prosperidade tanto na Idade Média como durante o tempo em que a região pertenceu ao Império Otomano. No entanto, quando em 1686 uma coligação de exércitos cristãos reconquistou Buda, a sinagoga foi incendiada e todas as pessoas que nela se encontravam presentes pereceram. A comunidade judaica que vivia a oeste do Danúbio foi praticamente dizimada.

 

No século XVIII, começou a nascer em Pest um novo bairro judeu, que corresponde actualmente à metade interior do Erzsébetváros (o Distrito VII), dentro do perímetro definido pela rua Király, avenida Erzsébet, rua Dohány e avenida Károly. Em 1867, os judeus húngaros passaram a ter direitos civis idênticos aos da restante população, e a comunidade floresceu. Budapeste estava em rápido crescimento urbano e económico, atraindo cada vez mais habitantes, que em 1910 já ultrapassavam o milhão – e quase um quarto das pessoas professavam a fé judaica. O bairro judeu era uma área comercial e residencial vibrante, e constituía o núcleo cultural e religioso da comunidade, contando com três sinagogas.

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Depois da Primeira Guerra, o Império Austro-Húngaro desintegrou-se e a Hungria perdeu dois terços do território que detinha antes do conflito e mais de metade da sua população. A instabilidade económica crescente levou ao descontentamento social e a uma cada vez maior animosidade contra os judeus, que se transformaram em alvo preferido dos líderes húngaros, em especial depois da subida ao poder de Miklós Horthy, que instaurou um regime de extrema-direita influenciado pelas políticas anti-semitas da Alemanha nazi. Após a ocupação alemã em Março de 1944, as autoridades húngaras ordenaram que o bairro judeu fosse transformado em gueto e completamente separado do exterior. Em apenas 56 dias, muitos milhares de judeus foram deportados para os campos da morte na Polónia, e o partido ultranacionalista NYKP, que esteve no poder entre 15 de Outubro de 1944 e 28 de Março de 1945, matou mais de dez mil. Dos que restaram, a maioria morreu de fome, doença ou hipotermia nas ruas do gueto.

 

A chegada do exército soviético em Janeiro de 1945 libertou o gueto e os seus poucos sobreviventes, mas durante a era comunista a população do bairro foi diminuindo, atraída pela modernidade dos distritos mais periféricos de Budapeste. O declínio e as adulterações imobiliárias foram alterando o carácter original da judiaria, e a gentrificação ocorrida nos últimos vinte anos deu-lhe um rumo diferente. Permanecem as três sinagogas, das quais a da rua Dohány é a mais frequentada e também a mais famosa, por ser a maior da Europa. E é de facto um edifício belíssimo e impressionante, construído em meados do século XIX em estilo neo-românico combinado com elementos mouriscos e bizantinos. Permanece também o traçado meio irregular das ruas densamente construídas, onde ainda predominam os edifícios de arquitectura historicista, as suas fachadas debruadas ou forradas a pedra, com grandes janelas e elementos ornamentais ilustrativos de todos os “neos” – neoclássicos, neogóticos, neobarrocos.

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As cicatrizes dos acontecimentos da Segunda Grande Guerra ainda são visíveis actualmente, como também o são os danos provocados pelas décadas de abandono a que o bairro foi votado. E no entanto, qual fénix renascida das cinzas, é precisamente devido à sua degradação que este antigo bairro judeu é agora um dos locais mais trendy da Europa, elevando o Erzsébetváros à categoria de distrito mais populoso de Budapeste. As rendas baixas de edifícios dilapidados em ruas negligenciadas começaram a atrair, nos primeiros anos deste século, uma população jovem e empreendedora, pese embora com poucos meios financeiros para investir. O primeiro caso de sucesso foi o Szimpla Kert, ícone dos chamados “ruin bars” que são agora uma espécie de imagem de marca da cidade. O que começou por ser uma tentativa de salvar da demolição um complexo que em tempos abrigou habitações e uma fábrica, tornou-se primeiro no local mais cool de Budapeste, frequentado pela juventude liberal e vanguardista, e depois numa atracção turística que é obrigatório visitar. O espaço degradado foi sendo progressivamente preenchido com toda a espécie de móveis velhos, objectos mais ou menos estranhos, bugigangas, plantas, luzes e tudo o que se possa imaginar, funcionando simultaneamente como café e bar, local de espectáculos, festas e eventos, mercado de produtos agrícolas ao domingo de manhã, e loja de artigos kitsch. Cada sala é um mundo diferente, há escadas e recantos, grafitis nas paredes, cores vibrantes, banheiras que são assentos, bicicletas penduradas no tecto, manequins, e até um carro. Uma miscelânea caótica que atordoa os sentidos à noite, quando o barulho das pessoas e da música alta nem nos deixa pensar, mas é surpreendentemente convidativa durante o dia, quando o lugar está tranquilo e quase vazio. Duas faces de uma mesma moeda.

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Atrás do sucesso do Szimpla Kert vieram lojas, ateliers, restaurantes com comida de todo o mundo, mais bares, e muita arte de rua. Na nova vida deste bairro convivem o antigo e o novo, judeus e gentios, habitantes e turistas, a tradição e o vanguardismo. Claro que nem tudo são vantagens, e como em tantos centros históricos de outras cidades, a popularidade e o turismo estão a fazer subir os preços das habitações, e a afastar os residentes para outros distritos mais baratos e mais tranquilos. É mais uma fase na história do bairro judeu de Budapeste.

 

 

CASTELO DE VIDE

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Embora não haja certezas quanto às origens do bairro judeu de Castelo de Vide, há indícios de que as primeiras famílias judias se tenham instalado na localidade em princípios do século XIV. Apesar da segregação existente, que tinha como vantagem fortalecer laços dentro da própria comunidade e manter inalterados os seus hábitos religiosos e culturais, a convivência entre cristãos e judeus era pacífica e mutuamente benéfica. Por tradição, além da sua vocação mercantil, a comunidade judaica apostava no estudo e no desenvolvimento intelectual, razão pela qual muitos dos seus elementos desempenhavam funções socialmente importantes, fosse como físicos, botânicos, professores, prestamistas ou homens de leis. Foi aqui que nasceu Garcia da Orta, filho de judeus conversos, que mais tarde estudou medicina na Universidade de Salamanca e exerceu esta profissão em Goa a partir de 1534.

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O número de famílias judaicas em Castelo de Vide cresceu sobretudo após 1492, ano em que os Reis Católicos de Espanha ordenaram a expulsão de todos os judeus que viviam nos seus territórios, muitos dos quais se refugiaram em Portugal, onde ainda podiam professar a sua religião sem incómodos de maior. Crê-se que mais de cinco mil judeus vindos de Espanha tenham passado por ali, e bastantes terão ficado. No entanto, o Portugal como refúgio tranquilo foi sol de pouca dura. A negociação do casamento de D. Manuel I com Isabel de Aragão, filha dos Reis Católicos, levou a que o nosso rei fosse pressionado a, também ele, expulsar do reino quem não se convertesse ao catolicismo, o que acabou por suceder em 1496. Quarenta anos mais tarde foi criado em Portugal o Tribunal da Inquisição, marco negro na história da convivência religiosa no nosso país, onde se iniciou um terrível período de perseguição aos cristãos-novos que só terminaria em 1767 com a reforma pombalina e com o fim da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos.

 

Apesar das conversões forçadas, a prática do judaísmo nunca desapareceu completamente em Portugal, e Castelo de Vide testemunha bem esse facto. Nas ruas do antigo bairro judeu, entretanto sujeito a modificações e recuperações, ainda se notam elementos característicos do tipo de ocupação que tiveram, e que continuaram preservados ao longo dos séculos. A judiaria desenvolveu-se na encosta nascente da vila, a partir das muralhas do castelo. O largo onde fica a Fonte da Vila é o centro radial deste bairro – e a fonte é, além disso, o ex-libris de Castelo de Vide. Aproveitando as águas de uma nascente, a fonte terá sido ampliada ao longo dos tempos, datando do século XVI o essencial da forma que lhe conhecemos hoje: rectangular, ornamentada e com uma cobertura piramidal suportada por colunas de mármore. Deste largo saem as ruas da Fonte, do Arçário, do Mestre Jorge e a rua Nova, que ligam a várias outras num padrão sinuoso e irregular. Nas ruas empedradas que levam ao Castelo, as casas têm habitualmente duas portas no piso térreo: uma daria acesso às escadas que levavam ao piso superior, de habitação, e a outra seria a da loja onde era desenvolvida a actividade comercial da família. Muitas destas casas ainda conservam os pórticos ogivais de granito, alguns com gravações nas impostas que suportam o arco, que podem ser símbolos profissionais ou pequenos entalhes com cerca de 10 cm, característicos do culto judaico, que têm o nome de “mezuzot”.

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Na esquina da Rua da Fonte com a Rua da Judiaria encontramos o edifício da antiga Sinagoga, que agora é um museu. As sondagens arqueológicas efectuadas durante as obras de recuperação revelaram que o edifício teve períodos de ocupação distintos desde pelo menos o século XIV, com uma primeira fase até ao século XVI e uma outra mais tardia. Crê-se que no piso superior se encontraria o Tabernáculo e um espaço dedicado ao ensino. Escavados na base do piso inferior descobriram-se três silos, que também apresentam indícios de terem sido usados em épocas diferentes. Terá passado a servir de residência particular no século XVIII, e foi reconstruída em 1972 de acordo com a sua traça original.

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Deste passado, mantém-se na memória colectiva a importância da celebração da Páscoa em Castelo de Vide. Da prática do judaísmo nesta vila foi herdada a bênção dos borregos, cujo abate posterior tem semelhanças com o ritual judaico tradicional.

 

***

 

Estes são apenas quatro exemplos de bairros judeus, entre os muitos que estão bem identificados em vários países da Europa. Como tudo o que envolve reconstituição histórica secular, há sempre alguma (por vezes bastante) controvérsia em torno destes bairros. Mas isso não lhes retira o encanto, nem afecta a minha capacidade de imperfeitamente imaginar como terá sido o dia-a-dia das pessoas que ali viveram ao longo dos tempos, e que outras histórias interessantes aquelas paredes contariam se pudessem falar.

Enfiando a carapuça

jpt, 14.09.18

(inquisição)O tribunal da Inquisição, num óle

Ontem botei este texto aludindo à Hungria. O que conheço da actualidade húngara, de uma forma muito flanante, vem-me da imprensa internacional (aproveito, lateralmente, para recomendar uma preciosa aplicação, a paper.li, que permite que cada faça o seu "jornal", escolhendo as fontes - até 10 na versão gratuita, até 25 se pagando - e as temáticas: há anos que assim recebo o meu jornal "Courelas", que podem ver, até para aquilatarem do interesse de constituirem o vosso próprio).

De seguida o Luís Naves botou este texto, criticando o que havia eu colocado, juntando-lhe esclarecimentos sobre o país e a sua opinião sobre a interacção húngara com a UE, assentes num conhecimento vasto. Não vou assumir como letra de lei estas considerações, continuarei a olhar de soslaio para Orban, mas (ainda mais) estúpido seria se não as usasse, de agora em diante, para pensar sobre a Hungria actual.

Mas disto retiro duas ideias: a primeira é a de recordar o molde padronizador da padronizada imprensa global. É possível que haja textos mais compreensivos sobre a Hungria, que bastará aos interessados procurá-los. Mas o leitor mediano, relativamente desinteressado, constrói uma imagem na mescla de fragmentos, quantas vezes lidos/ouvidos na diagonal. E eles reproduzem-se, sedimentam-se, descomplexificam, facilitam e assim nos facilitam a vida. Ou seja, um tipo lê "umas coisas" (para não falar de outra, e rústica, maneira) e sente-se informado, segue todo pimpão.

A segunda ideia que retiro é pessoal. Blogo há 15 anos, 11 dos quais vivendo em Moçambique. Durante os quais tantas vezes me irritei com patetices, assertivas e convictas, vindas na comunicação social, nos blogs e, depois, nas "redes sociais" sobre aquele país. Gente, profissionais e amadores, a botarem com evidente prosápia um feixe de lugares-comuns, descabidos, desconhecendo a realidade moçambicana. E ontem à noite, ao ler o Luís Naves, o que logo me ocorreu foi um "olha eu, a fazer e-xac-ta-men-te o que aqueles patetas todos fazem", nesta mania, volúpia até, de se (me) fazer ouvir, a vã vacuidade.

Está enfiada a carapuça.

A Hungria e o social-fascismo

jpt, 13.09.18

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Face à longa deriva húngara contra os princípios e tratados que sustentam a União Europeia, o Parlamento Europeu votou um excepcional procedimento contra o governo de Orban, o decano da extrema-direita no poder no interior da UE. É um momento fundamental, a defesa de uma democracia húngara mas, mais do que tudo, acto (e nisso também símbolo) de combate à vaga anti-democrática europeia - para cuja definição o termo "populismo" é manifestamente insuficiente.

O PCP votou contra. Pode surpreender se recordado que Orban já em jovem militou contra o líder comunista Kadar. E que foi o desabamento do regime húngaro o toque de finados do "bloco de leste" em 1989 - quando a Hungria abriu a fronteira com a Áustria e aconteceu o imediato êxodo que teve "efeito dominó" -, que culminou na desagregação da URSS, esta ainda este ano louvada por Jerónimo de Sousa. Ou seja, à primeira vista nada associaria o PCP ao actual poder húngaro, e até se poderia perspectivar um acinte simbólico.

Mas este voto é relevante por duas vertentes. A política é óbvia, o PCP diz não reconhecer à UE autoridade e legitimidade sobre direitos humanos e democracia. Na realidade o PCP refuta autoridade e legitimidade à UE, é só isso. Expressa, neste momento tão simbólico, a sua aversão à união "pós-confederativa". Sublinhando que temos um partido no bloco político governamental que é anti-UE. E não há formas retóricas que o possam esconder, quando nem para votar contra um governo de extrema-direita o PCP cede nesse princípio.

A segunda questão é ideológica, de até pungente cegueira ideológica. Ao refutar à já algo acossada UE qualquer legitimidade política para afrontar a vaga anti-democrática, o PCP está, 80 anos depois, a reciclar a Terceira Internacional Comunista. Na desconsideração das democracias, em particular dos sociais-democratas, como "sociais-fascistas", não os apartando dos movimentos nascentes nazi e fascistas. A história foi o que foi, foi vivida e foi escrita. O PCP nada disso retirou.

Um último ponto: o PCP sempre teve fama (e algum proveito) de ser ortodoxo e monolítico. Este voto de ontem mostra bem que isso (já) não é verdade, pois são evidentes as contradições. Devidas a luta de facções internas ou mera deriva em cabotagem, o futuro próximo o dirá. Pois é uma total contradição de termos, políticos e ideológicos, viabilizar um governo socialista (efectivamente "social-democrata") - que não é uma "frente popular", será muito mais um "compromisso histórico" -, pois "contra a direita". E num âmbito europeu considerar que este tipo de articulação é impossível, que os poderes democráticos não têm legitimidade para enfrentarem a "(extrema)direita". É um desnorte.

 

Voltar a recordar a história

Sérgio de Almeida Correia, 17.09.15

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O Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados e alguns outros funcionários dessa entidade recordaram há dias o que aconteceu durante a crise de 1956 que levou mais de 200.000 húngaros a sair do seu país. Cerca de 180 000 fugiram através da Áustria e 20 000 pela Jugoslávia. Entre o fim-de-semana de 4 de Novembro e o final desse mês passaram 113 000. Na altura foram inúmeros os países que abriram as portas para receber e apoiar os húngaros que escapavam à repressão soviética. Começaram a sair de um dia para o outro para a Áustria, um país que ainda prestava apoio a 150 000 refugiados da II Guerra Mundial. E que apesar da sua pequenez, argumento que também tem sido abusivamente usado para justificar a acção do governo de Viktor Orbán, não fechou portas a quem se refugiava.

Não existiam os mecanismos de apoio e cooperação que hoje temos, e apesar de estar em vigor a Convenção de 1951, mesmo os estados que não eram parte não regatearam esforços para acolher os refugiados.

Entre os países que se prontificaram a acolher refugiados húngaros também estava o Portugal bem comportado e obediente de Salazar, que se predispôs a receber temporariamente um número até 7 000 crianças. 

Inclusivamente, e este é outro ponto que tem sido referido para defender a posição húngara em relação aos refugiados que procuravam dirigir-se para a Alemanha, quando em 1956 o representante da Arábia Saudita junto das Nações Unidas levantou a questão da falta de documentos dos que fugiam, o representante austríaco respondeu que essas questões deviam ser tratadas depois de serem satisfeitas as necessidades básicas dos refugiados. Como aqui se escreve, também nesse tempo muitos do que fugiam utilizaram traficantes para poderem fazê-lo, porque não tinham alternativa para escapar ao flagelo comunista. Não foi a falta de documentos de identificação que impediu a sua aceitação como refugiados e não foram erguidos muros. O paralelo que se tem tentado estabelecer entre os que fogem da guerra e os refugiados económicos que procuravam entrar por outros locais não tem comparação possível, apesar de merecer igualmente atenção. Como a própria chanceler Merkel sublinhou, uma coisa são os que fogem da guerra, outra os que procuram melhores condições de vida. As situações não são comparáveis.

Por outro lado, também já em 1956 o sistema de quotas foi discutido de maneira a que o peso do apoio fosse repartido por todos os países em função dos números das respectivas populações, face à diminuta capacidade da Áustria em acolher condignamente todos os que fugiam. No final, a Áustria foi aliviada do peso dos refugiados no seu território e reembolsada dos 12 200 000 USD que gastou pelas contribuições feitas por outros países, directamente ou através do Secretário-Geral da ONU e do ACNUR. 

E, já agora, convém deixar aqui alguns números sobre o destino final dos refugiados de 1956:

"First of all, most of the Hungarian refugees were relocated or resettled outside Austria. Eventually 410 refugees settled in Austria, the others left for 36 other states: Argentina (1,020), Australia (11,680), Belgium (5,850), Brazil (1,660), Canada (27,280), Chile (270), Colombia (220), Costa Rica (30), Cuba (5), Cyprus (2), Denmark (1,380), Dominican Republic (580), Ecuador (1), Federation of Rhodesia and Nyasaland (60), France (12,690), Germany (15,470), Iceland (50), Ireland (540), Israel (2,060), Italy (4,090), Luxembourg (240), Netherlands (3,650),New Zealand (1,090), Nicaragua (4), Norway (1,590), Paraguay (7), Portugal (4), Spain (19), Sweden (7,290), Switzerland (12,870), Turkey (510), Uruguay (37), Venezuela (780), Union of South Africa (1,330), United Kingdom (20,990), and the United States (40,650). Even more states had offered to accept Hungarian refugees: Bolivia had offered places for 500 families, Guatemala, Honduras and Tunisia had offered 100 places each, and Peru had offered 1,000 places." (Marjoleine Zieck, The 1956 Hungarian Refugee Emergency, an Early and Instructive Case of Resettlement).

Sasha Nagy lembrou o que aconteceu ao seu próprio pai em 1956, mas muitos mais exemplos haverá. Não será assim de admirar que havendo quem tenha sofrido  o drama de 1956 agora escreva que o que está a acontecer envergonha a Hungria

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Democracias há para todos os gostos, factos é que não

Sérgio de Almeida Correia, 14.09.15

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Pego hoje numa pergunta e afirmação feita mais do que uma vez pelo Luís Naves para manifestar algumas das minhas ideias. Refiro-me à afirmação de que a Hungria é uma democracia. De um ponto de vista formal, a Hungria é uma democracia. Tal como a Rússia. Não haja dúvida sobre isso. Porém, como a gente sabe, há muitos modelos de democracia e alguns há que se comportam de uma forma “estranha”, isto para colocar a questão nos seus devidos termos.

O Luís Naves também tem razão quando diz que a Hungria tem procurado cumprir os Acordos de Schengen e que o partido do primeiro-ministro Viktor Orbán é um partido de direita e não de extrema-direita. Aí estamos de acordo.

E não tenho dúvidas de que os relatos que aqui têm sido trazidos pelo meu companheiro são genuínos. Mas tirando o que acima foi afirmado, importa referir meia-dúzia de outros aspectos que não têm feito parte dos relatos do Luís Naves, e por isso não têm tido resposta, para que as pessoas não pensem que a democracia húngara é igual à alemã, ou à inglesa, ou à francesa, ou à espanhola, à italiana, à belga, à holandesa, e por a aí fora, até à portuguesa. Vale pena, por isso, voltar um pouco atrás para não se ficar só com metade da história e se perceber por que digo que a democracia húngara não é igual às outras.

O primeiro-ministro húngaro foi na sua juventude um membro e secretário do KISZ, a organização comunista da juventude húngara, fundada após a derrota das forças democráticas em 1956. Foi desta organização – o KISZ – que durante décadas saíram os membros do Partido Comunista Húngaro. Em 1989, o KISZ foi reciclado para a democracia e toda aquela gentinha que por lá andava e que ocupou postos de liderança entre os comunistas, como Orbán, tornaram-se de um dia para o outro democratas. Ou seja, Orbán era uma espécie de secretário-geral da Mocidade Portuguesa e no dia seguinte à mudança de regime foi inscrever-se no PSD. Não se admire os leitores com o exemplo porque a este propósito deve recordar-se que o PSD, pese embora o “social-democrata”, depois de ter pedido a sua adesão à Internacional Socialista e de ter integrado o Grupo Liberal do Parlamento Europeu, acabou por se filiar no Grupo Conservador, o que leva autores como Seiler a questionarem a respectiva nomenclatura.

Em Abril de 1989, o KIZS mudou de nome e passou então a Federação Democrática da Juventude (DEMISZ), transformando-se numa liga “independente” de qualquer organização, incluindo do Partido dos Trabalhadores Socialistas Húngaros. Entretanto, quando os ventos mudaram – relativamente, porque até a velha ordem estalinista foi mantida formalmente intacta e em vigor pelo Act XXXI de 1989, até à aprovação da nova Constituição, tendo toda a transição sido conduzida pelas forças do velho regime –, Orbán foi para a rua, literalmente, proclamou-se um nacionalista, participou na fundação do Fidesz (Aliança dos Jovens Democratas) e tornou-se um “liberal”. Estudou na Hungria e depois, graças a uma bolsa da Fundação Soros, foi para Oxford.

Os pergaminhos “democráticos” e “liberais” de Orbán, portanto, foram adquiridos numa das estruturas e num dos partidos comunistas mais alinhados e subservientes a Moscovo.

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Aproveitando a onda, Orbán por altura das homenagens a Imre Nagy fez um discurso na Praça dos Heróis a pedir eleições livres e a saída das tropas soviéticas. A partir daqui foi sempre a subir e em 1992 foi eleito vice-presidente da Internacional Liberal. Depois, em 2000, abandonou a Internacional Liberal e passou a integrar o Partido Popular Europeu. No curtíssimo período que foi referido uma organização radical de estudantes comunistas foi transformada num partido de direita.

Quando chegou pela primeira vez ao poder, em 1998, Orbán iniciou um processo de transformação radical do país, tratando logo de reduzir os poderes do parlamento, centralizar o poder, substituindo milhares de funcionários públicos sem qualquer contemplação, trocando quem estava nos postos-chave (Ministério Público de Budapeste, Banco Central, Rádio Nacional) por gente da sua confiança, isto é, do seu partido, no que em qualquer país normal seria considerado uma purga. Apesar da sua postura arrogante e agressiva não conseguiu evitar os escândalos de corrupção envolvendo os seus homens próximos e a norte-americana Lockheed, aliás na linha de anos seguidos de corrupção socialista e clientelar, nem a preocupação da Associação Internacional de Jornalistas. O Fidesz foi o responsável por inúmeras perseguições internas a adversários políticos. Orbán foi passando pelo governo e pela oposição até 2010 quando o Fidesz voltar a vencer as eleições. É nesta altura que as campainhas começam a tocar na União Europeia.

Obtendo 2/3 dos lugares no parlamento, Orbán inicia um processo de consolidação do seu poder e do seu partido, que passa por uma redução do número de deputados (386 para 199), aprova uma lei para reforçar o casamento tradicional, repete apelos nacionalistas contra os poderes externos e critica a democracia liberal. Orbán leva a cabo uma política de remoção dos checks and balances, minando o rule of law e controlando os órgãos de comunicação social. O seu discurso e postura serviram para alimentar sentimentos de ressentimento e vitimização em relação ao Tratado de Trianon, no final da 1.ª Guerra Mundial, que impusera grandes perdas territoriais à Hungria, não sendo estranho a esse facto o aparecimento de mapas da Hungria redesenhados de maneira a incluírem as fronteiras de 1918.

Com o fortalecimento do Fidesz cresceu também a extrema-direita (Jobbick), que com a sua cartilha anti-semita conseguiu o 3.º lugar nas eleições de 2010. Este movimento tem unidades para-militares – a Guarda Húngara – oficialmente banidas mas de que tempos a tempos reaparecem. Aparentemente, o fim da extrema-direita seria do interesse de Orbán e do Fidesz, mas, como escreveu um homem com o prestígio académico e intelectual de Jan-Werner Muller (The Hungarian Tragedy, Dissent, Spring 2011) – o nacionalismo destes acaba por legitimar aqueles, em especial porque um dos primeiros actos políticos de Orbán foi o restabelecimento do Dia de Trianon. Para além disso, Orbán criou uma nova espécie de cidadania para os húngaros étnicos que vivem nos estados vizinhos, o que irritou os vizinhos, a começar pela Eslováquia.

Todos as entidades independentes e fiscalizadoras da acção do governo foram postas em xeque e uma da suas medidas mais criticadas foi a tentativa que fez de reduzir os poderes do Tribunal Constitucional, o qual tinha sido criado decalcando o modelo alemão. Na presidência, em substituição de um prestigiado ex-juiz do Tribunal Constitucional, outrora apoiado pelo Fidesz e que se recusara a afixar no palácio presidencial, como Orbán quis que fosse feito em todos os serviços públicos, a sua cartilha com os princípios da revolução nacional, foi eleito um antigo atleta olímpico, visto por muitos como uma marioneta. Mas o que mais foi mais criticado foi a sua draconiana lei da comunicação social, uma lei própria de estados totalitários, para a qual a OSCE de imediato chamou a atenção.

Quando os seus parceiros europeus se aperceberam do que Orbán estava a fazer, uma das pessoas que colocou em causa a hipótese da Hungria presidir à UE foi o ministro dos Negócios Estrangeiros do Luxemburgo. A própria UE começou então a fazer o escrutínio das leis de imprensa húngaras, o que obrigou o país a alterá-las para fazer face às críticas. A retórica populista é o pedigree de Orbán que, aliás, é um admirador confesso de Silvio Berlusconi.

O populismo de Orbán é, no entanto, de um tipo diferente e seria errado, como alguns fazem, chamá-lo de fascista, embora não deixe de ser perigoso. Tratar-se-á de uma espécie de combinação entre o autoritarismo político e uma economia supervisionada pelo Estado, de tal forma que alguns académicos consideram que o país poderá nunca ser verdadeiramente democrático e dificilmente se verá livre do feudalismo e do paternalismo de estado socialista.

Em 2010, o Washington Post (Editorials, 26/12) escrevia: “Meanwhile, Mr. Orban has overseen passage of two media laws that will put Hungary in a league with Russia and Belarus on press freedom. One puts Fidesz in control of state television channels and all other public media outlets. The second, approved by parliament on Tuesday, creates a powerful Media Council with the authority to regulate newspapers, television, radio and the Internet. The council may issue decrees and impose heavy fines - up to $950,000 - for news coverage it considers "unbalanced" or offensive to "human dignity." Journalists can be forced to reveal their sources, and the council can search editorial offices and require that publishers reveal confidential business information.” Todos os cinco nomeados para o Conselho eram seguidores de Orbán.

O ano passado, a União Húngara das Liberdades Civis (HCLO) condenou os raides contra as organizações não-governamentais levados a cabo pela polícia húngara, dizendo que se estava a assistir a um ataque sem precedentes contra a sociedade civil e numa escala idêntica aos ataques semelhantes ocorridos contra esse tipo de entidades na Rússia e no Azerbeijão. A desculpa foi que se tratava de combater a corrupção.

O Presidente da Freeedom House, David Kremer, em 2012 referiu-se ao que estava a acontecer na Hungria como um processo de putinização, também assim chamado pelo The Economist.

Em 10 de Maio de 2014 a World Politics Review escrevia que Orbán decidira aumentar o número de juízes do Tribunal Constitucional para lá colocar os seus acólitos e dessa forma evitar a fiscalização orçamental e os bloqueios às reformas fiscais inconstitucionais, medida que em Portugal deveria fazer as delícias do primeiro-ministro Passos Coelho e da sua constitucionalista Teresa Leal Coelho.

Já este ano, em Fevereiro, The Budapest Beacon ao noticiar que a Human Platform levou a cabo três eventos a propósito da visita de Putin a Budapeste, dava conta das declarações de Balazs Toth, do Hungarian Helsinki Comitee, que chamava a atenção para as várias manobras legislativas de Orbán desde 2010 para desmantelar a democracia, o que incluiu a reengenharia do sistema eleitoral, com o que “minou totalmente a legitimidade do sistema democrático húngaro”. A Hungria é hoje o principal aliado de Putin no Ocidente.

Muito mais poderia ser dito, pois que informação sobre o que se passa na Hungria existe, apesar de não traduzida para português e só acessível em joprnais estrangeiros e revistas especializadas, por isso de mais difícil acesso à generalidade dos portugueses. Remeto, de qualquer modo, os leitores do Delito de Opinião para uma curta nota de Francisco Seixas da Costa que poderá ter passado despercebida.

O que aqui fica pode ser discutido, contestado, criticado. E é natural que assim seja porque também não tenho aqui ao pé mais elementos, nem sou detentor da verdade. Porém, é suficiente para ilustrar o que eu dizia ao princípio. A Hungria é uma democracia, pois é, mas provavelmente também se poderá dizer que ainda o é, e só o é, porque Orbán está a ser “controlado” pela União Europeia e pela opinião pública mundial. Não fora isso e estou em crer que o meu companheiro de blogue não poderia dizer em Setembro de 2015 que a Hungria é uma democracia e que se tem limitado a cumprir rigorosamente os Acordos de Schengen.

A jornalista húngara foi despedida? Foi porque havia lá uma televisão a filmá-la. Por muito menos do que Orbán tem feito atirou-se a UE ao austríaco Jörg Haider, e não foi preciso os jornalistas austríacos andarem a rasteirar e pontapear refugiados.

Espero que o Luís Naves também me compreenda, mas convém colocar a democracia húngara, o seu papel na crise dos refugiados (gravíssima e que a todos os europeus diz respeito)  e Viktor Orbán no lugar que lhes cabe no concerto das nações civilizadas. Ninguém nasceu ontem. E a crise dos refugiados não pode servir para branquear o papel de Viktor Orbán e do Fidesz.

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