A independência judicial é um ramo do patriotismo
Os últimos dias de Hong Kong foram abalados com a notícia de que Lord Reed e Lord Hodge, juízes não-permanentes, apresentaram a sua demissão do Hong Kong Court of Final Appeal (HKCFA). Este facto, para muitos, só por si não dirá grande coisa. Mas se as pessoas souberem que o HKCFA é o correspondente no sistema judiciário de Hong Kong ao nosso Supremo Tribunal de Justiça (STJ), talvez se comece a perceber o alcance do sismo.
O HKCFA é o mais alto tribunal de Hong Kong e foi instituído em 1997 pela Hong Kong Court of Final Appeal Ordinance (cap. 484), no seguimento do acordo sino-britânico de 1984 sobre a transferência da soberania da colónia para a China, tendo substituído o Privy Council de Londres. Este foi a última instância de recurso das decisões proferidas pelos tribunais locais até 30 de Junho de 1997.
Com a instituição do HKCFA dotava-se a nova Região Administrativa Especial de um órgão que julgaria em definitivo todos os recursos e questões importantes de direito que se suscitassem na sua jurisdição, em particular as que pela sua relevância pública ou constitucional justificassem a sua intervenção.
A sua principal particularidade residia no facto de agregar magistrados de altíssimo nível de outras jurisdições de sistemas da common law, incluindo, por exemplo, o Reino Unido, a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá.
De entre as razões para a sua criação estavam a de garantir o funcionamento e a permanência de um sistema jurídico reconhecido internacionalmente pela sua independência do poder político e legislativo, autonomia, rigor, justiça das decisões proferidas e elevados padrões de competência dos actores.
Ora, o que aconteceu foi que dois dos seus mais importantes magistrados, os referidos Lordes Reed e Hodge, no seguimento da decisão do Governo britânico de retirar os seus juízes de Hong Kong, apresentaram as respectivas demissões com efeito imediato.
Na base da sua tomada de posição esteve a invocação de que embora os tribunais de Hong Kong continuem a ser internacionalmente respeitados, os demissionários entenderam que não podiam continuar a sentar-se na mais alta instância judicial de Hong Kong sem que tal parecesse, desde que aprovada a Lei de Segurança Nacional, que estivessem “a endossar uma administração que se afastou dos valores da liberdade política e da liberdade de expressão, com os quais os juízes do Supremo Tribunal estão profundamente empenhados.”
Recorde-se que Reed é também o presidente do Supremo Tribunal do Reino Unido, integrando o painel de juízes ad hoc do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, e Hodge, entre outros títulos, é vice-presidente do referido tribunal, desde 2020, e professor honorário da Universidade de Stellenbosch e da East China University of Political Science and Law in China.
A reacção da Chefe do Executivo de Hong Kong e das autoridades chinesas foi imediata, no habitual registo destemperado de quem não gosta que lhe digam que as meias estão rotas, pelo que não tardou a crítica ao Reino Unido. Os ministros britânicos dos Negócios Estrangeiros e da Justiça vieram apoiar publicamente uma decisão que não terá sido puramente pessoal. Mantê-los em funções seria “legitimar a opressão”, depois de se ter observado uma “erosão sistemática da liberdade e da democracia de Hong Kong” desde que a Lei de Segurança Nacional entrou em vigor e se assistiu à repressão de liberdades fundamentais.
A decisão não se estranhará tanto se tivermos em atenção que em Setembro de 2020 já o juiz australiano James Spigelman apresentara a sua demissão, justificando-a na altura com o conteúdo da mencionada lei.
O que agora se repetiu, independentemente de todas as alterações verificadas nos sistema jurídico, judiciário, eleitoral e político de Hong Kong, e dos acontecimentos dos últimos dois anos, que promoveram a extinção e dissolução de forças políticas, o desaparecimento de órgãos de imprensa, a prisão de políticos e jornalistas e a fuga de muitos outros, é mais uma machadada no Estado de direito e na credibilidade e reputação internacionais da Região, sendo legítimo questionar até que ponto, sem as anteriores liberdades cívicas e políticas, e um mínimo de confiança nas instituições, subsistirá uma das mais importantes praças financeiras e um centro de negócios até há pouco incontornável no mundo actual.
Para a decisão dos juízes, certamente, não terá também deixado de contribuir o assédio de que foi alvo Paul Harris, um conhecido advogado e defensor dos direitos humanos, que no início de Março abandonou definitivamente Hong Kong, depois de acusado de ser um “político anti-China”, de instado a abandonar o importante cargo de Presidente da HK Bar Association, o equivalente à nossa Ordem dos Advogados, e acabar interrogado pela polícia ao abrigo da nova lei.
Na condenação que fez da posição britânica, a Chefe do Executivo de HK acusou a decisão de remoção dos juízes de ser politicamente motivada, enfatizando que a Região continuará a beneficiar do apoio de juízes estrangeiros. Por agora, alguns continuarão, embora ninguém arrisque dizer por quanto tempo mais.
O acompanhamento da situação de Hong Kong por parte do parlamento britânico tem sido vigoroso, constituindo prova disso mesmo o relatório agora publicado e que antecedeu o anúncio da decisão tomada, numa altura em que os números do êxodo de residentes continuam a aumentar de forma assustadora.
Seja pelas políticas draconianas de combate à Covid-19, seja por outras razões, só nos primeiros três meses de 2022 foram 140.000 os residentes de Hong Kong que trocaram a segurança e as “amplas liberdades” conferidas pela lei de segurança nacional pela vida noutras paragens.
Mas a verdade é que a decisão dos juízes não será de estranhar.
Vindo aqueles magistrados de um sistema judicial onde é secularmente sagrada a separação de poderes e a defesa das liberdades cívicas, seria normal que a convivência com a independência judicial e o exercício da difícil função de julgar se tornasse cada vez mais problemático após alguns dos mais proeminentes políticos (Carrie Lam, Ronny Tong, Teresa Cheng) e académicos chineses esclarecerem que em Hong Kong, à luz da Lei Básica, não existe separação de poderes. Pelo menos nos termos em que os que partiram o terão aprendido.
Em contrapartida, em Macau no pasa nada. Nunca se passou.
A RAEM não tem dimensão. O estatuto internacional que até há algum tempo possuía advinha-lhe dos biliões que saíam ilegalmente do interior da China para alimentar a indústria do jogo, para serem lavados ou branqueados, e dos cambalachos com os senhores locais.
Mas tudo isso acabou, e os dias são cada vez mais tristes, longos e fechados, atenta a ausência de eventos internacionais que a animavam, o fim dos espectáculos culturais e desportivos a que a cidade se habituara, e, em especial, devido às persistentes e prolongadas quarentenas, à proibição de entrada de estrangeiros, que se mantém há mais de dois anos, e às draconianas limitações à liberdade de deslocação dos residentes.
E antes que se pudesse passar alguma coisa acabou-se com a oposição pró-democrática. Os magistrados estrangeiros, na sua totalidade portugueses, acomodaram-se à realidade local. Alguns antes mesmo de se poderem jubilar em Portugal e como forma de garantirem a sua permanência ao serviço das instituições públicas locais durante mais algum tempo. E, tal como em Hong Kong, foram desqualificados ao serem impedidos de julgar crimes contra a segurança nacional.
A acomodação é, ademais, uma realidade a que não fogem os órgãos de comunicação social, alguns generosamente subsidiados, directa e indirectamente por via dos anúncios institucionais de que dependem, que evitam que as suas linhas editoriais ofendam a sensibilidade de quem verdadeiramente manda, e que aqui tudo fiscaliza, controla e supervisiona, assim se explicando os editoriais entusiásticos e encomiásticos de alguns pseudo-jornalistas no apoio à repressão de Hong Kong, à Lei de Segurança Nacional e às políticas oficiais, textos que convivem lado a lado com textos de propaganda mascarada, assinados pelos comissários políticos oficiais e reproduzidos em “colunas de opinião”.
A separação de poderes nunca esteve por isso mesmo em causa. E os tribunais são vistos, na linha do que dispõe a Constituição chinesa e do que foi amplamente cultivado nos anos finais da administração portuguesa, como uma extensão patriótica e colaborante do poder político.
Afinal, foi isso que garantiu a profusão de eunucos nas vernissages, e a estabilidade e a harmonia social, cada vez mais colocadas em crise pela política de tolerância zero, o impacto das medidas anti-epidémicas, o atraso na vacinação contra a Covid-19, o descontentamento de vastos sectores laborais, o crescente desemprego, a inflação, a queda abrupta das receitas do jogo, o encerramento de salas vip e casinos, a partida de famílias, de técnicos e de dezenas de professores de nacionalidade estrangeira que não poderão ser substituídos por outros estrangeiros, a falta de políticas estruturais de diversificação económica que ultrapassem o patamar do discurso e das boas intenções, as evidentes dificuldades de integração na Grande Baía e o subtil esmorecer do projecto “uma faixa, uma rota”.
Nada que não se torne mais leve de suportar quando se sabe que há sempre quem zele pela segurança dos residentes e pelo modelo autocrático da “democracia” local, enquanto se observam as devastadoras imagens e consequências do nacionalista e patriótico delírio da "democracia" putinesca na Ucrânia.
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