Há uns anos, ao ver os primeiros episódios da série Girls (tão recente e já tão imitada que até fica difícil recordar quão inovadora foi), lembrei-me de O Animal Moribundo, de Philip Roth. A certa altura, o professor David Kepesh afirma:
Enquanto cresci, o homem não era emancipado no reino sexual. Era um homem de segunda apanha. Era um ladrão no reino sexual. Surripiávamos uma apalpadela. Roubávamos sexo. Adulávamos, suplicávamos, lisonjeávamos, insistíamos - todo o sexo exigia luta, tinha que ser disputado aos valores, senão à vontade da rapariga.
Mais tarde, referindo-se à actualidade (de 2001), acrescenta:
Aparecem antigas namoradas de há vinte e trinta anos. Algumas já se divorciaram numerosas vezes e outras têm andado tão ocupadas a afirmarem-se profissionalmente que nem tiveram a oportunidade de casar. As que ainda estão sós telefonam-me para se queixarem daqueles com quem se encontram. Os encontros são detestáveis, os relacionamentos são impossíveis, o sexo é um risco. Os homens são narcisistas, não têm sentido de humor, são doidos, obsessivos, autoritários, grosseiros, ou então são muito bem-parecidos, viris e cruelmente infiéis, efeminados, ou são impotentes, ou são simplesmente demasiado estúpidos. (*)
A abordagem da revolução sexual ocorrida na década de 1960 é quase sempre feita partindo da perspectiva feminina. Antes de qualquer outra análise, salienta-se o modo como a pílula e a evolução dos costumes libertaram as mulheres para o sexo sem (demasiados) receios. Mas a liberdade feminina também representou o fim da submissão masculina a qualquer tipo de compromisso. O facto de, ao longo das últimas décadas, as mulheres terem exigido e obtido não apenas o mesmo estatuto no que respeita ao sexo, mas poder total sobre os seus corpos - incluindo o de terminar gravidezes indesejadas - foi extraordinariamente libertador para os homens. O esforço de cortejar, apoiar, assumir responsabilidades tornou-se-lhes opcional, em especial quando favorecidos pelo sorteio genético (i.e., quando atraentes). Nem sequer as regras do politicamente correcto - em muitos sentidos, a prisão dos tempos actuais - os forçam ao que quer que seja: adquirida a igualdade, as mulheres perderam o direito a queixarem-se de terem sido iludidas. Durante séculos, no mundo «civilizado», os homens viram-se obrigados a conjugar instintos e convenções sociais. Agora, estão livres para dar largas ao egoísmo. Às acusações de insensibilidade, podem responder que se limitam a «dar espaço» às mulheres; que estão a «respeitar» a «autonomia» delas.
Nos primeiros tempos de Girls, esta realidade saltava à vista. Hannah desesperava com a passividade de Adam. Para ele, a relação apenas parecia existir enquanto decorria o acto sexual. Em todos os outros momentos, Hannah sentia-se esquecida: ele não telefonava, não respondia às mensagens, demonstrava indiferença quando a encontrava. Fleabag, uma série de 2016 produzida pela BBC e pela Amazon, escrita e interpretada por Phoebe Waller-Bridge, atinge um novo extremo. Apresenta uma mulher que parece vogar entre relações sexuais sem significado (mas não sem consequências), nas quais se submete (sem ser explicitamente forçada) a actos que tem dificuldade em racionalizar. Tudo estaria bem se não as usasse como forma de evitar enfrentar o vazio e a infelicidade que a dominam. Fleabag vai tão longe que se permite incluir um indivíduo nada atraente e bastante irritante no séquito de homens que não têm qualquer dificuldade em ir para a cama com ela.
Sejamos francos: nas últimas décadas, o sexo tornou-se um produto de consumo como qualquer outro; mais uma forma semidescartável de sentir algo, totalmente desligada de sentimentos profundos. Em 1975, Woody Allen afirmava: «O amor é a resposta, mas enquanto se espera pela resposta, o sexo coloca perguntas interessantes.» A resposta continuará a mesma, mas as perguntas parecem ter vindo a perder interesse. Se a consequência óbvia de tanto desejo de independência (por parte das mulheres como por parte dos homens) é a solidão, a consequência óbvia de tanto sexo (real, imaginado, visualizado em ecrãs e na rua) só pode ser a banalização do acto e dos termos que se lhe referem. Em Os Livros que Não Escrevi, George Steiner dedica um capítulo à linguagem do erotismo. Considera-a - como ao próprio acto - cada vez menos subtil, mais baseada nos códigos instituídos pelo cinema, pela televisão, pela publicidade. Escreve ainda: Será fascinante descobrir os novos factores de complexidade e os contributos enriquecedores que poderão vir das correntes feministas. Produziram já uma poesia poderosa e uma prosa acusadora. Poderá a sua política da sensibilidade ser causa de novas orientações e de uma criatividade nova nos dialectos do amor? Até ao momento, os indícios nesse sentido são marginais. O que parece prevalecer entre as mulheres emancipadas é a adaptação, quase desdenhosa, do que eram a obscenidade e a licenciosidade clandestina do discurso masculino.(**)
Talvez não apenas do discurso. Talvez de todo o comportamento. Sexualmente, as mulheres parecem-se cada vez mais com os homens. Mas isso - a acreditar em exemplos como Girls e Fleabag, eles próprios, será conveniente ressalvá-lo, provenientes da cultura cinematográfica e televisiva - não parece torná-las felizes. À liberdade, que neste campo tende a equivaler a quantidade, contrapõe-se a estandardização (nada é novo, pouco permanece tabu), e o novo poder masculino: um egoísmo assumido, que a igualdade torna inatacável.
Sobra a desilusão. Ou a busca de uma «novidade» cada vez mais extrema. Para mulheres, como para inúmeros homens, quando nada no sexo nem na linguagem do e sobre o sexo for misterioso, talvez actos como o que encerra o filme O Império dos Sentidos ou o que encerrou a vida do actor David Carradine (as referências do entretenimento são afinal úteis e variadas) constituam a única solução lógica.
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(*) Edição Dom Quixote, 2006, p. 61 e 91, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.
(**) Edição Gradiva, 2008, p. 132, tradução de Miguel Serras Pereira.