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Delito de Opinião

Sobreviventes da II Guerra Mundial

Centenários ou nonagenários, ex-combatentes que ainda estão connosco

Pedro Correia, 17.05.24

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                                                         Dick Van Dyke                                 Mel Brooks

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                                                    Ray Anthony                                             Edgar Morin

 

Alan Bergman, compositor e letrista, galardoado com quatro Emmys, três Óscares e dois Grammies - incluindo para melhor canção (The Way We Were, 1973). Veterano do exército norte-americano. 98 anos.

Charles Burrell, guitarrista de jazz, trabalhou com Billie Holiday, Charlie Parker, Duke Ellington, Lionel Hampton e Count Basie. Combateu na marinha norte-americana. 103 anos.

Dick Van Dyke, actor consagrado em filmes como Mary Poppins (1964) e Chitty Chitty Bang Bang (1968). Prestou serviço na força aérea. 98 anos.

Earl Holliman, actor norte-americano. Mentiu a respeito da idade para se inscrever na marinha durante a guerra. Participou em filmes como O Gigante, ao lado de James Dean e Elizabeth Taylor (1956). 95 anos.

Edgar Morin, antropólogo, filósofo e sociólogo, autor de livros muito influentes, como Paradigma Perdido (1973). Combateu como tenente nas forças da resistência francesa. 101 anos.

Jimmy Carter, antigo presidente norte-americano (1977-1981). Ingressou na Marinha durante a II Guerra Mundial, quando se inscreveu na Academia Naval. 99 anos.

Józef Hen, escritor e dramaturgo polaco. Membro do exército que lutou contra a Alemanha hitleriana com apoio soviético. 100 anos.

Lee Adams, letrista de teatro musicado na Broadway, vencedor do Prémio Tony pela peça Bye Bye Birdie (1961). Combateu no exército norte-americano. 99 anos.

Mel Brooks, realizador, actor e produtor norte-americano. Célebre por filmes como Frankenstein Júnior e Balbúrdia no Oeste (1974). Participou na Batalha das Ardenas. 97 anos.

Ray Anthony, trompetista e compositor, último sobrevivente da mítica banda de Glenn Miller. Serviu na marinha norte-americana durante a guerra. 102 anos.

Ray Marshall, economista, assumiu a pasta governamental do Trabalho durante o mandato presidencial de Jimmy Carter. Combateu na marinha norte-americana. 95 anos.

Robert McGinnisdesenhador e ilustrador norte-americano, autor de numerosas capas de livros e cartazes de filmes célebres como Boneca de Luxo Barbarella. Serviu na marinha. 98 anos.

Roland Dumas, político socialista francês, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros (1984-1986; 1988-1993) e ex-presidente do Tribunal Constitucional. Participou na resistência. 101 anos.

Tom Copeland, antigo presidente da Câmara dos Representantes dos EUA (1970-1971). Serviu no teatro de guerra europeu como comandante de carros de combate. 100 anos.

William Russell, actor britânico. Participou em séries televisivas muito populares no Reino Unido e em filmes como A Grande Evasão (1963) e Super-Homem (1978). Prestou serviço na Royal Air Force. 99 anos.

Meu Capitão

Pedro Correia, 25.04.24

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Fernando Salgueiro Maia fotografado por Alfredo Cunha a 25 de Abril de 1974

 

 

Um verdadeiro herói nunca se considera herói.

Cumpre o seu dever não por ser um dever

mas por urgente imperativo de consciência.

Dá o nome

a cara

o peito às balas

e se for preciso a vida

pela causa que crê ser mais justa

entre todas as causas.

 

 

Um verdadeiro herói pensa em si próprio

só depois de pensar nos outros.

Avança sem temor

com a noção exacta

de que joga tudo numa ínfima fracção de tempo:

conforto, carreira, promoções, anonimato.

Ficando a partir daí

exposto ao escárnio imbecil

de todos os cobardes

que nunca dão um passo

fora do perímetro de segurança

mas quando a poeira assenta

logo surgem muito expeditos

a julgar os outros.

A julgar aqueles como tu:

os que arriscam

os que experimentam

os que se atrevem a romper as malhas

de um quotidiano medíocre.

Os que trocam a palavra eu pela palavra nós.

Os que nunca se conformam.

 

 

Um verdadeiro herói

é aquele que deixa a sua impressão digital

nas insondáveis rotas do destino humano.

 

 

Tu ousaste mudar um país.

Não pelo sangue

não pelo ódio

não pela intriga

mas pelo gesto

pelo rasgo

pelo exemplo.

Sabendo como é ténue a fronteira

entre glória e drama

quando alguém irrompe de madrugada

pronto a desafiar os guiões da História.

 

 

Fernando Salgueiro Maia.

Foste um herói

ao comandar a patrulha da alvorada.

Voltaste a ser um herói

quando decidiste retirar-te ao pôr-do-sol

deixando outros pavonear-se sob o clarão dos holofotes.

Recusaste ficar exposto na vitrina.

Recusaste servir de bandeira.

Recusaste ser "vanguarda revolucionária".

Recusaste ser antigo combatente.

Recusaste dar pretextos para dividir.

Tu que foste um poderoso traço de união entre os portugueses

naquelas horas irrepetíveis em que tudo podia acontecer.

 

 

Saíste do palco:

aquela peça já não te dizia respeito.

 

 

E nunca a tua grandeza se revelou tão evidente

como no momento em que abandonaste a ribalta

regressando à condição de homem comum.

Indiferente a ladainhas e louvores.

Longe da multidão

que fugazmente te acenou

na mais límpida de todas as manhãs.

Sem outra medalha além desta:

eternamente graduado no posto

de capitão da liberdade.

 

Poema meu, reeditado

Lição de vida

Pedro Correia, 03.03.24

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No Monólogo do Vaqueiro, primeira peça exibida na RTP (1957)

 

«A morte é certa, não vale a pena estar a pensar nela. Vivam a vida, vivam, vivam, vivam, vivam e saibam o que fazer com a liberdade. A liberdade é uma coisa muito bonita -- e a democracia também.»

Ruy de Carvalho, anteontem, no dia em que festejou 97 anos. Em palco, como ele mais gosta. Parabéns!

O talento das mulheres

Cristina Torrão, 13.11.22

Durante muitos séculos (ou seria melhor dizer milénios?), aceitava-se, como argumento para o suposto talento superior dos homens, dizer que era só comparar os feitos de uns e outras. 99% das obras-primas (fosse em literatura, pintura, música ou nas restantes artes), das invenções, das descobertas científicas, das obras de engenharia, etc. era de autoria de homens.

Por incrível que pareça, só nos últimos anos se começou a tomar consciência de que, salvo raras excepções, as mulheres não tinham, por um lado, acesso ao conhecimento e, por outro, andavam ocupadas com outras tarefas, impeditivas de se dedicarem a actividades consideradas mais prestigiantes. Era interessante verificar a contradição: se os homens se elogiavam por serem os maiores criadores e inventores, aplaudiam, ao mesmo tempo, as primeiras mulheres a serem aceites numa Universidade. Tinham a resposta à frente da cara e não a viam. Se isto é inteligência…

A esmagadora maioria das mulheres seguia-lhes aliás os passos. Mas havia excepções, mulheres com coragem para admitir que a educação que lhes impunham desde o berço só servia o universo masculino.

A bávara Emerenz Meier (1874-1928), pertencente a uma família de lavradores, foi uma dessas mulheres. Começou a escrever sobre a sua terra-natal ainda em criança e, em 1893, foram publicados os seus primeiros contos no periódico regional Passauer Donau. Três anos mais tarde, foi publicado o seu único livro. Mas também escreveu poemas, onde, muitas vezes, se destacava um tom irónico. Em Março de 1906, emigrou para os EUA com a sua mãe, juntando-se ao pai e às irmãs, no bairro alemão de Chicago. Casou em 1907, mas o marido morreu três anos mais tarde de tuberculose, deixando-a com o filho pequeno. Emerenz Meier não deixou de ser dona-de-casa, durante toda a sua vida e, durante a Lei Seca, fazia cerveja para si e os seus compatriotas.

No Jornal Católico da diocese de Hildesheim (edição nº 33, de 21-08-2022) deparei com um seu pequeno poema de traço irónico, o qual não resisto a traduzir (segue-se o original em alemão):

 

Tivesse Goethe de engrossar sopas,

De salgar almôndegas,

Schiller de limpar a pia,

Heine de remendar o que rompia,

Esfregar o chão, matar baratas,

Ah, os cavalheiros,

Não teriam sido

Esses poetas virtuosos.

 

Hätte Goethe Suppen schmalzen,

Klöße salzen,

Schiller Pfannen waschen müssen,

Heine nähen, was er verrissen,

Stuben scheuern, Wanzen morden,

Ach die Herren,

Alle wären

Keine großen Dichter worden.

 

Emerenz Meier (1874-1928)

Os patriarcas (7)

Pedro Correia, 11.08.21

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Se há peça jornalística inspiradora e gratificante que pude ler nas últimas semanas, é uma entrevista que hoje o Público divulga dando a palavra a um genuíno sábio: António Marcos Galopim de Carvalho. Geólogo, paleontólogo, escritor, pedagogo, divulgador do conhecimento científico.

O título já diz muito, com esta declaração do entrevistado: «Puseram-me numa prateleira e eu não quis lá ficar.»

Lição de vida, portanto. Num país em que pessoas muito mais jovens que ele se acomodam, desaparecem de circulação, desistem, entram numa espécie de estado vegetativo ainda em vida. 

Parabéns à Teresa Firmino, a jornalista que assina esta bela peça - exemplo de jornalismo que cumpre a sua vocação de serviço público. O professor Galopim de Carvalho bem merece este destaque. No dia em que cumpre o seu 90.º aniversário. 

 

Transcrevo, com a devida vénia, outras frases da saborosa conversa de quatro páginas em que este ilustre eborense desfia o novelo das memórias, partilhando-as com a esposa, Maria Isabel Fialho, alentejana como ele:

«No pós-profissional, tenho uma vida bastante feliz, trabalho muito. Continuo a escrever. Estou agarrado ao Facebook e, ao computador, convivo com o mundo inteiro.»

«Agora faço lições por videoconferência, dantes fazia nas escolas presencialmente. Portanto, tenho uma vida cheia. Tenho uma cozinha boa, gosto de cozinhar.»

«Escrever é uma necessidade. Como aquelas pessoas que não podem passar sem correr. Às quatro da manhã, que é quando me levanto, acordo cheio de ideias e cheio de vontade de escrever. Se não me deixassem fazer isto, estava muito infeliz.»

«Os professores da escola pública estão desmotivados, longe da família, a pagar um quarto. São instados à mediocridade. Defendo que devia considerar-se a educação. Tem de se rever toda a política de colocação de professores. Tem de se rever o vencimento dos professores.»

«Eu só sinto a idade a entrar no táxi e a sair do táxi. Estou aqui consigo e julgo que tenho 20 anos, sinceramente. Costumo dizer que mantenho a criança que fui, o adolescente, o homem adulto e o homem idoso que sou. Mantenho isso tudo em mim. A idade está na nossa expressão do olhar, está na nossa maneira de sentir.»

«[No meu aniversário] vou fazer eu o almoço. Posso dizer-lhe o que é o almoço: é um belíssimo ensopado de borrego, como aquele que se faz no Alentejo. Os netos adoram, os filhos adoram e todos nós gostamos.»

 

Galopim de Carvalho está aposentado há 20 anos. Recebeu inúmeras manifestações de apreço e honrarias. Até tem duas escolas em seu nome - uma em Queluz, outra em Évora. Algo raro num país que só costuma prestar tributo aos mortos. «É muito agradável ter isso em vida», confessa, sem falsas modéstias. 

A verdade é que este professor que formou imensos discípulos nunca se adaptou à passividade do sofá de reformado: mantém-se um cidadão atento e activo. De certa forma, constitui um exemplo para todos nós.

Seu admirador de longa data, amigo e colega do seu filho Nuno, deste local de veraneio onde passo uns dias de férias brindo à sua saúde, Professor. Fazendo votos para que o tenhamos cá por bons e felizes anos. Todos temos a ganhar com isso.

 

 

António Galopim de Carvalho, nascido a 11 de Agosto de 1931, festeja hoje 90 anos.

So long, captain Tom

Pedro Correia, 03.02.21

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Morreu o capitão Tom Moore. Aos cem anos, após ter vencido a última batalha da sua vida.

Militar jubilado, podia ter-se mantido no conforto de casa ignorando o sofrimento alheio, indiferente aos males do mundo. Ou até engrossar as brigadas negacionistas, formadas por guerreiros de sofá.

Mas não: mal a pandemia chegou ao Reino Unido, em 2020, entendeu que ainda havia tempo para prestar um último serviço à comunidade. Na Primavera passada, angariou uma pequena fortuna aos serviços de saúde britânicos no combate à pandemia, lutando como podia: dando voltas lentamente ao jardim da sua casa, com o andarilho que lhe permitia dar um passo vagaroso após outro.

 

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Foi uma maratona muito pessoal. Começou com a intenção de reunir mil libras, mas logo cresceu graças ao impacto mediático da iniciativa. Cada volta que o velho capitão ia dando era acompanhada com carinho e emoção por milhões de britânicos, que contribuíram para o esforço financeiro. Concluídas cem voltas, Tom Moore tinha conseguido angariar 39 milhões de libras (o equivalente a 44,2 milhões de euros) no combate ao Covid-19. 

Quando completou o centenário, a 30 de Abril de 2020, atribuíram-lhe o título de coronel honorário do Reino Unido. Nesse dia recebeu 125 mil cartas e postais de parabéns: tornara-se uma celebridade num mundo tão carente de heróis.

A 17 de Julho, Isabel II distinguiu-o como cavaleiro no Castelo de Windsor. Ele compareceu trajado a rigor, com as medalhas ganhas em serviço, e um largo sorriso no rosto, prova evidente da sua jovialidade. «Se me ajoelhar [perante a Rainha] nunca mais me consigo levantar», declarou, de pulsos firmados no andarilho. 

 

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Mesmo frágil, mesmo muito idoso, mesmo caminhando com manifesta dificuldade, este veterano da II Guerra Mundial soube ser um homem inteiro até ao fim. Combatendo o coronavírus como pôde.

Fazendo muito mais do que quase todos - sem lamentos, sem lamúrias, sem choraminguices. Sem o menor vestígio de ódio.

Dando-nos a todos uma vibrante lição de vida. 

 

Vingativo e traiçoeiro, o Covid-19 atirou-o enfim para uma cama de hospital da qual o intrépido combatente já não saiu com vida: morreu ontem, após 48 horas de internamento.

Para seu epitáfio adequa-se a célebre frase que Hemingway inscreveu n' O Velho e o Mar: «Um homem pode ser destruído mas não vencido.»

So long, captain Tom. 

Sá Carneiro quarenta anos depois

Pedro Correia, 04.12.20

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Francisco Sá Carneiro desempenhou um papel histórico no actual regime: reconciliou a direita portuguesa com a democracia. Esta foi uma missão para a qual estava vocacionado, por uma espécie de sentido messiânico, e em que viria a ser bem sucedido nos dois últimos anos da sua vida, desenrolados de forma vertiginosa, numa desesperada corrida contra o tempo. O facto de ter rompido com o regime anterior ao 25 de Abril após uma fracassada tentativa de levá-lo por rumos reformistas, como viria a suceder em Espanha, conferia-lhe uma legitimidade que poucos tinham na sua área política, dados os compromissos estabelecidos com a ditadura.

O combate decisivo para a implantação da democracia no alucinado Verão quente de 1975, contra a esquerda revolucionária, fora liderado por Mário Soares, com quem Sá Carneiro sempre estabeleceu uma rivalidade que nunca viria a ser superada, apesar da cordialidade pública que exibiam. Desafiado nesta espécie de confronto íntimo com Soares, o fundador do PPD/PSD sentiu ainda mais pressa em entrar na História, o que viria a suceder. Tinha qualidades para o efeito, bem reveladas na sua singular trajectória de uma década no palco da política: visão estratégica, uma inegável capacidade de comunicação e aquele atributo tão indispensável quanto indefinível que à falta de melhor certos politólogos costumam chamar carisma.

Venceu incontáveis batalhas internas até construir um partido influente, com uma sólida base autárquica disputada quase câmara a câmara ao Partido Comunista. Teve razão desde o início ao defender a autonomia regional, o afastamento da tutela militar e o fim do virtual monopólio da economia pública no Portugal pós-25 de Abril. E superou o teste da governação, após duas maiorias conquistadas nas urnas, embora ninguém saiba até que ponto poderia vir a ser vítima dos próprios impulsos se o destino não o tivesse colocado na fatal rota de Camarate, faz agora precisamente 40 anos.

Não teve razão, com alguma frequência, quando deixava a emoção sobrepor-se à implacável lógica cartesiana. Foi, nomeadamente, o que sucedeu no seu desenfreado combate contra o Presidente Ramalho Eanes que lhe consumiu as energias nos últimos meses de vida. A derrota nas presidenciais de 1980, a que já não assistiu, confirmava que tinham razão aqueles que em vão procuraram dissuadi-lo de transformar o popular Chefe do Estado em adversário principal.

 

Foi admirado e odiado em partes iguais, o que é sina de quem nasceu para líder.

Graças a ele, a democracia portuguesa não ficou amputada.  

Ficámos todos a dever-lhe isso.

Uma lição de vida

Pedro Correia, 30.06.20

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Por vezes, no mais inesperado dos lugares, despertam inimagináveis vocações. Aconteceu com José Saramago, o que é um - entre tantos outros - aspecto memorável da sua biografia. Impossibilitado de prosseguir os estudos para além do curso profissional de serralharia mecânica na escola industrial Afonso Domingues, o jovem Saramago passava os tempos livres recolhido na biblioteca municipal de Lisboa, no Palácio Galveias, ao Campo Pequeno. Enquanto os seus parceiros de geração optavam por folguedos, bailaricos e comezainas, ele cultivava-se com esmero, persistência e determinação naquelas salas austeras que lhe propiciaram o equivalente à formação universitária que formalmente nunca chegou a ter.

O Nobel de 1998 recorda esse período num admirável prefácio escrito para o livro De Volcanas Llena: Biblioteca y Compromiso Social (Gijón, Trea, 2007). «Era um lugar em que o tempo parecia ter parado, com estantes que cobriam as paredes do chão até quase ao tecto, as mesas à espera dos leitores, que nunca eram muitos (...). Não posso recordar com exactidão quanto durou esta aventura, mas o que sei, sem sombra de dúvida, é que se não fosse aquela biblioteca antiga, escura, quase triste, eu não seria o escritor que sou. Ali começaram a escrever-se os meus livros», anotou Saramago, lembrando os dias, meses e anos ali passados.

Uma lição de vida.

Saramago e o Portugal de sempre

Pedro Correia, 18.06.20

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Vivi com José Saramago um dos momentos mais gratificantes da minha vida profissional. Aconteceu em Maio de 1981, quando o Círculo de Leitores, a propósito do lançamento da sua Viagem a Portugal, convidou um grupo de jornalistas a acompanhar o escritor numa deslocação ao interior do País em que ele próprio fez de cicerone. Foram três dias à descoberta de um Portugal que muitos de nós desconhecíamos, com etapas em locais deslumbrantes, como Sortelha, Marialva e Cidadelhe. Eu era um miúdo, ainda a dar os primeiros passos na profissão, e talvez por ser o benjamim do grupo tive mais facilidade em travar longos diálogos com o escritor. No início daquela que seria talvez a década mais feliz da sua vida, Saramago estava ainda longe do reconhecimento público de que gozou mais tarde. Estivera longos meses desempregado, na sequência do 25 de Novembro de 1975, e aplicara toda a sua férrea força de vontade na escrita. Desse labor nasceu a obra que confirmaria a sua vocação de romancista: Levantado do Chão, lançada meses antes.

Mas esses, para o futuro Nobel da Literatura, ainda eram tempos de incerteza. O êxito de Levantado do Chão não foi imediato: o romance foi maturando entre o público e só ganhou projecção à medida que se sucediam as críticas favoráveis, com semanas de intervalo. O lançamento da Viagem a Portugal ocorreu nessa altura em que conheci pessoalmente Saramago e fui testemunha directa da paixão que o escritor tinha pelo País. Aqui e ali, revoltava-se com atentados notórios à nossa memória histórica. Uma vez e outra, maravilhava-se perante jóias do nosso património natural e cultural, procurando transmitir esse deslumbramento aos seus companheiros de jornada.

 

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Publicada a reportagem no jornal onde então trabalhava, liguei ao escritor, pedindo-lhe uma entrevista. E ele acedeu de pronto. Era o tempo do balanço de Levantado do Chão, o Memorial do Convento vinha a caminho. Longe da imagem pública que transmitiu nos anos posteriores, Saramago era uma pessoa tímida, que procurava disfarçar essa característica - reflectida também numa ligeira gaguez - com um rosto fechado e até um pouco duro. Mas os seus traços fisionómicos logo se suavizavam à medida que a conversa progredia e se estabeleciam pontos de contacto com o interlocutor. Lembro-me de lhe ter dito na altura que também o apreciava como poeta: os seus Poemas Possíveis (1966), que lera pouco antes, deixaram-me uma excelente impressão. "Agradeço-lhe, mas sei que nunca serei mais do que um poeta mediano", disse-me. Não voltou a editar outro livro de poesia.

Depois dessa longa entrevista, seguiu-se outra, por ocasião do lançamento d' O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Guardo uma grata memória de uma tarde passada no seu apartamento na Rua da Esperança, em Lisboa, com a conversa a fluir para o gravador ao som das partituras de Bach e Mozart que enchiam a casa. Era já evidente, nessa altura, a consagração literária do escritor que 14 anos mais tarde se tornaria o único autor em língua portuguesa até hoje distinguido pela Academia de Estocolmo.

 

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Saí de Portugal, andei longos anos fora. Só voltei a ver José Saramago depois do Nobel, quando o escritor foi recebido no Diário de Notícias com uma estrondosa ovação dos jornalistas, por iniciativa de Mário Bettencourt Resendes, então director do jornal. Um gesto que pôs fim simbólico a uma traumática etapa da vida do centenário periódico onde Saramago, enquanto director-adjunto, escreveu alguns dos mais inflamados editoriais do Verão quente de 1975 - textos que o perseguiram durante o resto da vida.

Nunca partilhei das ideias políticas de Saramago nem apreciei um certo culto narcísico que o escritor foi alimentando nos anos imediatamente anteriores e posteriores ao Nobel, aliás bem patentes em dezenas de páginas dos seus Cadernos de Lanzarote. Alguns dos seus livros são projectos falhados, como Jangada de Pedra ou A Caverna (que deixei a meio, farto de tanto ataque primário ao "capitalismo"). Mas é incontestável o lugar na história da literatura portuguesa do homem que nos legou o Memorial do Convento, o Ensaio sobre a Cegueira e As Intermitências da Morte, notável novela-testamento em que de algum modo ironizava com o seu próprio destino físico.

Mas o meu livro preferido será sempre a Viagem a Portugal: costumo ter à mão e consulto com frequência o meu exemplar da primeira edição, com uma amável dedicatória do autor. Recordação daqueles três dias inesquecíveis e testemunho perene do amor de José Saramago pelo Portugal profundo, pelo Portugal de sempre.

 
Texto reeditado no dia do décimo aniversário da morte de José Saramago.

Uma coutada do "macho ibérico"

Pedro Correia, 20.06.18

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Curioso: em todos os órgãos de informação deparamos diariamente com copiosas e exaustivas prelecções sobre a necessidade de estabelecer mecanismos de paridade que assegurem o aumento da participação feminina na sociedade portuguesa, mas são raríssimos os media que asseguram essa participação dentro de portas.

Eis um caso evidente daquele velho princípio do São Tomás: faz o que ele diz, não faças o que ele faz.

 

Comecemos pelas televisões. Todas dirigidas por homens.

Ricardo Costa, na SIC. Sérgio Figueiredo, na TVI. Paulo Dentinho, na RTP. Octávio Ribeiro, na CMTV.

 

Nos jornais diários, vemos o mesmo Octávio Ribeiro à frente do Correio da ManhãFerreira Fernandes recém-nomeado director do Diário de NotíciasDavid Dinis encabeçando o Público,  Afonso Camões na liderança do Jornal de NotíciasMário Ramires dirigindo o i, André Veríssimo conduzindo o Jornal de Negócios.

Nos desportivos, Vítor Serpa dirige A Bola; António Magalhães, o Record; José Manuel Ribeiro, O Jogo.

Homens, apenas homens.

 

Tal como na agência Lusa, dirigida por Pedro Camacho.

 

Domínio absoluto masculino igualmente ao nível dos jornais digitais.

José Manuel Fernandes dirige o ObservadorAntónio Costa lidera o Eco, Mário Rodrigues está à frente do Notícias ao Minuto.

 

E nos semanários?

Pedro Santos Guerreiro dirige o ExpressoMário Ramires dirige o SolEduardo Dâmaso dirige a SábadoFilipe Alves dirige o Jornal EconómicoJoão Peixoto de Sousa dirige a Vida Económica.

Mas aqui encontramos a primeira excepção feminina num reduto quase apenas reservado a homens: Mafalda Anjos, directora da revista Visão.

 

Finalmente, as rádios de expansão nacional.

Quem lidera a informação radiofónica? João Paulo Baltazar na Antena 1, Arsénio Reis na TSF, Graça Franco na Rádio Renascença.

A emissora católica é assim a segunda - e última - excepção ao domínio quase absoluto do "macho ibérico" no jornalismo português.

Em 26 títulos, 24 são dirigidos por homens. Noventa e dois por cento.

 

Mas tenho a certeza de que continuaremos a ler, ver e ouvir excelentes peças em todos estes órgãos de informação denunciando inadmissíveis "discriminações de género" na sociedade portuguesa.

Girls, Fleabag, Roth, Steiner e sexo

José António Abreu, 20.02.17

Há uns anos, ao ver os primeiros episódios da série Girls (tão recente e já tão imitada que até fica difícil recordar quão inovadora foi),  lembrei-me de O Animal Moribundo, de Philip Roth. A certa altura, o professor David Kepesh afirma:

Enquanto cresci, o homem não era emancipado no reino sexual. Era um homem de segunda apanha. Era um ladrão no reino sexual. Surripiávamos uma apalpadela. Roubávamos sexo. Adulávamos, suplicávamos, lisonjeávamos, insistíamos - todo o sexo exigia luta, tinha que ser disputado aos valores, senão à vontade da rapariga.

Mais tarde, referindo-se à actualidade (de 2001), acrescenta:

Aparecem antigas namoradas de há vinte e trinta anos. Algumas já se divorciaram numerosas vezes e outras têm andado tão ocupadas a afirmarem-se profissionalmente que nem tiveram a oportunidade de casar. As que ainda estão sós telefonam-me para se queixarem daqueles com quem se encontram. Os encontros são detestáveis, os relacionamentos são impossíveis, o sexo é um risco. Os homens são narcisistas, não têm sentido de humor, são doidos, obsessivos, autoritários, grosseiros, ou então são muito bem-parecidos, viris e cruelmente infiéis, efeminados, ou são impotentes, ou são simplesmente demasiado estúpidos. (*)

 

A abordagem da revolução sexual ocorrida na década de 1960 é quase sempre feita partindo da perspectiva feminina. Antes de qualquer outra análise, salienta-se o modo como a pílula e a evolução dos costumes libertaram as mulheres para o sexo sem (demasiados) receios. Mas a liberdade feminina também representou o fim da submissão masculina a qualquer tipo de compromisso. O facto de, ao longo das últimas décadas, as mulheres terem exigido e obtido não apenas o mesmo estatuto no que respeita ao sexo, mas poder total sobre os seus corpos - incluindo o de terminar gravidezes indesejadas - foi extraordinariamente libertador para os homens. O esforço de cortejar, apoiar, assumir responsabilidades tornou-se-lhes opcional, em especial quando favorecidos pelo sorteio genético (i.e., quando atraentes). Nem sequer as regras do politicamente correcto - em muitos sentidos, a prisão dos tempos actuais - os forçam ao que quer que seja: adquirida a igualdade, as mulheres perderam o direito a queixarem-se de terem sido iludidas. Durante séculos, no mundo «civilizado», os homens viram-se obrigados a conjugar instintos e convenções sociais. Agora, estão livres para dar largas ao egoísmo. Às acusações de insensibilidade, podem responder que se limitam a «dar espaço» às mulheres; que estão a «respeitar» a «autonomia» delas.

 

Nos primeiros tempos de Girls, esta realidade saltava à vista. Hannah desesperava com a passividade de Adam. Para ele, a relação apenas parecia existir enquanto decorria o acto sexual. Em todos os outros momentos, Hannah sentia-se esquecida: ele não telefonava, não respondia às mensagens, demonstrava indiferença quando a encontrava. Fleabag, uma série de 2016 produzida pela BBC e pela Amazon, escrita e interpretada por Phoebe Waller-Bridge, atinge um novo extremo. Apresenta uma mulher que parece vogar entre relações sexuais sem significado (mas não sem consequências), nas quais se submete (sem ser explicitamente forçada) a actos que tem dificuldade em racionalizar. Tudo estaria bem se não as usasse como forma de evitar enfrentar o vazio e a infelicidade que a dominam. Fleabag vai tão longe que se permite incluir um indivíduo nada atraente e bastante irritante no séquito de homens que não têm qualquer dificuldade em ir para a cama com ela.

 

 

Sejamos francos: nas últimas décadas, o sexo tornou-se um produto de consumo como qualquer outro; mais uma forma semidescartável de sentir algo, totalmente desligada de sentimentos profundos. Em 1975, Woody Allen afirmava: «O amor é a resposta, mas enquanto se espera pela resposta, o sexo coloca perguntas interessantes.» A resposta continuará a mesma, mas as perguntas parecem ter vindo a perder interesse. Se a consequência óbvia de tanto desejo de independência (por parte das mulheres como por parte dos homens) é a solidão, a consequência óbvia de tanto sexo (real, imaginado, visualizado em ecrãs e na rua) só pode ser a banalização do acto e dos termos que se lhe referem. Em Os Livros que Não Escrevi, George Steiner dedica um capítulo à linguagem do erotismo. Considera-a - como ao próprio acto - cada vez menos subtil, mais baseada nos códigos instituídos pelo cinema, pela televisão, pela publicidade. Escreve ainda: Será fascinante descobrir os novos factores de complexidade e os contributos enriquecedores que poderão vir das correntes feministas. Produziram já uma poesia poderosa e uma prosa acusadora. Poderá a sua política da sensibilidade ser causa de novas orientações e de uma criatividade nova nos dialectos do amor? Até ao momento, os indícios nesse sentido são marginais. O que parece prevalecer entre as mulheres emancipadas é a adaptação, quase desdenhosa, do que eram a obscenidade e a licenciosidade clandestina do discurso masculino.(**)

Talvez não apenas do discurso. Talvez de todo o comportamento. Sexualmente, as mulheres parecem-se cada vez mais com os homens. Mas isso - a acreditar em exemplos como Girls e Fleabag, eles próprios, será conveniente ressalvá-lo, provenientes da cultura cinematográfica e televisiva - não parece torná-las felizes. À liberdade, que neste campo tende a equivaler a quantidade, contrapõe-se a estandardização (nada é novo, pouco permanece tabu), e o novo poder masculino: um egoísmo assumido, que a igualdade torna inatacável.

Sobra a desilusão. Ou a busca de uma «novidade» cada vez mais extrema. Para mulheres, como para inúmeros homens, quando nada no sexo nem na linguagem do e sobre o sexo for misterioso, talvez actos como o que encerra o filme O Império dos Sentidos ou o que encerrou a vida do actor David Carradine (as referências do entretenimento são afinal úteis e variadas) constituam a única solução lógica.


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(*) Edição Dom Quixote, 2006, p. 61 e 91, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.

(**) Edição Gradiva, 2008, p. 132, tradução de Miguel Serras Pereira.

O ponto em que as boas intenções passam o limiar do bom senso

José António Abreu, 01.12.16

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Numa parede do Porto.

 

Na série britânica Love, Nina, adaptação de Nick Hornby de um livro de memórias de Nina Stibbe, há um momento em que alguém pinta desenhos obscenos nos passeios do bairro onde decorre a acção. Várias personagens reúnem-se em torno de um deles e debatem identidade e possíveis motivações do autor. George, a editora literária a que Helena Bonham Carter dá corpo, defende que, obviamente, terá sido um homem, porque as mulheres não andam por aí a fazer desenhos no pavimento; pelo menos, acrescenta, não em número estatisticamente relevante.

Olho para a frase acima e pergunto-me se George estaria certa - e, nesse caso, que diabo se passa na cabeça de um homem capaz de a escrever.

Claro que Love, Nina decorre no início da década de 1980. Talvez hoje em dia mais mulheres pintem coisas no chão e nas paredes. Não daria um grande sinal do rumo da evolução feminina (há actos tipicamente masculinos que, podendo remeter para instintos antigos de marcação do território, são hoje apenas estúpidos) nem faria com que esta mensagem ficasse aceitável, mas sempre a tornaria um pouco menos ilógica.

Meia-idade

José António Abreu, 11.03.16

No que me diz respeito, chegar perto dos cinquenta e começar a apreciar raparigas com idade para serem minhas filhas gera uma perturbação não mais do que ligeira. Pior é perceber que algumas delas são filhas de amigas e/ou colegas que fizeram - e, em muitos casos, ainda fazem - parte das minhas fantasias.

Confirma-se: Eva não foi criada a partir de uma costela de Adão

Rui Rocha, 13.08.15

Quer dizer então que estavam mesmo convencidos que Deus criou Eva a partir de uma costela de Adão? Ihihih! Onde é que já se viu? Desculpem lá, mas quem é que acredita numa história dessas? Duma costela... Ele há com cada um. Crendices é o que é! Mas pronto. O que importa agora é que fiquem informados sobre o que realmente aconteceu.