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Delito de Opinião

De quem viu muito sem se cansar da vida

Pedro Correia, 01.12.23

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Terça-feira, 28 de Novembro, no auditório 2 da Fundação Gulbenkian

 

Fui apanhado de surpresa quando Francisco Seixas da Costa mencionou o meu nome - na excelente companhia do Francisco José Viegas - no auditório 2 da Fundação Gulbenkian, terça-feira passada, ao fim de um dia muito chuvoso em Lisboa. 

A intempérie não desmobilizou os amigos e admiradores do nosso antigo embaixador em Paris e Brasília, agora livre dos deveres da profissão que exerceu durante décadas e que o levou do melhor (o atribulado mas bem sucedido processo que conduziu à independência de Timor-Leste e a etapa final da nossa integração no sistema monetário europeu) ao pior (a invasão do Iraque, sem mandato internacional nem evidências que a suportassem no terreno, decidida pelo poder político da altura, ao qual as nossas legações diplomáticas estavam vinculadas). 

Seixas da Costa fez alusão sumária a tudo isto na mensagem que nos deixou nesta concorrida sessão onde revi amigos e conhecidos, entre os mais de 300 que lá estávamos. Naquele estilo que lhe conhecemos das intervenções televisivas e lhe ficou da carreira diplomática: sabe ser acutilante sem perder a elegância. Estilo que me lembra, ao nível da escrita, a prosa de Graham Greene, de que tanto gosto.

Jaime Nogueira Pinto, um dos apresentadores da obra, tentou convencê-lo durante anos a escrever um romance. Será menos difícil do que parece, como o próprio Jaime demonstrou ao publicar Novembro - para mim, como já lhe disse, um dos dez melhores romances portugueses deste século XXI. Mas o embaixador é categórico: não nasceu para romancista. É mais um cronista, como sublinhou o Ferreira Fernandes, que também tive o gosto de reencontrar. E ele sabe do que fala, pois é um dos nossos melhores cronistas. Disciplina nobre da literatura, digam as sumidades académicas o que disserem.

 

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À minha modesta escala, terei dado também algum contributo para que Antes que me Esqueça (D. Quixote, 685 páginas) visse a luz do dia. Insisti com Seixas da Costa, em conversa e por escrito, para que transformasse o seu registo memorialístico de blogue em livro. No fundo, o romance da sua vida - designadamente a vida profissional, que tantas vezes vimos retratada na ficção mas da qual na realidade acabamos por saber tão pouco. 

É o que mais me fascina nesta obra, que agora releio pois recolhe textos originalmente publicados no blogue Duas ou Três Coisas. Releitura com idêntico prazer ao da primeira visita. Pelo tema inesgotável - são aqui recordados saborosíssimos episódios ligados à carreira diplomática e aos diversos palcos internacionais que o autor foi percorrendo, sem renegar as raízes transmontanas. Ser embaixador é um pouco isto, como também foi sublinhado na Gulbenkian: súmula de histórias fascinantes. Cada uma, bem desenvolvida, daria conto ou novela.

Mas, confesso, prefiro este formato. Não há necessidade de seguir linha cronológica: podemos abrir Antes que me Esqueça e deixar-nos prender por qualquer texto em qualquer página. Excelente título, devo sublinhar - um dos melhores que tenho encontrado. Poderia ter subtítulo de matriz queirosiana: "Cenas da Vida Diplomática".

Com a prosa de sempre: límpida, escorreita, sem uma palavra a mais. De quem viu muito sem nunca se cansar da vida e exerce com notório agrado o dom da narrativa. Transmitindo ao leitor este dom, que tantos supõem ter mas está ao alcance de poucos. Seixas da Costa merece parabéns: é um destes eleitos. 

Hoje é dia de

Maria Dulce Fernandes, 20.03.23

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A 20 de Março celebra-se A Chegada da Primavera

«A Primavera começa hoje, oficialmente, em Portugal. Noutros anos, só tem início a 21 de Março.

Os ponteiros do relógio irão ser adiantados no último domingo deste mês, quando entraremos no chamado horário de Verão, que irá prolongar-se até final de Outubro.

O equinócio da Primavera ocorre quando o Sol cruza o plano do equador celeste (a linha do equador terrestre que é projectada na esfera celeste). Acontece em Março no hemisfério em que nos encontramos. No hemisfério sul, o equinócio da Primavera acontece em Setembro, quando entramos no Outono.

 

Tenho saudades da Primavera tal como a conheci na minha meninice. Muitas andorinhas e outros passarinhos, um sol tímido que depois de almoçar irradiava um calorzinho bom, os cheiros eram mágicos por todo o lado, e acreditem, o verde tem cheiro, e o aroma a flores e a verde era inebriante. Sentávamo-nos a bordar à sombra de um caramanchão de farta folhagem, lanchávamos a merenda, jogávamos às escondidas e à apanhada e contávamos a alegria das cores primaveris. O regresso a casa era alegre, saltitante e chilreante como a própria Primavera.

 

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Este é O Dia Internacional da Felicidade

«Haver um Dia Internacional da Felicidade pode soar um pouco infantil para os não iniciados. Mas a verdade é que nesta data não há apenas sorrisos e boas vibrações.

Comemoramos o Dia Internacional da Felicidade graças ao trabalho realizado pela ONU e à sua organização não-governamental Acção Pela Felicidade, composta por pessoas de 160 países. Este movimento visa espalhar a consciência de que o progresso não é só aumentar os resultados financeiros, mas também o bem-estar e a felicidade humana.

Em 2011, a Assembleia Geral da ONU adoptou uma resolução que assumiu como “objectivo humano fundamental” dar tanta prioridade à felicidade como às metas económicas. 

Enquanto escutamos, por exemplo,  "Happy", de Pharrell Williams, guardemos um minuto neste 20 de Março para considerar o que realmente nos faz felizes e como poderemos consegui-lo.»

 

O que é a felicidade? É amor, é saúde, é alegria e é conforto. Em podendo ser feliz assim e em podendo ajudar a tornar feliz quem nos rodeia e quem necessita, somos ricos de felicidade.

 

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Hoje é O Dia Internacional de Contar Histórias 

«Quer a história tenha palavras, imagens, sinais ou expressões, todas as formas de contar histórias são ainda mais apreciadas neste dia. 

As pinturas rupestres confirmam que já os nossos mais remotos antepassados aprenderam a desenvolver a arte de narrar histórias, o que se foi acentuando à medida que as gerações se sucediam.

Cada género de narrativa tem um lugar específico na vida de qualquer de nós.

Este Dia Internacional de Contar Histórias partiu de uma iniciativa sueca, em 1991. A tendência ganhou ritmo e rapidamente se expandiu a nível internacional.

O Dia Internacional de Contar Histórias é um pretexto adicional para lermos ou contarmos as nossas histórias favoritas.»

 

O que eu gosto de contar histórias! Narrei incontáveis livros ao meu irmão mais novo, alguns deles com a batota apressada da adolescente que quer fazer coisas, muitas coisas, sem saber bem o quê. Li muitas histórias às minhas filhas, sempre as minhas favoritas, as tradicionais e incontornáveis, as clássicas, aquelas histórias cujo final feliz puxava sempre uma lágrima emotiva e um suspiro de satisfação. Leio histórias aos meus netos. Leio as clássicas, que já não lhes dizem muito. A locução sem imagens foi destruída pelo audiovisual.  E agora as histórias são outras, diferentes e iguais. É assim a paridade. Mas não desisto nem nunca irei de contar a nossa história, rica e plena de peripécias e essa ouvem sempre com atenção.

(Imagens Google)

A Lena do bibe encarnado

Marta Spínola, 04.01.17

No João de Deus, onde andei dos 3 aos 10 anos (para sempre na minha cabeça, ou "pela vida fora João de Deus"), a referência para anos diferentes é a cor do bibe. Quem lá andou ou anda, orienta-se assim -"estávamos no bibe castanho", "em que bibe andas?", "Qual é o teu bibe este ano?", é uma coisa que nos fica, lá  está, pela vida fora. 

A Lena do bibe encarnado era uma das educadoras da altura em que eu estava no dito bibe (o dos 4 anos). Não era a minha, mas acompanhava os almoços, ficava connosco em alguns recreios, e por isso havia contacto. 

Eu tinha medo da Lena. A memória que tenho é de uma senhora um pouco ríspida, apesar de me lembrar de a ver sorrir - um sorriso de lado, só com um canto da boca -, de poucas palavras connosco. Tive um episódio com ela que me ficou sempre: uma vez, ao almoço, pus de parte o bocadinho mais apetitoso do peixe (quem nunca?) para ser o último. Aquele estava mesmo bom para ser o último a saborear. A Lena, que estava na supervisão dos almoços, apareceu por trás de mim, pegou no meu garfo, e misturou o peixe todo, enquanto dizia "o peixinho é para comer todo!". E eu chocadissima, mas em silêncio, que nem me atrevia a responder a adultos, muito menos aos que me metiam medo. Lembro-me que o meu pensamento imediato foi: "Nãoooooo! Eu não sou aqueles meninos que não gostam de peixe!".  E não era. 

A Lena tinha um dom: contava histórias como ninguém. Naqueles intervalos em que não podíamos ir brincar para o jardim, e ficávamos no salão, contava-nos histórias. Era uma narradora nata, tinha o tom certo, a entoação perfeita, fazia cada personagem sem grandes teatros mas de uma forma que eu, ainda sem saber ler, os vivia como os dos livros que li mais tarde. Contava-nos histórias, e eu ficava presa em cada palavra até ao fim.

Ouvi "A guardadora de patos", "A princesa e o sal", entre outras, muitas vezes. A que me marcou mais, tanto que nem a versão Disney a suplantou, foi "A Bela e o monstro". A Lena contava-a tão bem, que eu via a fera (não sei se ela não lhe chamaria fera) nas suas torres, serpenteando e perdendo a pele no fim da história. Ontem vi uma rosa numa cúpula de vidro, anunciando a nova versão de "A Bela e o monstro", e mais uma vez me lembrei da Lena e os recreios em dias de chuva, a ouvir histórias.  

Nos bibes que se seguiram, gostava sempre de tudo, mas tinha pena de já não fazer parte daqueles intervalos de histórias de encantar - ficaram sempre no bibe encarnado. Era encantada que eu ficava, juro.

A tal história de reis

Marta Spínola, 19.03.13

A propósito deste post do Pedro, lembrei-me de um episódio a que assisti numa aula na universidade. 

O meu curso, ainda que por acabar, é História. Tenho para mim que se há coisa simples em História é perceber que se um Afonso é II ou III é porque antes dele houve um ou dois. E sempre achei que não era preciso explicar isto a uma criança. Mal sabia eu...

 

Estava no quarto ano, numa aula do terceiro porque tinha de fazer ainda História Moderna Geral desse ano. Era a aula das 8 da manhã, aquela não era a minha turma, tudo me aborrecia, e eu sentava-me logo na primeira fila para tirar apontamentos e nem me distrair. 

O professor falava nessa manhã sobre a sucessão de Carlos VIII, "que não tendo descendência masculina directa, foi então sucedido pelo primo Luis XII". Apontamento tiradinho, pronta para continuar.

Alice não, a Alice quis saber, quis indagar, estranhou e avançou: "Pode repetir?" e o professor, paciente, simpático, repetiu: "como Carlos VIII não tinha descendência masculina directa, quem lhe sucedeu foi primo, Luis XII, o parente mais próximo". Mas a estranheza da Alice estava noutra questão, e não  hesitou, juro que ainda a vejo encostar a caneta ao lábio antes de atirar: "Mas isso não faz muito sentido, pois não? Devia ser Luis IX." (a numeração romana é minha, ela pensou em "9º", tenho essa convicção). 

Calvin Coolidge e as galinhas

Pedro Correia, 21.10.12

 

Há muitas histórias – reais ou apócrifas – relacionadas com ex-presidentes dos Estados Unidos. A minha preferida tem a ver com aquele que foi um dos mais obscuros e porventura menos competentes inquilinos da Casa Branca ao longo de todo o século XX: o republicano Calvin Coolidge, que ocupou a presidência entre 1923 e 1929.

 

Ia certa vez Coolidge em visita a umas propriedades rurais, acompanhado da mulher, Grace, quando ao passarem por um galinheiro a senhora Coolidge perguntou ao proprietário quantas vezes o vistoso galo que ali se encontrava praticava sexo com as galinhas. “Dezenas de vezes, minha senhora”, respondeu-lhe o sujeito, porventura algo embaraçado com aquela súbita curiosidade feminina. “Faça o favor de informar o meu marido”, retorquiu-lhe a primeira dama.

 

Coolidge não se ficou. Tinha também uma pergunta destinada ao agricultor: “E o galo faz sempre isso com a mesma galinha?” Resposta imediata do sujeito: “Oh, não. Ele escolhe sempre uma galinha diferente.” Coolidge rematou então: “Faça o favor de informar a minha mulher.”

 

Ignoro se isto alguma vez aconteceu, mas passou à posteridade como se tivesse acontecido, o que para o caso vem a dar no mesmo. Como dizia aquela personagem do filme de John Ford, “quando a lenda se torna facto, imprime-se a lenda.”

 

Imagem: Calvin e Grace Coolidge numa varanda da Casa Branca

 

Perguntas de Algibeira, #1

Ana Cláudia Vicente, 15.10.12

 [Filipe Duarte e Maria João Bastos, adaptação televisiva de Equador, 2008]

 

O que é que possui alguns profissionais da escrita portugueses que os leva a conceber recorrentemente personagens femininas como, por exemplo, Ann Jameson (vide Equador, Miguel Sousa Tavares) ou Clarissa Warren (vide Linhas de Wellington, Carlos Saboga)? De onde vêm estas jovens, sempre britânicas e de boas famílias, que em pleno séc. XIX se dão bíblica e alegremente a protagonistas nacionais, entre vários outros personagens (para desgosto dos anteriores), como se estivessem a passar o Verão de 1982 na Praia da Rocha? 

 

 [Marcello Urgeghe e Victória Guerra, Linhas de Wellington, 2012]

baixinho

Patrícia Reis, 07.04.12

Tudo pode ser dito baixinho. Se pensares bem até os gestos têm um som e este pode ser baixinho.

 

A mãe nunca aprovara, mas agora pouco importa, nunca foi capaz de fazer nada baixinho, de dizer ou pensar e não seria, decerto, agora que iria começar nessa árdua tarefa de não perturbar o mundo, de ser como os demais.

 

As pessoas.

 

Dizia a mãe. E ela que sim. A mala da escola cheia de cadernos com poemas, frases.

 

Olha como andas vestida.

 

E ela a experimentar vestidos leves, soltos, de verão, com cor, a ser outra pessoa. A mãe a dizer que o irmão podia, ela era rapariga, era diferente.

 

Baixinho.

 

Não. Ela nunca fizera nada do que lhe tinham dito e isso, era agora óbvio, baralhava e perturbava a paz comum. Ou talvez não. Agora a família dependia dela e, não querendo reduzir nada, nem tirar o som a qualquer palavra, a mulher limitou-se a aceitar a tarefa sem deixar de dizer exactamente o que pensava sobre o assunto, qualquer assunto. Mesmo que as pessoas. Ou que fosse mal visto. Mesmo não sendo homem. Vestindo todos os vestidos que bem entende. De preferência sem soutien. E a mãe a dizer

 

Não tens nenhum soutien lavado? Parece impossível.

 

Ou outro disparate qualquer já que "parece impossível" sempre lhe soou mal.

Uma notícia também exige adjectivos

Pedro Correia, 21.10.10

 

Durante anos, ouvimos repetir a ladainha: a escrita jornalística, de carácter noticioso, deve estar totalmente despojada de adjectivos. Esta defesa intransigente de uma prosa jornalística “pura", sem qualificativos, sob a inspiração da clássica escrita de agência noticiosa norte-americana, cede na prática à imposição dos factos. Uma prosa despida de adjectivos, ao contrário do que indicavam as regras clássicas, acaba por ser muitas vezes a negação do verdadeiro espírito jornalístico, que resulta de uma estreita cumplicidade entre o autor da peça e o leitor.

Querem uma prova? Veio na primeira página do passado dia 12 num dos jornais mais clássicos do planeta: o Times, de Londres. O texto da manchete, dedicada à odisseia dos mineiros chilenos, arrancou com este parágrafo: “After 69 agonising days, the dramatic rescue of 33 miners trapped far beneath Chile’s Atacama desert was finally ser to get underway last night.”

Reparem: dois adjectivos em quatro linhas deste curto texto. Que ficaria muito mais pobre sem os termos “dramático” e “agonizante”. O jornalismo não deve recear o adjectivo justo, claro, preciso, envolvente, apaixonante e apaixonado. Como esta destacada notícia do Times bem demonstra.

E como evitar a utilização de termos valorativos na narração desta história - uma das mais marcantes não só do ano mas também da década? Tudo está bem quando acaba bem. De respiração suspensa, o mundo acompanhou a inédita operação de resgate dos mineiros chilenos, que contou com o incentivo permanente do Presidente da República, Sebastián Piñera. Uma situação limite, que em circunstâncias normais conduziria à morte dos 33 trabalhadores encurralados a 700 metros de profundidade. Mais de dois meses depois do acidente que os deixou enclausurados numa mina de cobre, os 32 chilenos e o seu companheiro boliviano voltaram enfim a ver a luz do dia. Em ambiente de mobilização colectiva, numa altura da história do mundo tão marcada pelo individualismo galopante, em ambiente de solidariedade, numa fase em que os egoísmos nacionais pontificam, estes heróis dos nossos dias regressaram à superfície reconduzindo-nos de algum modo ao imaginário de Júlio Verne: a viagem ao centro da Terra é a última utopia possível neste planeta. Uma utopia que, numa escala limitada, estes homens concretizaram com sucesso. Inesquecível foi o momento em que o último mineiro, Luis Urzúa, cantou o hino nacional chileno abraçado a Piñera. Sem distinções sociais ou políticas de qualquer espécie – naquele minuto, eram apenas dois seres humanos partilhando um irrepetível instante de alegría.

Foi um dos momentos mais marcantes de um ano que já tinha sido tragicamente assinalado, a 27 de Fevereiro, por um brutal sismo no Chile. País mártir. País de esperança também. Um exemplo para a humanidade inteira.

Como escrever uma notícia destas sem adjectivos?

Antes Wittengstein que tal sorte

Pedro Correia, 27.06.10

 

Fernando Henrique Cardoso foi um excelente presidente do Brasil. Mas é um dos mais entediantes sociólogos da língua portuguesa, como está bem patente no seu livro Perspectivas para uma Análise Integrada do Desenvolvimento – um título que já diz quase tudo sobre a capacidade de atracção da sua escrita.

Millôr Fernandes pegou nesta obra de 323 páginas e de lá extraiu este excerto tão esclarecedor (aviso desde já que convém tomar balanço antes de começar a ler): “Em síntese, reconhecendo a especificidade das distintas formas de comportamento, a análise sociológica trata de explicar os aparentes ‘desvios’, através da determinação das características estruturais das sociedades subdesenvolvidas e mediante um trabalho de interpretação. Não é exagerado afirmar que é necessário todo um esforço novo de análise a fim de redefinir o sentido e as funções que as classes sociais têm no contexto estrutural da situação de subdesenvolvimento e as alianças que elas estabelecem para sustentar uma estrutura de poder e gerar a dinâmica social e económica.”
De fazer perder o fôlego a qualquer um.
Millôr, humorista consumado, compara a prosa de Fernando Henrique Cardoso com a de Ludwig Wittgenstein, autor do Tractatus Logico-Philosophicus, de que Bertrand Russell certa vez disse: “Não entendi nada. Mas é genial.” Pois Millôr, na sua coluna da revista Veja, chega à conclusão que o austríaco que revolucionou a filosofia do século XX – “a que FHC chama de século vindouro” – produziu textos bem mais acessíveis do que o do ex-presidente brasileiro. E fornece um exemplo, extraído precisamente do Tractatus Logico-Philosophicus: “O sentido total do livro pode ser sintetizado nas seguintes palavras. O que pode ser dito pode ser dito claramente e aquilo sobre o que não podemos falar devemos passar por cima, silenciar.”
De regresso à prosa de Fernando Henrique Cardoso, segue nova peça de artilharia apta a fulminar qualquer leitor: “As duas dimensões do sistema económico, nos países em processo de desenvolvimento, a interna e a externa, expressam-se no plano social, onde adoptam uma estrutura que se organiza e funciona em termos de uma dupla conexão: segundo as pressões e vinculações externas e segundo o condicionamento dos factores internos que incidam sobre a estratificação social.”
Mais excertos de Perspectivas para uma Análise Integrada do Desenvolvimento? Antes Wittgenstein que tal sorte.
 
Imagem: Ludwig Wittgenstein (1889-1951)

O fotógrafo estava lá

Pedro Correia, 25.06.10

 

Esta foto de Alfred Eisenstaedt tornou-se um ícone do século XX. Foi captada no dia 14 de Agosto de 1945, em Nova Iorque, quando largos milhares de pessoas acorreram a Times Square para festejar o fim da II Guerra Mundial. Entre a multidão, estava uma enfermeira chamada Edith Shain, de 27 anos, e um jovem marujo de quem nunca se conheceu o nome. Por um capricho do destino, o militar decidiu dar um beijo arrebatado à enfermeira. Não se conheciam, não sabiam nada um do outro. Após aquele impulso, ele largou-a e perdeu-se na multidão. Ela nunca soube quem ele era, ninguém jamais conseguiu identificá-lo. A própria Edith só no final da década de 70 assumiu ser ela a mulher do retrato.

Mas o fotógrafo estava lá. O instantâneo de Eisenstaedt, publicado na revista Life, deu a volta ao mundo. Tornou-se um símbolo de uma era - e uma mensagem de paz destinada a todas as gerações. Edith regressou à Times Square, para outras fotos, que reproduziam aquela imagem iconográfica de há 65 anos. A última vez foi em 2008. "A felicidade era indescritível", recordou então a antiga enfermeira, regressando àqueles dias felizes que se sucederam à vitória norte-americana sobre os japoneses no Pacífico. E quanto ao beijo? "Foi muito demorado."

Edith Shain acaba de falecer, aos 91 anos. Mas a imagem que inesperadamente a imortalizou viverá para sempre. Por constituir uma prova irrefutável de optimismo, para além de todos os escombros provocados por todas as guerras. Há sempre um amanhã.

Polónia: outra partida do destino

Pedro Correia, 11.04.10

 

Há uma ironia trágica na morte do Presidente polaco a bordo do avião que se despenhou em solo russo. Até parece que a História persiste em pregar contínuas partidas de mau gosto a um povo que conheceu na pele toda a dimensão do mal no século XX.

Vítima de dois totalitarismos cúmplices, que a retalharam no mapa antes de a dividirem no terreno com a brutal invasão de 1939, a Polónia tem sérias razões de ressentimento histórico. Foi o primeiro alvo sangrento dos blindados de Hitler, que concebia o solo polaco como um vasto prolongamento natural da Alemanha. E foi também vítima de Estaline, que na hora do levantamento de Varsóvia, em 1944, mandou estacionar os seus soldados a poucos quilómetros da capital polaca, deixando massacrar os resistentes que se erguiam numa luta heróica mas desigual contra os nazis já em debandada. Os resistentes suplicavam por armas, e Churchill estava disposto a enviá-las através de uma ponte aérea, mas Estaline negou autorização aos aviões de Londres para atravessarem o espaço aéreo soviético, condição essencial para concretizarem o seu objectivo: milhares de polacos desarmados foram assim condenados à morte.

Quatro anos antes, o ditador de Moscovo mandara liquidar a elite militar da Polónia num bosque cujo nome passou desde então a ser sinónimo de ignomínia: Katyn. Era para lá que pretendia dirigir-se Lech Kaczynski, selando de vez o contencioso histórico com a Rússia, no seu trágico voo em direcção à morte. Como se o destino caprichasse, uma vez mais, em pregar uma partida de mau gosto à pátria de Copérnico e Chopin. Como se um círculo macabro se fechasse, unindo de algum modo o massacre de 1940 ao brutal acidente de aviação que ontem deixou a Polónia de luto.

 

 

Publicado hoje no DN