De quem viu muito sem se cansar da vida
Terça-feira, 28 de Novembro, no auditório 2 da Fundação Gulbenkian
Fui apanhado de surpresa quando Francisco Seixas da Costa mencionou o meu nome - na excelente companhia do Francisco José Viegas - no auditório 2 da Fundação Gulbenkian, terça-feira passada, ao fim de um dia muito chuvoso em Lisboa.
A intempérie não desmobilizou os amigos e admiradores do nosso antigo embaixador em Paris e Brasília, agora livre dos deveres da profissão que exerceu durante décadas e que o levou do melhor (o atribulado mas bem sucedido processo que conduziu à independência de Timor-Leste e a etapa final da nossa integração no sistema monetário europeu) ao pior (a invasão do Iraque, sem mandato internacional nem evidências que a suportassem no terreno, decidida pelo poder político da altura, ao qual as nossas legações diplomáticas estavam vinculadas).
Seixas da Costa fez alusão sumária a tudo isto na mensagem que nos deixou nesta concorrida sessão onde revi amigos e conhecidos, entre os mais de 300 que lá estávamos. Naquele estilo que lhe conhecemos das intervenções televisivas e lhe ficou da carreira diplomática: sabe ser acutilante sem perder a elegância. Estilo que me lembra, ao nível da escrita, a prosa de Graham Greene, de que tanto gosto.
Jaime Nogueira Pinto, um dos apresentadores da obra, tentou convencê-lo durante anos a escrever um romance. Será menos difícil do que parece, como o próprio Jaime demonstrou ao publicar Novembro - para mim, como já lhe disse, um dos dez melhores romances portugueses deste século XXI. Mas o embaixador é categórico: não nasceu para romancista. É mais um cronista, como sublinhou o Ferreira Fernandes, que também tive o gosto de reencontrar. E ele sabe do que fala, pois é um dos nossos melhores cronistas. Disciplina nobre da literatura, digam as sumidades académicas o que disserem.
À minha modesta escala, terei dado também algum contributo para que Antes que me Esqueça (D. Quixote, 685 páginas) visse a luz do dia. Insisti com Seixas da Costa, em conversa e por escrito, para que transformasse o seu registo memorialístico de blogue em livro. No fundo, o romance da sua vida - designadamente a vida profissional, que tantas vezes vimos retratada na ficção mas da qual na realidade acabamos por saber tão pouco.
É o que mais me fascina nesta obra, que agora releio pois recolhe textos originalmente publicados no blogue Duas ou Três Coisas. Releitura com idêntico prazer ao da primeira visita. Pelo tema inesgotável - são aqui recordados saborosíssimos episódios ligados à carreira diplomática e aos diversos palcos internacionais que o autor foi percorrendo, sem renegar as raízes transmontanas. Ser embaixador é um pouco isto, como também foi sublinhado na Gulbenkian: súmula de histórias fascinantes. Cada uma, bem desenvolvida, daria conto ou novela.
Mas, confesso, prefiro este formato. Não há necessidade de seguir linha cronológica: podemos abrir Antes que me Esqueça e deixar-nos prender por qualquer texto em qualquer página. Excelente título, devo sublinhar - um dos melhores que tenho encontrado. Poderia ter subtítulo de matriz queirosiana: "Cenas da Vida Diplomática".
Com a prosa de sempre: límpida, escorreita, sem uma palavra a mais. De quem viu muito sem nunca se cansar da vida e exerce com notório agrado o dom da narrativa. Transmitindo ao leitor este dom, que tantos supõem ter mas está ao alcance de poucos. Seixas da Costa merece parabéns: é um destes eleitos.