A tragédia espanhola
Dias de confusão
Era sábado, 18 de Julho de 1936, há 80 anos. As notícias, ainda confusas, começaram a surgir através das agências, indicando que decorria uma sublevação das tropas espanholas em Marrocos. Os jornais levaram vários dias a compreender o que verdadeiramente se passava. Começou assim, pelo menos do ponto de vista da opinião pública portuguesa, uma das mais brutais guerras civis europeias, que duraria três anos. A república espanhola já esperava um golpe das direitas, essa foi mesmo a notícia principal do Diário de Lisboa no dia 16. Era uma questão de tempo antes de haver uma rebelião, mas ninguém se prepara para um conflito prolongado e a guerra civil só foi possível porque o golpe falhou e, de súbito, a Espanha estava dividida em duas zonas, com dois exércitos (enfim, eram três zonas, porque o lado rebelde ocupava dois territórios sem continuidade). Nenhum lado se podia render.
Ao longo da primeira metade do ano de 1936 (o ano da morte de Ricardo Reis), a agitação em Espanha tinha sido tremenda. A 13 de Julho fora assassinado em Madrid um deputado monárquico, Calvo Sotelo, cuja família se refugiou em Portugal, recebida em Lisboa no meio de grande emoção. A figura de maior destaque na estação do Rossio, quando os exilados foram esperar a viúva do deputado e os seus quatro filhos, era indiscutivelmente o general Sanjurjo, infeliz exemplo do homem certo no sítio errado e no momento errado. A liderança da rebelião devia ter sido dele, mas à frente do golpe estavam outros generais, nomeadamente um relativamente desconhecido, Francisco Franco.
Soube-se mais tarde que o Exército Espanhol de Marrocos não teria atravessado o estreito de Gibraltar sem ajuda de uma ponte aérea da aviação da Alemanha nazi e também se sabe hoje que alguns aviões alemães fizeram escala para reabastecimento em território português. Salazar tinha de saber disto: no fundo, ajudou a salvar a rebelião, que esteve à beira de soçobrar naqueles primeiros dias frenéticos, marcados por fuzilamentos sumários dos militares apanhados no lado errado.
Acidente em Cascais
A 20 de Julho, Portugal foi palco de um dos episódios cruciais da Guerra Civil de Espanha. O general Sanjurjo, (ao centro na imagem), que vivia exilado no Estoril e era facilmente a figura militar mais prestigiada do lado rebelde, morreu num acidente de aviação que a imprensa portuguesa narrou em reportagens detalhadas. O general tentava chegar a Burgos e embarcou num pequeno avião que, à descolagem, não terá conseguido evitar as árvores no topo da pista de má qualidade, na actual quinta da marinha, em Cascais. O avião caiu, aparentemente por perder a hélice, e o piloto foi projectado da cabina, tendo ficado apenas com ferimentos ligeiros.
O general não teve tanta sorte: ia na parte de trás e levava uma pesada mala (com a farda), que impedia a sua movimentação naquele espaço exíguo. Testemunhas disseram que o avião pareceu levar demasiado peso e não conseguiu, por muito pouco, evitar as árvores, no entanto houve testemunhos contraditórios que não coincidem com esta história plausível, nos quais não se menciona o choque com o arvoredo, mas súbita perda de altitude. Estava um dia esplêndido. O voo para Burgos não apresentava dificuldade e a máquina voara anteriormente sem problemas. O piloto era um dos melhores, mas nunca se apurou se houve erro humano.
O facto é que Sanjurjo não conseguiu sair a tempo do aparelho, ou ficou preso pela mala ou teria ficado contundido na queda, não se sabe. Houve um incêndio, as pessoas que se tinham despedido do general não conseguiram correr a tempo para apagar as chamas. Enfim, Sanjurjo morreu carbonizado.
O Governo português teve dificuldade em demonstrar às autoridades de Madrid que desconhecia em absoluto aquele voo clandestino. O embaraço foi minimizado pela violência das notícias que chegavam de Espanha. Na altura, os rebeldes conspiravam em Lisboa, mas os republicanos tinham a sua presença. Aliás, muitos espanhóis estavam aqui de férias e ficaram retidos durante semanas, antes de conseguirem regressar à respectiva zona. Também havia muitos refugiados que não se metiam em política.
Ao longo da guerra civil de Espanha, Portugal manteria uma relação ambígua com os dois lados do perigoso conflito. Há um exemplo menos famoso dessa ambiguidade: no final do Verão, as autoridades não impediram que se instalassem cerca de mil refugiados num campo do lado de cá da fronteira, nos arredores de Barrancos. Fugiam da brutalidade (das forças marroquinas) da coluna que acabaria por executar um massacre em Badajoz. No caso de Barrancos, foram todos salvos, transportados de comboio para Lisboa e depois por barco para território republicano, numa altura em que o conflito já era uma matança sem quartel. Houve na altura umas pequenas notícias sobre este episódio, mas foi tudo discreto. Recentemente, foi publicado um livro que conta a história deste campo de refugiados na Herdade da Coitadinha, Contra as Ordens de Salazar, de Pedro Prostes da Fonseca, ajudando a dar maior visibilidade a um tema cuja divulgação tem sido sobretudo académica.