Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Botar Abaixo o Hemingway?

jpt, 28.06.20

hemingway.jpg

Há em várias cidades um punhado de estátuas de Hemingway. Deixo um excerto do autobiográfico "As Verdes Colinas de África", escrito em 1935. Talvez seja um exemplo apropriado para uma era em que as sensibilidades pretéritas andam a ser avaliadas. A preto e branco ...

"M'Cola foi, aos saltos, pela montanha abaixo e, através do riacho, mesmo no lado oposto ao nosso, surgiu um rinoceronte a correr, num trote ligeiro, pela parte de cima da margem. Quando o observávamos, apressou o passou e correu, em trote rápido, perpendicularmente à beira da estrada. Era de um vermelho sujo, o chifre muito visível, e não havia nada de pesado nos seus movimentos, rápidos e deliberados. Ao vê-lo, senti-me excitado. 

- Vai atravessar o regato - observou Pop - Está ao alcance do tiro.

M'Cola pôs-me a Springfield na mão. Abri-a para me certificar de que estava carregada. O rinoceronte estava fora da minha vista, mas distinguia-se o agitar do capim alto. 

- A que distância julga que pode estar?

- A uns quatrocentos metros.

- Hei-de apanhar esse malandro.

Conservei-me alerta, procurando deliberadamente acalmar-me, fazendo cessar a excitação como quem fecha uma válvula, entrando naquele estado impessoal que se atinge ao fazer pontaria. 

O animal surgiu no regato baixo e pedregoso. Naquele momento apenas pensava em que era perfeitamente possível alvejá-lo, mas que para isso era necessário alcançá-lo e ultrapassá-lo. Alcancei-o, ultrapassei-o e disparei. Ouvi o ruído da bala e, como animal seguia a trote, esta pareceu-me ter explodido mais à frente. Com um resfolegar sibilante, caiu prostrado, esparrinhando água e roncando. Disparei de novo, levantando uma coluna de água atrás dele. Como tentasse escapar-se para a relva, voltei a disparar. (...)

Droopy correu. Carreguei a espingarda e corri atrás dele. Metade dos homens do acampamento estavam espalhados pelas colinas (...). O rinoceronte tinha-se dirigido precisamente para debaixo do lugar onde eles se encontravam e subia o vale em direcção ao sítio onde se perdia na floresta. (...)

O rinoceronte estava no capim alto, atrás de uma qualquer moita. Enquanto avançávamos, ouvimos um roncar surdo, quase um gemido. O ruído voltou a ouvir-se, terminando desta vez com um suspiro sufocado pelo sangue. Droopy ria.  (...) Sabíamos onde estava o animal e, ao aproximarmo-nos, lentamente, abrindo passagem pelo mato alto, descobrimo-lo. Estava morto, caído sobre um dos flancos. (...)

Quando chegou o grupo todo, voltámos o rinoceronte de forma a ficar como que numa posição de ajoelhado e cortámos o capim em volta para tirarmos fotografias. (....) ali estava com a sua comprida carcaça, pesados flancos, de aspecto pré-histórico, a pele como borracha vulcanizada e vagamente transparente, com a cicatriz de uma ferida causada por uma cornada e depois picada pelos pássaros, a cauda grossa, redonda e aguçada, carraças de mil patas formigando-lhe no corpo, as orelhas franjadas de pêlos, olhinhos de porco, com musgo na base do chifre, que lhe saía da parte de frente do focinho. (...) Era um animal dos diabos! (...)

- Estou louco de satisfação - confessei."

(Ernest Hemingway, As Verdes Colinas de África, Livros do Brasil, 77-81. Tradução de Guilherme de Castilho. Edição original em inglês de 1935)

 

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 12.06.16

 

paris_review1[1].jpg

 

Livro nove: Entrevistas da Paris Review (vol. 1)

Edição Tinta da China, 2010

343 páginas

 

William Faulkner admitindo que lê os policiais de Simenon “porque, de certo modo, ele lembra-me Tchécov”. Graham Greene confessando que Teresa Desqueyroux, de Mauriac, foi um romance que o marcou “intimamente”. Jorge Luis Borges criticando a escrita "empolada" de Shakespeare.

A literatura vista por escritores: eis o fascínio desta fascinante recolha de entrevistas da quase mítica – mas bem real, pois continua a publicar-se – Paris Review, fundada em 1953 por um grupo de jovens norte-americanos residentes na capital francesa. Cruzando jornalismo com arte literária, desvendou muitas facetas ocultas de alguns dos mais extraordinários poetas, ensaístas e romancistas de todos os tempos. Proeza que outros haviam tentado sem conseguir – pelo menos numa extensão tão vasta.

Só neste volume desfilam – além dos já mencionados – Ernest Hemingway, E. M. Forster, Truman Capote, Lawrence Durrell, Boris Pasternak, Saul Bellow e Jack Kerouac. Uma segunda antologia, de 2014, inclui entrevistas a Ezra Pound, Eliot, Iris Murdoch, Nabokov, Philip Roth, Primo Levi, Jan Morris, Céline, E. Bishop, Joan Didion, Harold Pinter e Marguerite Yourcenar.

Influências, gostos, motivações – de tudo um pouco registam estas conversas, tão sugestivas como um auto-retrato pois “revelam do seu autor até aquilo que ele não supõe poder estar a dizer”, como salienta no prefácio o jornalista Carlos Vaz Marques, organizador e tradutor da obra.

De facto, dificilmente haverá entrevistas tão reveladoras. Ao ponto de Faulkner, em 1956, admitir que não prescinde de “um pouco de uísque” para escrever. E de Kerouac tomar uma anfetamina no encontro com os repórteres-escritores, Ted Berrigan e Adam Saroyan, em 1968. Morreria um ano depois.

Insuperável é o diálogo com Hemingway, conduzido por George Plimpton, que foi editor-chefe da Paris Review durante meio século. Desafio difícil, como bem se percebe pelo rumo da conversa, pontuada por observações sarcásticas do escritor: o autor de Por Quem os Sinos Dobram  detestava falar da sua obra e mantinha os jornalistas à distância. Mas também ele acaba aqui por revelar o que não revelou a mais ninguém.

Escutem-no: “O Velho e o Mar podia ter mais de mil páginas e ter lá dentro todas as personagens da aldeia e todos os modos pelos quais elas ganhavam a vida, como tinham nascido, sido criadas, tido filhos, etc. Há outros escritores que fazem isso de uma forma extraordinária. Ao escrever, somos limitados por aquilo que já foi feito de um modo satisfatório. Por isso tentei descobrir uma forma de fazer algo diferente. (…) A sorte foi eu ter um homem bom e um bom rapaz e o facto de ultimamente os escritores se terem esquecido de que isso ainda existe. Além do mais, o oceano é tão digno da literatura como um homem.”

Uma entrevista é igualmente digna da literatura. Como fica comprovado.

 

Hemingway na minha Hong Kong

Sérgio de Almeida Correia, 15.02.16

20160214_122016.jpg

Apesar de ser um admirador da obra de Hemingway e do personagem que o mito criou atrás do nome, desconhecia de todo o episódio da passagem do escritor e jornalista por Hong Kong entre 22 de Fevereiro e Abril de 1941, numa altura em que a II Guerra tomava conta da Europa e o conflito sino-japonês continuava a endurecer.

Aproveitando o facto de se comemorarem os 75 anos da chegada a Victoria Harbour do clipper da Pan Am que transportou o escritor, Stuart Heaver publicou na edição de ontem do Post Magazine, suplemento do South China Morning Post, um magnífico trabalho sobre essa visita com o sugestivo título de "The importance of being Ernest".

Ao longo do texto, cuja leitura recomendo a quem consiga ter acesso ao jornal, Heaver percorre os lugares, muitos deles ainda hoje existentes, por onde passou o escritor e a, ao tempo, sua mulher, a também jornalista Martha Gellhorn, com quem se havia casado em Cuba em Novembro de 1940, a tal ponto que a viagem à Ásia foi descrita como a sua "lua-de-mel."

Hemingway já era ao tempo uma celebridade em razão das suas crónicas de guerra e da publicação de "For whom the bell tolls", cuja primeira publicação ocorrera em Outubro de 1940, depois de ter sido escrito em passagens por Cuba, Key West e o Idaho, em 1939.

Depois do desembarque, que fora anunciado nas páginas da imprensa local com grande destaque nas semanas anteriores, Hemingway e Martha deslocaram-se de Kai Tak, onde existia o velho aeroporto, para a ilha usando o Star Ferry e hospedando-se depois no famoso Hong Kong Hotel, em Pedder Street. O Hong Kong Hotel foi o primeiro hotel de luxo da cidade e depois de diversas vicissitudes acabaria por ser demolido em 1952.

O texto do SCMP aproveita o testemunho de Peter Moreira, que foi um dos grandes jornalistas do Post e autor de um livro publicado em 2006 onde é recordada a passagem do casal Hemingway/Hagellhorn pela Ásia cujo título é "Hemingway on the China front". Por aí se fica a saber o que terá sido essa jornada do casal por estas paragens, onde hoje de novo me encontro, e no modo como essa experiência terá sido vivida. Hemingway em nada defraudou as expectativas e tudo o que o tornou famoso, no bom e no mau sentido, repetiu-se em Hong Kong nas semanas seguintes.

Ao chegar ao hotel onde se alojou, Hemingway tomou conta do seu bar, o The Grips, onde se rodeou de um grupo de habituais frequentadores, sempre prontos a contarem novas histórias, a divertirem-se e a ingerirem quantidades industriais de álcool das mais diversas origens. O estado de espírito do escritor era tal que a um jornalista que quis entrevistá-lo aconselhou "drink up, drink up, I am in the money".

Enquanto Hemingway bebia galões no The Grips e ia "socializando", relata-nos Heaver, Martha foi tomar o pulso à cidade, já então sob a pesada influência do conflito sino-japonês e acabou a visitar mercados, bordéis, casas de ópio e a inteirar-se das condições dos refugiados que demandavam a colónia britânica. Na altura, entre as companhias do escritor estavam Emily Hahn, famosa pela aventura extraconjugal com o capitão Charles Boxer, distinto linguista que colaborava com os serviços secretos ingleses e cuja mulher fora evacuada em Junho, mas também alguns poderosos tycoons locais a quem Hemingway se referiu como YT e CK, um oficial superior da polícia de HK, diplomatas, as tripulações de folga da CNAC e um judeu polaco conhecido como Morris "Two Gun" Cohen, que foi general no Kuomintang e guarda-costas de Chiang Kai-chek. Cohen foi o grande companheiro de Hemingway em Hong Kong e aquele que o apresentou a Madame Sun. De acordo com o relato de Heaver, baseado num escrito de Martha, foi Hemingway quem introduziu o Bloody Mary em Hong Kong e o escritor, em carta para um amigo, terá escrito que, com a possível excepção do exército japonês, ter-se-á ficado a dever-se a essa bebida a responsabilidade pela queda de Hong Kong.

Durante os meses que permaneceram pela região, ao que rezam as crónicas, Hemingway também funcionou como espião, recolhendo informações para o seu país, em especial para Henry Morgenthau, que era o Secretário do Tesouro, a partir de fontes tão fidedignas como Cohen e Boxer.

A Martha Gellhorn não era dada a mesma atenção, apesar da sua mulher já ser uma autora reconhecida no seu país, pois tinha publicado dois romances, era correspondente do Collier's Magazine e, entretanto, já estivera em reportagem na Alemanha, efectuara a cobertura da Guerra Civil espanhola e testemunhara a ocupação da Finlândia pela União Soviética. Como recorda Heaver, 75 anos depois a sua descrição de Hong Kong ainda se mantém actual: "To newcomers, Hong Kong seems like a combination of Times Square on New Year's eve, the subway at five-tirthy in the afternoon, a three alarm fire, a public auction and a country fair".

O trabalho de Heaver está repleto de episódios e relata histórias tão interessantes como a do encontro em Chungking com o Generalíssimo Chiang-Kai-chek, em 14 de Abril, no dia seguinte à assinatura do pacto de não-agressão entre Estaline e o Japão, quando aquele num evidente sinal de respeito para com os visitantes retirou a placa da sua dentadura para receber o escritor, ou do encontro entre Martha e a senhora Chiang. Sobre esse encontro Martha referiu que o Generalíssimo parecia embalsamado, que Chiang era "still a beauty and famous vamp" e que esta, em resposta a um comentário de Martha, escandalizada com o facto de haver leprosos nas ruas, lhe disse que "China had a great culture when your ancestors where living in trees and painting themselves blue".

O casal ainda se encontrou com Zhou Enlai (também romanizado como Chu En-Lai), que viria a ser em 1949 o primeiro primeiro-ministro da República Popular da China, encontro que aconteceu na sequência de uma abordagem clandestina feita num mercado e de quem Hemingway, que teve de explicar à mulher de quem se tratava, disse ter sido "the one really good man we'd met in China".

Martha ainda viajaria para Singapura, pela Birmânia e a Indonésia, mas a estadia pelas paragens orientais deteriorou de tal forma as relações do casal que aquela acabaria por publicar um livro (Travels with myself and another) de onde ressalta a forma como passou a referir-se ao seu ex-marido: "UC", isto é, "the unwilling company". Note-se que Martha tinha 32 anos e era uma mulher de uma grande beleza, um espírito liberal e independente, mas nada disso terá sido suficientemente forte para prender o escritor e manter acesa a chama do encontro no Sloppy's Joe Bar, em Key West (Florida), por alturas do Natal de 1936, quando conheceu Hemingway.

Para o escritor, e do que resulta do excelente trabalho de Heaver e dos relatos de Moreira, impossíveis de aqui reproduzir na íntegra, Hong Kong foi uma cidade que o seduziu e que se deixou seduzir por ele, espantado com os glamorosos jantares e corridas em Happy Valley, para onde o cônsul norte-americano Addison Southard fazia questão de convidar o casal e ser o anfitrião. De acordo com o texto do Post, o escritor terá ficado impressionado com a quantidade de mulheres que os "500 milionários" de Hong Kong recrutavam do outro lado da fronteira.

Depois da estadia no Hong Kong Hotel, com Martha farta dos rebentamentos de panchões, o casal mudou-se para o Repulse Bay Hotel, no lado sul da ilha, local onde hoje existe um conjunto de apartamentos, mas em que se teve o cuidado de preservar a fachada do velho hotel, ainda existem os locais com os nomes de então, como o Verandah Restaurant e o Bamboo Bar. Depois de uma renovação em 2009 existe uma placa recordando a passagem de Hemingway por lá.

Após o regresso da China, Hemingway instalou-se sozinho no Peninsula Hotel, especulando-se sobre se terá sido mesmo verdade que foi aí que o escritor dormiu com três prostitutas ao mesmo tempo. Sobre esse facto, Heaver menciona a descrição feita pelo autor em Islands in the Stream, texto póstumo publicado em 1970, mas não há certezas sobre isso.

Em 6 de Maio, Hemingway partiu de Hong Kong rumo a Manila, onde certamente terá continuado a sua aventura. Nunca mais voltaria à Ásia. Como escreve Heaver, a sua partida foi também o fim da lua-de-mel com Martha, para quem o casamento "was just too boring" e que acabaria por se desfazer no regresso a Londres. Martha, de acordo com o relato de Heaver, foi a única mulher que deixou o escritor e esse facto terá sido algo que este nunca lhe perdoou.

O documento que Heaver deixou ontem nas páginas do Post Magazine é um trabalho notável pela quantidade de informação e de referências que aí se lêem, ajudando a iluminar essa parte esquecida, porventura escondida, da vida do escritor.

Ter a sorte, apesar de muitas vicissitudes recentes, de poder continuar a ser um homem livre e um viajante, percorrendo textos e locais como os descritos, deixa-me com uma vontade especial de regressar em breve a Repulse Bay. E certamente que quando voltar a passar por Pedder Street ou a tomar um copo no Peninsula, que continua a ser um local de culto da cidade, não deixarei de recordar as páginas de Heaver e de aqui trazer algumas fotos desses locais por onde Hemingway passou e que agora fiquei a conhecer, repartindo com os leitores do DO o que aqui e ali vou vendo e aprendendo.  

20160214_122443.jpg

Leituras

Pedro Correia, 18.07.15

o-jovem-hemingway-peter-griffin-jorge-zahar-editor

  

«Não há heróis nesta guerra. Todos oferecemos nossos corpos, mas apenas uns poucos são escolhidos; entretanto, não deve isso refletir qualquer critério especial para aqueles que o são. São apenas os mais afortunados. Estou muito orgulhoso e feliz por ter sido um dos escolhidos, mas isso não deve dar-me qualquer crédito extra. Pensem nos milhares de outros rapazes que se ofereceram. Todos os heróis estão mortos. E todos os verdadeiros heróis são os pais. Morrer é coisa muito simples. Vi a morte diante de mim e sei realmente. Se eu tivesse morrido, teria sido muito fácil para mim. A coisa mais simples de todas as que fiz. Mas as pessoas em casa não se apercebem disso. Elas sofrem mil vezes mais.»

Ernest Hemingway (em carta aos pais), citado por Peter Griffin em O Jovem Hemingway, p. 109

Ed. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1987. Colecção Biografias. Tradução de Álvaro Cabral

"Quantas mulheres já amou?"

Pedro Correia, 19.08.14

 

Fala-se muito na degradação do jornalismo, e com bons fundamentos, mas convém relativizar um pouco: em todas as profissões e em todas as gerações existe gente desqualificada.

Ernest Hemingway foi jornalista na juventude e costumava dizer que este era o ofício ideal para um escritor, desde que não fosse exercido durante demasiado tempo. Assim sucedeu com ele: após meia dúzia de anos como repórter local e internacional, e correspondente europeu de jornais norte-americanos, passou a dedicar-se à literatura a tempo inteiro. E viria a dar raras entrevistas como escritor por ter conhecido entretanto demasiados jornalistas incultos, impreparados, incompetentes. Para ele havia vários temas proibidos: a guerra, a religião, os livros que estava a escrever, as mulheres com quem esteve casado e tudo quanto se relacionava com a sua vida privada.

No livro Papa Hemingway - A Personal Memoir, em que recorda década e meia de amizade estreita com o autor de Por Quem os Sinos Dobram, A. E. Hotchner relata uma dessas entrevistas, que deixou o escritor ainda com pior impressão dos jornalistas. Aconteceu no Verão de 1956, quando se encontrava hospedado num hotel de Madrid: ao passar pela recepção foi abordado por um repórter de uma revista alemã que, acompanhado por um fotógrafo, insistiu em falar com ele durante alguns minutos para "evitar ser despedido".

Hemingway, que naquele dia estava muito bem disposto, encheu-se de coragem e conduziu-o ao bar do hotel, onde decorreu a entrevista. Bastaram as primeiras perguntas para perceber que aquele alemão nada sabia a respeito dele: "Esta é a sua primeira visita a Espanha?" (o Nobel da Literatura visitara pela primeira vez o país em 1921); "Já tinha visto touradas?" (não só tinha visto como já tinha escrito dois livros e vários contos em torno deste tema); "Fala espanhol?" (qualquer elementar conhecedor da obra dele saberia que sim); "Escreve tudo por si ou dita os seus romances?" (bastaria esta pergunta, em circunstâncias normais, para o romancista pôr termo à conversa).

Era evidente que aquela entrevista iria acabar mal. Até porque o alemão, esgotado há muito o limite de dez minutos que o entrevistado lhe impusera, insistia em fazer-lhe perguntas cada vez mais idiotas. Levando Hemingway a responder-lhe num registo cada vez mais sarcástico por ser incapaz de levar aquilo a sério.

O jornalista ia apontando minuciosamente num bloco de notas, incapaz de perceber esse registo:

- Quantas mulheres já amou?

- Pretas ou brancas?

- Bem... Quantas de cada?

- Dezassete pretas, catorze brancas.

- Quais prefere?

- Brancas no Inverno, pretas no Verão.

- O que pensa da morte?

- É mais uma puta.

A conversa ficou por ali: terminou pior do que começara. De todas as perguntas, anotou Hotchner, só à última Hemingway respondeu a sério. Porque era precisamente aquilo que pensava sobre a morte.

Nada que interessasse ao tal amanuense do jornalismo, incapaz de fazer uma entrevista inteligente a um dos gigantes da literatura do século XX que teve o privilégio de conhecer pessoalmente, desperdiçando por completo essa oportunidade.

Há gente assim em qualquer época e em qualquer lugar.

Grandes romances (1)

Pedro Correia, 09.06.12

UM HOMEM DESTRUÍDO MAS NÃO VENCIDO

O Velho e o Mar (Ernest Hemingway)

 

Em Janeiro de 1953, uma das obras mais memoráveis da literatura universal encabeçava o top de vendas nos Estados Unidos: O Velho e o Mar. Com esta novela que assombrou o mundo literário logo ao surgir nos escaparates, quatro meses antes, Ernest Hemingway relançava espectacularmente a sua carreira, desmentindo os críticos que lhe tinham antecipado o epitáfio. Não tardaria o Pulitzer. Nem o Nobel, que lhe foi atribuído em 1954.

"Um homem pode ser destruído, mas não derrotado" é o mote desta comovente saga de um ser frágil em luta desigual contra as mais inclementes forças da natureza."Hei-de lutar enquanto tiver remos", diz para si próprio o velho pescador Santiago, protagonista do livro. No final, perdido o espadarte que pescara no alto mar e esgotadas as forças, basta-lhe a recompensa de nunca ter virado a cara à luta - mensagem que transcende épocas e modas, tornando-se numa alegoria da condição humana. A Dignidade do Homem foi, aliás, o título inicial que Hemingway concebeu para a novela, cuja trama era antecipada num dos primeiros contos do autor - Os Invencíveis (1925) - em que um toureiro figurava no lugar do pescador.

"Esta é uma obra que nos eleva à contemplação da dignidade do homem e do mundo", escreveu Jorge de Sena no prefácio à edição portuguesa do livro, que ele próprio traduziu. Portugal foi um dos países onde O Velho e o Mar (The Old Man and the Sea) cativou gerações de admiradores, funcionando muitas vezes como iniciação à literatura de qualidade.

Hemingway congeminou durante 15 anos a história do velho Santiago que nunca voltou costas aos tubarões, concebendo-a desde logo como uma homenagem aos pescadores de Cojímar, belíssima aldeia piscatória situada a poucos quilómetros de Havana. Era ali que o escritor costumava ancorar o seu iate Pilar na década de 50, quando Cuba se tornou a sua pátria adoptiva.

Publicado inicialmente nas páginas da revista Life, no dia 1 de Setembro de 1952, O Velho e o Mar teve um sucesso imediato: só em dois dias, a revista vendeu mais de cinco milhões de exemplares. Um sucesso prolongado em livro, uma semana mais tarde. Com 50 mil cópias vendidas logo na edição inaugural, a obra manteve-se nos seis meses seguintes no top americano, tornando-se objecto de estudo em escolas francesas, alemãs, italianas e japonesas. Portugal acabou por não fugir à regra.

 

Santiago, um homem no limiar da pobreza mais extrema e praticamente escorraçado da sociedade, tem apenas como amigo um rapaz chamado Manolín. Só esta criança - única personagem do género na obra romanesca de Hemingway - mantém toda a confiança nas capacidades do velho pescador que se prepara para enfrentar o derradeiro desafio da sua vida no mar das Caraíbas. Por isto, O Velho e o Mar também constitui um hino à amizade.

Numa carta dirigida ao crítico Bernard Berenson, poucos dias após a publicação da obra, Hemingway confessava que o seu "único fim na vida" era ser um velho sábio, à imagem e semelhança de Santiago. No auge da carreira, quando era rico e famoso, o futuro Nobel da Literatura não escondia o fascínio por um estoicismo de raiz evangélica. A simbologia cristã percorre aliás as páginas desta obra - do nome do protagonista aos três dias em que decorre a acção, culminando na cena final com Santiago a levar os utensílios de pesca às costas, como Cristo rumo ao Gólgota. O velho adormece enfim, exausto, com as palmas das mãos viradas para cima e os braços estendidos em forma de cruz. 

 

Nota. Dedico este início de uma nova série no DELITO à leitora Ilda Pontes, que nesta caixa de comentários me alertou para algo que eu ignorava: a inclusão do meu texto sobre O Velho e o Mar no livro Plural - de língua portuguesa, destinado aos alunos do 9º ano -, da autoria de Elisa Costa Pinto e Vera Saraiva Baptista (Raiz Editora). Um texto publicado originalmente em Janeiro de 2003, no Diário de Notícias. O sortilégio dos blogues também passa por surpresas deste tipo.

 

Hemingway, jornalista

Pedro Correia, 19.05.12

 

As peças jornalísticas de Ernest Hemingway no Toronto Star, de que foi repórter e correspondente internacional entre 1920 e 1924, estão finalmente disponíveis aqui. O que é um prazer enorme para todos os apreciadores da obra do autor de Adeus às Armas e O Velho e o Mar. Até porque a prática jornalística é indissociável da sua técnica como escritor.

 

(via Der Terrorist)

Preso por dar vivas à liberdade

Pedro Correia, 10.04.12

 

«Protege-te dos vacilantes /

Porque um dia saberão o que não querem»

Heberto Padilla

 

Vários dias depois, interrogo-me sobre o destino daquele homem que se encheu de coragem e gritou "abaixo o comunismo, viva a liberdade" pouco antes do início da vasta missa campal celebrada pelo Papa na Praça Antonio Maceo, em Santiago, segunda maior cidade de Cuba. Foi um grito insensato, atendendo ao contexto, mas as figuras tocadas pelo heroísmo não costumam caracterizar-se pela sensatez.

Vejo e ouço rostos e nomes de assassinos diariamente nas páginas dos jornais e nas imagens dos telediários. Por lamentável contraste, ignoramos tantas vezes a identidade destes heróis solitários que ousam proclamar em voz bem alta o que milhões de concidadãos pensam em países agrilhoados e amordaçados. Ao ver aqueles fugazes segundos de reportagem televisiva em que vários esbirros da ditadura cubana rodeavam o indivíduo e o levavam para parte incerta, pensei que aquela era a perfeita metáfora de uma revolução falhada: 53 anos após a vitoriosa entrada dos barbudos da Serra Maestra em Havana, basta alguém proclamar uma frase em louvor da liberdade para ser riscado da convivência cívica.

Infelizmente, nada que deva surpreender-nos: em Cuba qualquer cidadão pode ser detido a todo o momento com acusações tão vagas e tão implacáveis como "faltar ao respeito aos símbolos pátrios", algo que muitos comunistas portugueses associariam de imediato à ditadura salazarista embora estejam sempre na primeira linha do aplauso ao chamado "socialismo cubano".

O problema não reside apenas na facilidade com que se é preso em Cuba. Há "flagrantes violações da dignidade humana" nos cárceres castristas, como alertam opositores à ditadura, entre eles o médico Óscar Elías Biscet, que sabe muito bem do que fala: esteve 12 anos preso por delito de opinião.

Pensava em tudo isto enquanto acompanhava a missa papal em Santiago sintonizando o canal oficial cubano Cubavisión, de que disponho através da TV Cabo. Dir-se-ia um canal devoto, tanta era a solene deferência perante Bento XVI nesta sua inédita peregrinação ao país que Fidel Castro fez proclamar em 1976 como estado ateu até à revisão constitucional de 1992.

 

Escuto com alguma emoção o Credo recitado em coro por largos milhares de vozes. Na primeira fila da assistência à cerimónia litúrgica alinham-se respeitosamente vários membros da nomenclatura cubana, com destaque para o "general do exército Raúl Castro, presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros", como não se cansa de assinalar a locutora da Cubavisión. O irmão mais novo e herdeiro de Fidel saudou o Papa chamando-lhe "Santidade", algo impensável noutros tempos. Quase todos os bens da Igreja Católica foram "nacionalizados" após 1959 e dezenas de sacerdotes acabaram por ser expulsos da ilha, onde o ensino religioso foi proibido. Até 1991 um cidadão cubano tinha de se declarar "não crente" para ingressar no Partido Comunista.

"Ficaram para trás os anos de fanatismo anti-religioso em que as pessoas eram expulsas do trabalho ou da escola só por terem em casa um quadro do Sagrado Coração de Jesus", escreveu Yoani Sánchez no El País. O mesmo jornal que viu o seu correspondente em Havana, Mauricio Vincent, ser expulso da ilha em Setembro de 2011: os seus artigos independentes irritavam as autoridades comunistas.

 

Cuba deve avançar "pelos caminhos da justiça, da paz, da liberdade e da reconciliação", disse o Papa na sua homilia em Santiago enquanto a chuva caía, com persistência muito tropical. As imagens da Cubavisión focavam a multidão compacta, mas quase sempre à distância, com raros planos aproximados. A política contamina tudo - até a realização televisiva. O general Raúl Castro cumprimentou o Sumo Pontífice com uma semivénia respeitosa, a poucos metros da imagem da padroeira cubana, à qual Ernest Hemingway - cubano por opção e adopção - ofereceu a medalha recebida em 1954 pela Academia de Estocolmo que o distinguiu com o Nobel da Literatura.

Hemingway viu-se forçado a abandonar Cuba em 1960, o que lhe apressou a morte. Vivesse ele hoje e talvez acabasse por escrever um romance sobre aquele desassombrado cubano detido simplesmente por dar vivas à liberdade - anónimo herói da vida real. Robert Jordan - o protagonista de Por Quem os Sinos Dobram - gostaria de o conhecer. E era bem capaz de juntar a sua voz àquele corajoso brado solitário.

Foto: Enrique de la Osa (Reuters)

 

Publicado também aqui

 

Leituras

Pedro Correia, 11.12.11

 

«Fui para dentro e jantei. Para França, foi uma refeição a valer, mas, depois de Espanha, parecia cuidadosamente racionada. Bebi uma garrafa de vinho, para acompanhar. Era Château-Margaux. Sabia bem beber devagar e saborear o vinho e bebê-lo a sós. Uma garrafa de vinho faz muita companhia. (...) Era confortável estar num país onde era tão fácil tornar felizes as pessoas. Nunca se sabe se um criado espanhol nos agradece. Em França, tudo assenta numa tão clara base financeira. É o mais simples dos países para viver. Ninguém complica as coisas pelo facto de se travar de amizade connosco por qualquer razão obscura. Se a gente quer que gostem de nós basta gastar um dinheirito.»

Ernest Hemingway, Fiesta

Editorial Verbo, 1972. Colecção Livros RTP, nº 92.

(Tradução de Jorge de Sena)

Hemingway em Pamplona (1959)

 

 Adenda: ler este testemunho de José Pimentel Teixeira

"Noutro País", sem consoantes

Pedro Correia, 14.11.11

 

Leio uma biografia de Ernest Hemingway distribuída gratuitamente com o Expresso. Na capa, o nome do autor -- um tal Hans-Peter Rodenberg, sobre o qual ficamos a saber quase nada -- vem impressa em corpo muito reduzido, enquanto o autor do prefácio, Miguel Sousa Tavares, surge em letras muito mais visíveis apesar de escrever apenas três páginas. A obra está traduzida em acordês, numa apressadíssima tentativa de beber o ar do tempo. E nem Sousa Tavares -- público e notório opositor a essa aberração que é o "Acordo Ortográfico" de 1990 -- escapa à fúria avassaladora dos acordistas, que querem moldar tudo e todos ao seu padrão, mesmo quem não comunga dessa obsessão de extermínio das consoantes ditas mudas.

Imagino a irritação de Sousa Tavares ao ver-lhe atribuída, logo na primeira página do seu prefácio, a autoria de uma palavra que nunca escreveu -- a palavra corretamente. Em que, por ausência do C, o E sofre uma mutação eufónica. Este é, de resto, um dos efeitos mais perniciosos do dito "acordo": em nome da inalcançável unificação ortográfica, que jamais se concretizará, aumentam drasticamente as diferenças fonéticas entre Portugal e o Brasil. A supressão das consoantes ditas mudas (e porque não também o H?) reforçará a nossa tendência para fechar a pronúncia das vogais. Isso sucederá inevitavelmente com palavras que vejo estampadas nesta obra. Palavras como ator, reação, reflete, aspeto, adota, perspetiva, afetado, correção e redator. Não custa vaticinar que as sílabas átonas vão crescer e multiplicar-se na pronúncia do português de Portugal, precisamente ao contrário do que sucede no Brasil.

Não há tempo para tudo: enquanto andavam obcecados na fixação das regras do acordês, os responsáveis editoriais por esta obra descuraram o resto. Só isto explica que As Verdes Colinas de África (1935), uma narrativa autobiográfica de Hemingway, seja aqui apresentada como "romance", coisa que manifestamente não é, e o "magnífico Adeus às Armas" (1929), como justamente o designa Sousa Tavares no prefácio, não venha nunca mencionado com o nome correcto na tradução desta biografia, onde aparece com uma estranha designação: Noutro País.

Ironia das ironias: uma obra tão apostada em alinhar com o "acordês", adaptando a norma ortográfica portuguesa à brasileira, altera afinal a ortografia norte-americana, reconvertendo-a à norma inglesa num topónimo como Pearl Harbor (pág. 93), aqui escrito Pearl Harbour, ao clássico estilo britânico. Apesar de Pearl Harbor se encontrar no arquipélago do Havai, território dos Estados Unidos.

Mais depressa se apanha um falso "modernizador" da língua do que um coxo verdadeiro...

Hemingway, Fidel e Fuentes

Pedro Correia, 14.08.11

  

Norberto Fuentes é um escritor que fez parte do círculo íntimo do poder comunista em Havana e chegou a ser confidente de Raúl Castro durante os longos anos em que o irmão mais novo de Fidel se limitava a aguardar pacientemente que chegasse a sua hora de ascender ao posto cimeiro da hierarquia política em Cuba. Durante o período da intervenção cubana em Angola, nas décadas de 70 e 80, esteve lá destacado numa missão de que foi incumbido pelo próprio Fidel Castro, tendo sido um dos cronistas dessas expedições militares que de algum modo assinalaram o canto do cisne da Guerra Fria.

Fuentes também é um dos autores mais bem documentados sobre Ernest Hemingway, a quem dedicou anos de investigação. Recolheu muitas confidências de Gregorio Fuentes, que foi o piloto do iate Pilar, de Hemingway, e serviu de inspiração ao inesquecível pescador Santiago, da novela O Velho e o Mar. Um dia, em Havana, falou livremente sobre Mario Vargas Llosa, já então proscrito pelo regime castrista devido às suas críticas desassombradas ao sistema ditatorial que perseguia os melhores cidadãos de Cuba. “Como romancista é bom, mas interessa-me mais como político. É uma das melhores cabeças deste continente”, confessou um dia ao escritor espanhol J. J. Armas Marcelo, biógrafo e amigo de Llosa. Este episódio, passado nos anos de chumbo do castrismo, vem descrito no livro Vargas Llosa: El Vicio de Escribir, de Armas Marcelo.

Pouco tempo depois, à semelhança do que fizeram mais de três milhões de cubanos desde a instalação da ditadura comunista em 1959, Fuentes conseguiu abandonar a ilha-prisão, rumando ao exílio em Miami. E de lá legou ao mundo dois livros considerados fundamentais sobre dois homens que para sempre ficarão ligados à história cubana: Autobiografía de Fidel Castro e Hemingway en Cuba.

Dois livros que pretendo adquirir e ler sem demora.

 

Foto: Ernest Hemingway e Fidel Castro na única vez em que se encontraram (Cojímar, Cuba, Maio de 1959)

Lado B

Laura Ramos, 03.07.11

Por culpa do post do Pedro Correia lembrei-me deste poema, espantosamente dito por certo diseur acidental, cá muito meu.

Hemingway tinha razão: Paris, os verdes anos,  o arrojo de conhecer e de quebrar, nunca torcer. A comoção da liberdade, o calor do idealismo,  a coragem do excesso (essa aptidão imprescindível para agarrar a vida pelos cornos, com as duas mãos, até cada um lhe chamar sua). E, claro, pois... a alegria da festa, para sempre.

Com Apolinnaire no prato (outro culpado). Sem contradição e desde então para sempre, também.

 

 

 

Sous le pont Mirabeau coule la Seine
Et nos amours
Faut-il qu’il m’en souvienne
La joie venait toujours après la peine

Vienne la nuit sonne l’heure
Les jours s’en vont je demeure

Les mains dans les mains restons face à face
Tandis que sous
Le pont de nos bras passe
Des éternels regards l’onde si lasse

Vienne la nuit sonne l’heure
Les jours s’en vont je demeure

L’amour s’en va comme cette eau courante
L’amour s’en va
Comme la vie est lente
Et comme l’Espérance est violente

Vienne la nuit sonne l’heure
Les jours s’en vont je demeure

Passent les jours et passent les semaines
Ni temps passé
Ni les amours reviennent
Sous le pont Mirabeau coule la Seine

Vienne la nuit sonne l’heure
Les jours s’en vont je demeure

Quando Paris era uma festa

Pedro Correia, 02.07.11

  

 

Pouco tempo antes de morrer, ao estilhaçar a cabeça com uma espingarda de caça, Ernest Hemingway escreveu um hino à vida que é uma declaração de amor simultânea a uma cidade e a uma mulher. A cidade era Paris, a mulher era Hadley Richardson – a primeira das quatro com quem casou. Paris É uma Festa – assim se chamou este livro-testamento que nos transporta à idade de todas as ilusões. Década de 20 do século passado: a Grande Guerra terminara, ninguém imaginava que pudesse ocorrer outro conflito ainda mais sangrento, Paris fervilhava de uma juventude inquieta e irrequieta, a que Gertrud Stein decidiu chamar “geração perdida”. Entre os milhares de expatriados que acorreram à Cidade Luz encontrava-se um jovem jornalista do Illinois com aspirações a escritor. Ernest Miller Hemingway.

 

“Se na juventude alguém teve a sorte de viver em Paris, a cidade irá acompanhá-lo pela vida fora, vá para onde for. Porque Paris é uma festa móvel”, escreveu Hemingway a um amigo em 1950. Ele teve essa sorte: viveu em Paris entre Dezembro de 1921 e Março de 1928, dos 22 aos 28 anos. A melhor época da vida, e um dos raros períodos de bonança num século de tantas tempestades. Três décadas depois, no seu refúgio cubano, regressou a esses dias em que ele e Hadley eram “muito pobres e muito felizes”, dando corpo a um dos melhores livros de memórias de todos os tempos. Foi o seu primeiro livro póstumo – e também o que teve mais sucesso. A viúva, Mary, editou-o em Maio de 1964: com um tiragem inicial de 85 mil exemplares, Paris É uma Festa permaneceu até Dezembro na lista de best sellers do New York Times, com 19 semanas consecutivas (entre Junho e Outubro) no primeiro lugar. Ernest, que tantas vozes deram por acabado antes de tempo, gostaria de ter testemunhado o sucesso desta evocação nostálgica de Paris, a cidade onde ocorreu o seu baptismo literário. Viajamos com o autor aos seus humildes apartamentos da Rue Cardinal Lemoine, 74 (a sua primeira morada na capital francesa) e da Rue Notre Dame-des-Champs, 113. Acompanhamo-lo nas suas peregrinações por cervejarias e cafés onde se sentava horas a fio, concentrado na escrita. Conhecemos uma cidade ainda cheia de marcas rurais, onde pastores ordenhavam cabras que proporcionavam leite fresco ao domicílio e as margens do Sena se enchiam diariamente de pescadores.
Hemingway confessa ter passado fome nesses dias em que era apenas um aspirante a escritor. O pior eram os odores que se libertavam dos restaurantes: “Nessa altura o melhor sítio para passear eram os jardins do Luxemburgo, onde não se sentia o cheiro da comida.”
 
Ficamos a saber, por este livro, quais eram as leituras do jovem Hemingway. Alguns amores: Filhos e Amantes (D. H. Lawrence), A Cartuxa de Parma (Stendhal), Guerra e Paz (Tolstoi), Impressões de um Desportista (Turguenev), O Jogador (Dostoievski). Sempre obras de Kipling, seu autor de cabeceira. E A Casa do Canal, de Simenon. Depois dos amores, os desamores: Aldous Huxley e Katherine Mansfield, por exemplo. Mais interessante ainda é a vasta galeria de escritores então residentes em Paris com quem Hemingway estabeleceu relações de amizade. Só duas dessas relações perduraram: com Ezra Pound ("o escritor mais generoso e desinteressado que conheci") e James Joyce. Dos restantes, traça retratos impiedosos - de Scott Fitzgerald ("sempre bêbedo, quer de dia quer de noite") a John dos Passos ("possui o treino insubstituível do patife"), passando por Jean Cocteau, Blaise Cendrars e Ford Madox Ford, que o interpelou bem cedo contra o hábito de beber aguardente ("pode levá-lo à ruína").
A capital francesa esteve sempre presente na obra de Hemingway - nas páginas d' As Neves do Kilimanjaro e Ilhas na Corrente, por exemplo. Mas nunca de forma tão evidente e tão obsessiva como em Paris É uma Festa, sem dúvida o seu melhor livro de não-ficção. Um livro curiosamente escrito na primeira pessoa do plural, como se Hadley (que viu pela última vez na década de 30) tivesse estado a seu lado quando o escreveu. O que talvez explique o tom seco e lacónico de Mary Hemingway na pequena nota informativa que abre o volume: a viúva dificilmente suportou esta prova de que Ernest nunca deixou de estar apaixonado por Hadley, numa confirmação de que não existe amor como o primeiro. O que é tão válido para as mulheres como para as cidades.

 

Texto reeditado no dia do 50º aniversário da morte do escritor.

Grandes contos (6): Ernest Hemingway

Pedro Correia, 28.05.11
Existe algo a que possamos chamar o conto mais belo de sempre? Sim: é um texto que só nos fala de ilusões. Foi escrito por um americano apaixonado por Espanha e passa-se em Madrid, num dos anos mais funestos de que há memória. É um impressionante retrato de um país que não tardaria a mergulhar num dilacerante conflito cujo rasto perdura.
Falo de um conto intitulado A Capital do Mundo (ed. Livros do Brasil), que Ernest Hemingway publicou em Junho de 1936, já entre presságios da guerra civil. Toda a acção decorre no espaço fechado de uma pensão na calle San Jeronimo, perfeito microcosmos de uma Espanha em convulsão. O herói desta saga é um adolescente chamado Paco. Não poderia haver nome mais vulgar – e por isso mesmo tão simbólico. Este Paco, um miúdo órfão, veio da província em busca de um lugar ao sol na fervilhante Madrid da II República, efémera “capital do Mundo”. É na cozinha da pensão Luarca, entre panelas e pratos, que Paco dá largas à imaginação: sonha ser um toureiro, em traje de luces, aplaudido por milhares em delírio numa faiscante tarde de glória. O sonho de qualquer miúdo espanhol da época.
Os sonhos não tardaram a ruir. E nem era preciso sair da sala de refeições da pensão para perceber isso. Lá estavam dois padres galegos, pregando que “não se pode ir contra a autoridade” e ruminando contra Madrid, “que mata a Espanha”. Lá estava o empregado anarquista defendendo a vantagem de “matar cada touro e cada padre”. E lá surgiam três toureiros, ilusórios ídolos das massas: “um estava doente e tentava ocultá-lo, outro passara de moda e o terceiro era um cobarde”. Uma cornada “logo na sua primeira época de matador de cartaz” deixara-o incapaz de voltar a olhar um touro de frente. Era um drama íntimo, desconhecido das multidões – e tanto mais pungente quanto mais ele procurava disfarçá-lo naquela Espanha em que todas as aparências iludiam.
Paco bebia o ambiente circundante: “desejava ser um bom católico, um revolucionário e também gostaria de ser toureiro”. Se o destino o permitisse, haveria de conhecer tempos de triunfo, haveria de matar um miúra a las cinco en punto de la tarde.
Mas o destino não o permitiu: morreria tragicamente, naquele mesmo espaço fechado, naquela mesma noite, enquanto as irmãs mais velhas – também empregadas da pensão – viam uma decepcionante fita protagonizada por Greta Garbo num cinema da Gran Vía. Morreria com a graça e a dignidade de todos os heróis de Hemingway, personagens tocados pela tragédia. Não colhido por um touro, mas por uma traiçoeira faca de cozinha que lhe rasgou a artéria femural.
A “capital do mundo” dobrava a finados: faltava muito pouco para irromper a guerra, com o seu macabro cortejo de um milhão de vítimas. Mortes tão absurdas como a de Paco, que nunca conseguiu ser toureiro nem viu chegar a revolução libertadora que o seu colega anarquista profetizava. A Espanha moderna e cheia de luzes era afinal tão bárbara e ancestral como os espectros das telas de El Greco, era tão faminta de sangue como os grotescos vultos pintados por Goya.
Hemingway percebeu isso antes de qualquer outro nesta "exposição quase cervantina das falsas ilusões de quem vivia em Madrid durante a República", como anotou Edward Stanton – prova evidente de que os melhores escritores são também excelentes oráculos. Madrid, sim, capital do mundo. Mas de um mundo lunar onde os Pacos não viveriam para ver o raiar do sol. Um mundo povoado de sombras, prestes a desembocar num mar de cinzas. Fala-se agora tanto na necessidade de resgatar os fantasmas da guerra civil: releia-se este conto premonitório para se perceber melhor a génese desse imenso pesadelo.

Quando Hemingway viu cavalgar Simão da Veiga em Espanha

Pedro Correia, 27.11.10

Durante anos, procurei em vão referências a Portugal na obra de Ernest Hemingway. Sabia que o escritor, galardoado em 1954 com o Nobel da Literatura, havia estado pelo menos uma vez em Lisboa e conhecia sobretudo o seu amor declarado pela cultura ibérica. Adorava cidades de Espanha, como Madrid, Sevilha, Málaga, Oviedo, Santander e Santiago de Compostela. Preferia até Espanha ao seu país natal, os EUA. E em 1938, ao fazer a jura de só ali voltar quando o último dos seus amigos estivesse fora dos cárceres franquistas, decidiu instalar-se em Havana, talvez a mais espanhola das cidades fora de Espanha. A jura, que foi cumprida, durou 15 anos: ao regressar de carro pela fronteira basca, oriundo de França, esperava ser detido. Em vez disso, o guarda fronteiriço declarou-se apreciador da sua obra – episódio digno de romance, entre tantos outros ocorridos na vida do escritor.
Portugal, no entanto, sempre esteve aparentemente ausente dos interesses de Hemingway, um viajante inveterado que conhecia a Europa inteira e tinha uma notável facilidade para aprender línguas. Sempre me intrigou este desinteresse, nunca explicado pelos inúmeros biógrafos do autor de Por Quem os Sinos Dobram. Foi, portanto, com surpresa e satisfação que encontrei recentemente uma referência a um português numa história de Hemingway, inserida na obra Contos de Nick Adams (Livros do Brasil, 2006). É uma história que ficou incompleta, entre os manuscritos do escritor, quando morreu, em Julho de 1961, e só viria a ser editada, com outros inéditos, 11 anos mais tarde. Intitula-se ‘A respeito de escrever’ e, como tantas vezes sucedia, Hemingway fala dele próprio através do seu alter ego literário, Nick Adams.

 

Hemingway era um cultor do conto. Aliás, como ele próprio confessava, todos os seus romances começaram por ser contos. Alguns deles, como 'A Capital do Mundo', 'Um Gato à Chuva', 'Colinas como Elefantes' e 'Acampamento Índio', são obras-primas do género. Textos fiéis às regras básicas do escritor norte-americano que mais marcou a literatura do século XX.

Que regras eram essas?

Em primeiro lugar, escrever apenas sobre aquilo que se viveu ou experimentou.

Em segundo lugar, evitar todo o desperdício de palavras: interessam apenas as que são essenciais para o conhecimento da história ou o desenvolvimento da trama.

Em terceiro, aproximar o mais possível os diálogos literários da oralidade, sem artifícios de estilo.

E, finalmente, sugerir muito mais do que descrever: para Hemingway, era tão importante o que apenas ficava implícito no texto do que aquilo que se escrevia. Chamava iceberg a esta técnica que permitia esconder tanto ou mais do que mostrar. Técnica que tem sido imitada por inúmeros seguidores da sua obra - nenhum deles, naturalmente, com a qualidade do original.


Neste esboço de conto, como é mais justo chamar-lhe, Nick recorda algumas das touradas que o empolgaram nos seus anos de juventude em Espanha. “Como daquela vez em que o português toureara e o velho picador se debruçara da barrera e atirara o chapéu para a arena ao ver o jovem Da Veiga. Nunca tinha visto coisa mais triste. Fora aquilo que o gordo picador desejara ser, um caballero en plaza. Jesus, como aquele garoto Da Veiga cavalgava! Aquilo sim, era montar. Não se via bem nos filmes.”
Suponho tratar-se de Simão da Veiga Júnior, então no início da sua notável carreira como cavaleiro tauromáquico, em que rivalizou durante mais de três décadas com João Branco Núncio, outro nome cimeiro da arte equestre portuguesa. Fica a sugestão à editora para destacar este trecho – por exemplo, numa badana – em futuras reimpressões da obra. Precisamente por serem tão escassas as referências de Hemingway a Portugal e aos portugueses.