Não adianta
De forma caracteristicamente edulcorada, a muito estimável Helena Garrido refere-se aos três documentos da Comissão Europeia em que esta se senta à cabeceira de Portugal e paternalmente ministra conselhos.
À Helena não ocorre que a Comissão não terá talvez autoridade material para dar aulas (autoridade política tem, sem dúvida, visto que o nosso país é hoje absolutamente independente em tudo, mas menos do que desejam os europeístas frenéticos, em que a maioria dos países da UE ainda não tenha decidido meter o bedelho) porque a União, e com ela a Europa, vai perdendo peso, e logo influência, no mundo. Mas enfim, quem não tem dinheiro não tem vícios e esse da independência, então, já não está em odor de santidade entre nós há muito, de modo que vamos a ver o que expectoram as luminárias, ou melhor, o que do que elas dizem comenta a boa da Helena.
No IRS as críticas vão para os valores excessivos de retenção na fonte, que se traduzem em elevadas devoluções de IRS no ano seguinte. Este alerta acontece apesar das garantias que têm sido dadas pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes, de que estão a aproximar as retenções do valor efetivamente devido de imposto.
A qualificação da retenção na fonte como excessiva não tem sentido porque não há nenhum valor dela que não seja imoral: resulta de uma previsão que, quaisquer que sejam os seus critérios, nunca poderá coincidir em todos os casos com o imposto efectivamente devido. O facto tributário são rendimentos auferidos, conjugados com os abatimentos a que houver lugar, não a presunção de que uma indeterminada parte daqueles “pertence” ao Estado. A alegação de que não há prejuízo por haver um futuro acerto é intelectualmente desonesta porque um empréstimo forçado ao Estado coloca em situação de desigualdade os cidadãos que dela sejam vítimas e não se pode, a propósito dele, falar de fiscalidade mas de esbulho. E mesmo que do acerto resulte que é devido mais imposto, sempre ficou lá para trás um adiantamento que só a rapacidade do Estado, a invencionice de um governo deplorável (creio que a inovação, que depois foi aprofundada, é de um governo Cavaco, em 1988) e a abulia de uma sociedade habituada à dependência e ao respeito pelos engenheiros sociais que a pastoreiam, justificam.
Do Secretário de Estado actual, como aliás dos anteriores, nem é bom falar: todos se propõem combater a evasão fiscal, e promover a justiça e a igualdade. Na prática nenhum reverteu qualquer dos instrumentos pelos quais a Autoridade Tributária funciona como um Estado dentro do Estado, ou sonha sequer eliminar a inversão do ónus da prova, que é um caso flagrante de não-Direito, ou belisca a inimputabilidade dos familiares do Santo Ofício, que é o que são os inspectores tributários, ou desbrava a espessa floresta legislativa que apenas pode ser percorrida por uns pisteiros denominados especialistas em direito fiscal. Nada. Zero. E pelo contrário cada Secretário de Estado – este não é diferente e ainda por cima tem, coitado, um adequado aspecto mefistofélico – faz questão de acrescentar, ao castelo do abuso, mais um torreão. Porquê? Porque a receita não pode baixar senão o défice cresce e a UE corta nos subsídios, e a despesa também não pode porque com ela se ganham eleições. Um Secretário de Estado suicidar-se-ia politicamente se fosse sério, e portanto tais personagens optam, humanamente, pela desonestidade.
A seguir vem uma recomendação para a simplificação dos impostos sobre as empresas e a redução dos benefícios fiscais, que são, parece mais de 500 (!). O comentário é como segue:
Melhorar, apenas simplificando o sistema fiscal, seria um importante contributo para reduzir os custos de todos os contribuintes, com especial importância para as pequenas e médias empresas, libertando recursos que podiam ter aplicações mais produtivas. E, sendo mais simples pagar impostos, certamente que seriam necessários menos funcionários públicos nesta área e existiriam menos contribuintes faltosos. É um jogo em que todos ganham, sendo incompreensível porque não fez, nem faz, o Governo absolutamente nada.
Incompreensível?! Os funcionários públicos a menos seriam outros tantos descontentes, a engordar os números da emigração ou do desemprego; qualquer colega da Helena lhe pode explicar que o problema das pequenas e médias empresas é a falta de formação dos empresários, razão pela qual o que é preciso é subsidiar programas de formação onde moços devidamente adestrados, que jamais fizeram empresa alguma, ensinem a quem as lançou o que devem fazer para se tornarem dinamarqueses; nenhum progresso pode implicar o risco de diminuição de receita, mesmo que passageiro; e o sistema tornou-se de tal modo complexo que só pode ser reformado por especialistas em direito fiscal, que não ganhariam a vida com a simplicidade.
Continua:
Isto e aquilo e aqueloutro. Vamos ver se a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social Ana Mendes Godinho é capaz de fazer essa mudança, em vez de ficar armadilhada na propaganda.
Vamos. Isso e se haverá maneira de os pilritos darem outra coisa senão pilritos.
A seguir vem – não podia faltar – a lengalenga das alterações climáticas, domínio em que Portugal tem dado exaltantes exemplos ao mundo, que porém não têm sido suficientes, visto que, acha a Europa, é necessário: “acelerar a implantação de energias renováveis melhorando a rede de transporte e distribuição de electricidade, viabilizando investimentos em armazenamento e agilizando os processos de licenciamento para permitir um maior desenvolvimento de energia eólica, particularmente offshore, e solar”.
Claro que o que Portugal faz ou não faz neste domínio é inteiramente irrelevante para o planeta, por muito que se viva angustiado com a perspectiva de morrermos todos assados. E talvez as autoridades, na hierarquia das coisas, pudessem usar de doses adequadas de hipocrisia para “envidar esforços”, “vencer obstáculos” e “sensibilizar os cidadãos” para estes relevantes assuntos ao mesmo tempo que arrastassem os pés fazendo pouco, com a preocupação que não tem havido de não encarecerem o preço da energia, coisa que os países realmente poluidores têm presente e as nossas autoridades deveriam.
E conclui: Se estas reformas continuarem a ser missões impossíveis podemos resignar-nos e preparar-nos para muito pior que o empobrecimento, ficarmos à mercê de esmolas de Bruxelas e do que as alterações climáticas ditarem.
Eh lá, Helena, não exagere: à mercê de esmolas de Bruxelas já estamos há muito (quase 140.000 milhões a fundo perdido desde a adesão), e o empobrecimento relativo é, com governos socialistas, garantido, apenas restando apurar o momento exacto e o número de países que se vão juntar aos que já nos ultrapassaram. Mas quanto às alterações, sabe que mais? Até nem eram má ideia: que eu desmontei a lareira há dias e está um frio do camandro, bem que um bocadinho mais de calor não era de deitar fora.
Resta-me agradecer à Helena Garrido, de quem sou leitor fiel. Não fosse ela e não me aperceberia destes interessantes relatórios da Comissão Europeia, que costumo cuidadosamente evitar, tal como telenovelas.