A Animação é para crianças (ou não) - 2
A Princesa Mononoke
Título original: Mononoke-hime
Realização e argumento: Hayao Miyazaki
Produção: Estúdios Ghibli
Ano: 1997
Duração: 134 minutos
País: Japão
De todos os filmes de animação que já vi, A Princesa Mononoke é sem dúvida o meu favorito.
Um realizador e argumentista com menos experiência e menor sensibilidade cairia inevitavelmente nas armadilhas e nos clichés daquele tipo de história: antagonismo entre o mundo natural e a civilização industrial; herói vindo deste para aquele mundo, acabando por lutar pela sua preservação; os bons selvagens em inferioridade numérica perante os colonizadores industriais, evidentemente vilões; o salvador iluminado (e branco, se fosse um filme produzido no Ocidente). Na verdade não precisamos de imaginar como se poderia cair nos lugares-comuns destas ideias, pois já os vimos em obras como Danças com Lobos, Pocahontas ou Avatar.
Miyazaki, porém, evita todas essas armadilhas com mestria e elegância. Dotado de uma sensibilidade única e de uma capacidade tão invulgar como extraordinária de contar histórias cativantes sem necessitar de heróis bonzinhos, de vilões exagerados (ou sequer de vilões: veja-se Totoro), ou de trincheiras morais bem demarcadas, o mestre japonês tece em A Princesa Mononoke uma narrativa envolvente e ambígua, convidando o espectador a acompanhar aquelas personagens e a reflectir sobre as suas palavras e os seus actos, sem nunca tentar conduzir essa reflexão para determinada posição moral. Como tal, nenhuma dessas personagens é, em momento algum, simples. Por isso Ashitaka, o príncipe exilado após ser forçado a eliminar o Deus Javali enlouquecido, tenta encontrar a paz sem conseguir sempre evitar a violência. Por isso San e Moro, a Deusa Lobo, cometem atrocidades no decorrer da sua guerra pela preservação da floresta do Deus Veado. E por isso Oboshi, enquanto devasta a floresta e as suas criaturas para a prospecção mineira, defende uma população composta por gente rejeitada, que no Japão feudal que serve de cenário distante ao filme seria ostracizada, escravizada, ou assassinada.
O resultado é um filme espantoso pela sua ambiguidade e pela sua recusa intransigente de Miyazaki em reduzir as facções que San e Oboshi representam a boas ou más - são heróicas e desprezáveis, são antagónicas, são falíveis, e serão porventura irreconciliáveis, mas em momento algum são simples. E ganham vida pela pela animação formidável de Miyazaki, crua nas sequências mais violentas (e este será sem dúvida o filme mais violento do realizador), etérea na travessia pela floresta repleta de kodamas, e sempre evocativa ao mostrar tanto seres humanos como divindades naturais. Junta-se a estes ingredientes uma banda sonora excepcional e temos um dos grandes filmes dos anos 90.
E, claro, é mais um excelente exemplo das espantosas personagens femininas de Hayao Miyazaki: San e Oboshi juntam-se à vasta galeria de raparigas e mulheres icónicas do realizador japonês, onde figuram Chihiro, Nausicaä, Kiki ou Sofî.
É possível que A Viagem de Chihiro seja a longa metragem mais completa e mais bem conseguida de Hayao Miyazaki (lá chegarei no decorrer desta série), mas tudo o que disse acima ajuda a explicar por que motivo A Princesa Mononoke será sempre o meu filme preferido do mestre japonês. Já tive por duas vezes a oportunidade de o ver no grande ecrã: a mais recente foi em Março, no decorrer do festival Monstra 2022. E espero poder desfrutar deste privilégio mais vezes: Miyazaki merece sempre ser visto numa boa sala de cinema. Será sem dúvida o maior realizador de animação vivo; e pela sua vasta e excepcional obra será também, e com toda a justiça, um dos grandes cineastas do nosso tempo.