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«O antigo Presidente haitiano Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier regressou ontem à noite, de surpresa, ao Haiti ao fim de mais de duas décadas no exílio a que foi forçado pela revolta de 1986» e logo no aeroporto de Port-au-Prince «foi recebido por umas duas mil pessoas que entoavam cânticos de apoio».
Foi uma óptima surpresa. Agora, sim: com o regresso do déspota Baby Doc (filho do sanguinário François "Papa Doc" Duvalier, já muito oportunamente lembrado pelo Pedro Correia), o Haiti pode dormir tranquilamente. E o mundo também.
Eleições presidenciais e legislativas no Haiti. Seguidos por milhares de manifestantes nas ruas de Port-au-Prince, 12 dos 19 candidatos à sucessão do presidente René Préval já pediram a anulação do acto eleitoral por acharem que houve fraudes a favor do candidato apoiado pelo partido que está no poder. Não dá para acreditar, pois não?
A propósito da tragédia que se abateu sobre o Haiti, houve quem desenterrasse pela enésima vez a teoria do "fardo do homem branco", lançando sobre o "colonialismo" as culpas do profundo atraso estrutural do país, de longe o mais pobre das Américas. O Haiti é, de facto, um exemplo de "estado falhado", mas as culpas disso não podem assacar-se de boa fé aos pecados coloniais. Foi o segundo país do continente a conquistar a soberania (em 1804, logo após os Estados Unidos, que se tornaram independentes do Reino Unido em 1776) e toda a sua história como nação independente é um longo cortejo de actos violentos e administração ineficaz, brutal e corrupta. O próprio herói da independência - Jean-Jacques Dessalines, que conseguiu a proeza de derrotar as tropas napoleónicas - morreu dois anos mais tarde, em 1806, às mãos dos seus sequazes. De nada lhe valeu ter-se feito coroar com o patético título de imperador, numa tosca imitação do quadro político então vigente na antiga potência colonial. O país partiu-se de imediato em dois - dividido em monarquia e república, em ambiente de guerra civil. Henri Christophe, um dos líderes que emergira com o assassínio de Dessalines, terminou os seus dias com uma bala na têmpora.
O suicídio de Henri Christophe é uma perfeita metáfora dos duzentos anos de história sangrenta do Haiti e dos líderes ineptos que desgovernaram o país. Foram raros os presidentes, monarcas e "imperadores" que viram os seus mandatos chegar tranquilamente ao fim. Uma dessas excepções foi François Duvalier, talvez o mais sanguinário dos ditadores americanos do século XX, tristemente célebre pela sua polícia de choque, os Tontons Macoutes, que espalhava o terror pela metade ocidental da ilha de Hispaniola, descoberta em 1492 por Cristóvão Colombo, na sua primeira viagem ao Novo Mundo. Na metade oriental, hoje correspondente à República Dominicana, as coisas passaram-se de forma bem mais pacífica desde que se tornou independente da Espanha, em 1865. Sendo um país pobre, para os padrões europeus, tem apesar de tudo singrado no caminho da prosperidade graças às receitas turísticas e ao desenvolvimento da agricultura, com destaque para as culturas do café, do tabaco e da cana de açúcar. Paredes meias com a República Dominicana, o Haiti permanece à margem dos circuitos turísticos, em grande parte pelos seus índices endémicos de criminalidade. A agricultura com potencial exportador é igualmente uma miragem: a riqueza florestal do país foi devastada por sucessivas administrações incapazes de garantir a estabilidade do solo.
O "fardo do homem branco", que funciona como grande esponja pronta a desculpar graves erros de executivos pós-independência noutras latitudes, é ainda mais injustificável aqui. Com governos que se tivessem preocupado com o bem comum, o Haiti não disporia de largos milhares de casas construídas sem índices mínimos de segurança, que se abateram como castelos de cartas durante o devastador sismo do passado dia 12. Nenhuma verdadeira reconstrução do país pode materializar-se sem começar pelo elemento básico: um Governo que saiba realmente gerir os destinos do Haiti e da sua população duplamente mártir, castigada pela inclemência da natureza e por decénios de incompetência humana.
Retratos:
1. Jean-Christophe, autoproclamado rei do Haiti
2. François Duvalier, o sanguinário 'Papa Doc'
"Em Porto Príncipe, os vivos dormem nas ruas; os mortos, nos escombros. Os números da catástrofe já parecem não fazer nenhum sentido. Foram 75 mil corpos lançados em fossas, mas quem os contou? Praticamente inexistente, o governo anuncia planos de transferir 400 mil desabrigados da capital para acampamentos organizados nas imediações da cidade destruída. Como? Quando? Por enquanto, dorme-se sob o céu negro e o calor asfixiante do Caribe, sentindo-se o cheiro fétido das fogueiras humanas. São os momentos mais perigosos para a sobrevivência dos haitianos, quando os mais fortes encontram a cumplicidade da noite para atacar os mais fracos. Brigam por comida, água, remédios - ou mesmo por bonés e óculos velhos, o tipo de farrapo que alguns haitianos ainda possuem. Há troca de socos até por restos de destroços. Nenhum haitiano parece aceitar que outro tenha mais do que ele, ainda que esse mais se resuma a lixo. (...) O Haiti, que sempre viveu próximo da barbárie, agora se queima por completo nela."
Excerto de uma excelente reportagem do jornalista Diego Escosteguy, enviado especial da revista Veja a Porto Príncipe. Um dos melhores textos sobre o Haiti que tenho lido.
"Estava sentado na minha cama, navegando na internet, quando me apercebi do silêncio, logo seguido de um estranho rugido. Julguei que fosse um camião-cisterna a passar. Mas, tem graça, pensei - parece mais o som de um tremor de terra."
Foi assim que Jonathan Katz, correspondente da Associated Press em Porto Príncipe, iniciou o seu impressionante relato, na primeira pessoa do singular, do sismo que no dia 12 de Janeiro levou a tragédia ao Haiti. Katz, de 29 anos, não é um jornalista qualquer: radicado há dois anos no país, aprendeu a falar crioulo, idioma dominante entre a população do Haiti, e tinha a particularidade de ser o único correspondente estrangeiro ali a viver com carácter permanente, fornecendo despachos para todos os grandes órgãos de informação mundiais. A Porto Príncipe têm desaguado por estes dias legiões de repórteres oriundos dos mais diversos países, vários dos quais nunca haviam sequer sonhado desembarcar ali. Mas só ele pode testemunhar com precisão tudo quanto aconteceu desde o início.
Este desinteresse dos media internacionais pelo Haiti revela bem como é fatal para a qualidade informativa o desinvestimento nas redes de correspondentes e no envio regular de equipas de reportagem para fora do estreito perímetro das cidades onde se editam jornais, rádios e televisões. É uma consequência paradoxal da globalização: quanto mais se diluem as fronteiras entre países e continentes, tanto mais viramos as costas a realidades a que nos julgamos alheios mas que nos tocam fundo em momentos de crise grave. Porque o que sucedeu lá, naquelas proporções dantescas, pode acontecer amanhã noutra latitude. Pode também acontecer aqui.
Katz estava lá. Pôde relatar-nos, em primeira mão e com conhecimento de causa, como o inferno se abateu em poucos segundos sobre este país que poderia ser um pequeno paraíso. "A delegação da AP, uma nota de rodapé na devastação, é uma ruína inabitável, à beira do colapso. Uma cidade inteira grita por socorro. Consegui finalmente deter-me na internet tempo suficiente para me aperceber que alguns destes apelos terão resposta, de uma forma ou de outra. Mas o que acontecerá após esta ajuda, como muito do que existia aqui, desaparecer? Haverá um amanhã?"
É a pergunta, dramática mas inevitável, que fica a repercutir na mente de qualquer leitor que percorra estes parágrafos transbordantes de emoção. Haverá um amanhã para o Haiti? Haverá um amanhã para países forçados a enfrentar catástrofes naturais somadas à criminosa negligência dos homens? Haverá um amanhã para um jornalismo cada vez mais distante das parcelas do globo que só conseguem ser notícia quando são varridas pela tragédia?
Pode um avião carregado de ajuda de emergência servir de transporte a duas dezenas de jornalistas armados em celebridades? Pode. Pode um "enviado especial", borrado de medo, desatar em pranto logo após ter aterrado no Haiti? Pode. Pode algum repórter chegar irresponsavelmente à zona mais devastada do planeta sem água nem um telefone pronto a funcionar? Pode.
É um outro retrato da catástrofe no Haiti, desta vez tendo a ver com jornalistas. Leia tudo aqui.
Em 1948, Truman Capote visitou o Haiti e escreveu um magnífico texto sobre o país, já então um dos mais pobres do mundo, a sua população e a capital, Porto Príncipe, dominada pela "catedral azul-celeste" e pelo cemitério, "grande jardim branco de pedra, uma cidade dentro da outra".
Hoje são diferentes as imagens que nos chegam do Haiti: a grande catedral está parcialmente destruída e o vasto cemitério é incapaz de acolher o número interminável de vítimas de um dos mais devastadores sismos de que há memória. Sinto um nó na garganta enquanto vejo as fotografias que vão chegando da Associated Press à minha mesa de trabalho: muitas reflectem um horror indescritível.
Regresso ao texto de Capote, integrado em Os Cães Ladram, fabuloso livro de crónicas e memórias de pessoas e lugares. "De modo geral, os haitianos são pobres; contudo, a sua pobreza não se reveste daquela atmosfera malévola, mesquinha, que envolve a pobreza que exige a manutenção das aparências. Sempre me aborrece um tanto quando um lugar-comum repisado se revela verdadeiro; nem por isso deixa de ser um facto, creio eu, que as pessoas mais generosas são aquelas que menos têm para dar. Quase todo o haitiano, quando faz uma visita, se despede com alguma pequena lembrança, em regra bastante singular: uma lata de sardinhas, um carrinho de linhas. Mas são dádivas oferecidas com tanta dignidade e delicadeza que, ali, as sardinhas contêm pérolas, a linha é de pura prata."
Hoje os haitianos necessitam, mais que nunca, das dádivas do mundo inteiro - necessitam e merecem. Para que a esperança renasça dos escombros. Em nome da generosidade inata deste povo mártir. E em nome da mais elementar dignidade humana.
Ler:
- Notas haitianas. Do Eduardo Pitta
- O voyeurismo da tragédia. Do Francisco José Viegas
- Banalizando o mal absoluto. De José Adelino Maltez