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Delito de Opinião

Guimarães

José Meireles Graça, 17.10.22

Aqui à minha volta está tudo em obras e estas consistem em tirar o cimento ou alcatrão que têm os passeios para pôr cubos e guias de pedra, alargando alguns e construindo outros onde ainda não os havia, alterar o desenho das placas (a que me fica perto da porta foi em tempos alargada, com o propósito aparente de dificultar a circulação de autocarros, e está agora a ser emagrecida para o efeito de a bordejar com uma bonita guia de pedra e, provavelmente, corrigir o asneirol anterior), modificar os espaços ajardinados tirando isto e pondo aquilo e colocando uma profusão de postos de recolha de lixo diferenciado. As ciclovias, claro, permanecem, para os raros ciclistas que as utilizam, os quais aliás agora também circulam no espaço dos automóveis porque, supõe-se, sempre dá outra pica.

Não parece muito mas as obras já duram há bastante mais de um ano, envolvem considerável maquinaria, barulho e pessoal, e nos sítios emporcalhados onde já estão concluídas (emporcalhados porque o acabamento da pavimentação com cubos é feito com areia que fica ali até que as chuvas a infiltrem ou removam) vê-se um mar granítico que os edis locais, os arquitectos projectistas destes arrebiques e, suponho, os munícipes, apreciarão – está muito giiiiro.

A ideia de pôr cubos nos passeios é uma cedência ao uso das sapatilhas porque com outro calçado são desconfortáveis, o que me leva a supor que terá havido influência dos comerciantes locais de equipamento desportivo. Ou então os decisores têm uma grande insensibilidade ao mau cheiro dos pés, hipótese que, conhecendo alguns, não descartaria prima facie.

Na antiga estrada que conheci ainda em paralelepípedos, e que há muitos anos foi alcatroada, foi tudo rebentado para pôr os tais cubos e construídos passeios, que em parte não existiam. A ideia dos passeios é boa porque se trata, actualmente, de um arruamento. Quanto aos cubos (muitíssimo mal postos) é de supor que a racional seja ou a reversão da impermeabilização do solo ou razões estéticas. Nesta zona, porém, não há memória de inundações; e não entendo com que direito o dinheiro do contribuinte é espatifado ao serviço do mau gosto de escravos da moda em arranjos urbanísticos que desprezam a função: é para os carros circularem? Então cubos são a pior escolha, que o diabo vos carregue, mesmo que o autor da ideia seja o celebrado Siza Vieira, conforme se diz na peça de propaganda em que se apresenta a “requalificação estruturante”.

Fui tentar saber quanto dinheiro se está a torrar nestas masturbações urbanísticas, mas sem sucesso: os sites da Câmara local, como é típico de edilidades, têm propaganda muita, no paleio pedante e analfabeto que tem curso no meio, e informação pouca. Muitos milhões, decerto.

É provável que andem por aqui fundos do patego europeu, e é aliás por isso que o munícipe quer obras: julga que nada lhe sai do bolso.

Sucede porém que parte da cidade é rodeada por uma impropriamente chamada “circular”, construída na década de 80 e cujos autores, e quem a aprovou, deveriam ter sido objecto de sevícias em pelourinho público: tem 4 faixas mas sem valetas (os rails ficam a poucos centímetros do leito) e sem faixa separadora central, que no caso consiste num murete de cimento, com acessos de tipologias diferentes mas sempre sem faixa própria suficientemente longa para permitir a incorporação fluida no tráfego. Os acidentes sempre foram, e serão, mais do que muitos, incluindo graves e até mortais. As obras de arte não foram previstas para alargamentos, tendo os pilares junto aos rails, o que significa que a reconversão (ou requalificação, ou lá o termo que na altura os engenheiros usarem para babujar memórias descritivas) ficará sempre caríssima. A urgência na aprovação decorria da rivalidade com Braga, uma tradicional má conselheira que norteia estupidamente não poucas decisões municipais locais.

É evidente que a circular (que aliás aguarda conclusão há décadas) é prioritária, as brincadeiras de arranjo urbano do tipo tira alcatrão põe cubos, alarga aqui e estreita acolá, aumenta a rede de ciclovias para a juventude se divertir e ocasionais velhos fingirem que pedalam bicicletas eléctricas – não.

Porquê, então, esta má alocação de recursos? Porque o automóvel não está em cheiro de santidade, o pedestre, o ciclista e a modernidade parva sim.

Há gente, e gente boa, que acha que o poder local deve ser reforçado. E é evidente que as autarquias têm mais meios, e mais poderes, do que alguma vez tiveram. A mim, sempre que confesso os meus pendores anti-regionalização, dizem-me que o poder central é, na malbaratação de fundos, muito pior. Será: mas é só um e longe. As autarquias municipais são 308 e perto.

Artistices

José Meireles Graça, 01.04.21

Desde que a cidade em que vivo foi, em 2012, capital europeia da cultura (uma invencionice da UE para promover o turismo, a indústria dos subsídios e a torrefacção de dinheiro dos contribuintes em nome do chapéu da “cultura”) que há uma quantidade inverosímil de “equipamentos culturais” que é preciso justificar. Daí as exposições, os happenings, as performances, o mobiliário artístico urbano que tem uma marcada inclinação para rotundas, e os protestos, nos discursos e escritos dos Mirabeau locais, do intenso amor que os cidadãos dedicam às questões culturais.

Livrarias há poucas e pobres; as verdadeiras catedrais são os centros comerciais; os museus os que o turista se dá ao trabalho de visitar; o circo é o Estádio de futebol; as leituras os jornais desportivos, nos outros os casos do dia e as gordas; a informação é a que veiculam os telejornais; e a música a que os cantores da moda vêm ganir ou chilrear no pavilhão multiusos, ou, no Verão, ao ar livre nas praças. E nada, absolutamente nada, permite supor que a chuva de milhões despejados em cima das actividades ditas culturais tenha modificado seja o que for. Tudo substancialmente igual às outras cidades, benza-as Deus.

Os dinheiros públicos, que como é geralmente sabido são do Estado, isto é, do PS, têm fomentado a consolidação de uma casta, que vem a ser a dos artistas, pessoas geralmente estimáveis que não cessam de promover as riquezas que lhes brotam das entranhas inspiradas, à boleia das munificências municipais.

Este clima leva frequentemente a provas de vida. Por acaso, tropecei nesta, que por desfastio fui escabichar. E faço, praticamente sem conhecer ninguém, e menos ainda ver o que quer que seja, uma apreciação altamente isenta e com um rigor analítico que me honra.

A coisa decorre sob a epígrafe "Nas margens da ficção", sendo por isso fortemente aconselhável ficar à margem, o que sem dúvida a maior parte dos munícipes fará. Vejamos:

Uma Francisca Carvalho apresenta um conjunto de desenhos a pastel "de índole visceral, musical e futurista".

Os locais são grandes apreciadores de vísceras, nomeadamente iscas de cebolada, e decerto alguns cairão no engodo. Nem só de iscas vive o Homem, dirão filosoficamente enquanto veem os pastelões.

Outra exposição chama-se 'Pasado' e é assinada pelo artista mexicano Rodrigo Hernández, com objetos de diferentes épocas "que colocam em questão concepções lineares da história”.

Concepções lineares?! Ah, já sei, o progresso é quase sempre enganoso, não existem culturas superiores porque todas se equivalem, e devemos inspirarmo-nos no passado para efeito de concluir que já não há tempestades como antigamente e que, realmente, angariar subsídios para o presente é que é um verdadeiro avanço.

Há ainda 'Quarto Blindado', em que Fernão Cruz destrói e reconstrói memórias de infância por intermédio de uma instalação de grandes dimensões composta de figuras em papel mâché e pinturas em tecido das ilustrações de F. D. Bedford para o livro "Peter and Wendy".

É instalação em papel mâché? Ou seja, bonecos toscos de lixo de cartão colado com cuspo e significando nada? Não parece muito inspirador.

Para ver também 'Complexo Colosso', que destaca o 'Colosso de Pedralva', um caso de arqueologia especulativa do norte de Portugal, com desdobramentos no imaginário português e galego, com a participação dos artistas Alisa Heil e Andre´ Sousa, Andreia Santana, Carla Filipe, Gareth Kennedy, Jorge Barbi, Jorge Satorre, Lola Lasurt, Nova Escultura Galega: Jorge Varela e Misha Bies Golas, Pedro G. Romero, Salgado Almeida e Taxio Ardanaz.

A mistura de arqueologia com a especulação e os artistas garante uma barafunda. Porém, pode eventualmente revestir-se de interesse no caso de o colosso desvelar o mistério da sua origem (que provavelmente nada tem a ver com a cultura castreja e nem sequer, talvez, com antiguidade que vá além de 200 anos).

"Algumas exposições constituem-se também como remontagens porque dizem respeito ao trabalho artístico e curatorial a partir da coleção de José de Guimarães, ao exercício dos olhares, das ficções e das narrativas", refere o comunicado. Nestas, inclui-se 'Mistérios do fogo', uma exposição coletiva que apresenta, pela primeira vez no museu, um conjunto de cinquenta esculturas africanas sobre o tema da maternidade pertencentes à coleção de José de Guimarães, adquiridas a partir dos anos 80, na Europa.

Que bom, de escultura africana ninguém entende nada, de modo que os visitantes poderão, se tiverem comprado um treco num mercado em Nairobi, imaginar que têm um valioso objecto artístico em casa.

À sua volta, estarão trabalhos de outros artistas, como os desenhos florais de Maria Amélia Coutinho, mãe de José de Guimarães, as histórias de emancipação das mulheres negras, no filme 'Kbela' (2015), da cineasta brasileira Yasmin Thayná e, finalmente, o projeto 'All My Independent Women', de Carla Cruz, que incorporará novos capítulos, neste caso, pedaços da história das mulheres de Guimarães.

A mostra de desenhos florais da mãezinha é uma iniciativa ternurenta que merece ser acarinhada. Já os filmes das cineastas pertencem à categoria cinema com mensagem, do qual as pessoas que não têm um desejo abrasador de reformar o mundo fogem a sete pés.

Uma outra proposta é 'Sala das Máscaras convida', em que Sarah Maldoror apresenta uma ideia de "cinema crítico" em diálogo com a coleção de máscaras africanas.

Não te incomodes, Sarah: é muito pouco provável que alguém perceba o que dizes, dada a barulheira que as máscaras devem fazer em diálogo com o cinema crítico.

Já a exposição 'Signos Sinais' é um breve capítulo da longa narrativa sobre o signo realizada por José de Guimarães.

As pessoas que sabem o que é o signo abster-se-ão de aprofundar os seus conhecimentos; a as que não sabem poupar-se-ão à maçada de o descobrir, de modo que talvez não fosse pior cancelar esta exposição.

Há ainda 'Mitos... Non...Avesso', uma pesquisa poética e crítica a partir do mito de D. Sebastião com a participação de trabalhos de Anna Franceschini, Horácio Frutuoso, José de Guimarães, Kiluanji Kia Henda e Manoel de Oliveira.

A secção de terror, portanto: pesquisa poética quer dizer excertos conhecidos, que não vale a pena ouvir, e desconhecidos, que ganhariam em assim continuar. A inclusão de Manoel de Oliveira, que é o falecido génio pátrio do enjoo cinematográfico, é a cereja em cima do monturo.

Estas novas exposições ficarão patentes até 05 setembro, com lotação limitada a 20 pessoas em simultâneo.

A organização prevê, contudo, que não há o risco de a lotação em momento algum ultrapassar as dez pessoas, excepto se houver alguma aglomeração circunstancial de familiares dos artistas.

Também no dia 16, no Palácio Vila Flor, abre a exposição 'Movimentos Bruxos', com curadoria de Ivo Martins e autoria do grupo artístico que junta Carlos Lima (1970), Dora Vieira (1991) e João Alves (1983). Trata-se de diferentes manifestações das suas entidades individuais sob a forma de pintura, colagem e escultura, assim como a sua fusão em peças desenvolvidas no conjunto. "É na forma de instalações imersivas, cinéticas e cénicas, projetadas como uma expedição a fragmentos de realidades paralelas que amplificam e modelam os contornos absurdos e fantásticos da realidade quotidiana, exteriores às coordenadas geoespaciais padronizadas e que preservam o efeito hipnótico de uma beleza formal antiga, pré-digital", remata o comunicado.

Não estou em condições de comentar por não ter percebido a ponta de um corno e, para me ajudar a penetrar neste texto cabalístico, ter tentado contactar o bruxo de Fafe, o qual porém não estava disponível. Anda assim, talvez valha a pena, apesar de tudo, a visita ao Palácio de Vila Flor: parece que a cafetaria é muito aceitável.

 

O nó de Silvares

José Meireles Graça, 28.03.21

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Não concordo com a alegação de que a classe dos arquitectos seja a mais estúpida de todas. Quem defende semelhante proposição apresenta edifícios brutalistas para exemplo e não acrescenta, mas podia acrescentar, que ainda a população atónita estava mal refeita de monstros totalitários de betão cheio de bolor e vigas de ferrugem, e já estava a ser submergida por edifícios concebidos ao abrigo de doutrinas obscuras como o expressionismo estrutural e o desconstrutivismo, que quase ninguém, e eu menos ainda, sabe bem o que sejam.

Não interessa muito: toda esta cangalhada de betão, aço, outros metais e vidro, será substituída em devido tempo, que não são materiais que se aguentem muitos séculos sem altíssimos custos de manutenção; e o séc. XX será em devido tempo catalogado como pobríssimo nas artes, salvo na da treta propagandística e da exaltação absurda do génio dos artistas – como se estivesse ao alcance de sucessivas gerações de analfabetos culturais produzir resmas daqueles.

Daí que a minha admiração pelos nossos génios da arquitectura contemporânea decorra exclusivamente dos prémios que ganham lá fora: a porta do sucesso é estreita e se quem a franqueia o faz a produzir edifícios que parecem máquinas fotográficas, por mim tiro-lhes o meu chapéu, seguro de que seria pior se parecessem supositórios.

Deixemos portanto os grandes voos da especulação artística, para os quais aliás não estou talhado: teria de ter a capacidade de redigir em português sem concordâncias textos ininteligíveis, sofisticados, pedantes e significando nada, a título de memórias descritivas ou de artigos de opinião em revistas da especialidade.

Do que quero falar é de uma obra na minha cidade, que mergulhou os locais, incluindo-me portanto, em grande satisfação: trata-se do nó de Silvares. Já quando se construiu o acesso à A7 (em 1996, salvo erro) se podia ser o recordista da burrice, num campeonato que tem um excesso de concorrentes, e perceber que iria dar como resultado que a certas horas do dia se levaria tanto tempo a chegar da portagem à cidade como do Porto à portagem. E que quando se construiu o Espaço Guimarães, em 2009, consistindo numa catedral Auchan e um centro comercial gigantone para onde os locais vão aos magotes imaginar que são modernos, a rotunda que se vê na fotografia se transformaria num inferno.

Abençoada obra, portanto. Sucede porém que, poucos dias volvidos, já há filas de trânsito num dos sentidos. E isto, ó deuses, porque quem fez o projecto resolveu o problema do acesso às autoestradas (há apenas uma mas cruza um km à frente com outra) seguindo em frente, pelo túnel. Todavia, a via da direita, que vem da cidade, serve para quem quer virar à esquerda, na rotunda, para o Pevidém, e para a direita, em direcção ao tal Centro e outros destinos, dos quais há uma quantidade. Portanto, foi criado um gargalo, já que, no lado direito paralelo ao túnel, na direcção de quem vem de Guimarães, deveria haver duas faixas (uma para quem se quer dirigir à esquerda na rotunda e outra para quem quer virar à direita), pelo menos nos últimos 200 ou 300 mt. Não foi feito. E como uns opacíssimos muros pintados não permitem ver quem vem da esquerda, na rotunda, senão quando já se está em cima dela, toda a gente pára. Disto, e da quantidade de veículos, vêm os engarrafamentos.

A obra custou 3,6 milhões de euros. Não terá sido pelo custo de uma miserável faixa extra que esta se deixou de fazer.

Cá para mim, é um erro de projecto. E como me chamam a atenção para isto não ser provavelmente asneira de arquitecto, mas de engenheiro, fica um paisano sem saber que classe profissional execrar, e menos ainda quem são ao certo os técnicos que mereceriam ser chicoteados numa praça central. O que também não seria pacífico: destas há duas, uma velhinha e outra velhíssima, a primeira desfigurada pela intervenção artística da edilidade. Seria provavelmente a mais indicada.

O altar da Pátria

José Meireles Graça, 23.10.20

Um conterrâneo telefonou-me para informar que tinha passado na RTP2 um filme sobre Guimarães e que nele figuravam algumas pessoas que conhecíamos.

Fui ver. A película chama-se Torres & Cometas, um título enigmático que graciosamente é desvendado, em parte, pela apresentação escrita e, no resto, pelo filme propriamente dito. Cometas são o homem da câmara, Gonçalo Tocha, e o carregador do microfone; e torres uma que está na igreja de S. Pedro, no centro novo da cidade, cujo edificado é principalmente do séc. XIX, e outra que não está lá mas que deveria estar, como somos informados por um entusiasta local. O qual acha a igreja (aliás basílica, informa com orgulho), “uma das mais bonitas de Portugal”. Presumimos que, se lhe fosse acrescentada a torre que ficou a faltar, ficaria uma das mais bonitas da península.

A igreja aparece mais do que uma vez, de modo que a tragédia do par que ficou ímpar deve ter impressionado a alma sensível do realizador. E não houve portanto tempo para mostrar a de Nossa Senhora da Oliveira, ou a de S. Francisco, ou a das Dominicas, ou a da Misericórdia, ou a dos Santos Passos, que todas, entre outras, talvez tenham mais créditos arquitectónicos e históricos que o templo perante o qual Tocha encalhou.

Encalhou noutras marés: largos minutos são consumidos com microfones avariados que o operador tenta consertar pelo expediente de olhar para eles, e nós para ele; assistimos a várias conversas de telemóvel cuja pertinência ou interesse num filme sobre a cidade ficam envoltos em mistério, uma delas junto ao busto de João Franco, que ouve com serenidade as irrelevâncias; e no interior de uma livraria alguns intelectuais locais trocam impressões, mormente sobre o facto de estar a chover.

A participação de intelectuais não fica por aqui: num grupo um perora indignado a favor do Obamacare e contra os bancos, no meio de um silêncio aquiescente. E o espectador pode concluir, descansado, que na Capital Europeia da Cultura (o filme é dessa época e foi repetido agora, decerto por ser um marco miliário na história da cidade, da RTP2 e dos dislates) há gente que lê livros e tem opiniões. Das boas, isto é, de esquerda, e dos bons, isto é, dos consagrados pelos bonzos do pensamento.

A certo passo, somos surpreendidos por um carrinho de bebé que rola por uma ribanceira com uma moça, desesperada, a correr atrás. E o episódio deve ter um significado profundo porque o mesmo carrinho, e a mesma moça, aparecem mais à frente noutro local mas na mesma desesperante situação. Se fosse frequentador dos círculos esclarecidos, já decerto me teriam explicado a simbologia implícita no episódio.

Outro mistério é a estátua de Mumadona. Ou melhor, a razão pela qual as pessoas passam por trás da estátua e não pela frente. Como fica numa praça que atravesso frequentemente a pé, e também eu passo por trás, espero conciliar o sono apesar de não conseguir dilucidar a questão, que o filme não esclarece.

Não falta também um momento poético: somos preparados magistralmente, numa gruta na Penha, para uma epifania: e ela vem sob a forma de barulho de água a correr, que lembra o barulho da água a correr.

Não são apenas estes os motivos de forte interesse: vemos uma manifestação junto à Casa das Artes, onde um popular exaltado exibe uma cartaz do tamanho de um cartão de visita; uma banda que assassina com diligência a Abertura 1812; uma loja de ferragens que vende espadas como a de D. Afonso Henriques; Cavaco Silva que sobe a um palco para dizer não sei quê, e outros senhores que fazem discursos patrióticos; um alfarrabista que não chega a dizer nada que se ouça porque também ninguém lhe perguntou; um bairrista excitado que garante que o monte da Penha tem 617 metros de altura, enquanto o do Sameiro, em Braga, regista apenas 400 e tal, prova evidente da superioridade do altar da Pátria; uma azougada e muito jovem banda de S. Torcato, com original música pimbo-folclórica e uma coreografia dos primórdios do music hall em Freamunde;  e um erudito que quer demolir os edifícios junto à torre da Alfândega, que é “fantástica”, para salientar aquele “símbolo temporal e espiritual” (o símbolo animal devemos ser nós que estamos a ver).

Um filme repleto de história e comédia, diz a apresentação e, na parte da comédia, é verdade. Involuntária.

Lixo moderno

José Meireles Graça, 12.09.20

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Este caminho público do qual se vê a entrada é bordejado por três casas, e vai dar a uma antiquíssima rua, que todavia tem outros acessos mais cómodos. O serviço municipal de jardins limpa-a na ocasião de aparar a sebe, aí uma vez por mês. No mais, a parte que corre ao longo do meu terreno, que é a maior, está irrepreensivelmente limpa porque disso trato eu; e neste ponto, que é mais largo e onde por isso estacionam carros, a esterqueira é de rigor. Os locais deitam tudo para o chão e seria possível fazer um estudo sobre a sociedade de consumo, demografia e rendimentos desde 1975 (que foi quando para aqui vim), apenas com base nos detritos que se encontram. Por exemplo, dantes recolhia muitos cotonetes, sinal seguro de que havia bebés ou uma epidemia de otites; em tempos havia seringas e garrafas de água, indicação de por ali estadearem enfermeiros sedentos; e agora é mais embalagens de todo o tipo de alimentos, para chocolates, hambúrgueres, barras de não sei quê e outro lixo de que se alimentam as pessoas, além de garrafas, eletrodomésticos avariados, móveis fanados, maços de tabaco e, recentemente, máscaras contra o medo, invariavelmente azuis porque as de fantasia são mais usadas por pessoas de representação.

O estudo teria grande interesse. E, fosse eu um académico das ciências sociais, poderia fazer um paper muito bem acolhido pelos pares e ecoado na imprensa se estabelecesse, o que não parece particularmente difícil, adequadas correlações com a depauperação dos recursos naturais, a obesidade, a violência doméstica, o heteropatriacardo, as causas profundas da queda da taxa de natalidade e os males insanáveis do capitalismo.

Mas como não sou fico-me pela constatação de que já foi pior, digo-o com a tranquila autoridade de quase meio século de experiência. E a câmara local, que tem os tiques abomináveis de todas as outras, isto é, no essencial, ser um repositório de quanta moda cretina anda no ar da gestão local, e torra milhões com quadros pletóricos de inúteis e requalificações urbanísticas modernaças enquanto proliferam bairros de jagunços, para não falar do ódio militante ao automóvel, nem tudo fez mal: o centro velho da cidade, onde não ponho os pés, foi recuperado; os serviços de jardins e arborização têm feito há décadas um excelente trabalho; e por todo o lado há receptáculos de lixo ligeiro, onde se encontra o que estaria no chão se não existissem.

Quer dizer que é preciso paciência. As coisas poderiam ser aceleradas se houvesse incentivos, além dos recipientes, para as pessoas não sujarem, por exemplo isenção de taxa para quem se comprometesse, sob compromisso de honra, a manter limpo um xis número de metros em torno da sua habitação.

Ideia maluca, bem sei. Honra, compromissos, isenções… o paleio é mais adjudicações, taxas, multas, posturas, negócios verdes e obrigações.

É por isso que desconfio desta iniciativa. Pedante desde logo pela sigla inglesa. Bem sei que os locais, desde que dividam uma chafarica em duas, lhe chamam group, mas têm a desculpa de serem exportadores. A Câmara não tem desculpa nenhuma, a menos que o throw representado na sigla queira dizer vomitar por causa da parolice, caso em que lhe falta a partícula up. Depois, a notícia, cálculos e previsões não faz, o que em si interessa pouco: seria provavelmente propaganda. Diz o quê, então? Isto:

“O PAYT potencia a recolha selectiva através de um tarifário de resíduos no qual existe uma relação directa entre o pagamento e a produção de resíduos indiferenciados. Ou seja, os aderentes ao sistema pagam pelos sacos que utilizam para depositar o lixo indiferenciado que produzem e beneficiam de uma redução/isenção na taxa de resíduos que é cobrada na factura da água."

Tradução: o serviço é o mesmo, mas mais caro. Como os aumentos de taxas não estão em odor de santidade, há que os embrulhar na retórica dos descontos e obscurecer o processo de tal modo que ninguém consiga apurar se o munícipe ganha ou perde no processo. E para fechar o canivete aos que constatem que perdem, levam já adiantada a explicação: produzem muito lixo, seus porcos.

Bem visto, e a manobra foi premiada, uma grande honra. Fui ver quem deu o prémio e aquilo é uma floresta de organismos verdíssimos, tudo dependurado na UE, uma organização benemérita que distribui dinheiro milagroso, que nunca foi nem vai ser cobrado, e prémios a quem pensa o que acha que se deve pensar.

A coisa ainda não chegou aos meus lados, que vivo na periferia. Mas chegará e não tenho dúvidas de que vou pagar mais. De vingança, seria capaz de deixar de limpar o caminho público. Seria. Mas não vou: tenho, de graça, pelo espaço público, o respeito que parte dos meus concidadãos, e a Câmara, dizem que têm.

Esplanadas

José Meireles Graça, 10.07.20

De regresso de uma curta ausência, voltei à minha pista pedestre/ciclística, para o habitual passeio de pouco mais de 6 km, ao fim da tarde. Há a meio uma zona de descanso, com um bebedouro e bancos. Nestes nunca me sentei porque são bancos com design, isto é, de betão e desprezando a função, o que faz com que, como estão à torreira do sol, devam estar a escaldar, e como são mal desenhados devam ser desconfortáveis.

O conjunto, projectado decerto por um desses arquitectos contemporâneos cujo sonho é reinventar a roda, estava há muito rodeado de fitas e grades por causa do extremoso cuidado da edilidade com a Covid, que hoje já estavam removidas. Compreende-se: um dos frequentadores podia surpreender uma das frequentadoras descansando de suas corridas e, enternecido pelo aspecto afogueado da jovem, e pelos seus shorts e top reveladores, entabular amigáveis conversações que, não sendo seguro que desembocassem na produção de um novel munícipe, e portanto potencial contribuinte, poderiam ainda assim espoletar um novo surto de infecção.

Não que interessasse muito: a própria pista esteve encerrada enquanto durou o confinamento, com a adequada vigilância da Polícia Municipal, não fosse algum munícipe, dos poucos que por lá andam, lembrar-se de ir fazer exercício e, pior, pôr em causa o claríssimo abuso de autoridade dos senhores edis. Que evidentemente não têm competência para impedir a circulação por causa de manias da vereação e terrores de uma população atordoada pelo massacre obsessivo da comunicação social, que reclama proibições, multas, interditos e toda a sorte de abusos – porque a causa parece justa, o medo é muito, e a ignorância ainda mais.

Quando se fizer a história que vale a pena, isto é, não a da Covid, mas a da vasta reacção de pânico injustificado que tomou conta do mundo, haverá lugar para pôr em contexto o poderoso impulso que a doença deu a toda a casta de estatismos, toda a sorte de intervenções e estupidezes das grandes e pequenas autoridades, todo o reforço injustificado de poderes das polícias, todo o desnecessário dano para a economia, e toda a dificuldade para fazer regressar esses monstros para dentro das respectivas caixas.

Entretanto, e para a pequena história, houve inesperados benefícios. Na minha cidade, havia falta de esplanadas: a Câmara local sempre teve uma palavra a dizer, porque o espaço é público, e essa costumava ser não.

Não porque o poder se mostra em todo o seu esplendor quando rejeita a pretensão do requerente; não porque os engenheirozinhos, os arquitectozinhos, os vereadorzinhos têm a sua tradição, e essa não é a de facilitar, anuir, concordar, mas a de colocar obstáculos que lhes justificam a importância.

Sucede que as regras de afastamento que ditaram a redução do número de lugares nos restaurantes levaram a que quem pudesse tivesse pedido para fazer uma esplanada, e quem a tinha para a aumentar. E foi permitido.

No centro da cidade (o novo, essencialmente do séc. XIX) a praça é periodicamente sujeita ao capricho e à moda, ou à ideia que dela fazem os parolos locais: Já teve jardim e coreto, o jardim já teve uma cerca e portões, já teve uma estátua, a fonte que lá está substituiu outra (embora não exactamente no mesmo local) que foi exilada, e em 2011 houve uma requalificação, que consistiu em tornar o espaço insusceptível de ser um lugar de convívio: quase não há sombra, o piso empedrado (desenhando uma planta do centro da cidade, utilíssima para quem vier de helicóptero) reverbera o calor, e de um dos lados colocaram um extenso e dispendioso gradeamento dourado separando o nada de coisa nenhuma, uma obra de arte de uma tal Ana Jotta que em devido tempo irá para a sucata (a obra, não a artista, que felizmente não conheço), seu destino natural.

Nos passeios alargados, onde aliás circula menos gente do que em tempos pretéritos porque a cidade cresceu, tem outros polos e outros hábitos, cabem à vontade esplanadas. E começam-se a ver, não por causa do senso, que não costuma ser atributo inerente à condição de autarca, mas da Covid.

Donde, concluo filosoficamente que Deus, às vezes, escreve direito por linhas tortas, e a Covid também.

Dois reis medievais e “suas” cidades

Cristina Torrão, 07.01.20

Este postal não se insere na série das efemérides à volta da formação de Portugal, mas não quis deixar de assinalar o aniversário da morte de D. Dinis, pois ele e D. Afonso Henriques são os dois reis mais significativos da nossa Idade Média. Além disso, aproveito para falar da sua ligação às cidades com que os identificamos.

D. Dinis morreu a 7 de Janeiro de 1325, com sessenta e três anos, depois de um reinado longo e sobejamente preenchido. Apesar de ter sido coroado com apenas dezassete primaveras, D. Dinis estava, desde o início, perfeitamente vocacionado para a sua tarefa. Pode-se dizer que foi um monarca feliz, se exceptuarmos a recta final do reinado, marcada pela guerra civil contra o seu próprio herdeiro, conflito que tanto o amargurou e desgastou, que bem pode ter acelerado a sua morte.

De todas as medidas que tomou ao longo dos 46 anos de reinado, a fundação da Universidade é a que mais se recorda, levando-nos a acreditar que o Rei Poeta preferia a cidade de Coimbra, onde terá vivido a maior parte do seu tempo, escrevendo poemas nas margens românticas do Mondego. Esta imagem, porém, não passa de uma fantasia. Apesar de gostar de Coimbra (como gostava, ou amava, todo o seu reino), D. Dinis identificava-se, acima de tudo, com Lisboa, a sua cidade-natal e, de longe, a preferida. E foi precisamente na nova capital do reino (desde o tempo de seu pai, D. Afonso III) que a Universidade (inicialmente apelidada de Estudo Geral das Ciências) foi fundada.

A 12 de Novembro de 1288 redigiu-se, em Montemor-o-Novo, a carta ao papa Nicolau IV, pedindo autorização para a criação do Estudo Geral das Ciências em Lisboa. Em resposta, o papa emitiu, a 9 de Agosto de 1290, a bula De Statu Regno Portugaliae, confirmando o ensino de Cânones, Leis, Medicina e Artes e autorizando a concessão de grau de licenciado pelo bispo ou vigário da Sé lisbonense.

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Cerca de dezassete anos mais tarde, porém, é feito o pedido de transferência do Estudo Geral para Coimbra. Das razões, pouco se sabe. Na sua biografia de D. Dinis, o Professor José Augusto Pizarro refere conflitos com a Casa da Moeda em relação ao terreno que D. Dinis doara para a construção do edifício do Estudo Geral, no Campo da Pedreira à Lapa, perto do Mosteiro de São Vicente de Fora. Também haveria conflitos entre os estudantes e a população de Lisboa, embora, como referi, os motivos, tanto para uns, como para outros, não sejam hoje claros. A transferência foi autorizada por Clemente V a 26 de Fevereiro de 1308 e, a 15 de Fevereiro de 1309, pela Charta magna privilegiorum, D. Dinis estipulou os estatutos do Estudo Geral de Coimbra.

O assunto, no entanto, não ficou por aqui. A Universidade mudaria várias vezes de local, sempre entre Lisboa e Coimbra, e só ficou definitivamente instalada junto ao Mondego em 1537, mais de duzentos anos depois da morte do Rei Poeta.

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Fotografia: © UC | Ana Zayara

Para a identificação de D. Dinis com Coimbra contribuíram, não só a fundação da Universidade e a estátua inaugurada, nos anos 1950 como o facto de D. Isabel ter vivido recolhida, depois de enviuvar, no mosteiro de Santa Clara, junto ao Mondego, por ela própria mandado construir, e ter lá ficado sepultada. Ao contrário de D. Dinis, que preferiu ficar junto a Lisboa, no mosteiro de Odivelas, também por ele fundado.

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Túmulo de D. Dinis em Odivelas. Foto ©José Custódio Vieira da Silva

Na verdade, quem devia ser identificado com Coimbra era D. Afonso Henriques! Não ponho em causa a importância de Guimarães no início da nossa nacionalidade. Apesar de haver reservas quanto ao facto de o primeiro rei lá ter nascido, foi lá que ele assentou arraiais, ainda infante, ao afastar-se de sua mãe e de Fernando Peres de Trava. Como sabemos, o conflito viria a desembocar na Batalha de São Mamede, junto ao castelo de Guimarães, na sequência da qual D. Afonso Henriques atingiu o poder sobre o condado Portucalense. Lembremos, porém, que, à altura deste prélio, o nosso primeiro rei tinha apenas cerca de vinte anos. Viria a morrer com cerca de setenta e cinco - são mais de cinquenta anos de diferença… vividos em Coimbra.

Foi de facto na cidade junto ao Mondego que D. Afonso Henriques estabeleceu a sua corte, fundando o mosteiro dos Cónegos Regrantes de Santa Cruz, no início dos anos 1130, data a partir da qual poucas vezes terá estado em Guimarães, até à sua morte, em 1185.

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Afonso I - Óleo de Carlos Alberto Santos

 

Nota: O estado degradado em que se encontra a sepultura de D. Dinis, levou um grupo de cidadãos, há alguns anos, a criar uma página no Facebook, vamos salvar o túmulo do rei D. Dinis, a fim de alertar para a necessidade da sua recuperação. Graças a esta iniciativa, já se efectuaram alguns melhoramentos.

Então não se está mesmo a ver?

José Navarro de Andrade, 29.11.12

Jackson Pollock, "Number 8", 1949

 

A arte contemporânea é difícil.

Talvez esta dificuldade tenha começado a sério com Jackson Pollock cujo trabalho consistia resumidamente em atirar com pinceladas de tinta contra a tela e deixar que ela escorresse. Para complicar vieram críticos dizer que se tratava de gestualismo, elaborando teses sobre as maravilhas dos resultados. E mais bizarro ainda, os seus quadros começaram a valer milhões e são disputados por todos os museus.

Perante isto uma pessoa tende a pensar três coisas: 1) que também eu sou capaz de fazer isto; 2) o que quer isto dizer? (porque as coisas nunca são o que são e só somos espertos se percebermos o que está por detrás delas); 3) que é evidente haver um sistema, mais ou menos perverso, feito de galeristas, colecionadores, críticos, museus e leiloeiros, que promove e consagra uns artistas e ignora outros, quando parece não haver qualquer distinção entre os “bons” e os “maus”.

A arte contemporânea é difícil porque só de olhar para ela não conseguimos discriminar o génio da impostura. E quando chegamos ao capítulo das “instalações” ou das “performances” a confusão aumenta desmesuradamente. Por exemplo, a não ser pelo nome dos envolvidos (artistas e patrocinadores) ou pelo volume dos recursos disponíveis, como haveremos de diferenciar qualitativamente isto (aplausos) disto (vaias)?

Por isso a maior dificuldade da arte contemporânea foi posta do lado do espectador não do artista. Até porque, como se sabe, o bom-gosto foi a coisa mais bem repartida pela humanidade, pois cada um está muito satisfeito com a parte que lhe coube. Como evitar a tentação da chacota? Como pode alguém não se indignar pela maneira como “eles” gastam o nosso dinheiro nestas coisas? Como não ver que tudo não passa de um bando de parasitas e oportunistas? Como não ter a certeza que estes gajos andam a gozar connosco?

Há uma forma de tentar resolver o problema só que é talvez tão difícil como a arte contemporânea:

Deixar-se intrigar, o que implica não ficar muito agarradinho às certezas adquiridas; procurar cultivar-se, o que obriga a ver, ler, discutir, ouvir, interrogar – uma trabalheira; suspender o juízo, duvidar dele, até que saiba um pouco mais.

E ainda assim a arte contemporânea continua a ser muito difícil.

O glamour da cultura ou talvez a cultura do glamour

José António Abreu, 27.11.12

Panfleto distribuído à entrada de espectáculos incluídos no programa de Guimarães 2012. Desconheço se o conteúdo tem razão de ser mas não me custa a acreditar que sim. Este tipo de projectos é propenso a megalomanias em que as considerações económicas são detalhes mundanos e irritantes, afastados com garantias de ganhos significativos mas nunca directamente contabilizáveis. Os benefícios de «imagem», a criação de «hábitos», o desenvolvimento de uma «indústria cultural» e mais uma catrefada de chavões vencem sempre o cepticismo. No fundo, tudo não passa de um afinal provinciano desejo de parecer culto e inteligente; tão provinciano que acaba invariavelmente misturado com a satisfação de interesses particulares – pois se artistas «menores» e colaboradores diversos correm o risco de não serem pagos, as «mentes» organizadoras, os seus amigos e os artistas consagrados nunca têm razões de queixa. Claro que muitas vezes também é bem feito para os tais artistas menores, que vêem nestas feiras de vaidades uma oportunidade para se «afirmarem» e ganharem muito dinheiro de repente, à custa do erário público. Mas talvez o mais curioso seja que, depois, valeu sempre a pena, foi sempre um sucesso retumbante. Com o lixo empurrado para debaixo do tapete, as críticas desvanecidas pelo tempo e pelo cansaço, e as contas pagas pelo contribuinte. Cultura? Provincianismo puro.

Da vida dos insectos

Bandeira, 30.06.12

José Bandeira


Uma cidade é sempre duas: a que se vê à luz do dia e a que se adivinha de noite. Banalidade, eu sei, sempre foi assim e tal. Mas a luz do néon, mesmo se sem o fulgor e o fascínio de outrora, quase sempre surpreende no caminho escuro. Olhando-a por algum tempo sobrevém-nos a melancolia. E tem-se um vislumbre do encanto sórdido que atrai o insecto para a sua própria morte.


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(Guimarães, 2012, foto José Bandeira)

Capital europeia da fartura

Rui Rocha, 20.07.11

Jorge Sampaio, o ex-Presidente da República que ajudou a desbravar o caminho que nos trouxe exactamente até aqui onde estamos, em Além do Défice, decidiu convocar para amanhã uma reunião extraordinária  do órgão máximo da entidade que gere a Capital Europeia da Cultura do próximo ano. Na reunião será analisada "a avaliação, e suas consequências, do desempenho dos membros do Conselho de Administração da Fundação”. Entretanto, o Presidente da Câmara de Guimarães retirou a confiança à Presidente do Conselho de Administração, Cristina Azevedo. Face a estas notícias, ocorrem-me algumas conclusões:

1) Estes são tempos de factos extraordinários: reuniões, impostos, Conselhos de Ministros e sabe-se lá mais o quê. Todavia, os resultados continuam medíocres.

2) Os teóricos da motivação estão certos. Não são os salários que motivam as pessoas. Se fossem, não seria necessário convocar uma reunião para avaliar o desempenho desta gente:

"(...) salário mensal de 14.300 euros para Cristina Azevedo, presidente do Conselho de Administração, que contempla ainda carro e telemóvel. Os dois administradores executivos, Carla Morais e João Serra, auferem 12.500 euros mensais. Além disso, todos os 15 componentes do Conselho Geral, presidido pelo ex-Presidente da República Jorge Sampaio recebem 300 euros por reunião, à excepção do próprio presidente que ganha 500."

3) Em tempos de vacas magras, a racionalização de custos e a construção de edifícios apresentam muitas semelhanças. É sempre bom começar pelas fundações.

4) Pelas alminhas, não nos metam em mais certames, provas desportivas, capitais, exposições ou eventos de âmbito europeu ou mundial nos próximos 20 anos. E, depois disso, que o primeiro a realizar-se seja Portugal - Capital Galáctica do Bom Senso. Até lá, fiquemo-nos pela Feira do Oculto de Vilar de Perdizes. Que se saiba, o ocultismo que ali se pratica nunca fez desaparecer nada que nos fizesse falta. E as mezinhas do Padre Fontes não fazem mal a ninguém.