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Delito de Opinião

Pensamento da semana

Pedro Correia, 15.10.23

Três guerras em simultâneo. A que decorre da invasão russa da Ucrânia. O conflito aceso entre a Arménia (pró-russa) e o Azerbaijão (pró-turco) a pretexto de um enclave. A carnificina mais recente entre Israel e o Irão (via Hamas), hoje o principal fornecedor de armamento a Moscovo.

O mundo está perigoso. Num palácio de vidro em Nova Iorque, Miss Universo - que deseja muito a paz em todo o planeta - mostra-se preocupada.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO DE OPINIÃO durante toda a semana

Existências proibidas*

Cristina Torrão, 07.08.23

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Nesta imagem, vemos Gerd A. Meyer, um alemão de 77 anos, a pôr flores no local onde presume estar o seu pai sepultado. Gerd A. Meyer não devia existir. Quando grávida, a sua mãe podia ter sido presa, ou mesmo executada, caso se soubesse quem era o pai da criança.

Depois de os nazis terem invadido a União Soviética, em Junho de 1941, o jovem Anatoli Michailovitch Prokovski, de 19 anos, em vez de entrar na universidade, como planeara, foi alistado no Exército Vermelho. Caiu nas mãos dos alemães e enviaram-no para o campo de prisioneiros de Sandbostel, na região de Hannover. Os prisioneiros eram, muitas vezes, usados como mão-de-obra gratuita e Anatoli teve de trabalhar numa quinta das proximidades. Trouxe-lhe consequências inimagináveis: teve um romance com a filha do proprietário e ela engravidou.

Os nazis consideravam os prisioneiros e os trabalhadores forçados pessoas de menor valor, às quais se negavam os direitos mais básicos. Não se sabe quantas crianças nasceram de relações deste tipo, eram mantidas o mais secretas possível. Muitas mulheres, porém, não escaparam à denunciação. Umas foram presas, outras foram mesmo executadas. Terá havido abortos clandestinos e até infanticídios, não há dados fiáveis. Mesmo depois de terminada a guerra, as crianças fruto dessas relações eram discriminadas e insultadas, assim como as suas mães. Tudo isto contribuiu para que pouca gente revelasse o seu segredo.

A historiadora alemã Verena Buser não se conforma com o facto de o assunto continuar a ser ignorado e de o Estado alemão não ter ainda reconhecido o sofrimento dessas mulheres. Por isso, ela reúne informações, testemunhos e relatos das vidas de pessoas nascidas nestas circunstâncias, com o intuito de criar uma exposição itinerante, a ser inaugurada em Dezembro de 2024.

Não saber quem era o seu pai, causava muito transtorno a Gerd A. Meyer. Ele não tinha medo da verdade e tudo fez para a descobrir. Compreendia o silêncio da sua mãe, mas dificultou-lhe muito a pesquisa. Só em 2009, num centro documental de Dresden, teve a confirmação da identidade do progenitor e do que lhe aconteceu. Anatoli Michailovitch Prokovski contraiu uma doença grave, devido às condições deploráveis no campo de prisioneiros, e acabou por morrer, em Fevereiro de 1945, sem saber que iria ser pai ainda nesse ano.

Gerd A. Meyer entrou em contacto com os seus parentes russos, residentes em Semetchino, uma pequena cidade perto de Moscovo. Visitou-os e foi bem recebido, sentiu-se aceite, naquela família. Além disso, foi autorizado a modificar o seu nome. A novidade está no “A.”, uma abreviatura de Anatolievitch, ou seja, “filho de Anatoli”.

No campo de prisioneiros de Sandbostel, havia uma vala comum, onde se enterravam anonimamente os cadáveres. O local serve de memória, está cuidado e ajardinado. É muito provável que Anatoli também esteja lá sepultado. O filho tirou-o do anonimato, pondo lá uma cruz com o seu nome, a sua data de nascimento e a da morte. Visita-o regularmente e leva-lhe flores.

 

* Baseado num artigo do Jornal Católico da diocese de Hildesheim (edição nº 23, 11 de Junho de 2023).

A derrota e a vergonha

Pedro Correia, 28.10.19

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Às 8 da manhã do dia 21 de Junho de 1942, as tropas britânicas sitiadas na fortaleza de Tobruk, no norte de África, rendiam-se às divisões comandadas por Erwin Rommel, após terem sofrido baixas consideráveis. No seu quartel-general da Alemanha, Hitler rejubilou, entregando a Rommel o bastão de marechal. Ao receber a má noticia em Washington, onde conferenciava com o presidente Roosevelt, Churchill desabafou: “A derrota é uma coisa, a vergonha é outra.” Os britânicos tinham sido derrotados mas não deviam envergonhar-se. Tinham-se batido até ao limite das suas forças. Um ano mais tarde, recuperariam Tobruk.

A que propósito me lembrei deste emblemático episódio da II Guerra Mundial? É que ele constitui uma exemplar lição de vida. A desonra é perder sem sequer dar luta. Vale para todas as épocas e para as mais variadas circunstâncias – e também na política, que é a continuação da guerra por outros meios.

A exumação de Franco (e uma sugestão para o substituir)

João Pedro Pimenta, 17.10.19

Já é oficial. Depois de anos de contendas, discussões políticas e recursos judiciais vários, os restos mortais do generalíssimo Franco vão mesmo ser exumados. Dentro de dias, proceder-se-á à complicada operação de tirar a pesadíssima laje do altar-mor da basílica do Vale dos Caídos e levar a urna para o jazigo de família, onde repousará ao lado de Carmen Polo, sua mulher de sempre.

A operação, exigida por familiares de vítimas do regime franquista e por grupos de esquerda, além do próprio governo de Pedro Sanchez, em conformidade com uma alteração à controversa Lei da Memória Histórica, esteve sucessivamente adiada. Não é caso para espanto. Uma tal decisão, tomada finalmente pelas instâncias judiciais superiores espanholas, nunca poderia ser levada a cabo de ânimo leve. Porque mesmo que tenha passado sem problemas nas Cortes, sem votos contra, não deixou por isso de atrair a crítica dos partidos de centro e de direita, apesar da sua abstenção, de que era uma operação sem qualquer carácter de urgência e que poderia desenterrar (literalmente) ainda mais velhas feridas de guerra.

É verdade que há boas razões para que o "Caudilho" saia dali. Desde logo a razão jurídica, porque a intenção era a de albergar os restos mortais das vítimas de guerra, dos dois lados, e Franco, ao contrário de José António Primo de Rivera, que jaz ao seu lado, não o era. Depois porque o próprio Franco nunca manifestou vontade de ser levado para ali depois de morto. E sobretudo porque o mentor de uma longa ditadura de décadas, responsável por boa parte das mortes da guerra, incluindo as de alguns ali sepultados, nunca poderia ser considerado um factor de reconciliação. Sejamos justos: o Vale dos Caídos é antes de mais um altar ao triunfo dos nacionalistas, e não, como oficialmente se pretendeu, à reconciliação da Espanha "una, grande y libre".

Também há razões contrárias atendíveis: os espanhóis têm mais com que se preocupar além da exumação, remexer nas feridas da guerra, de que quase não restam sobreviventes, não prima pela sensatez, além do gosto duvidoso e dos custos da operação e da entrada de máquinas num recinto religioso. E é sabido que para alguns grupos, como o Podemos, bom era dinamitar todo o conjunto do Vale dos Caídos, Cruz, basílica, abadia, etc, e exumar antes os milhares de corpos que lá se encontram, como se isso fosse tecnicamente possível. Contrariando a norma de que "a história é feita pelos vencedores", a da Guerra Civil de Espanha é cada vez mais feita pelos vencidos.

Este ano logrei finalmente ir ao Vale dos Caídos, aproveitando uma ida a Madrid. Para quem vem de longe nem sempre é tarefa fácil, já que fecha relativamente cedo, e desde a entrada do parque há que fazer alguns quilómetros até ao santuário propriamente dito. O conjunto é impressionante, com a colunata, em frente a um amplo terreiro de onde se avista Madrid ao longe, a guardar o enorme pórtico que dá acesso à basílica. Em cima, dominando o conjunto, a emblemática e colossal cruz de granito, que se vê a muitos quilómetros de distância, com 150 metros de altura. No templo propriamente dito, escavado sob a montanha, obra que se diria construída por ciclopes, uma comprida nave conduz ao altar-mor, onde (ainda) se podem ver os túmulos de Franco e de Primo de Rivera. Há inúmeras capelas adjacentes. Numa delas rezava-se missa segundo o "rito antigo", com o padre virado para o altar. É expressamente proibido tirar fotografias lá dentro.

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Tudo isto num estilo totalitário-cristão, que se não fossem os símbolos poderia perfeitamente fazer parte dos planos de Albert Speer ou da Moscovo estalinista. A abadia que se esconde atrás da montanha é mais modesta e harmoniosa, mas ainda assim de grande dimensão. A sensação é de temor, admiração e algum desconforto. Não se vai a um tal monumento de ânimo leve. Até porque afinal de contas se trata de uma necrópole, e sob ela jazem quase trinta e cinco mil vítimas da guerra.

Franco vai sair dali, não restam dúvidas. Mas ainda que sem o "caudilho", o carácter do Vale dos Caídos permanece igual, sem que os ânimos estejam apaziguados. Houve propostas para se mudar também Primo de Rivera, mas é extremamente improvável. Fica portanto um vazio no altar-mor. É certo que já não se enterram pessoas nas igrejas, mas não se poderia pensar em substituir o espaço vazio com um símbolo de verdadeira reconciliação? Para isso, teria de ser alguém do lado dos vencidos. Mas alguém que além de vítima de guerra, fosse digno de estar ali. Seria estranho enterrar num templo católico um anticlerical. Haveria uma escolha perfeita. Digo "haveria" porque também nunca se encontrou o seu corpo.

Falo, evidentemente, de Federico Garcia Lorca, fuzilado por falangistas (que o conseguiram subtrair a outros falangistas, num processo ainda hoje obscuro), enterrado numa vala comum ainda hoje por descobrir. Lorca, o maior poeta do seu tempo, era odiado por Franco e outros do seu "lado", mas recolhia igualmente a admiração de muitos nacionalistas, a começar por Primo de Rivera, com quem se dava e que apreciava imensamente a sua obra. Liberal, homossexual e boémio, Lorca não era evidentemente apoiante do lado nacionalista. Mas também estava longe dos radicalismos republicanos, comunistas ou anarquistas que dominavam o outro lado. Era no entanto, segundo o próprio, "católico, comunista, anarquista, libertário, tradicionalista e monárquico", e "espanhol integral".

Lorca seria a peça ideal em falta para a reconciliação na basílica do Vale dos Caídos. Também ele um "caído" por aquilo em que cria, uma vítima da guerra, um liberal cosmopolita e cristão, os seus restos mortais poderiam repousar ao lado no altar-mor do templo, ao lado de Primo de Rivera, morto pelos mesmos dias pelo bando oposto. Seria o remate perfeito e simbólico do fim da guerra, cuja memória continua a envenenar Espanha. Talvez um dia os seus despojos sejam encontrados e se possa proceder ao enterro digno a que nunca teve direito. Se isso acontecer, quem sabe se as memórias desses anos de chumbo não ficam apaziguada

Atentado

Cristina Torrão, 20.07.19

Hoje, os edifícios públicos alemães apresentam-se com bandeira hasteada e há festejos em Berlim. Faz 75 anos que o coronel Claus von Stauffenberg tentou assassinar Hitler com uma bomba.

Será legítimo comemorar um atentado? Pode alguém que planeou matar uma pessoa ser considerado um herói? É legítimo acabar com vidas para salvar mais vidas?

Hitler era um psicopata assassino. E se o atentado do coronel Claus von Stauffenberg tivesse sido bem sucedido, teria sido assinado um armistício com os Aliados e as mortes causadas pela II Guerra Mundial ficariam pela metade, já que o últmo ano foi de longe o mais mortífero.

Hitler sobreviveu a vários atentados, este foi um deles. A guerra não terminou mais cedo. Claus von Stauffenberg foi executado nessa mesma noite. E hoje é um herói alemão.

 

 

Nota: esta tentativa de assassínio de Hitler foi retratada no filme Operação Valquíria, de 2008, realizado por Bryan Singer, com Tom Cruise e Kenneth Branagh.

Os heróis

Pedro Correia, 06.06.19

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Faz hoje 75 anos, desembarcaram em praias da Normandia onde os invasores nazis os aguardavam, armados até aos dentes. Alguns foram mortos em poucos minutos, milhares deles já não veriam amanhecer o dia seguinte. Mas conseguiram o objectivo: libertar a Europa. E, dessa forma, tornaram o mundo mais decente, mais civilizado, mais limpo.

Devemos as recentes décadas de progresso e prosperidade no continente que habitamos a este punhado de heróis. Alguns felizmente ainda entre nós, todos já com mais de 90 anos - tal como a Rainha Isabel II, que recorda essa longa noite totalitária iluminada por uma imprecisa luz de esperança. Foi com emoção que acompanhei as cerimónias desta manhã, honrando o heroísmo desses bravos de outrora, hoje anciãos alquebrados mas orgulhosos e dignos.

Num mundo cada vez mais despojado de valores, onde tudo se equivale sem hierarquias e a indiferença se banaliza nos mais diversos escalões da vida pública, é gratificante observar estes homens de pele enrugada e olhar cintilante que recordam os camaradas sepultados no solo sagrado da Normandia. Todos lutaram e alguns tombaram em nome de um ideal maior que eles. Enfrentaram a guerra para que a paz florescesse nas gerações futuras.

Somos os legatários dessa paz. Ser-lhes-ei sempre grato por isso.

Donald goes to London

jpt, 04.06.19

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Há algumas semanas não só uma qualquer dignitária da Comissão Europeia como, depois, o próprio presidente francês, Macron, enviaram públicas mensagens de apreço ao nosso primeiro-ministro. Em período pré-eleitoral pareceu um bocado intromissão externa. Nada de particularmente grave, por mais que nos queixemos a democracia portuguesa vai um bocado adulta (já trôpega?) e resiste a uns floreados metediços. Talvez por isso deu para este (e outros?) velhadas sorrir(em?), na memória do vero slogan "dos tempos", aquele do "meu amigo Miterrand", com o qual Soares capitalizava o apreço que no estrangeiro por ele tinham, aquilo do "A Europa connosco", em particular a sacrossanta França, a sempre Pátria de Victor Hugo, como nos ensinou e ainda ensina aquele (de facto reaccionário) Eça de Queirós. 

Mas esta "aisance" (assim mesmo, na língua de Gambetta) não foi universal. Li vários patrícios algo ofendidos com o atrevimento francófono e europeísta, isso de aparecerem políticos estrangeiros a congratularem o (de facto malvado) António Costa. Patrícios esses que nos chegam doutores e praticantes da opinião política, nos por enquanto órgãos de comunicação social e nas fervilhantes "redes sociais".

Acalmado que foi o período eleitoral esquecidos foram esses momentos. Entretanto Trump vai à Grã-Bretanha, celebrar o 75º aniversário do heróico Dia D. No caminho diverte-se a pontapear o Medina londrino, a celebrar o André Ventura lá do sítio e a propor a liderança daquele antigo estudante da Escola Europeia de Bruxelas (quereis compreender o anti-europeísmo do rapaz?). Qual a reacção dos nossos patrícios, mui liberais, veementes direitistas? Ei-los nas redes sociais congratulando-se com a bela posição do presidente americano.

A gente não tem que ser coerente (na realidade até nem o deve ser). Mas para quem anda, até arisco, a botar sobre política, a publicar livros-manifestos, a abrir partidos, a propor novos caminhos, renovar e regenerar o envelhecido degenerado, convirá ter alguma ... consistência. Um bocadinho, pelo menos. É que, em não a tendo, o pessoal depois não vai votar nestas "novidades".

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Entretanto, e só para aqueles mais conservadores, ligados aos valores patrióticos, de sacrifício pelo bem comum: utilizar a celebração deste tipo de heroísmo extremo para "mandar bocas" aos medinas alheios é mesmo sinal de pequenez. Reconhecível, excepto pelo mentecaptismo liberalóide.

As bombas por explodir

Cristina Torrão, 16.05.19

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Imagem daqui

 

Aconteceu mais uma vez (acontece regularmente na Alemanha), ontem à tarde. Na sequência de obras, em Hamburgo, foi encontrada uma bomba americana de 500 kg da 2ª Guerra Mundial que não explodiu. Muitas bombas que foram lançadas dos aviões não explodiram e ficaram "adormecidas", debaixo da terra. Isto não quer dizer que não sejam perigosas, podem rebentar se houver um contacto de qualquer tipo, como neste caso, em que uma retroescavadora a pôs à vista.

Quando é encontrada uma bomba destas, a cidade paralisa. Neste caso, a zona de evacuamento compreendeu um raio de 500 metros, sendo que, até um raio de 1000 metros, houve uma zona de prevenção, em que as pessoas foram aconselhadas a permanecerem em suas casas, de portas e janelas fechadas. Foram evacuadas 7.000 pessoas, abrigos tiveram de ser improvisados em tempo recorde, normalmente, em ginásios de escolas. As ruas foram cortadas, os transportes públicos (incluindo metro) paralisaram. Pode-se imaginar o transtorno que isto causa numa cidade de milhões, em cima da hora de ponta.

Neste caso, a evacuação foi demorada, pois a zona incluía dois lares de idosos, com muitos acamados, ou em cadeiras de rodas. Havia também um hospital, mas fora do raio de 500 metros, pelo que não teve de ser evacuado, "apenas" o serviço das Urgências foi desactivado. A operação iniciou-se pelas 16h15m, a desactivação da bomba estava planeada para as 19h00m, foi adiada para as 22h30m, mas passava já da meia-noite, quando os bombeiros deram a operação por terminada.

Para a desactivação destas bombas, há, claro, especialistas. Os trabalhos costumam decorrer sem percalços, mas não deixa de ser uma intervenção perigosa. Entre bombeiros, polícia, médicos, socorristas e outros ajudantes, estiveram envolvidas cerca de 400 pessoas na operação.

In Memoriam

Fernando Sousa, 11.11.18

Ergueu-se Abraão, rachou a lenha e partiu

E consigo levou a chama e um cutelo.

E quando juntos se quedaram ambos,

Isaac, filho primeiro, assim falou: `Meu Pai

Tudo está preparado, o ferro e o fogo

Mas qual é o cordeiro a imolar nas chamas?`

E Abraão prendeu o jovem com cinturões, correias,

Em redor construiu trincheiras, parapeitos

E empunhou o cutelo para matar seu filho.

Dos céus um Anjo lhe bradou então

E disse: `Não levantes a mão contra esse jovem

Nada tentes contra ele que é teu filho.

Vê! Um cordeiro preso está ali naquela sarça.

De orgulho oferece um sacrifício em vez do jovem.`

Mas por não querer assim, matou o velho o filho

E um por um também metade dos filhos da Europa. 

 

Parábola do Jovem e do Ancião, de Wilfred Owen, poeta inglês morto nas trincheiras uma semana antes da assinatura, há cem anos, do Armistício da Guerra de 1914-18, in Elegias.

Pensamento da semana

jpt, 11.11.18

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Como não desprezar toda esta pompa comemorativa se lendo Jacques Tardi, décadas de magistral vasculha da história sem fim da I Guerra Mundial, no mostrar da desgraça de cada poilu, milhões de Varlots, subjugados ao miserando militarismo alimentado do mais torpe e ávido dos nacionalismos, na mais ignóbil das guerras, a do estertor suicidário dos velhos impérios?

E como não resmungar diante do nosso empertigamento falsário, esquecendo aquela república logo-trôpega vendo a guerra como única forma de se sustentar, gulosa da presença no festim dos despojos? Escamoteando um país agressor, na volúpia de mais um pedaço de terra longínqua, subtraída aos que também já dela se haviam apropriado? Glorificando a pobre tropa da Europa, ali indesejada pois inútil no desequipada e impreparada que era, mera má carne para canhão? E falsificando a guerra de África, dizendo-a ainda, com impudicícia neste XXI, "campanhas de pacificação" indígena? Escamoteando a incompetência das expedições, nas quais a pobre soldadesca arregimentada, ali obrigada, tão vítima foi da inexistência de comando, conhecimento de terreno ou material adequado, este aldrabado pelas corrupções da administração militar? E de ter sido aquilo ainda uma tropa de antigo regime, de oficiais privilegiados, com rações e equipamentos superiores, deixando os meros praças morrer à míngua diante da inclemência dos elementos? E o silêncio sobre o descalabro demográfico que foi a hecatombe dos arrebanhados carregadores africanos? Como aceitar tantos meneios contextualizadores quando se refere a "guerra colonial" de 1961-74 e tantos encómios embrutecidos a esta mera guerra colonial de 1915-1918? Como compreender que surjam políticos, ignorantes ou malévolos, apenas netos herdeiros daquele malvado republicanismo, chamar a tudo isto "patriotismo"? 

E diante deste cerimonial patético, alarido de sociedade disfucional, como esquecer Pemba, a antiga Porto Amélia, lá no Cabo Delgado, onde Von Lettow-Vorbeck se cumulou de glória face aos britânicos, diante da total irrelevância inepta do corpo expedicionário português, devastado pelas doenças, palmilhando a selva incapaz até de combater? Como esquecer, ainda para mais vendo as encenações lisboetas d'agora, aquele cemitério militar? 

 

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Ali a irritar-me até envergonhado, no verdadeiro patriotismo, não este de pacotilha, vigente no "Terreiro do Paço", de Belém a São Bento ... A descer destes talhões militares até à baixa da cidade, ao comerciante português residente, "arranja lá uns homens, deixo-te aqui 100 dólares, eles que vão lá capinar aquilo, que é uma vergonha", ainda para mais separado por um mero murete, tão mero que se cruza no alçar da perna, do talhão da Commonwealth, esse arranjado todos os meses, impecável, túmulos à antiga, que os britânicos andaram a recolher os corpos do mato e ali os sepultaram: uma ala de europeus, uma outra de indianos, uma outra de africanos. Todos com uma lápide, um nome, posto, regimento de pertença e datas. Sim, era um império, diferenciavam raças e religiões, hierarquizavam-nas. Mas, pelo menos na morte, cada um era um. Com nome, túmulo e respeito. Até hoje. E os nossos? Anónimos e desgraçados na vida, anónimos e desengraçados na morte.

E depois em Maputo ao adido de defesa, "ó comandante, vá lá ver aquilo, sff, que é uma vergonha". E ele, mar-e-guerra como deve ser, a tomar-se de brios, a visitar, a informar. E, meses depois, "ó doutor, Lisboa diz que não pode ser, em trabalho de arquivo para identificar mortos e arranjo de túmulos seriam para aí mil contos (5 mil euros agora) e não há dinheiro". Mil contos?, "mas isso não são 2 ou 3 bilhetes de executiva para essas missões que cá vêm fazer nada?" avanço eu, no sarcasmo desiludido de quem vai a sul do Equador (ou será do Tejo?). E o comandante, sábio, "ó Zé Teixeira, o que é que quer que eu lhes faça?" e a gente a saber que nada se pode, doutor de gabinete posto é doutor. E uma década depois, numa visita do PR Cavaco Silva, eu a aprumar-me comendador e a avançar para o homem da casa militar, e a explicar ao "nosso" tenente-coronel disto tudo e ele, simpático, que "sim, já estamos informados", até porque este nem é caso único. Pois não, sei bem.

Patriotismo, dizem estes, agora, em festividades encenadas. E lembro, a la Tardi, aquela pobre geração, camponeses arrancados às courelas, operários e serviçais conscritos em nome de uma madrasta, a sorte que lhes coube, "putain". Para serem húmus de capim. E da vaidade de gerações.

Pensamento da semana? Estes d'agora cantam mal e não me encantam.

  

Adenda: escrevi este postal sem saber do conteúdo do discurso de ontem do PR, para o qual um comentário logo me chama a atenção (excerto aqui. Ainda não está colocado no sítio presidencial mas decerto que em breve o estará). Não vale a pena alimentar grandes debates sobre isso, pois as coisas são simples: o que o PR disse é absolutamente crível sobre a II Guerra Mundial. Recaindo sobre a I Guerra Mundial é pura ignorância. Ou, pior, é falsificar a história. 

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana

 

Srebrenica

Alexandre Guerra, 01.09.18

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Memorial/cemitério de Srebrenica no passado dia 27/Foto: Alexandre Guerra 

 

Embora há uns anos já estivesse estado num país dos Balcãs, ainda como jornalista numa visita a uma central nuclear na Bulgária, a verdade é que desde os anos 90, com o desmembramento da ex-Jugoslávia e o eclodir do conflito balcânico, o meu interesse por aquela região foi crescendo. Estudei na universidade com alguma intensidade o enquadramento histórico e político daquela zona, numa altura em que se começava a colocar em prática os Acordos de Dayton, celebrados no final de 1995. Há muito que tinha particular vontade de ir conhecer aquela realidade de perto, mais concretamente a Sérvia e a Bósnia, esta última composta por duas entidades: a Federação Bósnia (croata-muçulmana) e a República Srpska (sérvia ortodoxa). Perceber coisas que os livros não me diziam e tentar compreender alguns contornos na relação entre pessoas que outrora fizeram parte de um mesmo país evoluído cultural e industrialmente, mas que não foram capazes de evitar a maior barbaridade na Europa desde a IIGM. E nessa óptica, Srebrenica ficará para sempre com a maior vergonha europeia dos últimos 70 anos, como o maior falhanço da comunidade internacional em solo europeu.  

 

Por esta razão, das minhas andanças pela Sérvia e Bósnia na última semana, a visita a Srebrenica (que outrora tinha sido um enclave muçulmano) representou algo de especial. Não apenas pelo interesse histórico e político, mas sobretudo pelo lado humano. Muito teria para escrever, tanta foi a informação recolhida e que desconhecia (nada como ir aos sítios). Mas, vou deixar os factos de lado, porque o ímpeto para transmitir o que me perpassou pela alma, depois de tudo o que vi e ouvi, é mais forte. Das aulas da universidade, das leituras que tinha feito, das notícias que fui acompanhando ao longo dos anos, conhecia bem a história do genocídio de Srebrenica, uma localidade remota na parte sérvia (República Srpska) da Bósnia, onde há muito queria ir pelo que lá aconteceu e que jamais deve ser esquecido. Entre 11 e 16 de Julho de 1995, naquele enclave muçulmano em zona sérvia ortodoxa, foram assassinados mais de 8 mil bósnios muçulmanos (bosniaks), num massacre sistematizado, comandado militarmente por Ratko Mladic, sob as ordens políticas de Radovan Karadzic. Tudo aconteceu perante a impotência do tristemente célebre contigente holandês de capacetes azuis da ONU estacionado em Potacari, a poucos quilómetros de Srebrenica (para a história, o contingente holandês ficou associado negativamente a estes acontecimentos e ainda hoje, por um certo sentimento de culpa, muitos dos seus soldados acompanham a título pessoal as famílias das vítimas. O próprio Governo holandês apoia diversos projectos solidários. Mas vale a pena estudar com muita atenção tudo o que falhou ao nível da hierarquia de comando da ONU, para se perceber que muito podia ter sido feito para se evitar aquele genocídio, já para não falar que as "rules of engagement" dos soldados holandeses nem sequer lhes permitia disparar em legítima defesa).

 

Desde a II GM que o mundo não via imagens daquelas, uma campanha brutal de limpeza étnica em nome de um projecto nacionalista. Tenho bem presente aqueles terríveis acontecimentos e, por isso, o que mais me impressionou foi confrontar as imagens que tinha guardadas na memória com os locais aparentemente normais onde estive e pensar que tudo aconteceu só há 23 anos, bem perto do coração da Europa (Viena a Sarajevo não chega a 800 quilómetros). Por aqueles locais cometeu-se um extermínio em massa e é muito inquietante lidar com essa "normalidade". Até a empresa de autocarros que transportou sistematicamente centenas de bosniaks para os locais de extermínio ainda opera. Está lá! E perguntamo-nos: Como é possível? É difícil explicar essa "normalidade"... A verdade é que nada pode ser normal numa cidade quase fantasma, onde dantes viviam 40 a 50 mil pessoas e depois da limpeza étnica, através do extermínio ou de abandono forçado, ficaram apenas 12 mil.

 

Impressionou-me o que vi e emocionou-me o testemunho doloroso, ao longo de mais de uma hora, de um homem, na altura criança, que escapou à morte, mas perdeu o pai e o irmão no genocídio. E o mais tocante é que o mesmo surge de passagem num documentário, onde se mostram imagens da altura, com colunas de centenas de pessoas a fugirem de Srebrenica para localidades circundantes. E lá está ela, uma criança assustada, no meio de um conflito que servia apenas um propósito de Slobodan Milosevid: criar entre a Sérvia e a República Srpska uma homogeneidade étnica e religiosa. E o mais dramático é que comparando-se os mapas demográficos de antes de 1992 e depois de 1995, constata-se que a ideia de "grande" Sérvia protagonizada por Milosevic fez uma parte do caminho.

 

Hoje, com uma certa descontracção e ignorância, muito se fala de nacionalismos e de líderes nacionalistas e, por isso, é que trago aqui este texto, porque as pessoas esquecem rapidamente e, muitas vezes, pouco aprendem com a História. O memorial e cemitério das vítimas do genocídio de Srebrenica é impressionante e coloca-nos perante o resultado da mais vil e perversa obra de projectos políticos nacionalistas. Todos os anos, em Julho, são enterrados novos corpos identificados que, entretanto, vão sendo exumados das muitas valas comuns que circundam a área de Srebrenica. Depois de ver Srebrenica e em memória aos que morreram, é cada vez mais forte a minha convicção de que extremismos e nacionalismos devem ser combatidos com todas as nossas forças. Para que, como disse o imã de Potacari na inauguração do memorial/cemitério a 11 de Julho de 2001, "That Srebrenica never happen again, to no one and nowhere".

La Lys - uma mortandade há cem anos

João Pedro Pimenta, 09.04.18
Há cem anos acontecia o desastre quase anunciado de La Lys. Nas trincheiras da Flandres, a IIª Divisão do CEP - Corpo Expedicionário Português - sofria uma humilhante e enormíssima derrota. Num só dia, sete mil e quinhentos soldados e oficiais eram mortos ou feitos prisioneiros pela poderosa máquina de guerra prussiana, superior em número, em treino e em equipamento. O CEP, a que alguns previdentes chamaram Carneiros Exportados de Portugal, era composto por soldados mal treinados e armados, com pouca experiência de combate, comandados por uma oficialidade medíocre, habituada aos quartéis, a África (poucos) e à pancada de rua, tão comum nesses tempos atribulados. Estavam enfraquecidos pelo tempo e pelas condições a que eram sujeitos, desmotivados e sem os reforços previstos, apesar de se anunciar uma rendição de contingentes para as horas seguintes. Tinham ido em grande parte contrariados, obrigados pela República, que pretendia a todo o custo uma qualquer glória que a legitimasse a nível internacional. Os argumentos eram de que se não se interviesse no cenário europeu se perderiam as colónias para ingleses e alemães,  perder-se-ia "a importância portuguesa no mundo" e Portugal até poderia ser invadido. Ou seja, um conjunto de desculpas para legitimar tal intervenção para além da estrita defesa das colónias, e que aliás era desaconselhada pela Inglaterra, que apenas aí via um estorvo.

O resultado de Afonso Costa, João Chagas e Jaime Cortesão andarem a brincar às guerras é conhecido. Em quatro horas dessa madrugada de 9 de Abril, milhares de mortos abatidos pela artilharia germânica na forte ofensiva comandada pelo lendário Erich Von Ludendorff, pânico generalizado entre as hostes portuguesas, e o avanço rápido dos alemães entre o vazio provocado pelas brechas da 2ª divisão. Houve alguns actos de heroísmo sobre-humano, como o do "soldado Milhões", outro de entre muitos que tinham sido levados da sua aldeia para as trincheiras, mas a maioria daqueles homens a quem chamaram soldados sem lhes ensinar esse estatuto debandou ou lá ficou.

Os portugueses foram carne para canhão nesse desgraçada aventura, uma das maiores derrotas lusas a par de Alcácer-Quibir ou Alcântara. Portugal ficou entre os vencedores da Guerra, mas pouco recebeu por isso. Pelo contrário, os gastos deixaram as finanças públicas em estado lastimável, escassearam os bens de primeira necessidade e deram-se revoltas populares, violentamente rechaçadas. Curiosamente, morreram quase tantos soldados como em toda a Guerra Colonial. Invoca-se o nacionalismo do Estado Novo para justificar a pesada operação mantida em África. Mas as menos aí defendíamos o que era oficialmente nosso, e a superioridade militar sobre os insurgentes era evidente. Em La Lys, defendíamos apenas uma noção republicana de nacionalismo, enviando uns pobres coitados que mal sabiam disparar uma arma para as horríveis trincheiras, para fazer frente a forças imensamente superiores. Uma triste memória e um crime que a República em vão tentou apagar, mas que seria mais um motivo para a sua impopularidade e subsequente queda, em 1926, curiosamente às mãos do comandante dessa desafortunada 2ª divisão do CEP: Gomes da Costa.

 

Paz às almas desses pobres soldados tombados às primeiras horas de 9 de Abril de 1918. Há exactamente cem anos.
 
 
 
* Texto escrito originalmente em 2008, pelos noventa anos da batalha, e devidamente actualizado.

A guerra que Thatcher "inventou"

Pedro Correia, 29.03.18

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Estamos sempre a aprender. Acabo de escutar um historiador, em tom categórico e professoral, proclamar em horário nobre da televisão: "A senhora Thatcher, quando estava a braços com uma crise de agitação social na Inglaterra, inventou uma guerra, a guerra das Malvinas."

Extraordinário doutor Fernando Rosas: folheando sabe-se lá quantos canhenhos empoeirados, só ele conseguiu descobrir que foi afinal a primeira-ministra Margaret Thatcher quem ordenou aos odiosos déspotas do regime militar de Buenos Aires - apoiados pelo ditador cubano Fidel Castro - para  invadirem o arquipélago das Malvinas no dia das mentiras de 1982.

A maquiavélica senhora precisava dessa invasão para "inventar uma guerra" que só poderia culminar com a vitória britânica, emulando o triunfo da Royal Navy sobre Bonaparte em Trafalgar, enquanto as massas ignaras entoavam o God Save the Queen.

Fiquei esmagado com tão eloquente demonstração de sapiência do reputado académico. E aqui venho inclinar-me em respeitosa vénia à sua luminosa e profícua erudição.

Conversa sobre Mosul em Moledo

João Pedro Pimenta, 23.08.17

É possível, numa noite de segunda-feira de nevoeiro, em Agosto, numa povoação balnear em que as pessoas estão sobretudo a pensar no dia seguinte de férias, nos viras que se tocam mais acima ou em conversas à volta da cerveja ou do whisky nocturno, levar um número apreciável de gente ouvir um testemunho de alguém que esteve nos locais mais deserdados deste Mundo - Afeganistão, Síria, RD Congo, Mosul? Absolutamente.

Gustavo Carona, anestesista no hospital Pedro Hispano de Matosinhos pertencente aos Médico sem Fronteiras, já com cinco missões em zonas particularmente difíceis, esteve recentemente em Mosul, na parte tomada ao Daesh, e parte em breve para a República Centro-Africana, deu o seu testemunho do que viu, do contacto que teve com populações atingidas por vários fogos e em situação crítica, e do que pensa sobre a guerra e as suas motivações, tanto de uns lados como de outros. A conferência (ou melhor, a tertúlia), teve lugar em Moledo, com a presença de Álvaro de Vasconcelos, conhecido especialista em assuntos internacionais, e apresentado por João Pimenta (Pai do escritor destas linhas). E desenrolou-se uma conversa e um testemunho sem cinismos - uma das grandes fatalidades desta nossa era, em que tanta gente tem medo de expor sentimentos ou de dar "parte de fraca" - mas também sem lamechices ou sentimentalismos bacocos. Objectiva, clara, realista, e por vezes tocante.

  A conferência também serviu para (re)apresentar o livro que coordenou, 1001 Cartas para Mosul, e a sua venda reverte para os Médicos Sem Fronteiras (cuja história e missão também explicou) e para a Plataforma de Apoio aos Refugiados. O livro, como o título indica, é composto de mil e uma mensagens - que nos remetem para as Mil e Uma Noites, também com origem no que é o actual Iraque - em português, inglês e árabe, destinadas à população daquela desgraçada cidade, totalmente destruída e parcialmente liberta, já que os sunitas residentes têm sofrido abusos às mãos das milícias xiitas, eles próprios também vítimas da violência sunita.

De qualquer forma, prova-se que em férias também é possível haver conversas sérias, objectivas, anti-cinismos, e que atraem assistências numerosas (não se fiem na fotografia).

 

Alepo, cidade-mártir

Pedro Correia, 20.12.16

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Foto: Karam Al-Masri / AFP

 

Enquanto escrevo estas linhas, morrem seres humanos em Alepo. A lista de mortos ultrapassou 30 mil no ano passado, não havendo mais estatísticas oficiais de então para cá.

Aquela que foi a maior cidade síria - com uma população superior a cinco milhões de habitantes antes dos primeiros disparos, em Fevereiro de 2012 - e uma das urbes mais cosmopolitas do mundo árabe sucumbe sob os escombros da guerra total que contra ela foi decretada pelas hordas assassinas do ditador Bachar Assad, acolitado por milícias xiitas financiadas pelo Irão teocrático e por essa Legião Condor dos tempos modernos representada pelos sinistros bombardeiros russos.

Vladimir Putin, principal parceiro de Assad, bloqueou nos últimos cinco anos na ONU todas as resoluções que podiam determinar um desfecho não-sangrento para o drama sírio – incluindo a abertura de um corredor humanitário com supervisão internacional e o lançamento de víveres por via aérea aos civis sob cerco. Os vetos de Moscovo no Conselho de Segurança, somados à passividade da administração Obama, provocaram o êxodo maciço da população síria, que foge para onde pode, obedecendo ao instinto de sobrevivência.

Ei-los aí, os sírios em fuga - sem tecto, sem trabalho, sem assistência médica, subitamente desenraizados, buscando a Grécia, acorrendo ao Líbano, rumando aos campos de encarceramento turcos que servem para o proto-ditador Erdogan usar essa magoada e dolorida “mercadoria humana” como alvo de chantagem junto das chancelarias europeias.

 

Enquanto escrevo, mais uns civis sucumbem em Alepo, cidade-mártir. Alvejados por franco-atiradores munidos com fuzis russos e pagos pelos aiatolás de Teerão. Morrem mulheres e crianças, vitimadas por bombas de fósforo e gás de cloro, e o mundo cala-se. Consente estas novas Guernicas, estas novas Sarajevos. Em Portugal há até quem faça coro com o tirano de Damasco, que há muito devia ter sido forçado a trocar o trono de déspota pelo banco dos réus, respondendo por crimes de lesa-Humanidade por ter permitido a utilização de armas químicas contra a população do seu país.

Putin, que recebeu como prémio por apoiar Assad a primeira base naval russa no Mediterrâneo, segue na Síria a cartilha que já mandara aplicar à Chechénia: “encurralá-los até ao fim”. Assim transformou Grozni há década e meia num mar de ruínas, indiferente aos clamores da comunidade internacional. A mesma indiferença a que vota hoje as patéticas mensagens de impotência do secretário de Estado norte-americano, John Kerry, que se limita a derramar lágrimas desvalidas perante o massacre, como se não representasse a maior potência económica, diplomática e militar do planeta.

 

Enquanto escrevo estas linhas, mata-se e morre-se nos últimos bairros sitiados de Alepo, onde todas as sombras macabras da história – da Tróia antiga à Estalinegrado do século XX – ressurgem numa demonstração evidente de como é ténue e frágil o fio que separa a civilização da barbárie, numa chocante confirmação de que o vertiginoso progresso tecnológico é incapaz de alterar um átomo da natureza humana.

Ontem, todos se comoveram. Hoje, já ninguém quer saber

Alexandre Guerra, 19.08.16

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Mais uma vez o mundo ocidental lá se consternou e emocionou perante o olhar vazio e desalmado de Omar Daqneesh, uma criança de 5 anos que, num estado letárgico quase catatónico, esperava pacientemente pelo salvamento do resto da família (felizmente todos sobreviveram, mas outras cinco crianças morreram), depois do seu prédio, localizado num bairro de Aleppo conotado com os rebeldes, ter sido atingido por um raide aéreo da aviação russa ou síria. Nem um choro ou lamento de Omar, apesar do seu rosto estar coberto de sangue e o seu corpo todo sujo de terra, como quem foi literalmente arrancado das entranhas da terra. Os jornais e as televisões, com o seu tom teatral do costume, mas sem qualquer eficácia na prossecução e pressão para uma solução política-militar, propagaram a fotografia de Mahmoud Raslan, o fotojornalista que estava no local e que captou o momento. As "redes sociais", sempre prontas para apanhar a onda da solidariedade internacional, também se indignaram e, claro está, o tema tornou-se "viral". As sociedades civis comoveram-se e a comunidade política indignou-se. Mas, tudo isto foi ontem, porque, hoje, já passou, a vida continua e já ninguém quer saber.

 

Recordo que há uns meses, em Setembro, esse mesmo mundo ocidental, sempre confortável no seu quotidiano, esses mesmos jornais e televisões, com a sua queda para o dramatismo, essas mesmas redes sociais, sempre voluntaristas, essa mesma sociedade civil, sempre predisposta para a comoção, essa mesma comunidade política, sempre indignada, reagia com lágrimas à chocante fotografia de Aylan Kurdi, um rapazinho de 3 anos, jazido de barriga para baixo, nas areias de uma praia da Turquia. Era um refugiado que, juntamente com a sua família, fugia do conflito da Síria. Na altura, por exemplo, a CNN escrevia: "Some said they hoped the images of the boy lying on the beach and his limp body being scooped up by a rescue worker could be a turning point in the debate over how to handle the surge of people heading toward Europe." O que foi feito desde então? Pouco, muito pouco mesmo, para quem se dizia tão chocado e indignado com tal barbárie.

 

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Penso rápido (33)

Pedro Correia, 29.07.14

Os acontecimentos mais dramáticos da história mundial podem começar por um motivo fútil. Isto não os torna menos relevantes: uma coisa nada tem a ver com outra. Tal como alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória, à partida, nada tinham de psicopatas: eram homens comuns. Isso não os tornava menos perigosos, longe disso.
O facto é que ninguém -- mesmo ninguém -- fazia a menor ideia, naquele período tão optimista da história mundial, da tragédia que estava prestes a acontecer no início do Verão de 1914. Dois tiros fatais disparados em Sarajevo por um anarquista sérvio contra o herdeiro do trono austro-húngaro e sua esposa, a duquesa de Hohenberg, produziram uma onda de morticínios em cadeia até atingir cerca de 20 milhões de mortos.
Se alguém adivinhasse as consequências, nem Gavrilo Princip teria assassinado Francisco Fernando e Sofia a 28 de Junho de 1914 nem os imperadores e os arquiduques e os presidentes teriam desencadeado a linguagem bélica nas semanas subsequentes nem a imprensa teria incentivado os nacionalismos de turno com algumas das manchetes mais demagógicas, parioteiras e chauvinistas que o mundo conheceu até hoje.
A I Guerra Mundial não era inevitável à partida: tornou-se inevitável pela infinita estupidez humana.

O comentário da semana

Pedro Correia, 27.07.14

«Não me parece - nem é consensual - que o motivo [da origem da I Guerra Mundial] fosse expansionista. O Império Austro-Hungaro não tinha perfil para isso. Acredito mais que a ideia seria "eliminar" um foco de agitação política (a Sérvia) que poderia ter consequências sobre a sobrevivência do império. O que se passou depois é mais díficil (e, ao mesmo tempo, fácil) de explicar: é um pouco como naqueles filmes, com dois carros a ir na direcção um do outro a ver quem se desvia primeiro.

Neste caso, ninguém se desviou e deu no que deu.

Adicionalmente, é preciso ter consciência que uma guerra como a 1ª GM é quase impossível de se repetir: foi a consequência de uma fase transitória na teoria militar, que evoluiu fortemente em termos defensivos mas não foi acompanhada na parte ofensiva. Resultado, linhas de batalhas basicamente estáveis (ver http://www.bbc.co.uk/history/interactive/animations/western_front/index_embed.shtml para uma excelent animação) e mortandade aos milhões.

O que é mais interessante (se a palavra pode ser empregue) é que a 1ª GM foi, de longe, o acontecimento com mais impacto contemporâneo e está quase esquecida: a 1ª GM definiu a 2ª (muito por culpa dos vencedores), estabeleceu os novos alinhamentos nacionais na Europa e no Médio Oriente (o problema israelo-palestiniano "nasceu" com a queda do Império Otomano), alterou de forma irrevogável o panorama sócio-político da Europa (a título meramente de exemplo, foi responsável por "arrumar" de uma só vez com a preponderância da nobreza no Império Britânico - http://www.oldmagazinearticles.com/WW1_British_Aristocracy-Nobility_during_World_War_One_pdf) e marcou palco para todo o restante séc. XX e, pelo andar da coisa, séc XXI.»

 

Do nosso leitor Carlos Duarte. A propósito deste texto do Rui Herbon.

Penso rápido (32)

Pedro Correia, 27.07.14

Não é corrente, mas faz todo o sentido usar a terminologia "Guerra Mundial 1914-1945". Uma guerra de longa duração (três décadas) entremeada por ilusórios períodos de paz e que só terminou verdadeiramente - por macabra ironia - com o início da idade atómica.
Mesmo durante o período que se convencionou chamar paz não faltaram guerras - incluindo algumas das mais devastadoras de que há memória. A guerra russo-polaca, a guerra civil russa, a guerra greco-turca, a guerra sino-japonesa, a guerra civil espanhola.
A ilusão de que haveria uma guerra que poria fim a todas as guerras ou que seria possível alcançar uma paz perpétua semelhante à do Jardim do Éden (sem serpente...) era corrente no início do século XX e não falta literatura da época a atestá-la. Uma ilusão perigosa, pois fez baixar a guarda quando se impunha toda a precaução, em sentido inverso. O primeiro passo para fazer prevalecer a paz é nunca perder a noção de que o conflito é intrínseco à natureza humana.

Procurai, que diabo!

Gui Abreu de Lima, 12.12.12


A tua guerra, essa luta que travas contra todos a quem chamas oponentes, é só tua. Começou, eras menino. Houve uns olhos que te olharam e a denunciaram, um coração em desespero que a partilhou contigo, uma boca que não conseguiu calar a voz amargurada da angústia. Há muitos homens em combate como tu. Que arremessam pedras, disparam tiros e põem bombas durante uma vida inteira. Em toda a esquina topam o inimigo, em cada alma auguram o traidor. Carregam desde meninos a dor de alguém que amaram, devolvem-na ao mundo, espalham-na à volta, sem nunca duvidarem do que sentem. Erguem o indicador sobre quem estiver à mão, ignorando nesse gesto os quatro dedos que apontam em sua direcção. Vem de longe a guerra. Destrói o teu mais intenso amor, a tua paz, a fraternidade que tanto apregoas. Há muito, muito tempo, eras tu tão pequenino, e foi profundamente injusto, insano, inconsequente.

Homens, procurem a origem do vosso inferno. A razão da vossa guerra. Revejam o que vistes em meninos. De que misérias fostes testemunhas caladas, entre os jogos de bola, o caminho da escola, os fins de tarde, as manhãs de sábado, os passeios de domingo, a ida à missa? Na vossa cama, à mesa de jantar, no silêncio aterrador da madrugada? Do que sentistes, talvez não tereis lembrança. Ou surgirão vagas recordações de uma criança amedrontada. Mas ficai certos: dentro de vós, como num papiro milenar, estão todas as vivências impressas ao pormenor. Têm a forma de terríveis consequências e poder sobre a vossa condição. Desabrocham como ervas entre as vossas opiniões, acções, reflexões. Toldam o timbre das vozes e manipulam os gestos mais naturais. Homens, não se detenham. Procurai a origem do vosso inferno, a razão de toda a guerra.