Reconciliação histórica
Há algum tempo que tenho dado um enfoque especial à leitura de romances sobre a Guerra do Ultramar, entretanto rebaptizada como Colonial, e também sobre a maior movimentação populacional da nossa história que se lhe seguiu, e que trouxe ao nosso léxico o substantivo Retornado.
Não foi assim há tanto tempo e ainda é fácil de encontrar muita gente capaz de relatar na primeira pessoa detalhes do que então se passou. Não cultivamos a nossa memória e este período histórico será mais uma das vítimas do desprezo com que tratamos o nosso passado comum e os seus protagonistas.
A leitura dos livros Olhos de Caçador de António Brito e Nó Cego de Carlos Vale Ferraz leva o seu leitor a mergulhar no quotidiano de uma geração arrancada das suas terras e lançada para os confins do império, do qual conheciam apenas os contornos geográficos observados nos mapas suspensos na sala da instrução primária. À imagem da composição social da época muitos destes soldados eram originários de um Portugal profundo, pouco instruído e pouco esclarecido. O serviço militar levou-os a travarem conhecimento com gente de todo o país, a ouvirem os seus sotaques e a conhecerem as suas particularidades. Muitos chegaram à tropa analfabetos e de lá saíram com conhecimentos técnicos que lhes permitiram mais tarde exercer profissões a que não teriam acesso sem a formação que ali receberam. Mas atrás deles ficaram milhares de outros, mortos, estropiados e deformados para o resto das suas vidas. Definitivamente ninguém regressou igual ao que foi, tendo muitos deles nem sequer regressado.
Estes romances transmitem uma vivência muito intensa, seja quando a narração respeita à tropa macaca, os aramistas, os que nunca saíam de dentro do arame farpado dos quartéis, seja quando a acção é perpetrada por tropas especiais, que faziam incursões pelo mato adentro. Ambos os autores levam-nos para o dia-a-dia dos soldados que cumprem ordens emanadas por oficiais superiores formados em tempo de paz e por vezes mal preparados para lidar com uma guerra assimétrica, travada entre tropas regulares e forças dispersas apostadas apenas em flagelar e desaparecer. Além das inúmeras baixas que estas flagelações provocavam, a ansiedade da espera pelo próximo ataque alimentava a dúvida moral assente na pergunta O que é que estamos aqui a fazer?
As opções políticas de então, enquadradas na geopolítica da época, colocou estas dezenas de milhares de portugueses no lado errado da história e isso apenas acentua o drama da condição do soldado que assenta na sujeição e na obediência do que demasiadas vezes parece não fazer sentido.
Tendo de combater com as limitações logísticas resultantes do embargo internacional a que Portugal estava sujeito, estes soldados preencheram com o seu sacrifício tudo o que lhes faltava e que não era apenas armamento. A imensidão dos espaços e a progressão lenta dos reabastecimentos perturbavam profundamente o seu conforto físico, onde o acesso a refeições regulares e a água potável nem sempre estava assegurado. Haverá certamente quem discorde com esta minha descrição, até porque não é baseada em experiência pessoal, mas apenas na leitura destes romances, mas afinal de contas todos podemos exprimir também uma opinião sobre a Implantação da República, e sobre esse acontecimento estamos todos em pé de igualdade.
A acção de ambos os livros desenrola-se no norte de Moçambique, no que chegou a ser conhecido pelo Estado das Minas Gerais, onde as colunas militares chegaram a ter de lidar com mais de sessenta minas num único quilómetro. Esta arma silenciosa e furtiva, e que para desgraça dos povos mantém a letalidade muitos anos depois da guerra, atrasava durante dias deslocações que poderiam ser feitas em poucas horas. A pressão psicológica a que os picadores, que sondavam cada centímetro das picadas, estavam sujeitos era tremenda e sabemos hoje que mais de metade das baixas então sofridas foram causadas por minas.
O esforço de um pequeno país em manter três frentes de combate, tão dispersas e tão longínquas, não tem paralelo na história. Li algures que isso foi apenas repetido pelo Império Britânico e durante muito menos tempo. A variável mais importante que permitiu tal feito foi o esforço, a obediência e o sacrifício dos soldados portugueses. A sua resistência e frugalidade já a traziam da vida difícil que sempre tinham tido no Portugal salazarista. Estou certamente a ser demasiado simplista, mas este é sentimento que sobra após estas duas obras.
Depois de tanto sofrerem, pela imensidão da distância aos seus sítios de origem, aos seus entes queridos e por terem sentido o absurdo da guerra, embora nem todos na mesma medida, esta geração regressou a um Portugal diferente daquele que tinham conhecido e que então se reinventava. Apesar desta reinvenção ter sido desencadeada pela mão das Forças Armadas, a nova narrativa não reservava o espaço de reconhecimento que esta multidão de gente merecia.
Na vida de demasiados destes portugueses, e das suas famílias, a guerra continuou a consumir-lhes os dias e as energias atormentando-os por muitos mais anos. Todos conhecemos quem tenha sofrido, ou ainda sofra, de Stress Pós-traumático, e isso é algo que o país demorou demasiado tempo a dar a devida importância. Se não se fizesse tanto por esquecer tudo isto, aquilo porque estes soldados passaram deveria até entrar nas comparações dos debates actuais sobre a violência de género. O esquecimento é apenas mais uma camada de violência.
Através d’O retorno de Dulce Maria Cardoso e d’O último ano em Luanda de Tiago Rebelo, revive-se o choque de quem teve de abandonar tudo o que tinha, de quem simplesmente fugiu para salvar a vida, sem nada nas mãos, alguns para uma terra que nunca tinham pisado e onde não conheciam ninguém. Nem todos se adaptaram bem ao que encontraram mas não duvido que o Portugal que somos hoje é também um Portugal moldado pelo que os retornados acrescentaram à “metrópole”, com a vivência que trouxeram, com o seu “fazer pela vida” que agora se chama empreendedorismo, e até pelo nível médio de instrução, que era bem superior ao do rectângulo europeu. Este acontecimento, que por si só já seria profundamente marcante, coincidiu com os anos quentes do PREC e com um nível de incerteza que hoje, para quem não viveu esses tempos em idade adulta, será difícil de imaginar.
O país mudou do paradigma imperial para a partilha da identidade europeia sem que se tivesse feito o luto pelo fim do que fomos durante quinhentos anos. Mergulhámos na Europa da CEE, e mais tarde da UE, mais num golpe do desenrascanço que nos caracteriza do que por uma convicção sentida e vivida. Vendo bem, a nossa atitude quase não difere da desse meio milénio. Já não vivemos à custa de outros territórios, mas vivemos à custa dos impostos que outros pagam. Mudou a origem da riqueza, mas o mamar é o mesmo. Talvez por isso, não valha mesmo a pena fazer luto por coisa nenhuma.
Ainda assim, e porque gosto de registos históricos, deveria ser lançada uma campanha que promovesse e premiasse a elaboração de registos das memórias pessoais do que então aconteceu. Poderiam ser elaborados relatos escritos, poder-se-iam reunir e digitalizar fotografias, aerogramas ou simplesmente recorrer a gravações de áudio num normal telefone para registar conversas entre quem viveu esses tempos. Muito há ainda para registar. Como sempre são os pequenos detalhes que acrescentam a dimensão humana aos frios livros de história, onde se incluem os que ainda não foram escritos. O que nunca for dito será como se nunca tivesse acontecido. Mesmo havendo quem prefira enterrar no esquecimento alguns traumas pessoais, o país precisa de se reconciliar com este passado historicamente tão recente. Precisávamos de uma ou duas dúzias de romances passados nesta época assim como mais filmes e series. Talvez assim as gerações mais novas olhassem para os antepassados que por lá andaram e lhes reconhecessem o esforço e o sacrifício que fizeram pelo nosso país.