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Delito de Opinião

Reconciliação histórica

Paulo Sousa, 25.11.21

Há algum tempo que tenho dado um enfoque especial à leitura de romances sobre a Guerra do Ultramar, entretanto rebaptizada como Colonial, e também sobre a maior movimentação populacional da nossa história que se lhe seguiu, e que trouxe ao nosso léxico o substantivo Retornado.

Não foi assim há tanto tempo e ainda é fácil de encontrar muita gente capaz de relatar na primeira pessoa detalhes do que então se passou. Não cultivamos a nossa memória e este período histórico será mais uma das vítimas do desprezo com que tratamos o nosso passado comum e os seus protagonistas.

A leitura dos livros Olhos de Caçador de António Brito e Nó Cego de Carlos Vale Ferraz leva o seu leitor a mergulhar no quotidiano de uma geração arrancada das suas terras e lançada para os confins do império, do qual conheciam apenas os contornos geográficos observados nos mapas suspensos na sala da instrução primária. À imagem da composição social da época muitos destes soldados eram originários de um Portugal profundo, pouco instruído e pouco esclarecido. O serviço militar levou-os a travarem conhecimento com gente de todo o país, a ouvirem os seus sotaques e a conhecerem as suas particularidades. Muitos chegaram à tropa analfabetos e de lá saíram com conhecimentos técnicos que lhes permitiram mais tarde exercer profissões a que não teriam acesso sem a formação que ali receberam. Mas atrás deles ficaram milhares de outros, mortos, estropiados e deformados para o resto das suas vidas. Definitivamente ninguém regressou igual ao que foi, tendo muitos deles nem sequer regressado.

Estes romances transmitem uma vivência muito intensa, seja quando a narração respeita à tropa macaca, os aramistas, os que nunca saíam de dentro do arame farpado dos quartéis, seja quando a acção é perpetrada por tropas especiais, que faziam incursões pelo mato adentro. Ambos os autores levam-nos para o dia-a-dia dos soldados que cumprem ordens emanadas por oficiais superiores formados em tempo de paz e por vezes mal preparados para lidar com uma guerra assimétrica, travada entre tropas regulares e forças dispersas apostadas apenas em flagelar e desaparecer. Além das inúmeras baixas que estas flagelações provocavam, a ansiedade da espera pelo próximo ataque alimentava a dúvida moral assente na pergunta O que é que estamos aqui a fazer?

As opções políticas de então, enquadradas na geopolítica da época, colocou estas dezenas de milhares de portugueses no lado errado da história e isso apenas acentua o drama da condição do soldado que assenta na sujeição e na obediência do que demasiadas vezes parece não fazer sentido.

Tendo de combater com as limitações logísticas resultantes do embargo internacional a que Portugal estava sujeito, estes soldados preencheram com o seu sacrifício tudo o que lhes faltava e que não era apenas armamento. A imensidão dos espaços e a progressão lenta dos reabastecimentos perturbavam profundamente o seu conforto físico, onde o acesso a refeições regulares e a água potável nem sempre estava assegurado. Haverá certamente quem discorde com esta minha descrição, até porque não é baseada em experiência pessoal, mas apenas na leitura destes romances, mas afinal de contas todos podemos exprimir também uma opinião sobre a Implantação da República, e sobre esse acontecimento estamos todos em pé de igualdade.

A acção de ambos os livros desenrola-se no norte de Moçambique, no que chegou a ser conhecido pelo Estado das Minas Gerais, onde as colunas militares chegaram a ter de lidar com mais de sessenta minas num único quilómetro. Esta arma silenciosa e furtiva, e que para desgraça dos povos mantém a letalidade muitos anos depois da guerra, atrasava durante dias deslocações que poderiam ser feitas em poucas horas. A pressão psicológica a que os picadores, que sondavam cada centímetro das picadas, estavam sujeitos era tremenda e sabemos hoje que mais de metade das baixas então sofridas foram causadas por minas.

O esforço de um pequeno país em manter três frentes de combate, tão dispersas e tão longínquas, não tem paralelo na história. Li algures que isso foi apenas repetido pelo Império Britânico e durante muito menos tempo. A variável mais importante que permitiu tal feito foi o esforço, a obediência e o sacrifício dos soldados portugueses. A sua resistência e frugalidade já a traziam da vida difícil que sempre tinham tido no Portugal salazarista. Estou certamente a ser demasiado simplista, mas este é sentimento que sobra após estas duas obras.

Depois de tanto sofrerem, pela imensidão da distância aos seus sítios de origem, aos seus entes queridos e por terem sentido o absurdo da guerra, embora nem todos na mesma medida, esta geração regressou a um Portugal diferente daquele que tinham conhecido e que então se reinventava. Apesar desta reinvenção ter sido desencadeada pela mão das Forças Armadas, a nova narrativa não reservava o espaço de reconhecimento que esta multidão de gente merecia.

Na vida de demasiados destes portugueses, e das suas famílias, a guerra continuou a consumir-lhes os dias e as energias atormentando-os por muitos mais anos. Todos conhecemos quem tenha sofrido, ou ainda sofra, de Stress Pós-traumático, e isso é algo que o país demorou demasiado tempo a dar a devida importância. Se não se fizesse tanto por esquecer tudo isto, aquilo porque estes soldados passaram deveria até entrar nas comparações dos debates actuais sobre a violência de género. O esquecimento é apenas mais uma camada de violência.

Através d’O retorno de Dulce Maria Cardoso e d’O último ano em Luanda de Tiago Rebelo, revive-se o choque de quem teve de abandonar tudo o que tinha, de quem simplesmente fugiu para salvar a vida, sem nada nas mãos, alguns para uma terra que nunca tinham pisado e onde não conheciam ninguém. Nem todos se adaptaram bem ao que encontraram mas não duvido que o Portugal que somos hoje é também um Portugal moldado pelo que os retornados acrescentaram à “metrópole”, com a vivência que trouxeram, com o seu “fazer pela vida” que agora se chama empreendedorismo, e até pelo nível médio de instrução, que era bem superior ao do rectângulo europeu. Este acontecimento, que por si só já seria profundamente marcante, coincidiu com os anos quentes do PREC e com um nível de incerteza que hoje, para quem não viveu esses tempos em idade adulta, será difícil de imaginar.

O país mudou do paradigma imperial para a partilha da identidade europeia sem que se tivesse feito o luto pelo fim do que fomos durante quinhentos anos. Mergulhámos na Europa da CEE, e mais tarde da UE, mais num golpe do desenrascanço que nos caracteriza do que por uma convicção sentida e vivida. Vendo bem, a nossa atitude quase não difere da desse meio milénio. Já não vivemos à custa de outros territórios, mas vivemos à custa dos impostos que outros pagam. Mudou a origem da riqueza, mas o mamar é o mesmo. Talvez por isso, não valha mesmo a pena fazer luto por coisa nenhuma.

Ainda assim, e porque gosto de registos históricos, deveria ser lançada uma campanha que promovesse e premiasse a elaboração de registos das memórias pessoais do que então aconteceu. Poderiam ser elaborados relatos escritos, poder-se-iam reunir e digitalizar fotografias, aerogramas ou simplesmente recorrer a gravações de áudio num normal telefone para registar conversas entre quem viveu esses tempos. Muito há ainda para registar. Como sempre são os pequenos detalhes que acrescentam a dimensão humana aos frios livros de história, onde se incluem os que ainda não foram escritos. O que nunca for dito será como se nunca tivesse acontecido. Mesmo havendo quem prefira enterrar no esquecimento alguns traumas pessoais, o país precisa de se reconciliar com este passado historicamente tão recente. Precisávamos de uma ou duas dúzias de romances passados nesta época assim como mais filmes e series. Talvez assim as gerações mais novas olhassem para os antepassados que por lá andaram e lhes reconhecessem o esforço e o sacrifício que fizeram pelo nosso país.

Sobre o funeral de Marcelino da Mata

jpt, 20.02.21

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É certo que um antigo disse que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. Mas outro escreveu que nada há de novo sob este Sol. E assim o problema de se blogar há já 18 anos é que, quase certamente, já se botou algo sobre a maioria das coisas que vão acontecendo.

A morte do tenente-coronel Marcelino da Mata provocou polémica - decerto que incrementada pela generalizada inactividade neste Covidoceno. E que foi muito potenciada pela presença do Presidente da República no seu funeral. Várias vezes já aqui invectivei o histriónico exercício presidencial de Sousa, forma de preencher a vacuidade do seu projecto político, apenas pessoalista - anacronicamente  mimetizando o modus faciendi tardo-imperial do seu digníssimo pai, aquando Governador-Geral de Moçambique. Cabota desprovido de gravitas, minando a auctoritas da função, a esta esvaziando, reduzindo-a a influência dependente das fragilidades conjunturais dos outros órgãos de soberania. O eleitorado (também conhecido por "povo") gosta e vota. E Sousa recompensa-se nisso. E o país deficita. Para não dizer definha.

Nesta ocasião isso é evidente. Alimentando uma situação em que - apesar deste contexto de crise gravíssima e de urgentes decisões estratégicas- , o país mediático está de novo - como o vem estando desde há quase dois anos - encerrado no confronto das minorias demagógicas, os ultramontanos saudosistas face aos revanchistas identitaristas, estes acalentados pelo Partido Socialista no âmbito da sua estratégia de dominação dos diversos feixes da esquerda urbana. Serve isto para articiosamente acirrar campos, nada mais.

Sobre este assunto é certo que há algumas vozes ponderadas, mas são escassas: o texto "Memórias de Sangue" do socialista Sérgio Sousa Pinto é um exemplo de sageza. Mas que ficará dele retido quando no mesmo dia um seu correligionário, o deputado Ascenso Simões, estuporadamente lamenta não ter havido mais mortos no 25 de Abril (bem mais agressivo e incompreensível do que o activista Mamadou Ba quando na academia, citando Fanon, convocou a "morte do homem branco" - da mundivisão dominante)? Propondo ainda Ascenso Simões, a coberto do revisionismo patrimonial, que se derrube o Padrão dos Descobrimentos?

Mas enfim, o que me convoca aqui é esta continuada incontinência do Presidente Sousa, a sua imponderação. Durante esta semana, diante deste despautério - repito, potenciado pela sua presença no funeral do tenente-coronel Mata, símbolo da africanização das tropas portuguesas - recordei-me de um texto que botei em 12 de Julho de 2004. Sobre a ausência do então Presidente Jorge Sampaio do funeral de Maria de Lurdes Pintassilgo - de quem ele era, pelo menos ideologicamente, bem próximo. A demonstrar que há outras formas de exercer o poder. E que são melhores, mais sagazes. Mais competentes. Mesmo que discordemos politicamente dos agentes políticos. E mesmo que menos beijoqueiras. Aqui reproduzo o texto:

O Poder e a Morte

"A ausência de Jorge Sampaio foi muito notada mas um dos seus assessores lembrou que o Presidente "nunca vai a funerais." (no "Público", em notícia a propósito da morte de Maria de Lurdes Pintassilgo, falecida a 10 de Julho desse ano). Notam, reparam, no sagrado do poder? O do rei sagrado, chefe tradicional, ungido pelos deuses, actual antepassado, centro da sociedade, ponto meridiano do cosmos, descendente e representante do passado, garante da continuidade, aquele que faz chuva, que ordena as estações, que faz frutificar, aquele que nos leva até ao futuro, o que dá vida. Esse nunca, mas nunca, vai a funerais, não se conspurca com a morte. Não periga a fertilidade de que é representante, garantia, "banco", "carteiro". Não a periga com a poluição do fim. Da morte infértil, caótica.

Nada critico, pelo contrário. Fico surpreendido, e deliciado, ao saber que a instituição política mais importante de Portugal, dotada de mais simbolismo [mais alto (magistrado), comandante em chefe, garante, árbitro, etc], concebido como figura central do sistema político português, pelo que da própria sociedade, cumpre um tabu (e sai termo vulgar), o tabu da morte, que é recorrente numa pluralidade de outras sociedades. Algo do simbólico do poder que eu nunca tinha percebido no meu país. Excelente. A mostrar continuidades no nosso Portugal moderno, racionalista. Até laico. Pois esta arquitectura da função presidencial não deriva de dificuldades com o "sobrecarregar de agendas" ou de "critérios optativos". Mas sim de avisadas continuidades do não-dito. Tantas vezes do não-pensado. O ritual do poder, assim sua essência.

O próximo texto sobre a matéria será quando vir um PR presente num funeral. Pois isso significará algo. E não será para o criticar, mas sim para tentar perceber as causas de tamanha inflexão.

ADENDA:  Comentadores referem-me que o PR frequenta funerais dos seus pares estrangeiros: mas essas são mortes estrangeiras, forasteiras, no exterior, não poluem a nossa ordem fértil, não perigam a nossa saúde. 

A propósito de Marcelino da Mata

jpt, 16.02.21

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"Não escreves sobre isto do Marcelino da Mata?", perguntam-me provocam-me. E nisso um tipo percebe que os amigos lhe dão estatuto de perorante. Nada, defendo-me. Pois nada sei de especial sobre a Guiné-Bissau actual ou passada, pouquíssimo sobre a sua guerra de independência. E nada sobre o agora falecido. Sei um pouco sobre as 3 guerras coloniais portuguesas - em particular a moçambicana. E sobre o recrutamento massivo de tropas locais. Questão silenciada nas histórias dos novos Estados-Nação - pois avessa às mitografias oficiais, às "imaginações das nações". Questão algo esquecida na história portuguesa - até porque tem componentes nada lustrosas. (Como, por exemplo, a infecta forma como o Estado português passou duas décadas e meias a fugir às responsabilidades com os deficientes das forças armadas em Moçambique. Sim, naturais de Moçambique, negros para quem não perceba bem, que optaram pela nacionalidade portuguesa após a independência e que o Estado fez por esquecer até mais não poder ...).
 
Mas também questão agora agora a ser escondida, como o mostra o bramir atrevido do dr. Ba sobre este falecimento e o coro de elogios que recolhe dos intelectuais do regime, pois difícil de integrar no mito racialista muito em voga. Ou, dito de outra forma, questão difícil, pois complexa, de integrar na discussão "do colonialismo" do modo básico como os intelectuais das "causas" surgem agora, anacrónicos ainda por cima... Pois invectivar o falecido é também forma de vetar referências às múltiplas formas de participação nas guerras por parte de soldados africanos. E ao facto disso denotar - e até explicitar - distinções internas nessas sociedades coloniais. Bem como elidir as formas como isso se refractou nessas sociedades. E como os diferentes poderes nacionais vieram a tratar disso - os execráveis guineenses, criminosos de guerra (coisas que os excitados antropólogos, estudiosos culturais, historiadores, sociólogos e etc. que abraçam o dr. Ba nunca dirão); os pragmáticos angolanos; os peculiares moçambicanos.
 
Enfim, haveria coisas muito interessantes para falar sobre isto. Alguém que o faça, se tiver paciência, bem para além de invectivar Marcelino da Mata ou afirmá-lo qual "Infante Santo". Interessante, pois denotativo do ambiente boçal actual, é o facto de que - ao que consta - a imprensa (pelo menos a audiovisual) não ter comparecido no funeral do mítico militar. Apesar do Presidente Sousa (ele que até a banhos de mar leva as equipas de reportagem) lá ter estado. Ou seja, a lumpen-intelectualidade portuguesa (imprensa e academia precarizada) não sabe que fazer com a história recente do país. E prefere - em busca dos milhões de euros que o PS dará para quem minar o Bloco de Esquerda - menear-se com Katar&Ba. O resto pouco importa...
 
Sobre o demagogo Ba (que até faz umas resenhas escolares no jornal "Público") um amigo acaba de me lembrar um texto que lhe dediquei, há já dois anos. Já nem me lembrava disto. Aqui deixo a ligação: nem sobre o dr. Ba nem sobre o lumpen intelectual que tanto o saúda mudei de opinião.