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Delito de Opinião

Março, o mês de Martius ou Marte

Maria Dulce Fernandes, 01.03.24

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"Antes de o antigo calendário romano ser actualizado para incluir os meses de inverno de Janeiro e Fevereiro, o ano começava em Março. Nomeado em homenagem a Marte, o deus romano da guerra, Março era a época do ano na Roma antiga em que as campanhas militares podiam recomeçar à medida que os dias inclementes do inverno passavam.

É tudo uma questão de clima. A frase “entradas de leão e saídas de cordeiro” é frequentemente usada para se referir a este mês. A neve e o frio arrepiante no início de Março muitas vezes dão lugar a temperaturas mais altas que permitem que os primeiros botões de flor do ano apareçam assim que Abril chega. No entanto, há momentos em que o clima dos finais de Março faz duvidar que dias mais quentes estão para chegar. Segundo o folclore, os “dias emprestados” ocorrem quando chove durante os últimos três dias do mês, porque Março pediu emprestado as chuvas de Abril, mês chuvoso por tradição. Em comparação, os primeiros três dias do mês são referidos como “dias cegos”, período durante o qual os agricultores devem evitar semear as suas terras. As chuvas durante os "dias cegos" são consideradas  presságio de uma colheita fraca no final do ano.

O mês esteve ligado à renovação das campanhas militares após o inverno e aos preparativos para novas expedições militares. Além disso, Março foi sempre um período de abundantes festivais e folias dedicadas à guerra e ao poder militar. É também um mês de transição, pois o clima começa a aquecer e as plantas e os animais despertam do sono invernoso."

É importante acordar e nada melhor do que acordar a tempo e horas e Março é um excelente mês para o despertar dos sentidos e fazer mexer os sentados.

(Imagem Google)

É Natal. Pás na terra.

Paulo Sousa, 19.12.23

Mortes evitáveis incomodam-nos a todos. Quem de bons sentimentos consegue ficar indiferente perante a morte de inocentes ou, mesmo de patifes, que pudesse ser evitada? Apenas para os mais simplistas o mundo é dividido entre pessoas boas e pessoas más. Eu não vou nessa. Todos somos bons e maus, uns maioritariamente maus e outros o seu contrário. Mas todos bons e maus. Mesmo nos sítios onde só se fazem boas coisas e se reúnem boas pessoas com bons sentimentos, residem maus fígados, recalcamentos quase esquecidos, pequenas arrogâncias disfarçadas e, o pior de tudo, a indiferença. Dante, na sua viagem pelo inferno acompanhado por Virgílio, encontrou no último círculo, naquele onde só existia o breu sem estrelas, onde se ouviam gritos de dor, de raiva e de medo, sobrevoado por nuvens de insectos venenosos, encontrou aqueles que nunca se tinha movido para fazer o bem ou o mal.

No Natal celebramos coisas boas, coisas positivas, celebramos o bem, a renovação, um novo recomeço. O mal não é perdido nem achado no Natal. Todos os o querem esquecer e dele se afastar. No Natal, paz na terra, diz-se.

Apesar disso, as notícias entopem-nos com guerras incómodas. Do alto de mais de setenta inéditos anos de paz na Europa, já são poucos os que se recordam da última guerra. Só gente antiga, e documentários, nos podem contar histórias de guerra na primeira pessoa. Viver em cima de quase oitenta anos de paz, rodeado de dezenas de conflitos, é quase como como aquele tipo que, no seu carro novo, passeia na única rua transitável de um bairro de lata. Incomoda? Pois é claro que incomoda. No bairro da lata, há sempre um rufia maior que por não ter nenhum carro para passear, sente-se aliviado em apedrejar o carro do outro. Qual é o bom e o mau nesta história? Uns dirão que a miséria é a caixa de Petri onde se cultivam os maus sentimentos, a inveja, a ira e até o ódio. Outros dirão que o tipo do carro novo se tivesse noção nunca iria passear para aqueles lados (mesmo que seja naquela rua que ele reside) sujeito a acordar a inveja e os maus fígados dos demais.

Há uma visão que distingue a esquerda da direita pela forma como se considera o ser humano no mundo. A esquerda acha que o humano é essencialmente bom, mas estragado pela sociedade e, pelo contrário, a direita não duvida que todos transportam dentro de si uma dose de maldade e que por isso têm de ser moldados pela sociedade de forma a impedir males maiores. A esquerda aspira por mudar a sociedade e a direita a manter a sua coesão. Em Portugal existe ainda uma visão classista da coisa que leva a que o voto seja condicionado pelos interesses imediatos do eleitor, que assim se preocupa mais com o seu umbigo do que com a sociedade.

É preferível impedir o tipo do carro novo de circular ou o rufia maior de apedrejar o seu carro?

Não procuro aqui dar respostas a esta questão, pois é inegável que a resposta de cada um seja condicionada pelo lado com que mais se identifica. Qual de nós escolheu em que lado da barricada ia nascer? Em que geografia? Com que cor de pele? Com que nível conforto físico ou emocional? Acredito profundamente que o mais razoável é ser tolerante e colaborativo, mas como levar na tromba é aborrecido, o melhor seria mesmo ter umas forças armadas capazes e bem equipadas.

As notícias, dizia, entopem-nos com guerras incómodas. Em todas as que são faladas, existe ali sempre a mácula do tipo do carro novo. Tentam convencê-lo de que tem de expiar o pecado de viver em paz e ser razoavelmente próspero. Quem é que o mandou? Agora tem de se aguentar.

Algumas guerras, porém, não se enquadram na mácula do tipo do carro novo e por isso não aparecem nas notícias. Não cabem na narrativa do ocidente decadente, culpado, provocador e … próspero.

Para além das guerras mais mediáticas em curso, na Ucrânia e Israel, decorrem pelo mundo algumas dezenas de conflitos armados que aqui vou tentar elencar. Espero não deixar nenhum para trás.

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O Ocidente sob fogo no sofá

Pedro Belo Moraes, 27.10.23

Habituados ao fast food, os ocidentais só toleram a fast war. Viciados na transacção de emoções, na partilha de sentimentos, os ocidentais pululam entre Apps. Num dia ficam esmagados pelos pushes da torrente de notificações que dão acesso às imagens horríficas do terror do Hamas no dia 7 de Outubro; nos outros indignam-se, revoltam-se, enfurecem-se com a operação militar israelita que “ocupou” a miríade de Apps.

De palas nos olhos, os ocidentais passam a ver apenas a destruição de Gaza e o drama humano por ela provocado. E a emoção mais recente é a que os move. Comove. E tudo à distância de um clique num ecrã do telemóvel ou do lesto polegar carregando nas teclas do comando remoto do televisor. E o comando ser remoto é o eufemismo disto tudo.

É o Ocidente no sofá. Sempre descansado porque mero mirone a salvo das injustiças que o ofendem. Insurgido com as atrocidades cometidas sobre inocentes, claro!, mas raras vezes assustado, raríssimas vezes vislumbrando que a peça que o ofende é, apenas e só, uma pequena parte de um puzzle que uma vez construído - e o dito está em construção - destruirá a ordem mundial que nos coloca a nós Ocidente como a única representação dos valores da tolerância, liberdade, democracia, diversidade. Os mesmos que estão sob fogo porque como as normas que nos regem há séculos o Ocidente está sob fogo. E tem de se defender.

Mas voltemos às emoções. Lembremo-nos da comoção geral nos Parlamentos vários, muitos, das democracias liberais, de cada vez que foram bradadas declarações do tipo: “Os ucranianos estão a lutar por nós.”; “É a Ucrânia que combate aquele que ameaça o nosso estilo de vida.”; “Uma vez derrotadas as forças de Kiev, o imperialismo vai querer expandir-se Europa fora.” Tudo isto, claro, replicado, retuitado, reencaminhado redes sociais fora. A necessária e tão desejada ração de emoção servida minuto-a-minuto, hora a hora. Like it!

Não tenhamos dúvida: como os ucranianos, também os israelitas estão a defender-nos. A destruição de uns e outros faz parte de um puzzle. A invasão russa da Ucrânia e o ataque do Hamas a Israel (a única democracia liberal da região) fazem parte de um plano que tem como objetivo primeiro e último destruir o referencial de civilização que é o Ocidente.

Os que nos ameaçam e acossam, os nossos inimigos, são os mesmos numa guerra e noutra. Uns às claras, outros na sombra, juntos compõem um eixo anti-Ocidente, anti-democracia liberal. Reúnem-se, negoceiam, recebem-se com honras de Estado o presidente que se eterniza no poder e invade um país soberano; as lideranças do regime dos ayatollah detentores do poder supremo; os obreiros da aparente benevolente mas omnipresente e poderosa nova rota da seda. Todos estão às claras ou na sombra por detrás das duas guerras que emocionam, comovem e revoltam as sociedades ocidentais.

Não há coincidências. Não há.

As repetidas barbaridades cometidas pelo Hamas no interior de casas onde executaram com fúria famílias inteiras, violaram mulheres, degolaram bebés, e nas ruas onde espancaram homens até à morte e cujos cadáveres sobre os quais cuspiram com raiva e não menos desprezo, e mais ainda o massacre levado a cabo num festival igual em música, idêntico no espírito e na liberdade que sentimos nos festivais em que estivemos inteiros e seguros; tudo isso, tudo isto, no seu horror mais íntimo que acabou por provocar um grito de terror mundial, tudo isto coincidiu com a proximidade da assinatura de um acordo de normalização das relações entre Israel e Arábia Saudita. Uma aproximação geopolítica, geoestratégica que ameaçava de morte o plano de poder regional do Irão, essa teocracia que – rufem os tambores! – é o grande financiador do Hamas. E também não há coincidências quando a Rússia quis aprovar uma resolução no Conselho de Segurança da ONU sem condenar o acto terrorista do Hamas. E não é mesmo coincidência a dependência russa dos drones iranianos na guerra da Ucrânia. Facto que coincide com outro: Irão e Rússia vêem nos EUA o Grande Satã. Expressão que não tenho tempo para traduzir para mandarim, mas que estou seguro será dita à boca cheia nos gabinetes de Pequim.

Sim, o Ocidente extravasa o mero hemisfério ocidental. É a NATO, a UE, e está na Austrália, no Japão, na Coreia do Sul, as democracias liberais na Ásia, etc. E não disputa o domínio dos EUA. Antes aceita que o Ocidente domina os valores que não são respeitados por quem disputa a civilização ocidental, desprezando a liberdade religiosa, os direitos das mulheres, a liberdade de imprensa, a democracia, a tolerância, a defesa das minorias.

Os ocidentais produzem e consomem muito entretenimento sobre ameaças terroristas ou conspirações de países e protagonistas com planos maléficos para destruir a antiga ordem mundial, fazendo nascer uma nova na qual são a força dominante.

O entretenimento é tanto melhor quanto mais verosímil for. Quem o consome sabe-o mas fica-se pelas pipocas. Quanto muito, entre tramas, passa para as bolachas e chocolates e, na medida do possível, mexendo-se pouco, pouquíssimo do sofá. Isso, quanto muito, fará para receber à porta de casa um Glovo ou um UberEats, pedidos feitos na App e pelos quais esperará enquanto recebe e abre as notificações dos horrores cometidos porque foi atacado e ataca. De verdade. Enquanto se comove com o drama de quem trava uma guerra existencial contra quem não lhe reconhece a existência. O direito a existir.

Convençamo-nos e preparemo-nos: não há fast-war. As guerras que existem não acabam, não se resolvem mudando de canal de TV ou apagando as notificações no telemóvel. E quem lançou os dois conflitos sangrentos que hoje minam a estabilidade mundial despreza as cadeias de fast-food e mais que isso considera abjectas as fast war. Mas amam as longas. As guerras que travam e alimentam são antigas, longas e preparadas. As que grassam no Médio Oriente e no Leste da Europa são disso exemplo.

E nós, Ocidente, temos de nos preparar e acordar para isso mesmo. Não podemos mais continuar apenas no sofá.

 

(Artigo de opinião publicado no dia 20 de Outubro na página da CNN Portugal)

O drama esquecido dos arménios

João Pedro Pimenta, 21.10.23

O Pensamento da semana passada relembrou, por uns momentos, o que se passa no Nagorno-Karabakh. Com os dramáticos acontecimentos em Israel, mesmo o conflito entre a Ucrânia e a Rússia passou para segundo plano, quanto mais o dos cumes das montanhas do Cáucaso.

E precisamente, o Cáucaso é das regiões a que mais limpezas étnicas tem assistido no último século. Se os Balcãs são de tal maneira divididos e confusos que até emprestaram o seu nome a uma expressão geopolítica, então aquela região montanhosa encravada entre os velhos impérios e actuais potências da Rússia, Turquia e Irão e entre os mares Cáspio e Negro é-o ainda mais. Sob o domínio dos russos coexistem inúmeros povos e línguas, como os chechenos, os circassianos (estes dois, sobretudo o segundo, foram alvo de violentos crimes e até mesmo de tentativa de genocídio por parte dos russos), os tártaros, os ossetas, os calmuques - que vivem na única região de maioria budista na Europa - e tantos outros. Abaixo, as nações independentes: Geórgia (com a Abecásia), Arménia e Azerbaijão).

O que se passou no Nagorno-Karabakh recordou-me este post que aqui escrevi há ano e meio e que relata outra limpeza étnica naquela região que pouca comoção trouxe ao Mundo. Na altura, os georgianos foram mortos ou expulsos da território da Abecásia, onde em certas partes constituíam a maioria. Agora, talvez com menos violência e menos vítimas, os arménios são forçados a deixar aquela região que a tantos combates ferozes tem assistido nas últimas décadas e a extinguir com efeitos a partir de Janeiro a não reconhecida República de Artsakh.

Atribuir "razão" territorial e política a qualquer um dos povos é tarefa complicada. Talvez se tenda, nos países ocidentais, a simpatizar-se mais com os arménios. De facto, a constituição daquele enclave parece ser mais um dos artifícios típicos na URSS para se dividirem povos e territórios e impedir assim a invocação das suas consciências nacionais e que tantos problemas tem causado desde a sua implosão, de que são exemplo as sucessivas guerras no Cáucaso russo e georgiano.

Seja como for, e mesmo não reconhecendo a soberania daquele território, há que reconhecer a limpeza étnica levada a cabo pelo Azerbaijão. Se a Arménia tinha saído vitoriosa nos anos noventa, em 2020 os azeris atacaram de surpresa, bem apetrechados com material do seu vizinho e mentor, a Turquia, sobretudo com drones que foram de grande utilidade e que serviriam de treino para a posterior guerra na Ucrânia, e obtiveram uma vitória rápida e retumbante, que lhes permitiu cercar totalmente o território de Artsakh, a começar pelo corredor de Lachin, que ligava este à Arménia, que ficou a cargo de uma força de paz russa.

Sabe-se o que aconteceu depois: as forças do Azerbaijão lançaram em Setembro deste ano uma ofensiva que rapidamente ocupou aquele território e desarmou as de Artsakh, isoladas e sem a possibilidade de reforços da Arménia. Esta, sem auxílio e sem poder, por sua vez, ajudar os arménios de Artsakh, teve de aceitar um cessar-fogo e as suas consequências. Pelo meio, ainda houve um ataque a uma viatura militar russa, que resultou na morte dos seus ocupantes. A Rússia, principal membro da OSTC, uma organização militar a que também pertence a Arménia, reagiu com apatia e escusou-se a defender a sua correligionária, em grande contraste com o apoio da Turquia ao Azerbaijão.

Nagorno-Karabakh - The Latest News from the UK and Around the World | Sky  News

Desde então, a grande maioria da população arménia do Nagorno-Karabakh/Artsakh abandonou o território, temerosa do novo ocupante. A caravana de cerca de uma centena de milhar de pessoas que fugiu rumo à Arménia recordou as grandes levas de trocas de povos do pós-II Guerra. O Azerbaijão conquistou aquele território e olha agora para o que o separa do seu enclave de Naquichevan, na fronteira com o Irão (e a única parcela de território que confina com a aliada Turquia), com mal disfarçada ambição, o que pode significar novo conflito no horizonte.

Map of the recent developments in the Armenia - Azerbaijan conflict :  r/MapPorn

A Arménia, com pouco apoio no Ocidente, salvo o da França, onde existe uma importante comunidade de arménios, e sobretudo sem o suporte da Rússia, que seria o seu protector mas que não quer entrar em conflito com a Turquia, vê-se assim ameaçada de novo e começa a olhar de soslaio para a UE. E a Turquia de Erdogan marca pontos estratégicos e consegue fazer a Rússia acobardar-se. Esta provou que não só não é de confiança para com os que deveriam ser os seus aliados (um aviso para África?), já que nem os membros da própria organização de defesa podem contar com o seu auxílio, como mostra as suas limitações bélicas. Tão empenhada está na Ucrânia que não se pode estender a outras paragens, a não ser com mercenários.

E assim, no espaço de um mês, voltamos a ver os dois povos que sofreram os piores genocídios do século XX a serem butalmente atacados ou sujeitos a limpeza étnica por expulsão: os judeus e os arménios. Os ciclos da História repetem-se com arrepiante dramatismo.

Dia 500

Pedro Correia, 09.07.23

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Foto: Beata Zawrzel / NurPhoto

 

Ontem foi o dia 500 da guerra soviética que a Rússia de Putin trava em solo ucraniano. Uma invasão iniciada há quase 17 meses, em grosseira violação do Direito Internacional - desde logo a Carta das Nações Unidas.

Segundo a Comissão de Direitos Humanos da ONU, os esbirros às ordens do ditador moscovita - incluindo a tenebrosa legião Wagner, agraciada com quase mil milhões de euros do Estado russo, segundo confessou o próprio Putin - já assassinaram pelo menos nove mil civis na Ucrânia. Incluindo crianças e até bebés.

Crimes de guerra, crimes contra a Humanidade. Em cidades como Butcha, Irpin e Mariúpol, reduzidas a escombros. Atrocidades de todo o tipo. Desprezo absoluto pela vida humana. O déspota do Kremlin responderá perante a justiça por este genocídio premeditado na nação vizinha. Estou cada vez mais convicto disto.

Slava Ukraini!

Ler (22)

Da espantosa actualidade de Tolstoi

Pedro Correia, 17.06.23

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Como relatei aqui, tracei como uma das minhas metas de leitura para 2023 a visita, já tardia, a este monumento literário que é Guerra e Paz. Cumprindo, como patamar mínimo, um capítulo por dia: assim chega-se lá.

Pelo menos a meio já cheguei. A meio do romance, o que significa também a meio do segundo dos três volumes. Mais de 600 páginas ficaram para trás. Com 109 personagens até ao momento, se as contas não me falham. Entre elas, o próprio Napoleão Bonaparte - além do imperador russo, Alexandre.

Como também já assinalei aqui, é um romance que exige ser cartografado. Temos de ir elaborando um quadro com as figuras principais e secundárias, que vão entrando e saindo: só assim evitamos perder-nos no imenso emaranhado do enredo. 

 

Regresso ao tema só para assinalar um trecho que ontem li, na página 215 deste segundo volume, a propósito da brutal ofensiva napoleónica contra os russos em 1812. Mesmo à entrada do Livro Três (são quatro no total, com 15 partes). 

É o que passo a transcrever - com a devia vénia à memória do tradutor, o filósofo José Marinho:

«No dia 12 de Junho, os exércitos da Europa Ocidental atravessaram a fronteira e a guerra começou: quer dizer que se deu um acontecimento contrário à razão e a toda a natureza humana. Alguns milhões de homens cometeram uns contra os outros quantidade tão considerável de crimes, enganos e traições, roubos, pilhagens, incêndios e morticínios, como a história de todos os tribunais do mundo não comporta durante séculos; e, entretanto, as pessoas que cometiam esses crimes não os consideravam como tais.»

É espantoso, o poder sugestivo da grande literatura. Podemos ler estas linhas, escritas há 160 anos, como se retratassem a guerra que desde 24 de Fevereiro de 2022 dilacera a fronteira oriental da Europa. Com a diferença de que os russos, em vez de agredidos, são desta vez os agressores.

Num acontecimento contrário à razão, como Tolstoi tão justamente escreveu. 

 

O escritor chegou a pensar num título muito diferente para esta obra-prima: Tudo Está Bem Quando Acaba Bem era o que tinha em mente. Optou pela versão mais concisa e solene, sem pista alguma para o desfecho.

Da ficção para a realidade, anseio para que possa ser este o título de um futuro romance em torno da dramática guerra de libertação que os ucranianos hoje travam na sua própria terra. Tudo está bem quando acaba bem.

E que o fim demore menos do que o da Guerra e Paz

A guerra da Rússia contra a Ucrânia

Pedro Correia, 24.03.23

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Escombros de Irpin após ataque russo (2022)

 

George Orwell ensinou-nos o valor das palavras. Perverter o seu significado é, muitas vezes, ceder terreno aos inimigos da liberdade. É fundamental, por isso, estarmos sempre atentos à importância de cada rótulo, de cada etiqueta, de cada frase feita em suposta representação da realidade.

A brutal ditadura de Putin, consciente deste facto, decretou penas de prisão a todos quantos chamassem guerra à guerra. Os russos só podem entoar a eufemística lengalenga putinesca, que chama «operação militar especial» à criminosa invasão do território ucraniano pela maior potência atómica do planeta.

Cada quadrante com os seus eufemismos. Os amigos do Kremlin em Portugal chamam simplesmente «guerra» àquilo - diluindo-se todo o horror concreto dos massacres cometidos pelos russos em Butcha, Borodianka, Irpin, Kramatorsk e Mariúpol num vocábulo abstracto.

Até o jornalismo que persiste em ser rigoroso e sério pode recorrer a expressões equívocas. Acontece quando alude à «Guerra da Ucrânia», como se houvesse simetria exacta entre agressor e agredido.

Mas não há.

O que ali ocorre é a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Iniciada faz hoje 13 meses e ainda sem fim à vista. Saibamos dar-lhe o nome certo. Sem enganos, sem eufemismos, sem ambiguidades.

Guernica ontem, Ucrânia hoje

Descrição da Guerra em Guernica, de Carlos de Oliveira (dois trechos)

Pedro Correia, 09.03.23

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Irpin em ruínas (Ucrânia, 2022)

 

IX

Casas desidratadas

no alto forno; e olhando-as,

momentos antes de ruírem,

o anjo desolado

pensa: entre detritos

sem nenhum cerne ou água,

como anunciar

outra vez o milagre das salas;

dos quartos; crescendo cisco

a cisco, filho a filho?

as máquinas estranhas,

os motores com sede, nem sequer

o espírito das minhas casas;

evaporaram-no apenas.

 

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Butcha em escombros (Ucrânia, 2022)

 

X

O incêndio desce;

do canto superior direito;

sobre os sótãos,

os degraus das escadas

a oscilar;

hélices, vibrações, percutem os alicerces;

e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona

toda a arquitectura;

as paredes áridas desabam

mas o seu desenho

sobrevive no ar; sustém-no

a terceira mulher; a última; com os braços

erguidos; com o suor da estrela

tatuada na testa.

15 de Fevereiro de 2003

João Pedro Pimenta, 25.02.23

É certo que a efeméride que agora se comemora é outra, mas não queria deixar de recordar outra, mais antiga, que tem uma ténue ligação à da invasão da Ucrânia. Há pouco mais de uma semana passaram vinte anos sobre uma data que não teve grande eco nestes dias, mas que na altura não só era nota de primeira página como se tornou um marco da globalização. Refiro-me às enormes manifestações contra a invasão do Iraque, que acabaria mesmo por acontecer pouco mais de um mês depois, e que terão sido as primeiras realmente globais convocadas pela internet, ainda antes dos smartphones e das redes sociais, mas já com os blogues a despontar (e a dar-nos alguns dos melhores debates sobre a matéria).

O dia era 15 de Fevereiro de 2003. Tinham decorrido dez dias sobre o discurso de Colin Powell na Assembleia Geral das Nações Unidas, que, com a história das "armas de destruição maciça", tinha praticamente garantido que os Estados Unidos avançariam mesmo sobre Bagdade, assim cumprindo a primeira parte do plano contra o "Eixo do Mal" urdido pelos entusiastas neoconservadores, que na altura influenciavam decisivamente o Partido Republicano e a Casa Branca com a sua ideia de democratizar o Mundo e levar a pax americana a todo o lado nem que fosse à bomba (se bem que hoje, olhando para o GOP, quase tenha saudades deles). 

Apesar dos apoios, em especial dos tradicionais aliados dos EUA, começando pelo Reino Unido e Portugal e continuando pela "nova Europa", a reação seria dura, precisamente vinda da "velha Europa", com a França a liderar a oposição à guerra, secundada pela Alemanha, no que seria até uma mini-guerra cultural. Se uns clamavam contra os "belicistas" e "falcões", outros falavam em "covardia" e "anti-americanos" e acusavam a França de ser um país que estava habituado a render-se e que tinha sido graças aos EUA que a Europa se tinha livrado dos nazis (embora também se lembrasse com propriedade que os Estados Unidos deviam a sua existência à França pela ajuda decisiva na Guerra da Independência). O corolário dessa discussão seria a patética questão das "freedom fries", um nome aplicado efemeramente às "french fries", ou seja, às batatas fritas de palito, que algumas vozes com melhor memória lembraram ser belgas e não francesas (a isto se poderia chamar o síndrome Poirot).

E a 15 de Fevereiro, um Sábado, vieram as tais manifestações. Um pouco por todo o Mundo, mas particularmente na Europa e nos EUA, precisamente nos países cujos governos apoiavam a invasão. Socorrendo-me da Wikipedia, à falta de dados mais eficazes, a maior manifestação terá sido em Roma, com mais de dois milhões de pessoas na rua, seguindo-se Madrid, Londres (ou seja, as capitais dos países que apoiavam a guerra), Berlim, Paris, etc. Um pouco menos participadas, as manifestações nos EUA tiveram ainda assim largas dezenas de milhar espalhadas por todo o território. Havia de tudo: anarquistas, artistas, freiras, estudantes, reformados, etc.

 
 
Curiosamente, o "resto do Mundo", que se deveria ter mobilizado mais contra a guerra, demonstrou uma tímida oposição popular. Na Rússia, que tantas vezes invoca esta invasão para se justificar, houve escassa contestação, na China nem houve, na Ásia, mesmo no Médio Oriente, e em África, quase nem se viu. E se se pode sempre justificar com os regimes destes países, repare-se que no Brasil, de onde tenho visto críticas à "hipocrisia dos europeus", estiveram pouco mais manifestantes do que em... Malta.

 

 

Em Portugal também as tivemos. Na de Lisboa pontificava Mário Soares, ao lado de oitenta mil pessoas. No Porto bastante menos, cerca de cinco mil. Lembro-me de ir a essa, com epicentro na Praça dos Poveiros, por oposição à guerra mas também por alguma curiosidade sociológica. Por uma vez Ferro Rodrigues estava carregado de razão: na véspera, o então secretário geral do PS declarara que embora estivesse totalmente contra a guerra não iria apoiar oficialmente a manifestação (embora não estivesse contra) porque certamente haveria gente que aproveitaria para branquear o regime de Saddam Hussein. Dito e feito: entre os oradores, não faltaram aqueles que, claramente ligados ao PC, diziam conhecer o Iraque, afirmavam não haver quaisquer perseguições políticas e que Saddam o tinha transformado num país próspero e dinâmico. Ainda houve outras diatribes semelhantes, com discursos pró-Palestina e alguma propaganda, essa sim, anti-americana, como cartazes com insultos à porta do McDonalds por jovenzinhos anticapitalistas de ar pouco cuidado. Mas não dei a tarde por perdida. A causa fundamental era nobre e até reencontrei a minha velha professora da 1.ª classe, que me ensinou a ler.

Esse dia ficaria na história, como disse, como a primeiro e provavelmente maior, até agora, manifestação global da História. Acho estranho não ter sido mais recordada, embora tivesse deixado claras sementes, e até Ian McEwan escreveu um romance, Sábado, baseado nesse dia. Mas achei importante recordá-lo, não apenas pelo momento em si mas pelo actual. É que tenho ouvido muito boa gente dizer que o Ocidente apoiou todo a Invasão ao Iraque, e que particularmente os europeus são "hipócritas" porque reclamam conta a invasão da Ucrânia e apoiaram a do Iraque. Pois este dia 15 de Fevereiro de 2003, e não só, prova que isso é mentira. É mesmo o contrário. Vai-se a ver e a França, o estado francês, opôs-se-lhe bem mais do que a Rússia e a China, e os europeus manifestaram-se em massa contra a guerra, em claro contraste com a inacção de chineses, russos, brasileiros, indianos e do resto do mundo em geral. Houve muito mais indignação popular na Europa e nos Estados Unidos do que naqueles que agora se recusam a condenar a invasão da Ucrânia com a tese da invasão do Iraque (como se uma impedisse a outra, e aí está Sean Penn a prová-lo). E por cá, o PCP bramia contra a invasão de Bush mas vem sonsamente acusar a NATO de ser culpada da guerra na Ucrânia e Zelensky de ser "antidemocrático" e outras coisas que nunca disseram de Saddam. Por isso, quando ouvirem alguém com esta conversa desmemoriada e ignorante (ou de má fé) sobre a "hipocrisia dos europeus" e os "dois pesos e duas medidas" entre a invasão do Iraque e a da Ucrânia, recordem-lhes isto e mostrem que não eles têm qualquer moral para invocar whataboutismos falsos. A memória do 15 de Fevereiro cá está para lhos recordar.

Um ano depois

O que se escreveu no DELITO em 24 e 25 de Fevereiro de 2022

Pedro Correia, 25.02.23

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NÓS...

 

Beatriz Alcobia: «Escolho as maçãs uma a uma e só trago as que gosto e me interessam. Deixo lá as outras que não me interessam. Assim também o faz Putin. Vai à História e tira um a um os acontecimentos que lhe interessam e ignora os outros.»

 

João Campos: «Sou insuspeito de nutrir alguma simpatia pelo actual Governo e pelos seus vários elementos - Augusto Santos Silva incluído - mas não posso deixar de aplaudir a sua resposta ontem, no Parlamento, à vergonhosa intervenção do deputado comunista João Oliveira. Ponderada, eloquente, sem meias-palavras e sem as insuportáveis adversativas que tanta gente usa para tentar "justificar" ou "compreender" a agressão de Putin à Ucrânia.»

 

João Pedro Pimenta: «Não faltam "quintas colunas" no Ocidente a favor de Putin. Em Portugal não serão assim tantas, mas temos à cabeça o inevitável PCP, sempre ao lado dos russos (ou melhor dizendo, contra o Ocidente), para quem a culpa é... da Ucrânia. Certamente pensaram o mesmo da Polónia na invasão alemã de 1939, de tal forma que a URSS entrou pelo outro lado. Mas mesmo fora do PCP encontramos outros idiotas úteis.»

 

JPT: «Vem constando que António Costa, reforçado pela maioria absoluta parlamentar, levará Fernando Medina para o seu próximo governo. Entregando-lhe, segundo os mesmos rumores, a importante tutela das Finanças. É uma boa notícia para o país, pois será garantia de uma boa relação com o regime russo

 

Luís Menezes Leitão: «A fraqueza da actual liderança dos EUA e a falta de preparação do Ocidente para suster a ameaça russa conduziu assim a Europa uma guerra que se pode revelar absolutamente dramática. E esperamos que isto não sirva de exemplo para outras potências procurarem também resolver pela força os conflitos que têm há muito congelados. Recorde-se a China em relação a Taiwan.»

 

Paulo Sousa: «Estamos quase incrédulos por, após tantos anos de estabilidade na Europa, existir um país que insiste em regressar ao mundo de antigamente, ao mundo do equilíbrio de forças, ao mundo onde importa contar o número de soldados, tanques, aviões e fragatas, sempre a olhar para os números dos seus vizinhos. A Rússia, liderada pelo filho da senhora Putina, não gosta do multilateralismo e comporta-se no palco internacional como um bully no recreio da escola. No mundo que ele tenta promover e em que gosta de se movimentar, os mais fracos têm motivos efectivos para temer os mais fortes.»

 

Sérgio de Almeida Correia: «Não se queira estabelecer qualquer comparação com a crise dos mísseis em Cuba. Nem a Ucrânia é um fantoche totalmente dependente e na órbita do Ocidente, como era o regime de Castro em relação à extinta URSS, como também não é menos verdade que não há, nem nunca houve, mísseis instalados à socapa e pela calada da noite que estivessem apontados a Moscovo, ou incursões desestabilizadoras no território russo, violando as fronteiras do estado vizinho e que tivessem sido estimuladas e pagas por exércitos de mercenários para conduzir acções de intimidação e de natureza secessionista em países independentes, por capricho próprio e para satisfação de egos doentios.»

 

Eu: «Putin ataca em larga escala a vizinha Ucrânia, despejando-lhe incontáveis mísseis de médio alcance, convicto da impunidade. Na certeza de possuir o maior arsenal atómico do planeta - exemplo supremo da razão da força, indiferente a qualquer força da razão. E tem a vantagem, relativamente ao genocida alemão, de estar sentado no chamado "Conselho de Segurança" da ONU, com direito de veto a qualquer decisão que possa lá tomar-se. Numa manifestação suprema de cinismo, aliás, invocou o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas para ordenar a tomada da Ucrânia pelas armas. Imagine-se Hitler com idêntico poder formal de paralisar qualquer acção contra si próprio no inútil palácio de vidro em Nova Iorque...»

 

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... E OS LEITORES

 

Alexandre Soares: «Não passarão.»

 

Balio: «Os EUA andaram desde 1990 a gastar o seu exército em guerrinhas no Iraque, Afeganistão e outros países de menor interesse. Agora têm o exército gasto, rombo. Se tentassem intervir militarmente contra os russos na Europa (em guerra não nuclear), seriam pulverizados. Os exércitos europeus sofreriam o mesmo destino.»

 

Francisco Almeida: «Em 2008 face a uma narrativa de ameaças da NATO, até hoje por concretizar, [a Rússia] entra no Cáucaso de onde nunca mais saiu. Em 2014, face a idêntica narrativa, anexa a Crimeia. Logo em 2015 envia tropas especiais para o Donbass mas mantém-nas em stand-by, não progredindo mas impedindo de facto que o exército ucraniano acabe com as secessões. Agora, em 2022 foi o que [se] viu. E, para os mais distraídos, lembro que uma operação desta envergadura necessita de semanas, se não meses, de planeamento.»

 

JF: «É lamentável ver que toda esta situação e intervenções militares que a Federação da Rússia se vê obrigada a concretizar, tenha sido despoletada pela Inglaterra, União Europeia, e a Organização do Tratado do Atlântico Norte, que efectuaram em 2014 um golpe de Estado liberal levando ao poder em Kiev forças/partidos políticos nacional-socialistas, em conjunto com a recusa do regime liderado pelo Sr. Zelenskyy em cumprir os Acordos de Minsk.»

 

Lucklucky: «A Europa tem mais culpas, afinal estamos no continente europeu onde está a ocorrer tal situação... Como a cultura do Ágora no Ocidente relativa à area militar é miserável devido à cultura pop de jornalistas e tutti quanti... a ignorância é "sistémica".»

 

Manuel Guerreiro: «Putin sabe perfeitamente que os dirigentes ocidentais são tão corruptos quanto ele, daí ele fazer o que está a fazer.»

 

Marques Aarão: «Cabe perguntar se ninguém previu que Putin, tal como o descrevem, não poderia sentir-se ameaçado e encurralado perante o concluir de um cordão com a adesão da Ucrânia à NATO. Seria assim tão difícil deixar para já em banho-maria essa possibilidade explicando que essa acção nas circunstâncias em presença poderia despoletar uma guerra de consequências mundiais imprevisíveis com um número de vitimas mortais avassalador?»

 

Vagueando: «Putin tem a Europa na mão e a Europa como projecto de paz em que acreditou piamente desfez-se e, infelizmente caminha para um futuro preocupante face ao crescimento dos seus próprios extremismos internos.»

 

Vento: «A Ucrânia, tendo um povo valente, jamais aguentará um ataque quer do fogo de artilharia de longo alcance russo, quer dos foguetes com uma capacidade absolutamente infernal que também têm, quer dos mísseis cruzeiro e balísticos, quer ainda da capacidade russa para deixá-los através de meios electrónicos sem capacidade para comunicar.»

 

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De luto pela Ucrânia

Pedro Correia, 24.02.23

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Foto: Maksim Levin / Reuters

 

O número de militares ucranianos que perderam a vida ao longo deste ano de invasão da Rússia pode ascender a 100 mil.

Pelo menos oito mil civis foram mortos. Outros números apontam para quase 30 mil.

Cerca de 13.300 civis feridos - números mínimos.

Pelo menos 487 crianças assassinadas.

Outras 954 feridas com gravidade.

«Nem o mais simples aspecto das vidas infantis foi poupado neste conflito», salienta a UNICEF, acrescentando que para elas este foi «um ano de terror». 

A percentagem de crianças a viver na pobreza na Ucrânia quase duplicou ao longo deste ano, passando de 43% para 82%. 

O número de refugiados ucranianos noutros países europeus ultrapassa já os oito milhões - o que corresponde a cerca de 20% da população do país, segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados.

Há neste momento cerca de 5,9 milhões de desalojados internos no país.

Milhão e meio de crianças ucranianas sofre de ansiedade, depressão, stress pós-traumático e outras doenças do foro psicológico.

Milhares de equipamentos civis foram arrasados na Ucrânia - incluindo escolas, infantários, creches, hospitais, enfermarias, maternidades, igrejas, conventos, teatros, museus, salas de concerto, oficinas, lojas e habitações.

O PIB da Ucrânia caiu 30,4% em 2022.

O défice orçamental do país pode registar uma acréscimo de 38 mil milhões de dólares em 2023.

Os prejuízos materiais causados pela agressão russa à Ucrânia ascendem já a mais de 750 mil milhões de dólares.

Os danos ambientais deste conflito ultrapassam 48 mil milhões de dólares.

Dez meses depois

Pedro Correia, 24.12.22

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Faz hoje dez meses. Nesse dia da infâmia - parafraseando o que Roosevelt chamou ao cobarde ataque nipónico à esquadra norte-americana em Pearl Harbor - o carniceiro russo, digno herdeiro de Estaline, mandou avançar os seus peões, armados até aos queixos, para invadir, anexar e retalhar a Ucrânia. Arrogando-se um direito de pernada próprio de um senhor feudal.

Queria amputar o país vizinho, derrubar as instituições eleitas pelos ucranianos, assassinar o Presidente sufragado pelo voto, ocupar Kiev num par de semanas, transformar o país invadido num Estado-fantoche, idêntico à Bielorrússia. Falhou todos estes objectivos. E fez agigantar Volodimir Zelenski, transformando-o num herói à escala planetária, justamente destacado como figura do ano que agora acaba pela revista Time. O homem que não desertou, não se poupou ao sofrimento em solo ucraniano, não abandonou os compatriotas à sua sorte. 

Enfurecido, o carniceiro mandou matar, mutilar, massacrar. Cidades como Mariúpol e Butcha, arrasadas sem um vestígio de compaixão, ficam como símbolos desta devastadora agressão que viola todas as regras do direito internacional, começando pela Carta da ONU, que teve a Rússia como uma das signatárias originais. Balanço trágico: mais de cem mil mortos e cerca de 15 milhões de desalojados na Ucrânia, além de danos patrimoniais incalculáveis.

Dez meses depois, mantém-se a fúria homicida da besta formada nos sinistros serviços secretos da extinta União Soviética. Com ogivas, mísseis e drones agora dirigidos sempre a alvos civis, na quebra das redes de abastecimento de água, energia e mantimentos. Para condenar o povo ucraniano à morte pela fome, pela sede, pelo frio.

O carniceiro continua a menosprezar o espírito de resistência do povo vizinho, que não se verga ao invasor. Ucranianos de todas as idades e condições sociais, mobilizados pela voz de comando de Zelenski, enfrentam os canhões com exemplar coragem física e moral. Mostrando ao mundo que até podem morrer de pé, mas jamais viverão de joelhos.

A besta não passará.

Não passaram, não passarão

Criminosa invasão da Ucrânia começou há nove meses

Pedro Correia, 24.11.22

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Faz hoje nove meses. O ditador moscovita, Vladimir Putin, ordenou a brutal invasão da Ucrânia - reeditando a pior política de canhoneira imperial que caracterizou grande parte do século XIX e culminou na I Guerra Mundial.

Centenas de milhares de soldados russos foram mobilizados em 24 de Fevereiro de 2022 pela maior potência nuclear do globo contra o Estado vizinho, num ataque desproporcionado, não provocado e sem declaração de guerra. Objectivo: ocupar Kiev, desarmar o exército ucraniano, depor as instituições democráticas do país e deter ou assassinar Volodimir Zelenski.

Todos estes objectivos foram fracassados, tal como a ocupação de outras grandes cidades, como Carcóvia e Odessa. Putin falhou também na previsão de que a aliança euro-atlântica se fragmentaria. Pelo contrário: tornou-se ainda mais coesa, a NATO robusteceu-se com a admissão de dois novos Estados membros (Finlândia e Suécia) e Moscovo perdeu sucessivas votações na ONU, tanto no Conselho de Segurança (onde dispõe de direito de veto) como na Assembleia Geral.

Já em desespero, forçado a recuar perante a contra-ofensiva de Kiev iniciada a 29 de Agosto e que já levou à recuperação de mais de metade do território perdido nas primeiras semanas da invasão, o tirano do Kremlin organizou pseudo-plebiscitos para anexar quatro províncias ucranianas - uma vez mais, em grosseira violação de todas as normas do direito internacional, como a Carta das Nações Unidas e a Acta Final da Conferência de Helsínquia.

 

Confrontada com um poder bélico muito superior, que desalojou mais de 13 milhões de pessoas (quase um terço da população do país) e destruiu cerca de metade da sua rede de abastecimento energético e alimentar, a Ucrânia resiste. Unida em torno do seu líder, que recusou fugir da capital, recusando a oferta de refúgio que o Presidente norte-americano lhe propôs no final de Fevereiro.

Resiste com heróica tenacidade. Mesmo com o sacrifício de 50 mil vidas humanas, grande parte das suas infra-estruturas arrasadas e prejuízos económicos, sociais e ambientais incalculáveis

A resistência está a ser bem-sucedida. O invasor vem recuando há dois meses, falhadas todas as tentativas de ocupação das principais cidades, fracassada a intenção de liquidar Kelenski e tomar de assalto as instituições políticas do país.

 

Onde os russos chegam, impera a tristeza, a desolação e o silêncio das ruínas. Quando os russos são expulsos, irrompe o júbilo e renasce a esperança.

Muitos de nós, nesta parcela do mundo livre, estamos solidários com a martirizada nação ucraniana. Conscientes, no entanto, de que o Dia D ainda vem longe: há que prosseguir a resistência ao invasor, que soltou ali três dos quatro cavalos do Apocalipse e até já ameaçou com um quarto - para arrasar em definitivo com a Ucrânia.

 

Putin e os seus lacaios - incluindo alguns portugueses, civis e militares - enganaram-se redondamente Mais depressa a demencial clique do Kremlin desaparecerá do que a Ucrânia será riscada do mapa.

O país de Zelenski vai emergir mais forte que nunca deste filme de terror iniciado há nove meses, quando as botas russas violentaram solo ucraniano com a intenção de tomar Kiev pela força em poucos dias.

Não passaram.

Não passarão.

Reerguer-se

Maria Dulce Fernandes, 11.11.22

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Ontem a discussão familiar subordinou-se ao tema Portugal na Grande Guerra. Se Portugal  tivesse participado activamente na   Segunda Grande Guerra, as coisas jamais seriam como são agora. O povo ter-se-ia forçosamente ajustado à penosa tarefa de se reerguer como raça e reconstruir como País, teria rastejado dos escombros da miséria, endurecido, trabalhado até ceder à exaustão e crescido. Todos cresceram depois do massacre que fustigou a Europa e dizimou as árvores da vida de tantos milhões de famílias. Todos menos os Portugueses, que "orgulhosamente sós" regrediram. Regrediram miseravelmente até transbordar o ponto de ebulição de quem via que o País era Lisboa; o resto era mera paisagem por onde deambulavam pessoas incultas e sem asseio, vergadas de sol a sol sob o peso das suas labutas diárias, daquilo que as suas mãos faziam arduamente brotar de torrões secos e duros, pessoas de feições bestiais, metidas consigo, cujos pontos altos das suas vidas eram  a taberna à noite, e a missa ao domingo.
Depois da reviravolta, veio a liberdade, a alegria, a música... Há panaceias que, pela sua forte composição, devem ser tomadas com moderação, porque as overdoses se não matam, destroem, corroem e enfraquecem. E enfraquecem principalmente quem não tem por hábito sentir alívio das penas.
Com Portugal foi igual, sem tirar nem pôr.
Nem o País nem as pessoas têm a endurance necessária para suportar uma tragédia de grandes proporções. É certo que já há tempos vimos tomando desgraça a conta-gotas, mas a minha pergunta é o meu medo, e uma guerra? Nada que se compare a produções de Holywood com tipos bem parecidos que enfarruscam a cara e coxeiam
depois de rebentar com a Panzer Division, nada disso.
Uma guerra a sério, com racionamentos, bombas e mortos pelas ruas. Com os nossos maridos, filhos e filhas pulverizados numa qualquer terra cujo nome não conseguimos pronunciar, em nome duma qualquer tríade politico-económica que não entendemos, mas aceitamos, porque nos dizem que é assim. 
E nós vamos, como sempre fomos, carne para canhão, carneiros para o matadouro, tristes, calados e perfilados, porque não temos nervo, nem  energia, nem preparações basilares para enfrentar a adversidade.
Seríamos seguramente mais um no rol dos pequenos países cuja identidade desapareceu no mapa do pós-guerra, depois de estabelecida a nova ordem mundial.
 
(Imagem Google)

No cerejal

Paulo Sousa, 11.10.22

Já por aqui escrevi algumas linhas sobre duas felizes viagens à Ucrânia. Na primeira das visitas, juntamente com os meus companheiros de aventuras, tivemos a sorte da nossa chegada ter motivado um jantar com a família alargada dos nossos anfitriões.

À fartura dos pratos que nos foram servidos, concorreram o calor humano e os sorrisos. As continuas traduções do nosso vizinho, que ali nos recebia, ajudou à afinação da sintonia de todos os comensais. É certo que somos os quatros, ali representantes deste rectângulo, pessoas razoavelmente dadas e por isso incapazes de recusar mais um brinde proposto pelo mais velho da casa, o sogro dele. A bebida acastanhada, destilada em casa, e baptizada por nós como “bom material”, afinou a goelas e os espíritos e foram eles os primeiros a avançar com uma demonstração de cânticos populares. Pouco seguros do nosso repertório acabamos mais tarde também por alinhar na cantoria e chegamos mesmo a conseguir fazer um cânone da “Menina que estás à janela”. Uma coisa memorável.

Consciente da irrepetibilidade daqueles momentos, registei em áudio diversas passagens daquelas três ou quatro horas, quase até esgotar a memória do telefone.

Um dos cânticos ucranianos ficou-me na memória. Não reconheci uma única palavra, mas lembro-me com clareza da limpidez da voz do cantor, do sentimento transmitido e do silêncio quase total enquanto o mesmo foi entoado. Só o voltei a ouvir umas semanas mais tarde num almoço em jeito de ressaca da viagem.

Ontem, nas notícias, ouvi-o de novo e reconheci-o imediatamente. Centenas de habitantes de Kyiv cantavam-no no metro, enquanto se abrigavam dos mísseis russos.

A canção é a mesma, o povo também e não consigo ficar indiferente à serenidade que transmite, nem à impotência que sinto face ao curso da guerra.

Entretanto soube que se chamava No Cerejal (ou No Pomar das Cerejeiras segundo tradução directa do Google) e, a partir dos inúmeros registos que se encontram na internet, pertence sem dúvida ao cancioneiro popular ucraniano.

Não me atrevo a elaborar sobre a exegese da letra que o Google traduziu e por isso deixo aqui apenas o seu texto.

Oh, no pomar de cerejeiras
Um rouxinol cantou lá
Eu pedi para ir para casa
E você não me deixou ir.

"Você é minha querida, e eu sou sua.
Deixe-me ir, o amanhecer chegou.
Minha mãe vai acordar,
Eles vão perguntar onde eu estava."

E você dá a ela esta resposta:
"Que linda noite de maio.
A primavera está chegando, traz beleza,
E tudo se alegra com essa beleza."

"Minha senhora, esse não é o ponto.
Onde você vagou a noite toda?
Por trança desamarrada,
Há uma lágrima em seu olho?"

"Minha trança está desamarrada -
Suas amigas desamarradas.
Uma lágrima brilha nos olhos,
Porque eu estava me despedindo da minha amada.

Minha mãe, você já está velha
E estou feliz, jovem.
Eu quero viver, eu amo.
Mãe, não repreenda sua filha.

 

Um golo contra Putin

Pedro Correia, 21.09.22

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Lewandowski, o maior goleador do futebol actual, prometeu ontem que actuará no Mundial do Catar, em Novembro e Dezembro, com uma braçadeira azul e amarela - as cores da Ucrânia devastada pela besta russa.

É, desde já, uma das imagens de 2022: o ponta-de-lança polaco com Shevchenko, o mais célebre futebolista ucraniano de sempre.

Outro golo marcado contra Putin. Todos serão bem-vindos.

A reconquista

Pedro Correia, 13.09.22

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Nas últimas 72 horas, a Ucrânia tem reconquistado largas parcelas de território, sobretudo na região de Carcóvia, segunda maior cidade do país, beneficiando da humilhante debandada dos soldados russos, que fogem a toda a pressa, deixando para trás centenas de veículos militares e carros de combate, abandonados ou destruídos. Recuperou mais de três mil quilómetros quadrados quando se assinalam 200 dias da agressão russa. Desmentindo em toda a linha o alegado «poderio» do aparato bélico de Moscovo, que - prova-se agora - não passava de um tigre de papel. 

Esta reconquista, que repõe forças ucranianas no domínio de cidades como Izium e Kupiansk, cobre de ridículo aqueles patéticos majores-generais que no início da traiçoeira ofensiva do Kremlin em território ucraniano, quando Putin imaginou deter direito de pernada sobre o país vizinho, entoaram hossanas ao ditador russo nas pantalhas portuguesas.

Refiro-me ao senhor Agostinho Costa, que a 28 de Fevereiro declarava, com um brilhozinho nos olhos: «Putin vai conseguir.»

E ao senhor Carlos Branco, que a 3 de Abril balbuciava, com um ligeiro tremor na voz: «Eu não tenho elementos suficientes para corroborar [as acusações de crimes de guerra praticados por militares russos contra civis ucranianos].»

E ao senhor Raul Cunha, que a 30 de Abril enaltecia a «libertação de Mariúpol», cidade arrasada pelas ogivas russas.

Derrotados, também eles, nesta intrépida contra-ofensiva da nação ucraniana face ao invasor neonazi.

Slava Ukraini!

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Soldados ucranianos exibem bandeira do seu país em Kupiansk (10 de Setembro)