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Delito de Opinião

Grandes romances (39)

Pedro Correia, 27.01.24

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À BEIRA DO ABISMO

O Jardim dos Finzi-Contini, de Giorgio Bassani

 

«Que podemos saber de nós e daquilo a que vamos ao encontro?»

(p. 202)

 

Na galeria das melhores personagens femininas da literatura europeia do século XX há um lugar de relevo para a bela Micol Finzi-Contini, nascida em Ferrara, em 1916, numa família da alta burguesia judaica ali estabelecida há séculos. Ficção largamente inspirada na realidade.

Pessoas importantes, como se comprova pelo jazigo do clã no cemitério local: tem aura de monumento. À semelhança da sumptuosa mansão muralhada que lhes serve de porto de abrigo, isolando-as do ruído da rua. Agregado à casa, há um imenso parque de dez hectares a que só por falsa modéstia se pode chamar jardim. Existe algo de edénico e virginal naquele amplo espaço onde só raros eleitos penetram. Também são poucos os que têm acesso ao campo de ténis onde Micol e o irmão mais velho, Alberto, exercitam dotes desportivos.

O narrador do romance, alter ego de Giorgio Bassani (1916-2000), é também judeu, embora de um meio social menos abastado. A diferença de classes apenas se esbate na sinagoga, em dias de culto: os Finzi-Contini sentam-se a escassos metros da família de classe média do narrador, que tem a idade de Micol.

Conheceram-se em miúdos, aos 12 ou 13 anos. Reencontram-se em 1938, já estudantes universitários. No mais quente e prolongado Verão das suas vidas. Dois meses após Benito Mussolini ter decretado a feroz lei anti-semita que privou os judeus da cidadania italiana, excluindo-os de cargos na administração pública. Ficavam igualmente proibidos os matrimónios mistos para preservar a “pureza racial”, em obsceno decalque da legislação nazi. Tornaram-se estrangeiros naquela pátria a que chamavam sua. Mesmo aqueles que militavam no Partido Nacional Fascista e o tinham financiado com generosas dádivas.

 

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À superfície, nada alterava a elegante rotina dos Finzi-Contini. É o perplexo narrador que nos partilha estas confidências cerca de 20 anos após tudo ter acontecido, já no final da década de 50. Aquele reduto enclausurado parecia imune a todos os perigos na despótica Itália. Ali imperava Micol, como deusa pagã no esplendor da existência: é sempre em segunda mão que nos vai surgindo no romance. Nunca como sujeito próprio, apenas enquanto objecto da veneração de quem a descreve de modo ainda apaixonado mesmo depois de todos terem sido engolidos por um cataclismo que deixou a face do mundo irreconhecível.

Nós, leitores, estamos lá também. Contemplando-a nos seus harmoniosos movimentos a jogar ténis, fascinados por aquela beleza ainda mais intensa por a pressentirmos tão fugaz. Era fácil reconhecê-la à distância «pelos cabelos loiros, daquele loiro especial estriado de madeixas nórdicas», com a altivez natural da sua estirpe. Aos 22 anos, «em shorts e camisola de algodão, aquela Micol de aspecto tão livre, desportiva, moderna», parecia não ser dali.

Ele olha-a, enlevado: já não é a pré-adolescente que conheceu num dia em que o incentivara a escalar o alto muro do jardim. Ela e o irmão haviam estudado em Milão, regressavam à terra natal em idade adulta. Preocupações com os presságios de guerra? Nem por sombras, dissera Micol, indiferente às interdições em curso: «Jogar ténis, dançar e namorar» eram as suas prioridades declaradas. Não necessariamente por esta ordem. Mas é também apaixonada por literatura: estuda Germânicas, traduz poemas de Emily Dickinson.

 

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Durante esses meses, pairava ali uma atmosfera quase irreal, de suspensão mágica: aquele Verão irá prolongar-se até meados de Novembro. Com forte carga simbólica – penúltimo acto, antes de tombarem as trevas outonais. «Os dias eram extraordinariamente belos mas ao mesmo tempo já muito assediados pelo Inverno, agora iminente. Perder um único parecia-nos um crime.» (p. 94 da edição portuguesa da Quetzal, excelente tradução de Egito Gonçalves).

O Jardim dos Finzi-Contini foi publicado em 1962 e logo galardoado com o Prémio Viareggio, um dos mais prestigiados de Itália. Deu fama a Bassani, que esteve envolvido na resistência clandestina durante a guerra, já formado pela Faculdade de Letras de Bolonha (1939). Chegou a estar preso, por oposição ao fascismo. Depois seria bibliotecário, argumentista cinematográfico, professor e actor esporádico. Dirigiu a Feltrinelli, uma das principais editoras italianas, e o Festival de Cinema de Veneza.

Este seu romance, de todos o mais célebre, é hoje estudado nas escolas. Continua a ser um dos livros mais lidos e apreciados em Itália. Começou como discreto conto homónimo, em 1955, escrito na terceira pessoa. Viria a ganhar asas na forma definitiva, redigido na primeira pessoa do singular: estava fadado para figurar no palco cimeiro da literatura.

 

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É a história de um amor não correspondido entre dois jovens acossados, cada qual à sua maneira. Ele sentindo-se rejeitado por aquela rapariga com quem partilhara breves carícias e uns beijos furtivos, ela parecendo adivinhar que o dedo do destino não tardaria a dissolver qualquer vínculo que pudesse contrair. Melhor então não ter nenhum. Ambos à beira do abismo, ambos vítimas do pesadelo totalitário, cada qual também a seu modo. Em plena contagem decrescente para a II Guerra Mundial.

O Inverno chegou, a face luminosa de Ferrara tornou-se sombria. Alberto adoeceu gravemente – metáfora dessa Itália ameaçada por uma moléstia fatal, naquele mimetismo da Alemanha hitleriana. Aos poucos, a mansão da mais próspera família judia de Ferrara com a sua mítica biblioteca de quase 20 mil livros foi-se blindando. Ele, antes de partir para sempre, contempla da rua a janela do quarto dela, lá em cima, no último torreão. Está iluminada, o que ainda mais lhe aperta o coração. Mal saberia até que ponto.

Avistam-se pela última vez em Agosto de 1939: ao contrário do anterior, este foi um Verão amputado. Dolorosamente amputado. Nada seria como antes para aqueles judeus: quase todos mergulhariam numa noite sem fim.

 

O Jardim dos Finzi-Contini é percorrido por uma corrente de nostalgia, de luta inexorável contra o tempo. De vidas destruídas pela implacável vertigem política daquela época que transformou cada pessoa em títere involuntária da História. De um deslumbramento que sobrevive como melancólica recordação.

«Não pertencemos a esse mundo, por muito apaixonados que estejamos por ele. Deixar-nos-ão entrar apenas durante um Verão encantado, desfrutar de longos jogos de ténis, explorar o jardim, cair na rede do desejo, mas as portas voltarão a fechar-se. E esse espaço ficará unido para sempre à nossa melancolia. Quase todos nós, em algum momento da vida, espiámos de fora um jardim dos Finzi-Contini.» Palavras da escritora espanhola Irene Vallejo no seu fascinante ensaio literário O Infinito num Junco. Aludindo a este romance, que confessa ser um dos seus livros preferidos.

Oito anos depois, Vittorio de Sica adaptou-o ao cinema, com Dominique Sanda perfeita na pele de Micol: parece ter nascido para desempenhar este papel. A película viria a ser distinguida em 1972 com o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro: galardão merecido.

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Dominique Sanda interpreta Micol no filme de Vittorio de Sica, (1970), galardoado com Óscar

 

Eis a consequência de um olhar apaixonado: dela acabaremos por saber muito; do narrador, quase nada. Nem sequer o nome.

Ele ficará irremediavelmente marcado por aquela paixão que nunca se consumou. O pai, médico proibido de exercer a profissão após ter sido expulso do partido único, soube ver tudo com nitidez numa larga madrugada em que trocaram confidências: «Na vida, para se perceber, mas perceber verdadeiramente, como são as coisas deste mundo, deve-se morrer pelo menos uma vez. E então, uma vez que é essa a lei, o melhor é morrer quando ainda se é novo, quando se tem ainda tempo, diante de si, para se aguentar no balanço e ressuscitar.»

Renunciar a Micol era a morte que lhe estava destinada. Restar-lhe-á a reminiscência daqueles «cabelos loiros e leves e levemente encaracolados, os olhos escandinavos, azul-celestes, a cútis cor de mel». Nenhuma ferida custa tanto a cicatrizar como a do fogo que arde sem se ver.

Ela jamais lhe pertenceu, mas de algum modo será dele para a eternidade. Ei-la nas páginas vibrantes deste romance, renascida em cada nova manhã do mundo: deslumbrante, radiosa, intemporal.

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

A Esperança - O apocalipse espanhol

O Malhadinhas - Um hino à vida

Barranco de Cegos - O meu mundo não é deste reino

Para Sempre - Existo, logo penso

Mau Tempo no Canal - Esplendor nas brumas

Grandes romances (38)

Pedro Correia, 30.07.21

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ESPLENDOR NAS BRUMAS

Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio

 

«Quando penso no mar, o mar regressa / A certa forma que só teve em mim - / Que onde ele acaba, o coração começa.»

Vitorino Nemésio

 

Cada época produz o seu romance de eleição. Em Portugal, no século XX, nenhum foi tão envolvente e tentacular como esta saga de duas famílias que se cruzam no Faial naqueles anos crepusculares da I Guerra Mundial, estava Sidónio Pais no poder em Lisboa. Ilha-postal, ilha-refúgio, ilha-prisão. Separada do vizinho Pico por um canal de águas revoltas que acaba por ditar o destino dos faialenses. Nem a felicidade perdura para quem lá permanece nem uma felicidade alternativa sorri a quem dali se evade. Porque, mesmo à distância, é impossível escapar ao sortilégio das raízes - sina de quem teve berço naquelas brumas.

Margarida Clark Dulmo é pouco mais que uma adolescente, mas já tem noção de tudo isto. Nela convergem dois apelidos ilustres: os Clarks de óbvia matriz britânica, detentores da firma Clark & Sons; e os Dulmos, ainda aparentados com a nobreza flamenga, ali fundeados desde os tempos do povoamento pioneiro, «aves do Faial há mais de quatro séculos, como os milhafres e os cagarros». Com mais pergaminhos que posses, uns e outros, naquele recanto atlântico onde chegavam remotos ecos da guerra que atroava o globo.

Na galeria das personagens femininas da literatura portuguesa, Margarida ocupa lugar de topo. Tão jovem ainda e já lhe pesa nos ombros a responsabilidade de salvar os móveis da família e funcionar como traço de união entre os dois ramos desavindos. Enquanto sonha escapar ao fadário da mãe e da desaparecida avó, ambas amarradas a casamentos amargurados. Se é a ilha natal a impor-lhe essa cruz, ela tudo fará para abandonar a ilha. Evitando as armadilhas do amor, se for preciso.

 

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Vitorino Nemésio (1901-1978) transportou durante cerca de vinte anos esta história, fascinado pela figura de Margarida Dulmo - que teve existência real, com outro nome - até a passar para o papel, já fisicamente distante da sua pátria açoriana a que afinal foi regressando uma vez e outra. 

Estava consciente de que tinha potencial para se tornar num marco da literatura portuguesa - pela arquitectura da prosa, pela exuberância do estilo, pela espessura das personagens e pela densidade do enredo, com um fôlego raro nas nossas letras. 

Poeta, professor, ficcionista, ensaísta, crítico, cronista, biógrafo, historiador, pedagogo e conferencista, Nemésio era um magnífico narrador, mestre da expressão verbal que seduziu os portugueses na primeira metade dos anos 70 com uma série de programas da RTP intitulados Se Bem me Lembro. Só esta popularidade granjeada na década final da vida lhe permitiu resgatar do esquecimento o seu único romance, que fora impresso em 1944, andava o mundo envolvido noutra guerra. Poucos o leram, quase nenhum crítico reparou naquela prosa do «mais moderno dos nossos clássicos e o mais clássico dos nossos modernos», na lapidar definição de David Mourão-Ferreira.

É uma obra de perfeição formal inatacável. E uma admirável declaração de amor aos Açores. Em forma de romance clássico, que honra a melhor tradição deste género literário e se assume como um dos momentos cimeiros da ficção portuguesa de todos os tempos.

 

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Mau Tempo no Canal contém uma narrativa deslocada da sua época, fragmentada entre duas escolas literárias então em voga: a da revista Presença, que enaltecia a vertente psicológica, e a do Novo Cancioneiro, militante da temática social. Para os primeiros, só o sujeito importava; para os segundos, nada mais havia senão o objecto com ideologia em fundo. E tudo girava em função destas etiquetas, daí o silêncio em torno deste desconcertante livro não-alinhado, «romance ao mesmo tempo realista e simbólico, de situações e de atmosferas, de costumes e de estados de alma», como acentua Mourão-Ferreira.

Foi obra de laboração lenta, iniciada em Bruxelas - onde Nemésio então vivia - no início de 1938. O que viria a ser o capítulo inicial surgiu pela primeira vez em Abril do ano seguinte, nas páginas da Revista de Portugal, sob o título "Um Ciclone nas Ilhas". Cinco anos depois, ao aparecer nas livrarias, foi acolhida com generalizado desinteresse. Ressalvados os elogios que João Gaspar Simões e Albano Nogueira lhe dispensaram, na imprensa contemporânea imperou a indiferença: poucos dos que exerciam crítica nos jornais perceberam estar perante uma obra-prima.

 

O romance rompia com o cânone que impunha o primado da mensagem “social” com ramificações políticas. O mundo do trabalho braçal entrava em força na literatura, com o seu cortejo de humilhados e ofendidos: pouco interessava, para os tutores dessas correntes estéticas, as inquietações românticas de uma jovem burguesa da cidade da Horta com raízes aristocráticas e nascida numa família de proprietários rurais.

Apesar disso, a obra receberia o Prémio Ricardo Malheiro, motivando uma segunda edição em 1945. Mas a terceira só ocorreu em 1963: toda uma geração ficou sem acesso a ela. E mais nove anos decorreram até haver uma quarta, à boleia da inesperada popularidade televisiva do autor. Enquanto livros obviamente menores eram incensados e louvados em sessões contínuas. 

Texto «impregnado de atmosfera marítima» (é ainda David Mourão-Ferreira que o assinala), Mau Tempo no Canal mescla a epopeia de vocação universal com o folhetim de sabor regionalista sem perder coerência no plano estilístico. «Como nas grandes obras de arte de todos os tempos, o acaso não existe em Mau Tempo no Canal. Dos elementos naturais ao bibelot, tudo nos surge impregnado de sentido. Dos textos eruditos por vezes citados ao tagarelar de um homem do povo, sente-se a comunhão na açorianidade», observa José Manuel Garcia, um dos maiores estudiosos de Nemésio.

 

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Margarida Dulmo interpretada por Anabela Morais na série da RTP Mau Tempo no Canal (1989)

 

Além do Faial, «vendada de nuvens e de gaivotas», a acção desenrola-se noutras três ilhas: Pico, São Jorge e Terceira - aqui onde acontece o epílogo, estando o leitor já consciente do tempo decorrido e dos sobressaltos registados desde a cena inicial, em que Margarida conversa com João Garcia, filho de um inimigo de seu pai. O namoro com aquele rapaz de «uma timidez desconcertante» é visto com maus olhos por ambas as famílias, o que marcará as vidas dos dois jovens. Fugaz «esplendor na relva», como o do célebre poema de William Wordsworth. 

Enquanto o delírio bélico devasta o mundo, no exíguo Faial - «terra onde tudo são heranças e negócios» - travam-se conflitos endogâmicos, por vezes no mesmo clã familiar. A vastidão oceânica que emoldura a Horta não dilui, antes intensifica, amores e ódios.

Há fortunas dissipadas, esposas traídas, maridos enganados, juras quebradas, falsos testemunhos. Um incêndio de vastas proporções que devasta uma conhecida mansão da ilha. Toda uma atmosfera social retratada na missa da Matriz, num baile de gala do Real Clube Faialense. E uma epidemia de peste bubónica à solta - a última que o arquipélago dos Açores conheceu. 

Há personagens como o velho Charles William Clark, avô materno de Margarida, e o violento Diogo Dulmo, seu pai, afundado em álcool e dívidas. Há Roberto Clark, o tio londrino idolatrado pela sobrinha que sonha ser enfermeira na capital britânica. E Januário, o pai de João Garcia, obcecado pela vingança. E há as mulheres, todas com o seu rasto de sofrimento: Catarina Clark, mãe da protagonista; Margarida Terra, sua falecida avó, de quem todos dizem ter herdado as feições; Emília, mãe de João, repudiada para sempre.

 

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Neste extraordinário romance, como nas melhores obras de Rudyard Kipling ou Joseph Conrad, a paisagem humana funde-se com a natureza, que adquire características das personagens.

Alguns exemplos:

- «Via-se o Canal ainda amargo, com o Pico negro e cónico ao fundo.» (p. 45 da edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994);

- «Há dois meses que a Horta vivia sob o pesadelo da peste debaixo daquele eterno capote-e-capelo das nuvens que o Pico franzia na garganta.» (p. 101)

- «A baía de Angra estendia-se gris e sonolenta das sombras do Monte Brasil ao molhe do Porto de Pipas.» (p. 326)

 

Margarida, com «aquele vago mistério sempre latente nos seus olhos», rebela-se contra o rumo que lhe estaria traçado desde menina. Desdenha da hipocrisia daquela gente que só vive de aparências. Quer conhecer a vida verdadeira. Refugia-se na casa que os Dulmos têm no Pico, onde cuida do velho criado Manuel, atingido pela peste. Embarca com pescadores, acompanhando-os na caça ao cachalote em páginas dignas de Moby Dick. Recupera das emoções do mar numa furna que serve de abrigo aos baleeiros, já em São Jorge.

Levará ainda mais longe o seu anseio de liberdade ou acabará por satisfazer o pai, que a quer ver casada - mesmo sem amor - com algum herdeiro de gente rica?

A última palavra será dela: ascende deste modo a figura cimeira da literatura portuguesa. Pela arte de um escritor que se revelou profundo conhecedor da sensibilidade feminina. Leitora de romances de Camilo e Júlio Dinis, Margarida torna-se heroína pós-romântica num tempo em que elas pouco mais eram do que figuras decorativas, na ficção como na vida.

Na amurada dum navio, retira do dedo o anel de ouro e esmeraldas que herdara da infausta avó materna e deita-o fora: ficará para sempre sepultado «no mais secreto do mar». É um gesto cheio de simbolismo: assim renega os atavismos sentimentais que tolheram as mulheres da família. O que vier depois será diferente.

Nessas magníficas páginas finais, sempre com o oceano por testemunha, encontra um amigo do perdido namorado, que lhe revela: «O João Garcia afinal só gostou de uma mulher, que foi de si.»  E la nave va: ela nada lamenta, mesmo consciente de que jamais reviverá o instante do esplendor na relva, da glória em flor.

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Selva - A grande muralha verde

A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

A Esperança - O apocalipse espanhol

O Malhadinhas - Um hino à vida

Barranco de Cegos - O meu mundo não é deste reino

Para Sempre - Existo, logo penso

Grandes romances (37)

Pedro Correia, 12.06.21

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EXISTO, LOGO PENSO

Para Sempre, de Vergílio Ferreira

 

«O homem é um ser tão extraordinário. O que ele inventa para ver se é eterno.»

(p. 48)

 

A solidão do indivíduo no universo, simbolizada na montanha altaneira e majestosa, obcecou Vergilio Ferreira durante largos anos. Foi tema recorrente na trajectória deste escritor, culminando na obra-prima que o consagrou em definitivo como pensador e ficcionista.

Em Cântico Final (1960) alude à solidão voluntária, imposta por uma doença irreversível. Na magnífica Alegria Breve (1965) apresenta-nos um homem em extrema solidão física, no sentido literal, numa povoação abandonada. Em Para Sempre (1983) estamos perante um caso de solidão ontológica: o protagonista é confrontado com a velhice e o seu cortejo de reminiscências, pessoais e intransmissíveis.

Todos eles - Mário no primeiro romance, Jaime no segundo, Paulo neste - regressam às origens, numa demanda incessante da pureza da infância, dos ecos familiares que o tempo foi dissolvendo, da comunhão com a natureza na sua simplicidade primordial. Conscientes de que cada indivíduo corporiza uma existência irrepetível. Convictos da inapelável indiferença divina perante cada destino humano.

 

Vergílio Ferreira (1916-1996), com sólidas raízes camponesas, nasceu numa aldeia do concelho de Gouveia, na Serra da Estrela - ambiente revisitado ao longo da sua obra, que se prolongou por meio século e em 1992 lhe valeu justamente o Prémio Camões. Ainda menino, puseram-no a estudar no seminário do Fundão, tema central de Manhã Submersa (1954), o mais célebre dos seus romances. Mas tinha vocação de pedagogo, não de sacerdote: viria a dar aulas em várias cidades (Bragança, Faro, Évora, Lisboa), aproveitando cada momento disponível para construir um sólido percurso literário (foi também contista, ensaísta e diarista, além de episódicas incursões na poesia).

No final da década de 40, após publicar o memorável Vagão J, abandonou a corrente neo-realista, que encerra o homem na dimensão social. Vergílio, pelo contrário, coloca o indivíduo no cerne narrativo, elevando o romance ao patamar da filosofia. Todos os seus livros, marcados por uma escrita cada vez mais depurada, foram fornecendo aproximações de resposta à pergunta essencial: confinado nos limites físicos da sua existência, sabendo-se condenado a uma irreparável finitude, que parcela de imortalidade resta ao ser humano confrontado com o silêncio de Deus?

 

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Este é um romance circular. Acaba como começa: com a frase «Para sempre», enquanto lema, legenda e sumário da vida. 

Paulo, bibliotecário aposentado, regressa à aldeia natal talvez no último Agosto da sua vida. Volta a habitar o velho casarão onde crescera, fechado há largos anos, sepultados já os parentes que ali lhe restavam.

Cada odor, cada ruído, cada partícula do cenário (um violino coberto de poeira, uma antiga máquina de costura há muito inactiva) lhe devolve lembranças adormecidas na memória, transportando-o para épocas que viveu outrora, quando todos os sonhos se mantinham intactos e era possível inventar o futuro.

À medida que se sucedem os capítulos, ei-lo mergulhado em diálogos irreais, tendo como interlocutores os fantasmas das gerações precedentes. Todos lhe falam d'além-túmulo, ele vai-se despojando do mundo dos vivos em trânsito contínuo para o reino dos mortos enquanto aos seus olhos se desenrola o prodigioso espectáculo da renovação da natureza na paisagem serrana que lhe serviu de berço e não tardará a servir-lhe de túmulo. Entretanto, está condenado à eternidade possível - aquela que a existência física lhe ditar.

 

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É um livro todo escrito na primeira pessoa do singular. «O silêncio pesa sobre a terra como um augúrio, a luz é intensa como uma treva. Olho-a deslumbrado até à cegueira, quase esquecido de mim. A morte alastra à minha volta no silêncio, sobe pelo meu corpo até aos meus olhos parados. Que é que quer dizer a vida e a vertigem do seu milagre? Onde se gera o espanto e o arrepio do seu alarme? Estou só, esvaziado de tudo. Ideias, projectos, e as súbitas revelações, e o mundo, e a visão original das coisas, a recuperação do seu ser de início mesmo depois de já sabidas, e o encantamento da beleza primordial, onde estão? Só, na nulidade de mim, na frieza linear e vegetativa.» (p. 97 da edição original, Bertrand).

Paulo dialoga consigo mesmo, perdido nas evocações que aquele regresso lhe propicia. Nós, leitores, deciframos o seu pensamento como se fôssemos omniscientes - eis o fascínio da literatura. Não por acaso, grande parte dos capítulos começa com a conjunção copulativa: e é palavra eleita, transmitindo-nos a sensação de fluxo incessante de reflexões.

Solitário, isolado. Mas nós habitamos com ele, partilhamos as espartanas refeições dele, deixa de haver segredos para nós dentro daquelas paredes. 

«Enterrado em livros velhos, em ideias velhas, estou aqui. Sozinho na velha casa, é um casarão, estou aqui. Há um grande silêncio comprimido sobre o mundo, atento escuto uma voz que não vem. Um ralho, um chamamento, um fio que ligue em vida duas presenças humanas. Ou o cântico do vale que nos liga ao universo.» (p. 107)

Percorre os aposentos separados pelo longo corredor, o soalho range, as dobradiças gemem. As casas envelhecem também, mas a um ritmo mais lento do que as pessoas. E este é um romance sobre a velhice. Talvez o mais deslumbrante, centrado neste tema, de toda a literatura portuguesa.

 

A mãe morreu-lhe jovem, embrulhada num espesso véu de loucura. A filha, Xana, afundou-se na droga e mora algures, nem sabe ele bem onde. A vida de Paulo decorreu em Penalva (Guarda), Soeira (Coimbra), Oliveira (Figueira da Foz), Santa Maria (Faro), Vigia (Olhão). Cada vez mais longe das raízes. 

À medida que a narrativa progride, alarga-se o campo das reminiscências, o passado impera, o presente vai-se tornando cada vez mais distante. As velhas tias que o criaram regressam em visita imaginária ao sobrinho devolvido à infância, aprendiz de violinista fazendo soar os acordes da Avé Maria de Schubert.

«Erguido ao alto do estrado, criança mítica no mundo da sordidez e da degradação, estranha vítima imolada à grandeza e ao assombro, a mão procurando no segredo do violino a voz oculta do deslumbramento, sozinho como a majestade e o império, longamente eu tracei na órbita de um astro o diagrama da beleza que encadeia e entontece. Tímida, humilde, ao fundo do salão, tia Luísa escutava também. Por fim a música acabou. Ficámos todos ainda em silêncio, até que a aparição se dissipasse.» (p. 182)

 

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«O veio do expressionismo realista que nos está nalguma massa do sangue encontra em Para Sempre uma expressão dificilmente ultrapassável», assinalou Eduardo Lourenço. Uma das maiores injustiças cometidas na nossa vida literária foi a atribuição, em 1983, do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores a Os Meninos de Ouro, de Agustina Bessa-Luís, surgido também nesse ano mas claramente inferior. 

Do ponto de vista formal, de pura construção romanesca, Para Sempre é um prodígio. Porque toda a acção actual contida nestas páginas decorre em tempo real - equivalente portanto ao tempo que demoraríamos a ler o livro sem interrupções. Vamos comprovando isso com as ocasionais espreitadelas de Paulo ao relógio e com o próprio declinar do dia, ao ritmo a que se processa a leitura.

 

«Abro as vidraças, a montanha ao longe em toda a sua magnitude. E uma pequenez em mim súbito sentida, um pasmo sideral de horizontes.» (p. 20)

Este livro tão tocante, capaz de nos comover nos parágrafos mais inesperados, é uma elegia. Pura poesia em prosa.

Podemos chamar-lhe romance existencialista. Porque a existência surge aqui como apelo vital, basilar e definitivo. Para sempre.

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Torre da Barbela - No reino dos mortos-vivos

A Selva - A grande muralha verde

A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

A Esperança - O apocalipse espanhol

O Malhadinhas - Um hino à vida

Barranco de Cegos - O meu mundo não é deste reino

Grandes romances (36)

Pedro Correia, 04.06.21

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A Parábola dos Cegos, de Pieter Bruegel, o Velho (1568)

 

O MEU MUNDO NÃO É DESTE REINO

Barranco de Cegos, de Alves Redol

 

«A sorte é um vento que sopra sempre a favor do mais forte.»

(p. 139)

 

Urge combater o esquecimento a que este romance vem sendo votado. Porque é uma das mais sólidas e poderosas ficções do século XX escritas no nosso idioma. Uma espécie de O Leopardo à portuguesa: relato de um mundo pronto a ruir e outro prestes a começar, na vastidão rural do Ribatejo. Entre o Ultimato britânico de 1890 e a débil república recém-implantada, entre a aristocracia agrária e a modernidade que se fazia anunciar por fábricas e linhas férreas, despertando o País dum torpor de séculos. Quando Portugal se resumia a Lisboa e a mudança de tutores políticos era comunicada por telégrafo às restantes parcelas do torrão pátrio.

Barranco de Cegos é uma emocionante parábola sobre esta encruzilhada de regimes centrada numa família de agrários na fictícia aldeia de Aldebarã, que foi germinando a partir da casa original, o Palácio da Mãe-do-Sol. O patriarca do clã, Diogo Relvas, entra no século XX com pose e discurso de antigo senhor feudal, amado e temido pelo povo que o serve, mas consciente de que aquele já não é o seu mundo: cabe-lhe gerir o legado do avô Bernardo e do pai João sem ilusões quanto ao rumo do País, antevisto na decadência, enquanto pretende salvaguardar o património familiar da cobiça externa.

Mãe-do-Sol porquê? Esclarece o padre que ali reza missa: «Porque é também nesta casa que o Sol nasce, para quantos vivem do trabalho que os senhores Relvas, verdadeiros fidalgos, distribuem por todos, como pais que são dos pobres, de remediados e até de ricos. Aqui estamos em pleno céu; aqui se faz na terra o que o céu manda. E, por isso, a própria aldeia que esta casa fez, e em boa hora, para os seus servos, tem o nome de Aldebarã, que os antigos consideravam uma das quatro partes em que o céu se divide.» (p. 104 da edição original, Portugália Editora.)

O avô de Diogo, Bernardo Santa-Bárbara Relvas, recebera a alcunha de Chicote - «símbolo de que na vida muito se poderia resolver pela força». O pai, João de Meneses Relvas, tinha duas cabeças de cavalo que mandara embalsamar na maior sala da mansão: «A do baio, em que montara D. Pedro durante as lutas liberais, ofertado em público por adesão de ideias, e a do cavalo branco, branco-porcelana, que pertencera a D. Miguel, o Arcanjo Miguel, durante os dias da Vilafrancada.»  (p. 26) Simbolizavam a adesão do clã ao monarca, fosse quem fosse o titular do trono. «Significava que nas manadas da casa haveria sempre cavalos e éguas dignos de reis, mas também que ali se serviria quem viesse em nome da Coroa, sem se perguntar que partido dava os bons-dias no poder.»

 

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Diogo Relvas tem 44 anos quando o romance começa. Viúvo precoce, pai de dois filhos varões e duas filhas, começa a sentir-se inadaptado à época que lhe coube em sorte: preferia ter pertencido à geração do pai. Ou, melhor ainda, à do avô - de quem era o retrato chapado, todos diziam. 

Tem um refúgio que herdou de Bernardo: uma torre-mirante anexada ao palácio, reduto que só ele transpõe. Nem uma criada lá entra para arrumações. O povo chama-lhe a Torre dos Quatro Ventos: «cada janela deita para um ponto cardeal e há quatro pontos cardeais donde o vento sopra.» Ali se encerravam também, simbolicamente, quatro segredos das sólidas raízes familiares desses proprietários de toiros bravos criados para correrem nas melhores praças da Península: a objectividade, a coragem no essencial, o amor pela perfeição e a pertinácia.

O palácio fora adquirido «no espólio de um dos companheiros do general Gomes Freire, caído com ele em desonra pública». E o Chicote mandara acrescentar o mirante não só para contemplar o Tejo, «de que o lavrador era apaixonado», mas também para nunca esquecer a virtude da modéstia: «Mobilada com a indigência dos haveres de um pobre, a torre passava a ser o refúgio do chefe da família, a que ele próprio deveria garantir a limpeza, em sinal de humildade e orgulho também» (p. 45)

O homem é inseparável da casa. Esta, em que António Alves Redol (1911-1969) nos introduz, insere-se na galeria das inesquecíveis, ao nível do melhor no género que nos tem dado a literatura. Como o Ramalhete descrito por Eça n' Os Maias. Ou A Casa Grande de Romarigães, de mestre Aquilino. Ou essa originalíssima Torre da Barbela, do romance homónimo de Ruben A.

 

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Barranco de Cegos é expressão bíblica, colhida do Evangelho: «Deixai-os; cegos são e condutores de cegos; e se um cego guia a outro cego, ambos vêm a cair no barranco.» (São Mateus 15, 14)

A cegueira aqui é a de uma família em risco de declínio: Diogo Relvas acaba de enterrar o genro, homem fraco fulminado por uma síncope cardíaca, e considera sem préstimo os filhos, António Inácio e Miguel João. Vai-se distanciando da filha promogénita, a viúva Eugénia Adelaide, e apenas a mais nova, Maria do Pilar, lhe alegra os dias.

Mas só até saber que ela se apaixonara pelo filho dum campino, aprendiz de toureiro.

 

Aqui desemboca a tragédia que se torna ponto fulcral do romance. Inspirada num caso verídico, o de Carlos Relvas (1838-1894), latifundiário da Golegã que viu uma filha envolvida com um humilde rapaz da lavoura: conseguiu que fosse declarada louca e mandou "emparedar" o jovem, amputando-lhe os órgãos genitais.

Na obra de Redol, a ordem dada ao matador não deixa lugar a dúvidas: «Fá-lo sentir bem a morte. Não tenhas pressa. E corta-lhe as partes à navalha. Corta-lhas e mete-as no estrume.» (p. 315)

Assim era a lei do mais forte no Ribatejo. Com senhores feudais imitando a ira divina do Antigo Testamento. Ironia do destino: Carlos Relvas foi também pai de José Relvas, o homem que proclamou a república na varanda da Câmara Municipal de Lisboa a 5 de Outubro de 1910, exerceu como ministro das Finanças do Governo Provisório (introduzindo o escudo como moeda nacional) e assumiu a fugaz chefia do Executivo em 1919.

 

A cegueira apodera-se de Portugal, envolto em bancarrota nessa década final do século XIX, tornando o reino pasto da agiotagem internacional. O monarca mal conseguia segurar o trono, o País mal conseguia segurar as suas possessões coloniais, os sucessivos gabinetes governativos mal conseguiam garantir o sustento dos portugueses.

«O Governo procurava um travão para o descalabro, mas estava também a contas com credores que lhe impunham liquidações já vencidas. A falência do Baring, em Inglaterra, prestamista do Estado, fora um dos sinais da crise. Dera-se a inflação, aumentara a circulação fiduciária. Subiam os preços.» (p. 20). Este era o pano de fundo nacional. É extraordinário, percebermos como a História se repete.

Sem destoar, Diogo Relvas mal conseguia assegurar a linha sucessória no seu império agrário, que se estendia ao Alentejo com montados em Ponte de Sor, vinhedos em Borba, terras de semeadura em Estremoz e Cuba. Em todos os seus domínios vigoravam códigos de honra remanescentes de tempos medievais - aplicados a homens e bichos.

«Aos toiros que se mostrarem de sangue frouxo, sucede-lhes pior: capam-nos e amansam-nos, à canga, a canga e aguilhão, pondo-os a lavrar nas tralhoadas. Deixam de ser toiros com fidalguia, dignos de morrerem numa praça de Espanha, ao sol e em luta plena, para acabarem em servos de meia tigela, como essa gentalha maltrapida que vem da Beira para ajudar às mondas e ceifas. E os campinos da casa não os poupam - aos gaibéus e aos toiros degenerados que passam a bois de trabalho.» (pp. 74-75)

 

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Alves Redol conhecia muito bem os temas que destacava na sua ficção. Começando precisamente pela obra de estreia, Gaibéus (1939), retrato palpitante desse mundo de camponeses sem terra que alugavam o suor do corpo para ganharem o pão, desenraizados dos fraguedos de origem. Saga de trabalhadores braçais, introduz na ficção portuguesa o pronome nós - a primeira pessoa tornava-se plural, o herói tornava-se colectivo. Em contraponto à corrente literária então em voga, que fazia da psicologia uma bandeira e do pronome eu um dogma imaculado. 

Com Gaibéus, o escritor virou a página: o mundo do trabalho ganhava destaque, interrompendo um longo ciclo de protagonistas ociosos no nosso modernismo literário (d' A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro, em 1914, a Nome de Guerra, de Almada Negreiros, em 1938). Chamaram neo-realismo a esta corrente, cultivada por vários epígonos menores que viriam a desacreditá-la, mas Gaibéus merece lugar de honra como pioneiro num género que nos legou outros títulos imprescindíveis: Casa na Duna, de Carlos de Oliveira (1943); Cerro-Maior, de Manuel da Fonseca (1943); Vindima, de Miguel Torga (1945); O Trigo e o Joio, de Fernando Namora (1954).

 

Publicado em 1961, Barranco de Cegos é o ponto culminante da obra de Redol - ribatejano de Vila Franca, neto de campino, publicitário de profissão, militante clandestino do Partido Comunista. Um dos melhores romances portugueses dos últimos cem anos. Superando os esquematismos da literatura com forte cunho ideológico, que desenha rígidas fronteiras entre o vício e a virtude. Invadindo até o domínio reservado do romance psicológico, nos capítulos centrados no diário íntimo de Emília Adelaide, em que se desvendam pormenores da turbulenta relação entre Diogo e os filhos.

O patriarca Relvas é um homem atormentado: «meio Deus, meio Lavrador»,  meio poeta, meio bruxo. Um pouco como o Príncipe de Salina da obra-prima de Lampedusa. Redol retrata-o num misto de repulsa e fascínio, ambiguidade que torna ainda mais densa e complexa esta obra dividida em três partes: "O Livro das Horas Plenas", "O Livro das Horas Amargas" e "O Livro das Horas Absurdas". Como bem observou Mário Dionísio no prefácio à terceira edição (1970), «o que neste romance poderia ser pesado de imobilidade ou de andamento menos ágil anima-se, pelo contrário, de surpresas narrativas ou descritivas que não comprometem nunca a gravidade do contexto.»

Aos poucos, o protagonista vai-se enclausurando naquela torre que permite mirar o Tejo (a que chama mar) e onde os ecos da rua soam cada vez mais esparsos. É uma sociedade em decomposição para o orgulhoso agrário, outrora liberal convicto, mais tarde um conservador impenitente. Foi virando a partir da revolta republicana de 1891, que «meteu medo às pessoas de bem».

 

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É na enigmática torre que decorre outra cena capital do livro, quando Diogo abre uma excepção à regra deixando ali entrar o Rei D. Carlos, de visita à sua propriedade. 

«- Um verdadeiro governo nunca poderá ser popular, Majestade. Governar ao gosto do povo é nivelar por baixo. Amo demasiadamente os homens que me servem para lhes permitir a absurda loucura de intervirem nos negócios públicos.

- Na Europa temos de nos resignar...

- Coloque-se Portugal fora da Europa se, porventura, entendermos que a razão está do nosso lado. A verdadeira Europa podemos ser nós...» (p. 209)

 

O monarca quer conceder-lhe o título de Visconde de Aldebarã, ele recusa com polida firmeza: «Fico-me com o título de rei dos lavradores.»

Na clausura a que se condenou, é o que resta ao neto de Bernardo, desde sempre crente que «há um cavalo na alma de cada homem».

O mundo deste cultor do imobilismo já não era desse reino. Para que nada realmente mude, por vezes é preciso que tudo mude.

 

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Anteriores textos desta série:

 

Os Teus Passos na Escada - O medo nunca morre

A Torre da Barbela - No reino dos mortos-vivos

A Selva - A grande muralha verde

A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

A Esperança - O apocalipse espanhol

O Malhadinhas - Um hino à vida

Grandes romances (35)

Pedro Correia, 14.05.21

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Aguarela de Bernardo Marques para a edição de 1946

 

UM HINO À VIDA

O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro

 

«Quanto a morrer, a gente só morre quando chega a data assente no livro de Deus.»

(p. 54)

 

É um dos mais longos monólogos da literatura portuguesa. Exercício de estilo arriscado, como trapezista no arame, que o autor supera com distinção. Sem deslizes, sem falhas. E é também, a seu modo, uma lição de História. Desde logo no domínio lexical: aqui estão arquivadas, em prosa viva, incontáveis palavras que há muito deixaram de ter uso corrente. Missão acrescida do exigente ofício da escrita: alargar os horizontes da singela fala quotidiana. Quanto maior for o nosso domínio vocabular, mais elaborado e abrangente será o nosso pensamento. Como forma de resistência a todas as tentativas de aplainar e uniformizar o idioma, estreitando-o em via única.

O Malhadinhas ganhou má fama junto de uma certa intelectualidade urbana pela sua linguagem dissociada das ruas contemporâneas. E valeu a Aquilino Ribeiro (1885-1963) a acusação de só poder ser lido "de dicionário na mão", tantos eram os obscuros vocábulos que inundavam a sua prosa talhada em granito beirão. Nem faltou gente a jurar que ele não sabia escrever de outra maneira - acusação absurda, própria de quem desconhece títulos imprescindíveis da sua obra, como Volfrâmio (1943), que nos narra em tempo real as manigâncias exercidas por ingleses e alemães na disputa do precioso minério, vital para o fabrico de material bélico no decurso da II Guerra Mundial, aproveitando cada qual a seu favor a neutralidade do Portugal de Salazar. Os rurais falam como gente rural, os citadinos falam como gente da cidade, sem o colorido semântico nem a irregular sintaxe dos compatriotas das berças.

Era em nome dos provincianos agrestes que Aquilino escrevia, sabendo que quase só teria leitores urbanos, distantes da geografia sentimental dos seus romances. A estes, revelaria uma certa face oculta de Portugal - distante das agendas oficiais e das colunas jornalísticas. Um país analfabeto, povoado de temores ancestrais e de ritos cuja origem se perdia na escuridão dos séculos. De algum modo se poderá dizer que a sua obra é uma vasta reportagem jornalística ao encontro das vertentes serranas do interior beirão e transmontano que ele conhecia como poucos.

De lá viera, nascido na aldeia de Tabosa do Carregal, concelho de Sernancelhe, baptizado na igreja matriz dos Alhais, concelho de Vila Nova de Paiva, e residente a partir dos 10 anos em Moimenta da Beira antes de entrar no colégio de Lamego para estudos secundários, estava a findar o século. Filho de padre, chegou a frequentar o seminário de Beja, mas não se achou fadado para a vida sacerdotal. Era homem feito quando desembarcou em Lisboa. E só se instalou em definitivo nas imediações da capital, após longos períodos de residência no estrangeiro, a partir de 1932.

Fosse para onde fosse, levava sempre a Beira Alta consigo.

 

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Nosso mais célebre exemplar da ficção pícara, herdeiro legítimo da melhor verve camiliana, O Malhadinhas surgiu inicialmente em 1922, integrado no livro de contos e novelas A Estrada de Santiago. Só mais tarde se autonomizou, acabando por emparelhar desde 1958, ano da fixação do texto definitivo, com outra novela, intitulada Mina de Diamantes. Sempre com a chancela Bertrand, a que o escritor se conservou fiel, sendo retribuído: nunca deixou de figurar como cabeça de cartaz desta editora, tal como Agustina Bessa-Luís se tornou no rosto mais visível da Guimarães e José Saramago manteria uma ligação de décadas à Caminho que se prolonga post mortem.

O Malhadinhas é um fascinante relato na primeira pessoa, em registo memorialístico, da boca de um homem já muito velho que no final do século XIX evoca os tempos da sua juventude, aí pela década de 1840, num reino ainda fracturado entre malhados e miguelistas: soavam ecos da guerra civil que devastou o País e manteve feridas por cicatrizar durante décadas. Homem em maré de confissão: «A minha língua era afiada como a faca que trazia à cinta.»

Relato oral, claro - de uma oralidade inserida na escrita e marcando-a por inteiro. Este narrador, almocreve de profissão, mal sabia "juntar letras" mas era muito solto na fala. Dotado dum peculiar sentido de humor, toma sem cerimónia o leitor por cúmplice e confidente. Desde a frase de abertura, que marca logo o tom: «Quando comecei a pôr vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga.»

Os célebres "arcaísmos" e "regionalismos" do escritor, suscitados sobretudo a propósito deste curto romance, estão afinal bem justificados. A matéria-prima ficcional é o discurso directo de alguém que apenas recebeu instrução na escola da vida e pertencia a um mundo que já mal sobrevivia no próprio instante em que o autor desenrolava o novelo da sua prosa. Não era sequer uma questão de estilo literário: era uma questão de elementar autenticidade. Acrescida da tendência que Aquilino sempre revelou para cultivar neologismos que lhe serviam de tempero à escrita. Muito do vernáculo existente nestas páginas decorre do engenho do autor, capaz de mesclar sabiamente o rústico e o erudito, às vezes na mesma frase.

 

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O Malhadinhas, ao contrário do que recomendavam os tais enfadados, não deve ser lido de dicionário na mão, gesto que emperra a leitura. Há termos que ignoramos, claro. Mas o significado apreende-se pelo contexto e faz todo o sentido: em Aquilino a música da fala é tão relevante como a letra. Toda esta arquitectura verbal tem uma inatacável lógica. 

Acompanhamos o tio António Malhadas de feira em feira, de lugarejo em lugarejo. Quem é ele? Diz o próprio: «um pobre de Cristo, um zé-ninguém, um côdeas que puxa uma besta de carga pelo rabeiro». (p. 33, Bertrand, 2018)

Atravessamos na sua companhia serras infestadas por lobos que chegam a fazer-lhe um cerco. Caminhamos sob violenta tempestade de neve - um dos pontos altos da obra. Levamos farnel e varapau, parceiros inseparáveis dos viandantes. Pernoitamos em palheiros. Abancamos à mesa de pobres e remediados. Partilhamos com ele «um quartilho com duas dentadas de broa». Seguimo-lo quando se transvia por folguedos e bailaricos. Testemunhamos como era homem de jamais virar cara à luta: exímio no jogo do pau, malhava nos costados de quem ousasse fazer-lhe afronta.

 

É uma digressão transversal no País, de Barrelas (nome antigo da aldeia que em 1883 passou a denominar-se Vila Nova de Paiva) a Aveiro, por montes e vales, «à cata de sal, de sardinha e outros géneros». Mas com António Malhadas não viajamos só no espaço: viajamos também no tempo, percorrendo esse Portugal rural pós-absolutista onde o caminho de ferro não passava de miragem e o meio de transporte mais usual era o dorso de um burro. 

«Trata-se, acima de tudo, de um hino à vida», observa Maria Alzira Seixo num prefácio à mais recente edição da obra, ressaltando as virtudes deste inimitável texto, repassado de aforismos castiços, destinados a reverberar-nos na memória. 

Destaco alguns:

«O receio não é cobardia.»

«Se queres aprender a orar, entra no mar.»

«A apressada pergunta, vagarosa resposta.»

«A fruta mais saborosa tem caroço no meio.»

«Casa em que caibas, vinha quanto bebas, terra quanta vejas.»

«A um homem ruivo e mulher barbuda de longe os saúda.»

«Muitas vezes ouvi dizer a minha mãe: roga ao santo até passar o barranco.»

«Tomara-me eu outra vez com vinte anos e saber o que hoje sei! Diabos me levem se não fosse rei.»

«Fui à cama dizer adeus à mulher, só adeus, que um cavalo que há-de ir à guerra nem corra lobo, nem o abane égua.»

«Beijei e gozei, que a carne é pecadora e ninguém, a não ser santinho carunchoso, que não de pau carunchoso, sabe resistir aos lambiscos do pecado.»

Volta e meia, deparamos com expressões admiráveis: «a água que era um Douro» (p. 44); «se acordas as pedras, temos o caldo entornado» (p. 50); «eu ia gelado até à alma» (p. 108).

 

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Eis-nos perante um romance percorrido de lés a lés por uma transbordante sensualidade e um sentido de humor invulgar nas letras pátrias, que padecem de excesso de sisudez, tomando-se demasiado a sério. 

Repare-se neste naco de prosa: «O ofício de galhudo, por fora de conta e risco, o maior galhudo que a rosa do sol cobria, é que o tornava azedo e maldizente» (p. 66). Ou nesta cena de sexo, talvez a mais breve da nossa literatura: «Ali, sem mais testemunhas que Deus do céu, depois de breve briga - tinha de ser - da coitanaxa fiz dona.» (p. 52)

 

Muito entrado nos anos, viúvo da sua Brízida e com o fôlego de viajante já extinto, Malhadas desvenda-nos a alma sem lamúria, como quem contempla um pôr-do-sol: «Agora, m'amigos, estou caduco, nem para calço de panela tenho préstimo.» (p. 116) E desabafa, com um resto da verve que lhe foi sobrando: «O mundo já o encontrei assim formado. Não era o filho de meu pai, com poucas letras e nenhumas posses, que era capaz de o consertar.» (p.86)

Pronto a atravessar «duma margem para a outra do negro rio» (p. 125). Mas ei-lo, no fim da jornada, tocado de imortalidade. Como herói desta obra-prima da ficção em língua portuguesa. 

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Tia Julia e o Escrevedor - Ouvir para crer

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A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

A Esperança - O apocalipse espanhol

Grandes romances (34)

Pedro Correia, 30.04.21

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O APOCALIPSE ESPANHOL

A Esperança, de André Malraux

 

«A tragédia da morte está em transformar a vida em destino.» (p. 240)

 

As palavras são importantes, mas o ser humano revela-se sobretudo nos actos - e nenhum é tão decisivo como o comportamento em situações de risco. Esta é uma das lições que extraímos d' A Esperança, romance redigido com a urgência de um manifesto por um militante comunista que viria a renegar o partido na sequência do pacto entre Hitler e Estaline, distinguiu-se como activista na Resistência francesa aos nazis e seria durante dez anos (1959-1969) ministro da Cultura e cúmplice político de Charles de Gaulle, um Presidente católico e conservador. Agindo como homem de pensamento e reflectindo como homem de acção.

André Malraux (1901-1976) vinha aureolado de aventureiro por ter contrabandeado peças arqueológicas na Indochina francesa, nos anos 20, e testemunhado a fulgurante ascensão do nacionalismo revolucionário chinês que imortalizou em romances como Os Conquistadores (1928) e A Condição Humana (1933), mas também granjeara louros intelectuais ao ser galardoado com o Prémio Goncourt por esta obra. Ao contrário do que talvez outros fizessem, não se remeteu ao estatuto de consciência moral dos seus contemporâneos: necessitava de intervir nos palcos onde a gente comum se confrontava com o destino, edificando a História.

Foi assim que se alistou como voluntário, para defender a república espanhola, mal soube que um grupo de generais se rebelara contra o Governo da Frente Popular, em 18 de Julho de 1936. Este parisiense de signo Escorpião pressentiu desde o início que não se tratava de mera tentativa de golpe de Estado: a vizinha Espanha iria sangrar, dilacerando-se. Os beligerantes fariam ali um ensaio geral para a II Grande Guerra que não tardaria a devastar o mundo.

 

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Malraux nunca hesitou na escolha da trincheira em Espanha: cabia-lhe defender o Executivo ameaçado pelo pronunciamento militar que cedo seria liderado por Francisco Franco, o mais jovem general da sua época, um empedernido conservador fiel ao Rei Afonso XIII, deposto cinco anos antes. O escritor nem sequer cumprira o serviço militar mas comportou-se com instinto e fibra de combatente. Por sua iniciativa, formou uma esquadrilha de caças e bombardeiros adquiridos pelo Governo de Madrid a França e recrutou tripulações entre profissionais da aviação. A Esquadrilha Espanha chegou a integrar 130 pilotos que cumpriram 23 missões de ataque entre Agosto de 1936 e Fevereiro de 1937, período em que Malraux - que não tinha brevet nem jamais pilotou um avião - ganharia divisas de tenente-coronel, atribuídas pelo Ministério do Ar espanhol. Logo a ele, que mal arranhava umas palavras de castelhano.

«A guerra unia os mercenários aos voluntários quanto ao aspecto romanesco; mas a aviação unia-os a todos como a maturidade une as mulheres.» (p.  73, edição Livros do Brasil, com tradução de Judith Cortesão, filha de Jaime Cortesão e viúva de Agostinho da Silva)

Onde houvesse perigo, Malraux estava lá. Acompanhado do seu caderno de apontamentos, onde viria a escrever o rascunho deste L' Espoir - o primeiro e talvez o melhor romance sobre a Guerra Civil de Espanha (1936/1939). Escritor num tempo em que também as palavras podiam ser balas. Recebera a influência dos grandes clássicos do género - incluindo Guerra e Paz - mas não lhe interessava o posto de observador equidistante: o olhar dele é o de alguém envolvido de corpo inteiro numa das facções do conflito. Como se a outra parte fosse despida de figuras concretas e só integrasse um inimigo difuso movido por ímpetos homicidas, representando o Mal na dimensão absoluta.

Num tempo em que cada manhã podia ser a última e a contemplação abstracta da guerra equivalia a um pecado mortal.

 

A Esperança é, apesar do título, a crónica de uma gesta falhada. Em Espanha travaram-se vários combates dentro de cada trincheira: estava em jogo a correlação de forças sobretudo nas fileiras republicanas, divididas entre socialistas, comunistas, anarquistas, alguns liberais conscientes de que o apoio de Hitler e Mussolini a Franco ampliaria a malha totalitária na Europa e até uns quantos católicos que renegavam o alzamiento militar como "cruzada de Deus" para punir os ímpios.

Todos estes acabariam por confrontar-se entre si, em fases diferentes, mas disso não se ocupa este livro: Malraux eleva a peça de propaganda militar à condição de obra de arte. Interessa-lhe o compromisso político e a exaltação da fraternidade em armas, mas sem jamais se iludir sobre a vocação trágica inscrita na condição humana, com vida e morte entrelaçadas.

 

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«Um estrépito de camiões, abarrotados de espingardas, submergia Madrid, tensa, na noite de Verão.» É assim que o romance começa, como num livro de aventuras, capaz de nos revelar a guerra na sua dimensão fisiológica, com os seus ruídos e os seus odores. E com a voz do medo a soar no íntimo de cada um. Frase de arranque que dá tom à obra, dividida em três partes: "A Ilusão Lírica", "O Rio Manzanares" e (esta em propositada redundância) "A Esperança".

É um livro polvilhado de momentos que nos perduram na memória. Os ferozes combates de rua em Barcelona, onde numa noite arderam todas as igrejas. Os voos rasantes da esquadrilha sobre Medellín, na Estremadura mártir. A queda de Badajoz, a dois passos da fronteira portuguesa. A formação em Albacete das primeiras brigadas internacionais. O desembarque inicial de blindados soviéticos, em contraponto aos caças italianos e germânicos. Acaloradas discussões entre anarquistas e comunistas nos intervalos dos combates para a tomada de Toledo, com os primeiros a acusarem o marxismo-leninismo de se «transformar numa religião devorada pela disciplina». Um desses anarquistas, Négus, contesta sem rodeios a tentativa de hegemonia comunista: «Os partidos foram feitos para os homens, não os homens para os partidos. Nós não queremos conseguir um Estado, uma Igreja ou um Exército. Queremos homens.» (p. 196)

Um dos momentos culminantes ocorre no cerco a Madrid, cidade onde todos os cegos já só tocavam A Internacional nas ruas repletas de «magníficos cães abandonados pelos donos em fuga». Um verdadeiro cenário de apocalipse: «Desde o início do bombardeamento que os galos cantavam. Ao soar o selvagem estampido de um torpedo, tornaram-se dementes, todos ao mesmo tempo; tão numerosos, no bairro miserável, como os de uma aldeia, frenéticos, exasperados, começaram a ulular à morte o canto selvagem da pobreza.» (p. 326)

Parecia uma nova Idade do Fogo: «Os três maiores hospitais da cidade ardiam. O Hotel Savoy ardia. Ardiam igrejas, ardiam os museus, a Biblioteca Nacional ardia. O Ministério do Interior ardia, um mercado ardia e os pequenos mercados de tábuas ardiam.» (p. 363) Centenas de cães uivavam «como se fossem os únicos a reinar naquela desolação de fim do mundo».

 

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Magnífico livro-reportagem que nos leva a mergulhar nos horrores da guerra enquanto as bombas tombam sobre a capital, enquanto a multidão em desespero foge da Málaga ocupada, enxameando estradas à mercê da aviação inimiga, numa vertigem suicida. 

É um livro só com homens, onde as mulheres - vítimas mais ocultas da tragédia - surgem apenas como sombras na linha agreste da paisagem. «Uma vez mais, nesse país de mulheres enlutadas, esquece-se o povo milenar das viúvas.» (p. 245)

Malraux surge aqui de algum modo retratado na figura de Magnin, engenheiro aeronáutico francês que se oferece para formar um corpo de voluntários e combater no céu de Espanha não em obediência a cartilhas ideológicas mas em nome de um imperativo ético. Mas a personagem central é o comunista Manuel, inspirado em Gustavo Durán (1906-1969), compositor catalão também mencionado, com nome próprio, em Por Quem os Sinos Dobram (1940), de Ernest Hemingway - outro célebre romance sobre a guerra civil.

Inesquecível, a cena em que Manuel dialoga numa capela em ruínas com o coronel Ximénez, católico fervoroso que se manteve nas fileiras republicanas. «Não se ensina a oferecer a outra face a gente que, já lá vão dois mil anos, não recebe senão bofetadas», diz o militar.

Numa obra que se alimenta do imediatismo, Portugal surge duas vezes em pano de fundo, como placa giratória da guerra. Na página 110: «No passado dia 6 (...) o Montesarmiento trouxe para Lisboa 14 aviões alemães e 150 especialistas.» E na página 116: «Apoiado da maneira mais concreta por Portugal, auxiliado pelos dois países fascistas, o exército de Franco - colunas motorizadas, espingardas-metralhadoras, organização ítalo-germânica, aviação ítalo-germânica - vai tentar subir até Madrid.» 

 

A Esperança só nos relata os oito primeiros meses do conflito bélico, encerrando com a batalha de Guadalajara, em Março de 1937 - ilusório triunfo das hostes governamentais, como o futuro próximo se encarregaria de confirmar. Malraux, de regresso a França, tinha pressa em escrever. 

O romance começou a publicar-se em folhetim no jornal pró-comunista Ce Soir, dirigido pelo poeta Louis Aragon. Em Dezembro, surgiu em livro. Com o autor a contrariar aquilo que deixaria inscrito anos depois, no seu monumental ensaio As Vozes do Silêncio: «Para que a arte nasça é necessário que a relação entre os objectos e o homem seja de uma natureza diferente da imposta pelo mundo.» E a desvendar-nos a sua noção muito peculiar da existência: os homens só são verdadeiramente felizes quando arriscam a vida. Em busca de «uma fraternidade que não se encontra senão para além da morte.»

 

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O Anjo Mudo - Sem tecto, entre ruínas

A Tia Julia e o Escrevedor - Ouvir para crer

Os Teus Passos na Escada - O medo nunca morre

A Torre da Barbela - No reino dos mortos-vivos

A Selva - A grande muralha verde

A Cidade e as Serras - Paris não era uma festa

Grandes romances (33)

Pedro Correia, 23.04.21

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PARIS NÃO ERA UMA FESTA

A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz

 

«Na serra ou na cidade cada um espera o seu D. Sebastião. Até a lotaria da Misericórdia é uma forma de Sebastianismo. Eu todas as manhãs, mesmo sem ser de nevoeiro, espreito a ver se chega o meu.» (p. 211)

 

 

Andou meia vida a afiar a pena sarcástica contra os mais diversos sintomas da estagnação nacional, chegando a advogar a «invasão espanhola» pela boca de João da Ega, personagem lapidar d' Os Maias. À beira do fim, contemplando a pátria distante do seu posto de exilado profissional como nosso representante consular em Paris, despede-se com uma emocionada declaração de amor a Portugal. Um romance em que trabalhou nos últimos anos, num labor contínuo, fazendo sua a divisa de Gustave Flaubert, o criador de Madame Bovary: «Le mot juste». Sem nunca desperdiçar uma oportunidade de encontrar a palavra exacta.

Essa obra que José Maria d' Eça de Queiroz tanto foi cultivando como criador na última década de vida e viria a ser impressa só em 1901, ano subsequente à sua morte, é A Cidade e as Serras. Livro-testamento que já não pôde rever por completo (tinha pouco mais de metade do manuscrito corrigido ao falecer, na capital francesa) e descendeu de um conto, Civilização, publicado em Outubro de 1892 na Gazeta de Notícias, jornal do Rio de Janeiro. Também esse conto girava em torno de um Jacinto, burguês endinheirado e roído pelo tédio. Também aí se gera um confronto entre a cidade como símbolo do mundo rendido à tecnologia mas cada vez mais distante da alma humana e o campo redentor, capaz de nos devolver aos valores essenciais. Sumia-se o Eça revolucionário, emergia o Eça bucólico e pastoril.

Mas o talento do escritor transparece, incólume, em cada linha. Logo na ficção curta, com o protagonista contemplando um entardecer sereno, «na varanda, em Torges, sem fonógrafo e sem telefone, reentrando na simplicidade» da natureza enquanto as ilusórias conquistas da modernidade jaziam, imprestáveis, na sua abandonada mansão citadina, símbolo do «lixo da civilização» acumulado naquele final do século XIX.

 

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A Casa de Tormes, desde 1990 sede da Fundação Eça de Queiroz

 

Tudo começa com uma epifania do escritor ao deslocar-se a Portugal, vindo de Paris, para tratar de questões relacionadas com uma propriedade que a sua mulher recebera em herança sem sequer a conhecer. Era a quinta e a casa de Vila Nova, situada na freguesia de Santa Cruz do Douro, concelho de Baião. Hoje sede da Fundação Eça de Queiroz.

Descrevendo-lhe em carta esse recanto do Baixo Douro em Maio de 1892, Eça não poupa em adjectivos, rendido aos encantos da paisagem: «O caminho íngreme e alpestre da estação até à quinta é simplesmente maravilhoso. Vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo há naquele bendito monte. A quinta está situada num alto, num sítio soberbo, que abrange léguas de horizonte, e sempre interessante. (...) É toda em socalcos. Logo adiante da casa, o monte desce até ao Douro.»

Elabora o conto em poucos meses. No ano seguinte, transforma essa experiência em material de maior fôlego, mudando Torges para Tormes: ia nascer A Cidade e as Serras, de parto atribulado, entre queixas persistentes do editor reclamando o manuscrito e as evasivas do escritor, que não cessava de burilar a prosa nos intervalos de textos para consumo imediato em jornais e revistas. Já não veria impresso o livro, parcialmente revisto por Ramalho Ortigão, seu velho amigo e cúmplice de lides literárias. 

 

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Eça alarga as fronteiras espaciais do conto, deslocando-o de uma urbe nunca identificada (embora se presuma ser Lisboa) para Paris, à época enaltecida como "centro da civilização" no seu esplendor modernista. Exercendo ali funções consulares desde 1888, conhecia bem a paisagem física e humana da Cidade-Luz, o que lhe permitia ser fiel à estética realista. Jacinto mantém-se sem apelido, tal como no conto: só nos é apresentado com nome próprio, embora oriundo de uma velha família fidalga, o que acentua o carácter simbólico da personagem, equivalente ao país que foi renegando as raízes, desnacionalizando-se.

É um romance construído em perfeita simetria: a metade inicial decorre em França, a segunda em Portugal com breve regresso do narrador a Paris quase no fim, sendo as duas partes intervaladas por uma divertida intromissão em terras espanholas, na mais famosa viagem de comboio da nossa literatura. Que culminará na entrada de Jacinto no país dos seus ancestrais, cruzando a fronteira em Trás-os-Montes. 

Vinha acompanhado do melhor amigo e confidente, que ocupa o lugar de narrador omnisciente: Zé Fernandes, ou José Fernandes de Noronha e Sande - este sim, com apelidos, e simbolicamente natural de Guiães, topónimo que de algum modo o identifica como guia do amigo. Em Eça, nenhum pormenor é deixado ao acaso. 

É ele também quem nos conduz desde as linhas iniciais: tudo quanto vemos e lemos, é através dos seus olhos e da sua pena. Jacinto surge sempre no primeiro plano, mas em segunda mão. Curioso protagonismo por procuração, como se a todo o momento criador e criatura se confundissem. Como se este Zé que nos orienta pelas páginas do romance mais não fosse, afinal, do que alter ego do escritor, José de nome próprio. Conferindo-lhe nota suplementar de autenticidade.

«O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.» Eis o parágrafo inicial da obra. Apresentando-nos de imediato a figura central, inseparável da presença tutelar do narrador.

 

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É um Eça antigo e um Eça novo que aqui encontramos em simultâneo. 

O primeiro, na deliciosa descrição da parasitária fauna social parisiense, que tanto inspirava a lisboeta. Juntam-se ao jantar na sumptuosa residência de Jacinto, situada no n.º 202 dos Campos Elísios, desfilando no magnífico capítulo IV do livro.

Lá estão «os dois homens de Madame de Trèves - o marido, Conde de Trèves, descendente dos reis de Cândia, e o amante, o terrível banqueiro judeu, David Efraim». E Joban, «o Supremo Crítico de Teatro», acompanhado de «um moço muito ruivo» com «perfil de periquito». Dornan, «etéreo poeta» neoplatónico e místico, de ar impassível «na sua majestade obesa». Psicólogos, académicos, especialistas em coisa nenhuma. Um tal Todelle, sempre com «o lenço muito perfumado», íntimo de «todos os enredos de Paris». Uma loura «de ombros tão nus, e braços tão nus, e peitos tão nus, que o seu vestido branco com bordados de ouro pálido parecia uma camisa a escorregar». Sem esquecer um «moço de penugem loura que balouçava como uma espiga ao vento».

O segundo Eça, inesperado, é um escritor rendido ao singelo encanto do Portugal profundo, por antonomásia figurado nas Serras do título. O romancista já não sente fervor iconoclasta e anseia pelo retorno aos bens mais simples. Este contraste torna-se evidente em dois repastos: o sofisticado jantar dos Campos Elísios, tendo como convidado de honra o Grão-Duque Casimiro, e a ceia rústica improvisada em Tormes, com a mesa iluminada por «duas velas de sebo em castiçais de lata»: caldo de galinha com fígado e moela, arroz de favas, frango assado no espeto com salada recém-colhida da horta.

Duas das mais célebres refeições da literatura portuguesa. A de Paris culmina num episódio divertidíssimo, quando a travessa com o prato principal fica encravada no elevador que a conduzia da cozinha à sala. A do Douro converte o paladar de Jacinto, que abominava favas, à nossa gastronomia rural - cumprindo um ritual iniciático de ingresso físico na pátria espiritual. Já não madrasta, mas mãe extremosa. Como Ulisses voltando a Ítaca, segundo o paralelo traçado por João Medina, um dos maiores estudiosos da obra queiroziana. 

 

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Todos os grandes romances estão ancorados em momentos inesquecíveis. A Cidade e as Serras é fértil neles.

Desde logo, a descrição dos prodígios tecnológicos existentes na residência parisiense de Jacinto: o conferençofone, o teatrofone, o fonógrafo, o radómetro, o grafofone, o microfone, a máquina de escrever, a máquina de contar, a imprensa eléctrica (antepassada remota da internet), a fonte esterilizada para lavar os dentes, os ascensores internos. Vários dos quais o escritor viu pela primeira vez na futurista Exposição Universal de Paris, em 1889, quando ali foi inaugurada a Torre Eiffel, então o edifício mais alto do globo.

Depois, a memorável subida dos dois amigos ao alto de Montmartre, onde estava em construção a Basílica do Sacré-Coeur, cujas obras só terminariam em 1914. Lá de cima, como Moisés ascendendo ao Monte Sinai, Jacinto e Zé Fernandes contemplam Paris, filosofando sobre «o esterco vil que fecunda a Cidade», longe das loas que lhe cantam mil poetas: viam a capital do mundo como antítese da Terra Prometida. 

Enfim o prodigioso capítulo VII, desenrolado em três países - e que só por si, desenvolvido, daria um romance inteiro. Com Jacinto a gritar: «Alea jacta est! Partamos pois para as serras!» Mas rematando, num derradeiro aceno ao Arco do Triunfo: «É muito grave, deixar a Europa!» (Edição BIS, 2015, p. 113). Depois, com ambos a bordo do comboio internacional, vão desfilando as estações. Passam Chartres, Orleães, Biarritz, Irún (já em Espanha) e Medina, antes de verem a inconfundível paisagem lusitana: um tanque «abafado de limos», abóboras no telhado, mimosas em flor.

Jacinto, atordoado: «Então é Portugal, hem?... Cheira bem.»

Zé Fernandes, em réplica: «Está claro que cheira bem, animal!»

 

Fatal como o destino: o impenitente citadino acaba rendido à natureza. Nada a ver com Paris: é outro espaço, é outro tempo.

Acaba até confundido com um prosélito do miguelismo, embora afiance à bondosa D. Vicência, tia de Zé Fernandes: «Minha senhora, sou socialista...» Forçando o amigo a explicar à idosa dama que socialista é «ser pelos pobres.» E logo a senhora suspira: «O meu Afonso, que Deus haja, era liberal... Meu pai também, e até amigo do Duque da Terceira...» (p. 204)

Outra cena inesquecível.

 

Apesar das imperfeições (nas pp. 76 e 165 diz-se que Jacinto possuía 30 mil livros, enquanto na p. 146 são mencionados 70 mil), é um dos melhores textos de sempre sobre a identidade nacional - nem sequer faltando alusões nada veladas ao sebastianismo. Devia ser de recomendação obrigatória como iniciação à leitura de todos os portugueses, começando pelos mais jovens.

Mas também tem seduzido estrangeiros. Numa crónica do El País, em Janeiro de 2017, Antonio Muñoz Molina confessava-se rendido ao fascínio deste romance que teima em não envelhecer. Nestas páginas - anota o escritor espanhol - Eça «tem a alegria do jovem Dickens dos Pickwick Papers, a desmesura cómica de Cervantes, uma perspicácia cirúrgica na observação social digna de Flaubert e Zola»

É um romancista crepuscular, muito diferente do cáustico Eça da juventude. Mas não menos talentoso. Legando-nos uma espécie de elegia benévola do Portugal eterno, que persiste para além do brilho evanescente de todas as modas.

 

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A Escola do Paraíso - Esta Lisboa de outras eras

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A Tia Julia e o Escrevedor - Ouvir para crer

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A Torre da Barbela - No reino dos mortos-vivos

A Selva - A grande muralha verde

Grandes romances (32)

Pedro Correia, 16.04.21

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 A GRANDE MURALHA VERDE

A Selva, de Ferreira de Castro

 

Nenhum romance português foi tão lido por estrangeiros como este. Traduzido para castelhano, alemão, italiano, inglês e francês poucos anos após ter sido publicado, em Maio de 1930, rendeu ao seu autor fama mundial e um desafogo financeiro que lhe permitiu abandonar o jornalismo, tornando-se escritor profissional. Quando foi impressa a 10.ª edição portuguesa, em 1945, já meio milhão de exemplares haviam sido vendidos além-fronteiras e 42 mil por cá.

Em 1973, José Maria Ferreira de Castro (1898-1974) era, precisamente com A Selva, um dos dez romancistas mais traduzidos no mundo, segundo revelou a Unesco. Galardoado em 1970 com o grande prémio Águia de Ouro Internacional no Festival do Livro de Nice, mereceu o voto unânime de um júri presidido por Isaac Singer e que integrava Gore Vidal, Hervé Bazin e Miguel Ángel Asturias. No ano seguinte, em Paris, recebeu o Prémio da Latinidade, partilhado com Jorge Amado e Eugenio Montale. Em parceria com o autor de Jubiabá, seu amigo, chegara a ser proposto em 1968 para o Nobel da Literatura por iniciativa da União Brasileira de Escritores.

Destino de sonho para um menino pobre, nascido numa aldeia do concelho de Oliveira de Azeméis. Órfão de pai aos oito anos, em 1911 viu-se forçado a rumar ao Brasil, onde vivia um tio. Foi sozinho, num navio que o conduziu de Leixões a Belém do Pará. Ali aguardava-o uma vida agreste, duríssima: aos 13 anos, já trabalhava numa plantação de borracha, então um dos produtos mais cobiçados à escala planetária.

«Quatro anos iguais a uma noite escuríssima, onde não é possível acender luz alguma.» Assim o escritor recordaria esses tempos em que se tornou adulto ainda menino, num seringal situado nas imediações de Humaitá, no interior do estado do Amazonas. Dessa experiência trouxe material para mais de meio século de labor literário. Ao ponto de muitos brasileiros ainda o considerarem um dos seus, não lhes faltando razão para isso: Ferreira de Castro contribuiu mais para estreitar os laços entre o país natal e a nação irmã - onde viveu oito anos, até 1919, e que visitaria várias vezes depois - do que todas as entidades oficiais nas duas margens do Atlântico.

 

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A Selva é um livro precursor. Num tempo em que ninguém falava em ecologia, faz da floresta a personagem principal. Capítulo após capítulo, ela arrebata-nos com o seu encanto, o seu sortilégio, o seu feitiço, a sua solidão imensa. A floresta amazónica, pulmão do planeta, é berço de incontáveis vidas. Mas também túmulo de intrépidos e de incautos. Ali todo o cuidado é pouco. E o respeito quase sagrado pela natureza, que nestas páginas assume carácter totémico, é vital para a preservação da espécie humana.

Castro conduz-nos pelas fascinantes alamedas deste império vegetal que lhe ficou para sempre impresso na memória. Navegamos no rio Negro até à confluência com o majestoso Amazonas. Desembarcamos em Manaus, capital amazónica, «cidade onde o homem impusera à natureza virgem muitas das conquistas do seu espírito». Passamos por vilas e cidades que reproduzem as origens dos seus primeiros desbravadores: Santarém, Alenquer, Óbidos, Borba, Faro...

Guiados por ele, assistimos à ganância do homem, o maior predador de todos os animais. Testemunhamos a exploração de mão-de-obra quase escrava, visando os miseráveis que ali aportavam dos confins do Maranhão ou do Ceará e cedo viam o sonho transformar-se em pesadelo.

Vamos com Alberto, português de 26 anos, tardio estudante de Direito, refugiado político no Brasil. Militante anti-republicano, envolveu-se nas conspirações que conduziram à proclamação da efémera Monarquia do Norte, em 1919. A fuga de navio permitiu-lhe escapar ao calabouço, ignorando que acabaria aprisionado ao ar livre, na infernal Fazenda Paraíso, junto ao rio Madeira, rasgando estradas e desbravando troços de floresta às ordens de um desses novos senhores feudais. Ele, burguês letrado, irmanava-se aos humildes trabalhadores braçais, afogados em suor e desespero: a vida ensina-lhe uma lição que jamais encontrará em livro algum.

 

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«Tudo selva, selva por toda a parte, fechado o horizonte na primeira curva do monstro líquido.» Lá seguimos com ele, rio acima, rendidos à insuficiência humana no contraste com o denso império vegetal que se estende quase das bermas do Atlântico até aos confins fronteiriços com a Bolívia e o Peru num trajecto de 40 dias.

Nada a ver com a escala lusitana.

«Evocado dali, Portugal era uma quimera, não existia talvez. Pequeno e lá longe, os que o levavam na memória não estavam certos se viviam em realidade ou se sonhavam com as narrações dos que tinham voltado das Descobertas.» (45.ª edição, 2019, Cavalo de Ferro, p. 72)

Neste sentido, A Selva é uma anti-epopeia. Espécie de reverso d' Os Lusíadas. Nada de navegações gloriosas por mares incógnitos: apenas o combate quotidiano pela sobrevivência, entre o esplendor da paisagem e a degradação humana. Com o alcoolismo a devastar corpos fatigados - «a cachaça era como morfina na vida áspera do seringueiro.» A permanente ameaça dos índios ainda em estado selvagem em busca de cabeças humanas para rituais tétricos. Alusões a pedofilia e necrofilia. E o bestialismo irrompendo naquele cenário sem mulheres, como Alberto descobriu, estupefacto, na noite em que viu algo nunca imaginado: «A égua fora levada para ali e junto dela estava Agostinho, trepando num caixote, com a roupa descomposta.»

O bicho-homem, animal entre os animais. Entre as antas, «a melhor carne que tem o Amazonas». Entre os urubus negros, «cínicos devoradores de cadáveres». E a paca, a cotia, o tamanduá-bandeira, o tatu «com a sua couraça esbranquiçada e focinho agudo perfurador de todas as terras». E o jacaré, senhor dos rios. E a gigantesca sucuriju, cobra também presente nas águas e que «dum só golpe se lançava sobre cães e vitelos descuidados». E legiões de insectos, voadores e rastejantes. Sem esquecer o sapo-boi, cujos urros lancinantes atroam na solidão nocturna daquela «grande muralha verde» que parecia ter vontade própria, transformando seres humanos em títeres submetidos à sua força despótica.

«Ali não existia mesmo a árvore. Existia o emaranhado vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada.» (p. 144)

 

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Ferreira de Castro entre Eugenio Montale e Jorge Amado (Paris, 1971)

 

Espantoso, o conhecimento que o autor revela da floresta amazónica, conferindo plena validade ao título. António José Saraiva tinha razão ao mencionar Ferreira de Castro como «o primeiro escritor português que não usa gravata». Definição que ajuda a explicar a popularidade deste autor que sobrevive quando muitos dos que recusaram integrá-lo no cânone literário ungido pela Academia desapareceram sem deixar rasto.

Centrado no milenar confronto entre o homem e a natureza, A Selva lê-se como um romance de aventuras - e, à margem de qualquer rótulo erudito, é assim que apetece classificá-lo. Foi também isto que fascinou alguns dos seus leitores mais célebres. Agustina Bessa-Luís, que era parca em elogios, chamou-lhe «obra-prima» e confessou ter-lhe despertado a vocação literária. «Um clássico de nosso tempo, um desses poucos livros definitivos», sentenciou Jorge Amado. «Admirável romance», observou Stefan Zweig já no exílio brasileiro. «Livro inesquecível», salientou Albert Camus ao ler a célebre tradução francesa da obra, assinada em 1938 por Blaise Cendrars - que logo os invejosos cá do burgo, na sua eterna maledicência, se apressaram a dizer que tinha «melhorado muito» a versão original.

 

«A árvore solitária, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se como um inimigo. Dir-se-ia que a selva tinha, como os monstros fabulosos, mil olhos ameaçadores, que espiavam de todos os lados.» (p. 97)

Espiavam seringueiros como Firmino, imigrado do sertão naquele desterro sem fim à vista. Espiavam antigos escravos, como o negro Tiago, que trazia a tragédia inscrita no destino e protagoniza a terrífica cena final, de clara inspiração cinematográfica. Espiavam os próprios donos dos seringais, como o ganancioso Juca Tristão, inimigo da liberdade.

Tudo polvilhado com riquíssimo léxico brasileiro, contribuindo - também no plano da linguagem - para tornar este romance numa obra ímpar da literatura portuguesa. 

 

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«Eu devia este livro a essa majestade verde, soberba e enigmática que é a selva amazónica», confessa Castro nas breves linhas introdutórias do romance, escrito a uma velocidade vertiginosa - nas escassas horas vagas deste jornalista que chegou a presidir ao Sindicato dos Profissionais de Imprensa - entre 9 de Abril e 29 de Novembro de 1929. Recuando à década precedente, àquela árdua adolescência na floresta brasileira, quando «não houve um só dia» em que não desejasse evadir-se para a cidade. 

Aos 31 anos, sentiu-se obrigado a relatar este «drama de homens perante as injustiças de outros homens e as violências da natureza». E a nós, que vivemos em atmosfera de conforto, pôs-nos a par da «luta de cearenses e maranhenses nas florestas da Amazónia» perante a indiferença de quem, «no resto do mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha - da borracha que esses homens, humildemente heróicos, tiram à selva misteriosa e implacável».

Alberto, enfim amnistiado pelas autoridades republicanas, recebe a boa notícia por carta da mãe e prepara-se para voltar à pátria. Vai um homem mudado. Acima das paixões políticas, quer «justiça para todos»: passou a sonhar com um mundo onde não seja necessário ninguém degradar-se para subsistir. Um mundo onde a lei da selva não predomine fora daquela imensa muralha amazónica, «desse verde eterno e sempre igual».

 

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A Torre da Barbela - No reino dos mortos-vivos

Grandes romances (31)

Pedro Correia, 09.04.21

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NO REINO DOS MORTOS-VIVOS

A Torre da Barbela, de Ruben A.

 

«Tinha que acreditar no mundo do impossível e mover-me lá dentro com os arrepios da tragédia colectiva.» (p. 262)

 

Tradição e modernidade. Cosmopolitismo clássico e absurdo contemporâneo. Vistas largas, contemplando a História, mas satirizando gestas patrioteiras na estreiteza do presente.

Tudo isto se conjuga nas páginas d' A Torre da Barbela, título fundamental da nossa ficção literária do século XX, capaz de questionar a identidade nacional até aos alicerces com tintas surrealistas mescladas de prosa barroca, cruzando arcaísmos com neologismos sintácticos e vocabulares. Enquanto desperta sorrisos no surpreendido leitor.

Este romance nasceu da paixão simultânea de Ruben Alfredo Andresen Leitão (1920-1975) pela investigação histórica e pelas terras encantadas da Ribeira Lima que o levaram a estabelecer residência de Verão na aldeia de Carreço, a norte de Viana do Castelo. Fantasia e factos harmonizam-se aqui em comunhão perfeita. Precedendo em duas décadas a vaga imparável do romance histórico e antecipando o próprio "realismo mágico" que Gabriel García Márquez celebraria três anos depois, com Cem Anos de Solidão.

 

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Cultor de paradoxos, Ruben associa lendas e trovas medievais a inovadoras técnicas romanescas neste livro inimitável - inventando palavras, suprimindo a cronologia, impondo anacronismos. Mas sem nunca perder o fio à meada. Aqui rebela-se contra «um destino embebido de fatalismo» enquanto declara amor a Portugal, onde tantas vezes se sentiu estrangeiro. Acabaria por morrer em Londres, ficando sepultado em Carreço por seu pedido expresso.

Nas palavras do autor, A Torre da Barbela «é o drama lírico da raça portuguesa através de oito séculos de história pátria, com altos e baixos, amores e ódios, mortes e vidas, dias e noites, inteligentes e estúpidos».

Situada na margem esquerda do Lima, entre Vitorino das Donas e Paço de Vitorino, a fictícia Barbela é «a única torre triangular da Península Ibérica» cuja existência remonta aos tempos da fundação da nacionalidade, sendo-lhe agregado um solar seiscentista. De dia, rondam ali turistas seduzidos pelo panorama e pelo património. Mal a noite cai, os corpos dão lugar aos espíritos: fantasmas de séculos diferentes unidos por laços de parentesco abandonam pedras tumulares e convivem em surreais e catárticas sessões de cavaqueira. Pura reinvenção do microcosmo lusitano: é como se víssemos Portugal deitado no divã do doutor Freud.

 

«Do alto daquela Torre, outrora de menagem, estendia-se um país inteiro, seiva virgem de uma nação. Toda a História se abria com a paisagem.» Eis a Barbela, apresentada nas páginas iniciais. Paredes ainda intactas, mas já sem fidalgos lá dentro.

Os donos contemporâneos, vivendo longe, mal a visitam. «Dos Barbelas nem cheiro. Nada. Apenas um caseiro papagueando frases» aos visitantes que a demandam.

Um deles, africanista com fortuna argamassada em Angola, propõe-se comprar aquilo: «Rapo da carteira e pago já! (...) Vai tudo abaixo. Mesmo a Torre, para que é preciso isso? Ainda queria que me explicassem essas coisas da História. Para que é que serve? É preciso é milho, feijão, porco, angolares, comprar enquanto o escudo está desvalorizado, comprar tudo. Eu cá tratarei de transportar este monumento nacional para outra banda. Ficava bem em Campo de Ourique onde tenho lá uns prédios de rendimento.» (p. 318)

 

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A vida verdadeira é a vida de fantasia, iniciada «todas as tardes, ao cair do crepúsculo», quando dos sarcófagos emergem o Cavaleiro da Barbela, gabando-se de ser «a pessoa mais lendária do mundo», e Dom Raymundo, primo colateral de Dom Afonso Henriques e trovador medieval, alvo da paixão de sua prima, a beata Dona Urraca, «alucinado a dar ordens gagás a quem lhe passava ao largo».

E a bela Madeleine, do ramo francês da família, em visita de férias ao Alto Minho, onde vai sobressaltando corações. E Dom Mendo, «o primeiro nauta dos Barbelas a dobrar o Cabo da Boa Esperança». E Dona Mafalda, habituée dos chás galantes do século XVIII. E a princesa Brites, que «tinha sido célebre no século XIX», imortalizada num busto de Rodin. E o menino Sancho, morto-vivo prematuro, putativo filho do Abade de Moutosa. E a esbelta Dona Mafalda, que terá sido favorita de Dom João V. E os aventureiros Dom Pero e Dom Payo, «mal chegados da viagem à Índia e às terras do Prestes João».

E há uma bruxa a infundir receios ancestrais. E até um bobo castrado, oriundo de Itália.

Sem esquecer o fantasma mais recente, o Dr. Meirinho, «conhecido nas listas de admissão à Universidade de Coimbra como Ramiro Barbela de Souza Moutinho e Silva Mayor, visconde da Ponte Seca». Protótipo do burocrata do Estado Novo, que se gaba de não ter lido um livro desde o último dia de aulas: «Tenho no meu palmaré 724 horas de aeroporto. Inaugurações, homenagens - e isto nos meus cinco, dez, quinze, vinte, vinte e cinco anos de posse no respectivo cargo.» Dotado de uma vacuidade sem mácula, especialista em coisa nenhuma: «Escrever discursos de inauguração e agradecimento, ir às diversas províncias e recomendar a prática mais consentânea em qualquer grave emergência. Condecorar. Programar. Anunciar.» (p. 48) Alma gémea dum Acácio ou dum Pacheco, faz questão de proclamar: «Aqui, ou em qualquer parte, eu não transijo com os princípios morais que me foram transmitidos pelos meus maiores. Perante o perigo a intransigência, perante a ordem o bem comum.» Em óbvia paródia à retórica oficial do salazarismo.

 

Os tempos históricos vão-se alternando através destas vozes dispersas, protagonistas de uma exuberante sinfonia coral: «Era o inédito que se apoderava daquele grupo de pessoas da família Barbela. Para eles, o criar inédito era o dia a dia.» Naquele país de sessenta, «onde os mortos são vivos e os vivos são mortos», como assinalou com argúcia o ensaísta Mário Sacramento, cultor do realismo social rendido a esta arcaica trama romanesca que não cessa de piscar um olho aos tempos modernos.

Surgida num país aprisionado, A Torre da Barbela é também um grito desassombrado contra o cinzento destino pátrio, aqui simbolizado no Cavaleiro, supostamente inspirado no poeta Ruy Cinatti, um dos amigos literários do autor. «Bem ou mal, queria a sua liberdade. Foram séculos de cumprir certinho e bem educadinho uma vida de empastelamento sem lhe perguntarem o que queria ou o que pensava. Não suportava mais essa independência animal, essa vida de cavalariça histórica que lhe impingiam rotineiramente.» (p. 216)

Mortos ressuscitados, vivos mumificados, espectros reais introduzindo-se numa história povoada de fantasmas - proeza invulgar na nossa literatura. Originalíssimo retrato metafórico da megalomania lusa, alternando com ciclos depressivos nesta nação tão ciclotímica.

 

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Foi um romance com vida atribulada: enfrentou a recusa inicial de nove editoras antes de ver a luz do dia, em 1964. Havia ali vanguardismo a mais para a proverbial miopia das elites portuguesas: a Arcádia fechou-lhe a porta, com «parecer desfavorável à sua publicação». O mesmo fizeram a Europa-América e a Dom Quixote, por exemplo.

Acabou por vir a público com a modesta chancela da Livraria Portugal. Em 1966, receberia uma distinção tardia mas retemperadora: o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa, que anos antes distinguira Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Vitorino Nemésio e Fernando Namora, entre outros nomes consagrados.

Se há livros que permanecem imunes ao desgaste do tempo, este é um deles. Ruben A. Leitão, que nos legou esta obra-prima e é hoje nome de modesta rua lisboeta, viveu poucos anos mais, espartilhado entre uma ditadura que detestava e uma revolução que cedo o desiludiu com o seu credo extremista. David Mourão-Ferreira traçou-lhe um justo epitáfio em forma de bilhete-postal impresso na fotobiografia O Mundo de Ruben A. (Assírio & Alvim, 1996): «Chegar, partir: que outros verbos conjugaste mais amiúde? Daí a preocupação de pouco peso na bagagem, até mesmo no passaporte. Uma só letra servia-te de andaina e de apelido. Mas era - tinha de ser - a primeira do alfabeto.»

 

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Anteriores textos desta série:

 

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

A Escola do Paraíso - Esta Lisboa de outras eras

O Anjo Mudo - Sem tecto, entre ruínas

A Tia Julia e o Escrevedor - Ouvir para crer

Os Teus Passos na Escada - O medo nunca morre

Grandes romances (30)

Pedro Correia, 23.03.21

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O MEDO NUNCA DORME

Os Teus Passos na Escada, de Antonio Muñoz Molina

 

«A voz dentro de mim que está sempre a contar à Cecilia as coisas que me acontecem ficou agora em silêncio.» (p. 167)

 

É um livro em que parece não acontecer nada. Um espanhol de meia idade que durante vários anos foi executivo empresarial em Nova Iorque decide refugiar-se em Lisboa, num antigo apartamento remodelado, às Janelas Verdes, de onde se avista o Tejo e o ameno bulício do cais. Aguarda pela chegada da mulher, ainda nos EUA. Ele veio primeiro para tratar da instalação neste novo país de acolhimento. Testemunharam ao vivo e sentiram na pele o 11 de Setembro. A vida, para eles, não voltou a ser a mesma. E Lisboa surgiu, anos depois, como porto seguro num mundo em aparente desagregação, golpeado pelo espectro do terrorismo global, por um sistema financeiro tão consistente como uma bolha de sabão e por inexoráveis alterações climáticas que ameaçam colocar-nos no limiar da sobrevivência.

Uma questão o assalta desde o trauma experimentado com a queda das Torres Gémeas: «Como podemos manter a lucidez de saber o que é imprescindível?»

 

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Há um reconfortante contraste entre Nova Iorque e Lisboa. A vida aqui é muito mais serena e pausada. O antigo executivo, prematuramente aposentado, desfruta desta atmosfera citadina envolta em aura provinciana, onde «as coisas acontecem a um ritmo muito mais lento». Há um rio como o Hudson, uma ponte como a George Washington, ouve-se um sino de igreja a dar as horas, como o da Riverside Church.

Podia ter aqui uma existência quase feliz se não fosse a persistente ausência da mulher, o ruído constante dos aviões na aproximação à pista da Portela («o jornal diz que aterram 40 aviões por hora no aeroporto de Lisboa») e a angústia que lhe suscita cada noticiário televisivo, reforçando a sensação de finis mundi. Mas as laranjas daqui «têm um sabor mais intenso e doce», o café «é mais suave e a manhã mais luminosa», como ele confirma nos seus passeios diários com a cadela Luria. «Em qualquer esquina deste bairro há um restaurante ou uma pastelaria de comida barata e saborosa», como a Mascote do Sacramento, onde se come «o melhor bacalhau à Brás de Lisboa».

Nesta espera, que pode prolongar-se mais do que o previsto, dedica grande parte dos dias à leitura. Tem os livros para ler na cama, os que transporta na mochila e os que leva no bolso do casaco. O que mais o absorve são as memórias do almirante Richard Byrd sobre a sua reclusão de seis meses, em 1933, numa cabana subterrânea da Antárctida. Experiência inédita que quase lhe custou a vida.

«O medo nunca dorme, somos os descendentes de organismos primitivos e de animais aos quais isso a que chamamos medo permitiu sobreviver», ensinou-lhe a mulher, Cecilia, cientista especializada na investigação dos mecanismos neuronais que condicionam as emoções humanas.

À medida que se desenrola o fio da narrativa, sempre na primeira pessoa do singular, a capital mais ocidental da Europa vai-se confundindo com as memórias vívidas de Nova Iorque - promissoras de início, sinistras depois. «Estou ali e estou aqui ao mesmo tempo. Agora é então e agora mesmo.»

 

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Este romance onde nada parece acontecer é uma declaração de amor a Lisboa. Uma Lisboa risonha e aberta aos estrangeiros sem perder a sua personalidade muito própria, nesses meses antecedentes à progressão do coronavírus que alastrou da China para o mundo (Os Teus Passos na Escada, edição Relógio d' Água com tradução de Rita Custódio e Àlex Taradellas em 2020, surgiu no ano anterior em Espanha, intitulando-se Tus Pasos en la Escalera no original).

De alguma forma podemos considerá-lo um romance português. Sem aspas. Antonio Muñoz Molina - que já em 1987, com 31 anos, havia publicado O Inverno em Lisboa - lança um olhar amável mas arguto às idiossincrasias desta velha urbe e de quem nela habita. Confirmando que a melhor ficção literária é a que está ancorada num tempo e num lugar, sem renegar coordenadas geográficas e cronológicas.

«Vivo num retiro no interior do outro retiro de Lisboa. Podemos encontrar tudo aquilo de que precisamos para a nossa vida sem caminhar mais de vinte minutos. As frutarias, o talho, a padaria, as pastelarias (...). A largura do mundo exterior cabe nos confins do bairro: os restaurantes indianos ou nepaleses, os de Moçambique, ou de Goa, o Jardim Botânico Tropical com as suas espessuras de bambu, as suas palmeiras altíssimas da Polinésia, os pinheiros do Tibete, as araucárias australianas.» (p. 73)

 

Este homem chamado Bruno (só lhe conheceremos o nome a cinco páginas do fim, numa cena crucial do livro) menciona a todo o instante a mulher ausente. Ao ponto de nos interrogarmos sobre o que tanto fará retardar o seu desembarque em Lisboa, levando o marido a imaginar ouvir «os teus passos na escada» - belíssimo título de um romance que não cessa de nos prender a atenção, como se estivéssemos também ali, aguardando a Cecilia que nunca mais chega, naquele Verão onde tudo parece arder - da Califórnia às florestas da Indonésia, passando pela Amazónia - e que os telediários confirmam como «o mais quente alguma vez registado».

Ele decorou todo o apartamento de Lisboa numa réplica exacta do que tinham em Nova Iorque - talvez com a ilusão de renovar os momentos de fugaz felicidade que partilharam na outra margem do Atlântico, antes do Dia do Apocalipse. E anseia pelo momento em que ela lhe surja à frente, aparentemente convencido de que não perde por esperar.

«Levar-te-ei a uma tasca minúscula de Campo de Ourique para provares um arroz de polvo incomparável. Guiar-te-ei até ficar sem fôlego pelas encostas do bairro da Graça até chegarmos ao miradouro de Nossa Senhora do Monte para que vejas dali toda a cidade, os telhados, as torres brancas das igrejas, o rio e a ponte, o falso Corcovado ou o seu duplo, o horizonte que termina a sudoeste na claridade do mar.» (p. 112) Que escritor português saberia hoje captar tão bem a atmosfera de Lisboa, sem sombra de melancolia ou cinismo, em tão escassas linhas? Numa prosa elegante e límpida, despojada de "exercícios de estilo", confirmando Muñoz Molina como um dos melhores escritores da actualidade.

 

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O espanhol aqui desterrado está prestes a concluir a segunda leitura das memórias de Byrd. Aguardam-no os seis volumes do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbons - tarefa para durar vários meses. Como náufrago de um navio errante chamado Planeta. «O Robinson Crusoe olhava para o horizonte em busca de uma vela. De todas as cidades em que vivi esta é a que me parece mais bem preparada para uma espera.» Lisboa, cidade-refúgio num dilacerante roteiro de solidão.

Os Teus Passos na Escada  é um magnífico romance sobre as fobias insinuadas nos alçapões do quotidiano, sobre as neuroses fomentadas pela indústria da comunicação, sobre a vertigem depressiva que alastra no inconsciente colectivo deste século tão desencantado.

Sobre a fuga e sobre o medo, que nunca dorme.

É um livro premonitório, surgido pouco antes da Grande Pandemia, antevendo de algum modo o pesadelo em que todos mergulhámos. Náufragos como Bruno, solitários como Bruno, ansiando como ele por um amanhã que pode jamais chegar.

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

A Escola do Paraíso - Esta Lisboa de outras eras

O Anjo Mudo - Sem tecto, entre ruínas

A Tia Julia e o Escrevedor - Ouvir para crer

Grandes romances (29)

Pedro Correia, 30.04.20

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OUVIR PARA CRER

A Tia Julia e o Escrevedor, de Mario Vargas Llosa

 

No Peru pobre e provinciano do início dos anos 50, o folhetim radiofónico emergia como rival directo do futebol e da tourada no entretenimento das multidões. Nós, portugueses, bem sabemos o que isto foi: as radionovelas chegaram a ser um dos maiores veículos de preenchimento do ócio numa sociedade com paupérrimos hábitos de leitura e oferta cultural incipiente. Aqui só viriam a ser destronadas em definitivo – com o atraso do costume – quando a RTP, ainda a preto e branco, exibiu a primeira telenovela, com sotaque do Nordeste brasileiro e o selo de qualidade da Globo. O impacto foi a tal ponto que certos episódios da Gabriela conseguiram parar o País.

Eram outros tempos. Que Mario Vargas Llosa recria com talentosa exuberância e um engenhoso sentido de humor neste feliz romance a que chamou A Tia Julia e o Escrevedor. Em alusão a duas das três personagens centrais. A terceira – imberbe jornalista radiofónico e nada esforçado estudante de Direito – é ele próprio, sem disfarce onomástico: os outros chamam-lhe Marito (algo que ele detesta, pois já tem 18 anos) e Varguitas. A família deseja vê-lo advogado, talvez futuro primeiro-ministro; ele alimenta o sonho de escrever romances numas águas-furtadas de Paris.

 

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Realidade e ficção cruzam-se aqui em doses sábias, confundindo o leitor ao ponto de já não imaginarmos onde começa a ficção e terminam os supostos factos reais, que aliás nos parecem inverosímeis. Vargas Llosa teve também uma tia, dez anos mais velha, igualmente chamada Julia: nesse final de adolescência, experimentou ao vivo o percurso e o destino de boa parte das figuras do mundo fictício das radionovelas, movidas por paixões exacerbadas, tingidas de pulsão dramática. Ela era «uma mulher atraente e até esplendorosa», como a recorda o ensaísta Armas Marcelo na sua obra Vargas Llosa – El Vicio de Escribir.

Até que ponto o mundo ficcional contamina o quotidiano em vez de se deixar influenciar por ele? Esta é uma interrogação que percorre todas as páginas do romance, surgido em 1977, quando o futuro Nobel da Literatura já tinha cumprido as suas aspirações de juventude: vivera como pobre aspirante a literato em Paris e tornara-se um escritor célebre, promovido a figura de proa de um selecto clube de novelistas da América de expressão castelhana apostados em mostrar aos fatigados eruditos europeus que a ficção literária permanecia viva e de saúde. A “morte do romance”, proclamada duas décadas antes em França, era manifestamente exagerada.

 

A Tia Julia e o Escrevedor demonstra, melhor que mil ensaios, a existência de vínculos próximos entre o antigo folhetim e a sofisticada novela contemporânea. Não por acaso, romancistas consagrados – Balzac, Tolstoi, Dumas, Dickens, Zola, Twain, Camilo, Eça – experimentaram e cultivaram a técnica do folhetim em várias das suas obras, originalmente publicadas na imprensa. Funcionou como uma excelente escola de aprendizagem para quem, como advertia Hemingway em relação ao jornalismo, soubesse retirar-se dela antes de ficar aprisionado por aqueles enredos submetidos ao “gosto do leitor”.

Dilema que o escrevedor de Llosa nunca sentirá. Pedro Camacho é um boliviano aterrado em Lima que vive para escrever sem jamais ler um livro: o único volume que traz sempre consigo é um dicionário de sinónimos, acompanhado de um caderno com citações. Tem um lema expressivo: «Para a arte não há horário.» Dedica-se a tempo inteiro à escrita de folhetins radiofónicos que também dirige e interpreta: assim molda os sonhos da população que o escuta, desde as pensões mais humildes até ao palácio presidencial, naqueles tempos anteriores à chegada da televisão ao Peru. A audição era o mais importante dos sentidos e não faltava quem acreditasse em tudo quanto ouvia pronunciado aos microfones da Rádio Central.

 

500x.jpg«Começou com quatro folhetins por dia, mas, tendo em vista o êxito, foram aumentando até dez, que eram transmitidos de segunda a sábado, com uma duração de meia hora cada capítulo (…). Nunca aceitava um convite, nunca o ouvi dizer que tinha estado num cinema, num teatro, num desafio de futebol ou numa festa. Nunca o vi ler um livro, uma revista ou um jornal (…). Escrevia com dois dedos, muito rapidamente. Via e não acreditava: nunca parava para procurar uma palavra ou contemplar uma ideia, nunca aparecia naqueles olhinhos fanáticos e saltitões a sombra de uma dúvida.» (pp. 132-134 da versão portuguesa, chancela D. Quixote, com tradução de Cristina Rodriguez).

Camacho, que merece figurar numa galeria das melhores personagens literárias do século XX, «era um ser pequenino e miúdo, mesmo no limite entre o homem de baixa estatura e o anão, com um nariz grande e uns olhos extraordinariamente vivos, onde bulia algo excessivo». Com cerca de 50 anos, confessava nunca ter amado «uma mulher de carne e osso». E não se deixava capturar nas teias do melodrama, que só tecia para consumo externo: «A maior parte das vezes, as chamadas penas do coração, etc, são más digestões, feijões teimosos que não se desfazem, peixe estragado, prisão de ventre. Um bom purgante fulmina a loucura de amor.» (p. 162)

Vargas Llosa, como se parafraseasse Pessoa, chega a fingir ser roteirista de radionovelas para melhor exprimir um certo fascínio pela rudimentar inocência do imaginário folhetinesco. Imita-lhes o estilo, em capítulos alternados deste romance. Com um vocabulário muito próprio, carregado de emoções fortes e de adjectivos extravagantes que se vão intensificando à medida que decorre a leitura. Em divertido contraste com a linguagem comum que predomina naquele quotidiano sem fantasia, ainda assim percorrido por figuras dignas de folhetim: Javier, «um desses homens que conseguem antepor a paixão à vaidade», eternamente embeiçado pela desdenhosa Nancy, prima de Marito, o seu melhor amigo e confidente; Pascual, noticiarista radiofónico, que se limitava a copiar o que lia nos textos da imprensa acrescentando-lhes vários adjectivos; o Grande Pablito, um cinquentão asmático que chega a redactor do Serviço de Informação da rádio sem saber ler nem escrever.

 

Quando o livro foi publicado, alguns críticos de lâmina afiada apressaram-se a designá-lo como «obra menor» no currículo do autor de Conversa na Catedral e A Cidade e os Cães, vergastando-o por ter recorrido a doses imoderadas de amor e humor, mais próprias da literatura de cordel. Incapazes de ler para além da superfície. Incapazes, portanto, de perceber o meticuloso trabalho de reconstituição do imaginário folhetinesco em quase metade dos 20 capítulos deste livro que funcionam como contos autónomos e lhe conferem inegável originalidade no plano formal.

Não apenas tempera esta sucessão de narrativas com os ingredientes clássicos do melodrama como lhes vai conferindo intensidade em galope contínuo. Culminando no desaparecimento de protagonistas e figurantes, engolidos por um terramoto numa sessão radiofónica que emocionou o Peru. E conduzindo ao manicómio, por exaustão cerebral, o autor daquele desvairado tropel, a quem só na loucura prestam a devida homenagem: «Um tipo capaz de matar todas as personagens de uma história é digno de respeito.»

 

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A mestria de Llosa, neste festivo romance sulcado por um fio de ironia que nos lembra o melhor Eça, é recorrer à sinuosa via da ficção mais popular como veículo destinado a celebrar a vida «tal como ela é», para empregar uma expressão popularizada por Nelson Rodrigues, outro escritor com alma de folhetinista. Contrastando a modorra burguesa de estreitos horizontes que caracterizava a capital peruana naqueles anos infestados de proibições decretadas pela ditadura militar com as delirantes efabulações do forasteiro boliviano que punha todo o país colado à telefonia para acompanhar enredos que funcionavam como sucedâneo da realidade.

«Tenho uma espécie de mania realista. Ocorreu-me a ideia de produzir um contraponto à história absurda e delirante das radionovelas de Pedro Camacho. Uma história que fosse muito realista, uma história pessoal, que fosse uma âncora do romance fincada na realidade vivida», justificaria anos depois o escritor, à conversa com o jornalista brasileiro Ricardo A. Setti (Conversas com Vargas Llosa, 1986).

Acontece que a sua história pessoal, sendo verdadeira, parecia trama de ficção. Puro radioteatro. Impensável confusão entre biografia e folhetim. Quanto mais inverosímil, mais emocionante ou divertida – e, num certo sentido, mais verdadeira. Lembrando-nos que a vida é um romance - percorrido por momentos delirantes ou lancinantes de riso e choro, varrido por horas alternadas de partilha e solidão.

 

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Anteriores textos desta série:

 

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

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A Escola do Paraíso - Esta Lisboa de outras eras

O Anjo Mudo - Sem tecto, entre ruínas

Grandes romances (28)

Pedro Correia, 16.11.19

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SEM TECTO, ENTRE RUÍNAS

O Anjo Mudo, de Heinrich Böll

 

Este romance é uma pequena obra-prima. Heinrich Böll escreveu-o em 1950. Chegou então quase a ir ao prelo, mas acabou por ser editado só em 1992 - sete anos após a sua morte. O argumento invocado pelo editor que se desinteressou do manuscrito foi elucidativo dos gostos da época: «Uma extrema e decidida aversão, por parte do público, a todos os livros que tenham alguma coisa a ver com a guerra.»

Percebe-se o incómodo. O Anjo Mudo é um relato amargo, impiedoso e desencantado da Alemanha do pós-guerra, coberta de ruínas depois de Hitler ter desencadeado, com demencial fúria belicista, um conflito que deixou a Europa juncada de cadáveres. Böll, forçado a combater durante seis anos como soldado de infantaria, situa o início da acção em Maio de 1945 - precisamente no termo da guerra em solo europeu.

Virava-se uma página da História. No entanto, para os jovens alemães que chegaram a envergar a farda nazi, mesmo contra vontade, não havia remissão possível. Tinham sobrevivido por caprichos do destino. Mas o futuro jamais seria deles.

 

«Ele festejou o início da paz sentado num caixote de lixo a comer lenta e cerimoniosamente as suas fatias de pão e a contar pensativo as moedas que recebera de troco da padeira.»

O jovem protagonista - alter ego do autor - que regressa a Colónia, sua irreconhecível cidade natal, terá de recomeçar do zero. Falta-lhe o ânimo, porém. Durante duas semanas, mantém-se praticamente prostrado. Quando lhe dizem que a paz vigora enfim na Alemanha, ele responde, com a sageza dos antigos: «Eu sei que a guerra acabou, mas paz?» (recorro à tradução de Cláudia Porto, para as edições ASA).

Tinha razão. Da ruínas irrompia uma sociedade onde a corrupção moral era já bem evidente. Böll teria ocasião, em toda a sua obra posterior, de denunciar essa sociedade que erigia altares ao deus-dinheiro. Tal denúncia, aliás, está já presente neste livro. Mas O Anjo Mudo é sobretudo um dos mais notáveis exemplos daquilo a que este romancista viria a apelidar de «literatura de escombros».

 

39326[1].jpgQuando em 1974 Soljenístine foi expulso da União Soviética, por delito de opinião, muitas cabeças pensantes do chamado "mundo livre" viraram a cara para o lado, fingindo ignorar o facto. Böll figurou entre as honrosas excepções, fazendo questão de abraçar o confrade perseguido pela repressão comunista.

Por estas e muitas outras atitudes de irrepreensível coerência em defesa da liberdade de expressão, Heinrich Böll (1917-1985) tornou-se uma espécie de "consciência moral" da Alemanha. Denunciando atitudes iníquas dos políticos de vários matizes, as sementes nazis que germinam no inconsciente colectivo germânico e o lado lunar do "milagre económico" alemão do pós-guerra. Uma das suas mais célebres novelas, A Honra Perdida de Katharina Blum, é um tiro certeiro no sensacionalismo da imprensa que só visa o lucro fácil. Devia ser lida por todos os jornalistas nestes tempos de progressiva diluição das regras deontológicas.

A Academia de Estocolmo concedeu-lhe o Nobel em 1972 «por uma escrita que, articulando uma ampla perspectiva do tempo histórico que é o seu com uma rara sensibilidade na construção de personagens, contribuiu para a renovação da literatura alemã».

 

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Palavras elogiosas que bem podem aplicar-se a O Anjo Mudo. Raras vezes como nestas páginas, por exemplo, a fome foi descrita em termos tão perturbantes numa obra de ficção: «Comer já não era uma bela necessidade, mas sim uma lei tenebrosa que obrigava as pessoas a devorarem, a devorarem a todo o custo, sem que a sua fome fosse saciada, pelo contrário, aumentava.»

É uma escrita ancorada no real, com destaque para a experiência do autor como combatente na mais injusta e mortífera de todas as guerras, que marcou profundamente a sua obra. Mas uma escrita que nunca se limita a ser uma reprodução automática do quotidiano, recriando-o com inegável talento artístico. Sempre em nome da dignidade humana.

 

Em 1950, os alemães queriam literatura de evasão. Böll tinha algo muito diferente para lhes dar. «As pessoas sobre as quais escrevemos viviam nos escombros. Nós, os escritores, identificávamo-nos com elas», observou o escritor anos mais tarde.

Nada mais custa, por vezes, do que encarar a realidade. Por isso esta obra esperou 42 anos para surgir nas livrarias. Hoje ganha um novo significado, com tantas guerras que ressurgem por aí.

 

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Anteriores textos desta série:

 

O Anão - O Infra-homem

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

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Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

A Escola do Paraíso - Esta Lisboa de Outras Eras

Grandes romances (27)

Pedro Correia, 24.08.19

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ESTA LISBOA DE OUTRAS ERAS

A Escola do Paraíso, de José Rodrigues Miguéis

 

Não é fácil escrever sobre o imaginário infantil sem cair na tentação de recorrer a um fraseado condescendente e pueril. José Rodrigues Miguéis (1901-1980) supera com distinção o teste neste admirável romance em que regressa à sua mais remota infância, decorrida numa Lisboa em grande parte já só existente no nevoeiro das recordações.

Publicado em 1960 pela Editorial Estúdios Cor, a que se manteve fiel durante o longo exílio norte-americano, o autor de Páscoa Feliz devolve-nos nestas páginas à Lisboa em que nasceu e cresceu: foram anos cruciais da nossa vida colectiva, desenrolados na turbulenta década final da monarquia e na convulsa agitação do regime republicano nessa fase em que a palavra “revolução” se banalizara no quotidiano alfacinha.

 

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O pequenino José, o mais novo de três irmãos, assistia ao espectáculo do mundo circunscrito da humilde mansarda onde a família residia, na colina de São Vicente, com o Tejo em fundo. E nós assistimos com ele ao incomparável desfile de personagens que vão entrando e saindo de cena à irregular cadência de um tropel de recordações, em páginas de uma admirável limpidez descritiva, percorridas por diálogos saborosíssimos que o escritor manteve em pousio durante meio século antes de as partilhar connosco.

O enredo não necessitou de ser inventado: foi recriado a partir das minuciosas lembranças daquele país que permaneceu intacto na memória do escritor enquanto Miguéis ganhava a vida como colaborador de jornais e copy desk das Selecções do Reader’s Digest em Manhattan, onde viria a falecer em 1980, com 79 anos incompletos. É, de algum modo, o livro de um expatriado – neste caso de alguém marcado pelo duplo exílio do espaço e do tempo, consciente de que a Lisboa palpitante e popular das suas digressões nostálgicas já pouco se assemelhava à Lisboa enfastiada e burguesa da época em que publicou o livro.

A extensa discrepância temporal entre o experimentado e o fruto dessa experiência revivida em escrita traz um interesse acrescido a este singular romance que Rodrigues Miguéis, fiel ao seu cânone realista, chamou A Escola do Paraíso, em expressa homenagem ao modesto estabelecimento escolar onde aprendeu a juntar as primeiras letras, situado em Alfama, precisamente na Rua do Paraíso. «Por extraordinário que pareça, o Paraíso existe e está ao nosso alcance: ao cimo da calçada, quase ao encontro das três ruas, mas recolhido e ausente.» (p. 37 da 6.ª edição, Editorial Estampa, 1984).

 

aescoladoparaiso[1].jpgÉ um romance edificado a partir de fragmentos desse remoto quotidiano lisboeta – no fundo, um conjunto de crónicas que compõem um mosaico consistente como matéria ficcional e muito revelador enquanto testemunho histórico.

Tudo temperado pelo olhar infantil: arrisco até dizer que, neste sentido A Escola do Paraíso será o melhor romance português centrado na infância – com a sua linguagem muito própria, as suas pequenas alegrias, os seus temores, as suas inquietações, a sua natural ingenuidade, a sua peculiar mundividência construída a partir de experiências alheias e absorvida no incessante processo de aprendizagem dos labirintos da vida.

Esta construção romanesca torna-se ainda mais aliciante devido a um engenhoso artifício de estilo pontuado de pequenos saltos cronológicos e de alternância das formas verbais, fixando o relato numa espécie de presente intemporal que envolve o leitor num abraço cúmplice, tornando-o participante da narrativa. Como se fôssemos contemporâneos destes enredos, como se fôssemos íntimos destas personagens. Começando pelo pequeno Gabriel, falsa terceira pessoa, que por vezes deriva para a primeira do singular, em evidente identificação existencial com o narrador.

Miguéis, excepto na alteração dos nomes, não quer marcar distâncias com a matéria concreta que lhe serve de inspiração romanesca: cá estão o irmão Santiago, a irmã Águeda, a mãe Adélia, o pai-herói Agustín - porteiro de hotel natural da Galiza e desembarcado muito jovem em Lisboa, como tantos da sua região, para fugir à incorporação militar em Espanha e ao consequente envolvimento em conflitos bélicos em Marrocos, Cuba e Filipinas. Mais o esquivo avô Colmeal, que só uma vez rumou lá da terra, em Pombal, para visitar a filha e os netos na capital do reino, quando já dissipara a fortuna acumulada em tempos idos. E o avô Callante, natural de São Tiago de Borbén (Redondela, Pontevedra), que de quando em vez descia da Galiza a Lisboa, distribuindo pelos netos «aquele maravilhoso chocolate galego, negro e duro, em pranchas quadriculadas no papel gorduroso, que a mãe ralava e fervia com leite» (p. 93).

 

Vale a pena seguirmos o percurso desta família residente na velha Lisboa de outras eras, recriada pela talentosa pena de um prosador a que nem o longo desterro de quase meio século desviou da devoção ao idioma materno.

«Não se pode ter nascido ali, viver a ver chegar e partir navios todos os dias, com um rasto de lágrimas e o esvoaçar de adeuses no azul, nem ouvir noite e dia estas vozes, sem ficar impregnado de irremediável nostalgia. Tudo isto, o rio imenso, os cais, o mar, os horizontes, se integra nele e ficará para sempre dentro dele como um apelo de longe e uma saudade, anseio de partir de voltar» (p. 23). Miguéis escreve como se falasse de outro, mas é dele mesmo que fala. Do menino que na vida adulta, a partir de 1933, se tornou desterrado por opção profissional e política. À cidade natal foi regressando fisicamente, ancorando aqui por três períodos breves (1946-47, 1957-59, 1963-64) antes do retorno definitivo a Manhattan.

Mas do ponto de vista afectivo e sentimental nunca de cá saiu. Como este livro bem comprova: A Escola do Paraíso é uma declaração perene de amor a Lisboa.

 

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Tornamo-nos íntimos de um incomparável cortejo de personagens: o capador anunciado pelo som da gaita, que bastava para afugentar os gatos; as manas Parreirinhas, frequentando a missa diária sempre de mantilha negra; a tia Zulmira, entoando baladas tristes; o Manuel da Margarida, dono da mercearia, que oferece ao miúdo pirolitos e bolachas Maria; o Zé do Adro, tolhido dum braço; o vizinho Torres, homem de grande estatura para condizer com o apelido; as manas Perliquitetes, «solteiras, levianas, com chapéus arrendados e floridos»; o alfaiate Geadas; a corista Miquelina, que dá que falar na vizinhança; o general Belchior, «sempre atrás das costureirinhas»; o médico António José, «de barba em bico espetada, voz nasalada e quente», que viria a ser Presidente da República.

Enfim, deparamos com uma sucessão de quadros vivos e vibrantes, renascidos na pena arguta do romancista: os moços-de-fretes galegos cruzando as ruas «a carregar andores de trastes empilhados a uma altura assustadora» durante a «estação das mudanças», quando a capital amanhecia «coberta de escritos» nas janelas. Os primeiros automóveis que aceleravam nas ruas alfacinhas, envoltos em nuvens de fumarada e popularmente conhecidos por «mata-gente». Jantares domésticos em dias de festa com ementa assim descrita: «Puré de feijão encarnado com nabiças, lombo de porco assado no forno, arroz doce enfeitado a canela, saúdes com vinho fino.» 

Dando assim consistência à conclusão de David Mourão-Ferreira, atento leitor deste romancista. Na sua perspectiva, Miguéis é «o ficcionista que mais pessoalmente vem realizando, neste século, através da memória e da fantasia, uma íntima, sortílega e variada "reedificação" da própria cidade que lhe serviu de berço.»

 

O menino que se tornava rapaz a tudo assistia, gravando cada imagem, cada som, cada odor nos confins recônditos da memória. Sempre «de olhos abertos para o invisível», como se no mais fundo de si se adivinhasse fadado a plasmar em livro aquelas fugidias reminiscências da primeira infância, conferindo uma segunda vida a tantas figuras há muito desaparecidas da nossa paisagem urbana, hoje cada vez mais semelhante à de tantas outras capitais.

Gente morta e renascida, conferindo-nos a certeza sempre renovada nuns dos méritos da grande literatura: a de ser capaz de nos elevar a patamares de eternidade.

 

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Anteriores textos desta série:

 

O Fim da Aventura - Efémero amor eterno

O Anão - O Infra-homem

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Sinais de Fogo - Do amor e da guerra

Grandes romances (26)

Pedro Correia, 12.07.19

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DO AMOR E DA GUERRA

Sinais de Fogo, de Jorge de Sena

 

«Eu estava em férias. Toda a gente estava em férias. Mas a vida é que não estava em férias.» (p. 255)

 

Aos 16 anos, os dias parecem prolongar-se numa larga avenida a perder de vista. Concluído o ensino secundário, um jovem burguês de Lisboa ruma à Figueira da Foz, onde uns tios o hospedam numa vivenda apalaçada a curta distância da praia, para ali desfrutar preguiçosas semanas de sol e mar.

Aquele Verão irá marcá-lo para sempre. Estamos em Julho de 1936, a Figueira era a estância balnear da moda, procurada não apenas por portugueses de diversos pontos do País mas também por espanhóis. Todos são ali apanhados de surpresa pela eclosão da guerra civil – prelúdio de um conflito bélico de proporções mais vastas que não tardará a incendiar a Europa.

Naquele cenário idílico, «onde todos os fios de uma meada se cruzavam», o jovem perderá o que lhe resta da inocência. É o tempo dos ritos iniciáticos que o levam à descoberta do sexo, do amor, da paixão, da amizade, da política, da poesia. Não por acaso, chama-se Jorge e é ele quem desenrola o fio da narração, sempre na primeira pessoa: o autor faz questão de acentuar o carácter profundamente autobiográfico deste monumental romance – um dos marcos da ficção portuguesa do século XX – que funciona como testemunho, por vezes dilacerante, de um percurso pessoal e literário construído ao longo de diversas etapas de exílio geográfico e emocional. Sem escolas, sem cartilhas, sem clubes nem partidos.

 

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Jorge de Sena (1919-1978), muito recordado este ano a propósito do seu centenário, que se cumpre em Novembro, deixou-nos vasta obra distribuída por diversos géneros: poesia, conto, novela, teatro, crónica, ensaio, crítica, cartas, tradução. Mas apenas um romance: este Sinais de Fogo, que só chegaria aos leitores em edição post mortem, no ano seguinte ao do seu falecimento. Centenas de páginas (594, na edição lançada em 1989 pelo Círculo de Leitores) que nos transportam em simultâneo à intimidade do escritor, num período decisivo da sua formação, e a uma época marcante da nossa vida colectiva.

Foi um livro de laboriosa elaboração. Sena demorou cinco anos a escrevê-lo, nos intervalos da sua contínua produção de textos e das aulas de Literatura Portuguesa que ia leccionando em estabelecimentos universitários para ganhar a vida enquanto pai de nove filhos, intelectual desterrado por opção própria no Brasil (entre 1959 e 1965) e nos Estados Unidos (desde 1965 até à morte, prematura «como são todas as mortes», diz-nos em verso seu).

Abandonou praticamente o manuscrito a partir de 1969, por lhe exigir investigação suplementar acerca de uma época já distante. Face às circunstâncias da vida, tal investigação nunca chegou a ocorrer: o projecto ficaria incompleto. E rumou ao prelo mesmo assim: aquelas fugazes semanas do Verão de 1936 eternizaram-se à revelia do plano original, que prolongaria o enredo até à Primavera seguinte. Restaram estas cinco partes – a que funciona como introdução, as três referentes à Figueira e uma espécie de epílogo amputado, situado em Lisboa. Questiono se não valeria a pena, em reimpressões futuras, prescindir deste último bloco, reservando-o para uma edição crítica, de carácter académico.

 

Num precioso prefácio destinado à terceira edição, em 1984, Mécia de Sena desvenda o processo de elaboração deste romance, que Sena transportou na cabeça muito antes de o levar à prática, possuído de uma «febre de escrita», tendo embora lucidez bastante para considerá-lo «impublicável», como fez em carta a Luís Amaro datada de 1967: sabia que estas páginas torrenciais, dignas de perturbar a moral da época até pela linguagem nua e crua nelas contida, nunca veriam a luz do dia enquanto vigorasse a censura. Para ele funcionaram sobretudo como uma catarse, permitindo-lhe revisitar a sua angustiada e perplexa adolescência, decorrida na primeira década do salazarismo, em tempo de tiranias e de severas fracturas ideológicas um pouco por todo o continente.

Sinais de Fogo, revela-nos a viúva e gestora do valiosíssimo espólio literário do autor, seria o título inicial de um painel romanesco de grandes dimensões que pretendia retratar a atmosfera social do País entre 1936 e 1959 sob a designação genérica Monte Cativo – rua do Porto, cidade onde Sena concluiu o curso de Engenharia Civil e suposto cenário principal de um desses romances. Aqui o foco centra-se no conflito espanhol, com reflexos óbvios no plácido quotidiano português: «Este acontecimento é fulcral no romance e, tornando-o instrumental no despertar do protagonista para a realidade política e social, para o amor e até para o acto da criação poética, a acção não podia abranger mais do que esse preciso tempo de eclosão».

 

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Além deste enquadramento histórico, que bastaria para torná-lo aliciante, o livro tem um mérito complementar: faz emergir as alegrias, as angústias e os dramas da adolescência na literatura portuguesa, como nunca se vira antes e raras vezes se viu depois.

«Eu era uma criança. Os meus amigos eram crianças. Todos nós era como se tivéssemos afinal só dezasseis anos ainda. E não seria que quase todos os homens continuavam assim? Que nenhum crescia para fora de si mesmo? E não era isso que o mundo inteiro desejava que continuássemos a ser?» (p. 120 da edição citada).

Jovens em férias, rotinados em cíclicos reencontros estivais naqueles escassos quarteirões que se estendiam entre o casino e o areal figueirense, ficariam marcados por aquele Verão soalheiro e trágico em que Jorge descobre que «todos dependemos de todos, sobretudo para matar e morrer». (p. 307)

Tantos anos decorridos, ainda têm o condão de nos empolgar, divertir, indignar, inspirar e comover, tudo ao mesmo tempo: isto confirma a vibrante força criadora deste escritor que mesmo em prosa evidenciava todas as virtudes da sua arte poética.

 

Não restem dúvidas: entre outros méritos, este é um livro exemplarmente bem escrito. Ao nível das descrições, valorizadas por um estilo rigoroso e límpido: «A manhã estava cheia de sol e de uma aragem fria que fazia transparente o ar. Nas ruas desertas, passavam crianças raras, com as criadas atrás, a caminho da praia. Um peixeiro vinha vindo, no seu trote descalço, vestido de escuro, e carregando ao ombro, nas pontas de uma vara, peixe cujo peso a encurvava.» (p. 215) E acima de tudo nos diálogos, que captam de forma irrepreensível a entoação, a cadência e o vocabulário dos diferentes grupos etários e variados grupos sociais, protagonizados por figuras de carne e osso a que Sena deu dimensão literária, enquanto personagens, recorrendo a um engenhoso método (é Mécia quem o desvenda): mudou-lhes o nome próprio mantendo a letra inicial, que funcionava como «chave do reconhecimento de todos».

Irão acompanhar-nos para sempre: o Jorge, com os seus dilemas morais e as suas incessantes interrogações; a Mercedes, dividida entre o prazer e o dever; o Zé Ramos, malogrado irmão da Mercedes; o Carlos Macedo, já envolvido na militância comunista, forçosamente clandestina; o primo Ramiro, salazarista convicto; o Almeida, sedutor barato; o Luís, irmão mais novo do Carlos, de sexualidade ambígua; o Rufininho, «homem que gostava de homens»; o Rodrigues, que os acasos do destino levaram a tornar-se adulto muito antes do tempo. Sem esquecer os mais velhos, começando por esse fabuloso Tio Justino, um inválido da Grande Guerra e amante da roleta que tratava todas as criadas por Maria ou Micaela. Mas também a tia, elegante e loura, que fascinava os rapazes com a sua inacessível beleza. E a mãe dela, velha devassa que adorava devorar meninos caídos no seu regaço em Coimbra.

A propósito, Sinais de Fogo contém várias cenas de sexo explícito, muito bem sugeridas e descritas, desmentindo a enraizada convicção de que a literatura portuguesa fracassa fatalmente entre lençóis.

 

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Figueira da Foz nos anos 30, cenário deste romance

 

Livro político? Sim. Uma dolorosa história de amor, paixão e ciúme? Também. Impressivo retrato da sociedade daquela época? Sem a menor dúvida, funcionando como espelho desse mosaico social a própria distribuição geográfica dos banhistas: as pessoas com mais posses alugavam barracas e as restantes agrupavam-se na zona dos toldos, cabendo Buarcos, no extremo norte, aos pescadores e suas famílias. Havia ainda os camponeses, povoando o areal aos domingos com seus cabazes e suas lancheiras, o que afugentava a burguesia mais sujeita a preconceitos. Sem esquecer uns escassos sobreviventes das classes aristocráticas, que jamais punham os pés na praia, evitando qualquer exposição ao sol.

Trata-se, no fundo, de uma obra inclassificável, aliás à imagem do autor. Jorge de Sena definiu-se muito bem neste excerto de uma entrevista concedida em 1972, ao Rádio Clube de Moçambique, e que permaneceu inédita por determinação da censura oficial: «Nunca pertenci a nenhum partido político, não pertenço e creio que nunca pertencerei, da mesma forma que nunca pertenci a associações de futebol, a clubes de classe, a outras coisas, que eu sempre fui a pessoa menos associativa do mundo, porque acho que a associação, nesse sentido, é o oposto da coisa que eu mais estimo, que é a convivência humana.»

 

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Anteriores textos desta série:

 

O Coração das Trevas - Quanto pior, melhor

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O Anão - O Infra-homem

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

Os Maias - O século XIX aqui tão perto

Grandes romances (25)

Pedro Correia, 19.12.18

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O SÉCULO XIX AQUI TÃO PERTO

Os Maias, de Eça de Queiroz

 

Muito mais do que um romance, este vasto fresco sobre as classes dominantes no Portugal do rotativismo monárquico, caricaturadas pela pena de alguém que bem as conhecia, é um monumento. Uma obra ímpar na literatura portuguesa e um dos grandes títulos da literatura mundial, com admiradores da envergadura de um Jorge Luis Borges.

Misto de ficção, de reportagem detalhada da Lisboa oitocentista e de ensaio sobre a perpétua crise de identidade das elites portuguesas, Os Maias contém uma inesquecível galeria de personagens, situações e frases que rapidamente se incorporaram no imaginário português, fundindo-se com a realidade. Objectivo supremo da estética realista que José Maria d’ Eça de Queiroz (1845-1900) cultivou com esmero, crente de que só a verdadeira arte podia mudar o mundo.

«O realismo é a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica como arte de promover a comoção usando o inchaço do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a verdade com o fito na verdade absoluta. Por outro lado o realismo é uma reacção contra o romantismo: o romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do carácter.» Palavras do autor na sua controversa intervenção sobre «A Literatura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte», na quarta Conferência do Casino, em Junho de 1871.

 

Surgem aqui figuras-tipo da alta roda lisboeta da época, num tempo em que o País cabia todo «entre a Arcada [Terreiro do Paço] e São Bento»– uma das incontáveis frases corrosivas desta obra que continua a seduzir leitores, fascinados com o paralelo que pode estabelecer-se entre a segunda metade do século XIX e as décadas iniciais do século XXI.

Encontramos no romance expressões que podiam ter sido pronunciadas em qualquer serão deste mês em que vivemos. «A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela, que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o País», observa o banqueiro Jacob Cohen, como quem faz uma elementar operação aritmética. Com ele desfilam a ruiva Condessa de Gouvarinho, que utiliza a sedução como eficaz instrumento para combater o tédio; João da Ega, um vulto da verborreia pós-prandial; Dâmaso Salcede, típico deslumbrado social desprovido de ética; Palma Cavalão, um escrevinhador do lumpen jornalístico; o Eusebiozinho, “menino bem” que se arrasta por lupanares; o poeta Alencar, símbolo do lirismo mais palavroso e pueril.

Como acertadamente observou Arnaldo Jabor, um dos seus melhores leitores brasileiros, «Eça funda um realismo caricatural contra as perdidas ilusões ibéricas que passa por traços grossos, pelo riso deslavado, por uma proposital "falta de subtileza" (que resulta depois subtilíssima) na tradição de um realismo quase carnavalizado, sem anseios de transcendência.»

 

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Desmesurado em vários sentidos, este romance publicado em 1888 funciona ainda hoje como a mais impiedosa, sarcástica e demolidora autópsia das classes dirigentes nacionais. Estas, mesmo quando não gostaram de se descobrir no retrato, aproveitaram a imparável vaga de popularidade da obra para se impregnarem do seu espírito e da sua letra, rosnando imprecações contra o País, amaldiçoando o seu passado e predizendo horrores sobre o seu futuro.

Quantas vezes, ao longo de anos, não temos lido e escutado Egas de pacotilha berrando aos quatro ventos enormidades contra o famigerado destino português, parafraseando o autor das eternamente inacabadas Memórias de um Átomo nos seus dichotes bem regados contra a teimosa sobrevivência da pátria-mãe?

«Portugal não precisa reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão espanhola. (…) Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia… Oh! Deus de Ourique, manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o St Emilion.» (pp. 138-139, edição Moderna Editorial Lavores, Estarreja, 2008).

É uma sátira da qual ninguém escapa ileso. Nem políticos, nem financeiros, nem aristocratas, nem jornalistas, nem escritores – um desfile de gente venal e falhada, incapaz de libertar o País de males atávicos. Por incompetência, por dolo, por desinteresse, por manifesta impreparação. A literatura era «latrinária». O jornalismo revelava-se como «escória da sociedade». Os ministros tinham como único fito «cobrar o imposto». Lisboa – no vértice do poder – surgia aos olhos de qualquer observador lúcido como «uma canalha de terra». Portugal agonizava, povoado de uma «colecção grotesca de bestas».

 

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Residente como diplomata no estrangeiro desde 1875, este romancista que se dizia sem biografia («Eu não tenho história, sou como a República do vale de Andorra») concebeu durante anos uma obra que funcionasse como um implacável e lúcido retrato da realidade portuguesa através da exibição dos seus mais destacados representantes – na banca, na finança, na política, nas letras e no jornalismo.

Seria, de algum modo, a obra de um estrangeirado – alguém capaz de mirar sem réstia de compaixão o chão que o gerou. Mas com um sentimento misto de nojo e nostalgia, como revela em carta a Ramalho Ortigão endereçada de Havana em Julho de 1873: «O exílio importa a glorificação da pátria. Estar longe é um grande telescópio para as virtudes da terra onde se vestiu a primeira camisa. Assim eu, de Portugal, esqueci o mau - e constantemente penso nas belas estradas do Minho, nas aldeolas brancas e frias - e frias! -, no bom vinho verde que eleva a alma, nos castanheiros cheios de pássaros, que se curvam e roçam por cima do alpendre do ferrador...»

Vivia-se então um dos períodos mais pujantes de que há memória em Portugal – as chamadas décadas da Regeneração, que tiveram como expoente o chefe do Governo Fontes Pereira de Melo – sob a monarquia constitucional, letrada, respeitadora das liberdades essenciais, incluindo a liberdade de expressão, e dos princípios basilares da democracia política. Mas Eça e alguns dos seus pares – Antero de Quental, Ramalho, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins – olhavam para o País e só viam estagnação, vergastada de viva voz em lautas comezainas à mesa do Marrare ou do Tavares.

O romancista atribui o endémico fracasso português à mediocridade das supostas elites nacionais. É a visão desencantada de alguém que se encontrava havia década e meia longe da pátria, em sucessivas missões diplomáticas que o conduziram às Antilhas Espanholas, ao Reino Unido e finalmente a França, onde permaneceria até à morte, numa espécie de desterro voluntário pontuado com ocasionais incursões à pátria. 

 

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Fotograma do filme Os Maias, de João Botelho (2014)

 

O imaginário queiroziano, com as suas críticas demolidoras, foi transitando de geração em geração, influenciando sucessivas camadas de pensadores que – sem o talento literário do autor d’ O Crime do Padre Amaro nem a sua verve satírica – se limitaram a reproduzir a caricatura, assumindo-a como facto unidimensional. Não passa um dia sem que vejamos estampada nos jornais a versão contemporânea de que o País é «uma choldra ignóbil», tomando pelo valor facial a expressão de João da Ega, personagem central do romance, em paralelo com Carlos da Maia, o seu melhor amigo.

Dois falhados, como seria inevitável: o primeiro matriculou-se em Direito sem seguir o curso e sonha com gloriosas obras-primas da literatura que jamais escreverá; o segundo revela-se incapaz de exercer medicina devido ao «veneno do diletantismo» que caracteriza a atmosfera do reino, corroendo qualquer hipótese de regeneração social. Daí Ega bradar nos saraus mundanos: «Portugal não necessita reformas, Portugal o que precisa é a invasão espanhola.»

Nesta óptica, todo o esforço estaria condenado ao insucesso. Os diálogos entre Ega e Carlos da Maia acabaram por funcionar até hoje como simbólica chave decifradora do “atraso estrutural português”, numa espécie de fatalidade genética, surgindo Eça – certamente à sua revelia – como avalista deste determinismo que parece perpetuar-se em lei granítica.

É certo que o escritor integrou o grupo dos Vencidos da Vida – designação também irónica da tribo intelectual que o acolhia. Mas ele próprio, com a excepcional obra literária que nos legou, acabou por ser a demonstração viva do oposto das teses que algumas das suas personagens pretendiam ilustrar.

 

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Bastaria o desfecho do romance para lhe conceder honras de panteão literário. Declina a tarde, Carlos e Ega descem em passo indolente a rampa de Santos partilhando a apologia retórica do «fatalismo muçulmano» que nos aconselha a «nada desejar e nada recear»: assim se evitam «esperanças e desapontamentos».

Carlos, o médico que não exerce, sentencia: «Não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…»

Ega, o escritor das perenes folhas em branco, remata: «Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…»

Enquanto assim falavam, via-se ao longe a lanterna vermelha do americano – transporte público que circulava em carris, movido por tracção animal.

«De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela Rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.»

 

Magnífico parágrafo final. Que desmente a peregrina tese sobre a inutilidade de todos os esforços, propalada até à náusea por uma legião de epígonos menores de Eça, incapazes de ler nas entrelinhas. O criador d’ Os Maias sabia muito bem como as palavras podem servir apenas para iludir intenções e camuflar desejos.

É um epílogo em aberto, próprio da literatura moderna: nunca saberemos se Ega e Carlos apanharam o transporte. Mas sou capaz de apostar que sim.

 

 

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Anteriores textos desta série:

 

A Marcha de Radetzsky - O passado é um país distante

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Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

A Mancha Humana - A América vista ao espelho

Grandes romances (24)

Pedro Correia, 04.05.16

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A AMÉRICA VISTA AO ESPELHO

A Mancha Humana, de Philip Roth

 

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No momento em que os Estados Unidos se preparam para a despedida do primeiro Presidente com raízes africanas da sua história, vale a pena determo-nos um ouco sobre um dos melhores romances ali editados nas últimas duas décadas. Um romance que nos fornece o pano de fundo desta América aparentemente convertida à harmonia racial. A Mancha Humana (The Human Stain, 2000), escrito por Philip Roth, um dos grandes ficcionistas da actualidade, fala-nos da mais insidiosa forma de racismo: a que faz um indivíduo sentir vergonha do seu próprio tom de pele.
 
A novidade aqui é que esse indivíduo é uma pessoa instruída, letrada, pertencente à elite universitária norte-americana. Coleman Silk, especialista em estudos clássicos, uma autoridade em Homero e outros autores da Grécia antiga, um transmissor de conhecimentos – alguém que poderíamos apontar como um pilar da sociedade.
“Ninguém sabe a verdade de uma pessoa, e com muita frequência a própria pessoa menos do que as outras.” Palavras de Roth, visando Silk, a figura central deste romance que disseca como nenhum outro os labirintos da América contemporânea.
O professor universitário, figura respeitável e até reverenciada, é afinal alguém que vive mergulhado há décadas num ciclo interminável de mentiras que o levou a quebrar os laços com a família de sangue em benefício da ascensão social. Branco filho de mulatos negros por capricho da genética, percebe durante a juventude, vivida na próspera América de Truman e Eisenhower, que jamais deixará de ser um cidadão de segunda se não renegar as raízes negras.
É já no fim da vida que Coleman se confronta com esta marca indelével do seu passado, ignorada pela mulher e pelos quatro filhos – fortuitamente de pele clara, como ele. “Este homem idealizado de acordo com os mais convincentes e credíveis traços emocionais, este homem benignamente astucioso, suavemente encantador e aparentemente viril em todos os aspectos, tem, no entanto, um segredo imenso.” Assim nos surge este anti-herói de Roth na excelente tradução portuguesa de Fernanda Pinto Rodrigues (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2004).
 
Toda a ilusória solidez deste edifício se desmorona quando o professor, por um inesperado golpe do destino, é confrontado com uma absurda acusação de discriminação racial por parte de uma aluna negra, logo protegida pelo establishment universitário. Este episódio, que o leva a demitir-se da faculdade, funciona como um choque vital para o velho professor com genes negros que toda a vida se comportou como um ser despigmentado. “Pensas como um prisioneiro. É verdade. És branco como a neve e pensas como um escravo.”
Esta América ainda cheia de fantasmas pronunciou-se pela voto em 2008 e 2012, elegendo e reelegendo o Presidente de que em breve se despedirá. A América de Barack Obama, que é também a América de Coleman Silk – a América onde muitos alimentam a suave ilusão de que o racismo se apaga por efeito automático de um boletim eleitoral. O próprio Roth parece vislumbrar uma luz de esperança: “As pessoas envelhecem. As nações envelhecem. Os problemas envelhecem. Às vezes envelhecem tanto que deixam de existir.”
E no entanto deste romance memorável desprende-se uma visão desencantada da condição humana que nenhum apelo festivo à mudança é capaz de redimir: “Nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Não há outra maneira de estar aqui.”
 
Não nos deixemos iludir excessivamente pelas manchetes dos jornais, que se limitam a reflectir a espuma dos dias. Sob a América de Obama esconde-se a América de Silk. Imóvel, dúplice, secreta, manchada pelo preconceito. Essa América que nos dois anteriores escrutínios presidenciais se viu ao espelho através das urnas.
Gostará desse retrato de si própria? 

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Últimos textos desta série:

 

A Oeste Nada de Novo - Geração perdida 

A Marcha de Radetzsky - O passado é um país distante

O Coração das Trevas - Quanto pior, melhor

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O Anão - O Infra-homem

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch - A lei do frio e da fome

Grandes romances (23)

Pedro Correia, 08.02.15

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A LEI DO FRIO E DA FOME

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, de Alekxandr Soljenítsine

 

«Um homem que se sinta aquecido não pode compreender outro que está com frio.» (p. 122)

 

Alguns podem achar insólito, mas tenho a crescente tendência para adequar a leitura de grandes textos literários a estações do ano. Há livros que só ganham em ser lidos no tempo quente, outros reforçam o seu impacto junto do leitor se forem lidos quando está frio.

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch é um livro apropriado ao Inverno. Porque um frio polar o atravessa de ponta a ponta. É um frio extremo, cortante, que tolhe, corrói e mata. Numa atmosfera gelada, de penúria extrema e tão admiravelmente descrita que desde as páginas iniciais também nós, leitores, sentimo-nos vergar ao peso do frio e da fome naquele campo de prisioneiros do Cazaquistão siberiano perdido no mapa, esquecido do mundo, oculto da luz, onde impera a lei do mais forte e a morte prematura é o destino mais comum.

O frio vigora em dois planos simultâneos: não é apenas o frio concreto, ditado pelo fatalismo meteorológico, mas também o frio simbólico, pois nestas páginas viajamos aos anos de chumbo do estalinismo na imensa Rússia devastada pelo terror vermelho. Um terror insidioso, que contamina corpos e consciências, apossando-se do país como um vírus letal.

 

image[2].jpgComo o título indica sem disfarces, toda a acção decorre num período de 24 horas. Unidade temporal, portanto. E unidade espacial também: Ivan Deníssovitch Tchukov e os restantes prisioneiros estão confinados aos pavilhões onde dormem e tomam as parcas refeições, além de um limitado reduto exterior em que executam trabalhos braçais de todo o tipo.

Quem ali entra perde o direito à identidade: passa a ser conhecido apenas por um número. Luta diariamente por uma malga de água quente ou uma côdea suplementar de pão. E é forçado a trabalhar desde antes da alvorada até muito depois do pôr-do-sol. Como se a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas tivesse adoptado a tenebrosa divisa inscrita à entrada de Auschwitz pelo totalitarismo nazi: Arbeit macht frei (o trabalho liberta).

Ivan, o recluso S854, é um destes prisioneiros decretados "inimigos do Estado". Cumpre uma pena de dez anos por um crime que nunca cometeu: combatente na II Guerra Mundial, foi feito prisioneiro pelos alemães mas conseguiu evadir-se; ao regressar às fileiras, acabou detido, acusado de espionagem e, portanto, de "alta traição à pátria".

Tudo isto aconteceu em 1943. No livro, estamos já em 1951, Ivan deixara há muito de contar os dias que lhe faltavam para cumprir a pena. Porque o tempo dos prisioneiros -- que não eram autorizados a usar relógio nem qualquer outro bem pessoal -- estava inteiramente à mercê dos ditames do Estado, arbitrário também nisto: «Podem virar a lei de pernas para o ar. Depois de cumprir os dez anos, podem muito bem dizer: "Ora toma lá mais outros dez." Ou podem-nos exilar.» (p. 70)

O Código Penal, que proibia despir presos a temperaturas abaixo dos vinte graus negativos, era ali letra morta. Um protesto mais sonoro contra a prepotência dos guardas dava acesso automático a dez dias numa cela solitária, sem aquecimento, da qual poucos voltavam com vida. Um passo à esquerda ou à direita nas marchas forçadas era equiparado a tentativa de evasão, permitindo à escolta ordem de atirar sem aviso.

 

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Este curto romance -- demolidora denúncia da ditadura soviética -- está escrito num estilo deliberadamente seco, sintético, sincopado, com raros adjectivos e sem adornos de qualquer espécie. Quase como num relato jornalístico que transporta o leitor ao interior de um dos pontos nevrálgicos do vasto arquipélago de Gulag, expressão cunhada pelo próprio Soljenitsine que entraria mais tarde no léxico universal para designar os campos de extermínio concebidos pelo comunismo.

Vemos a realidade descrita pelos olhos do prisioneiro S857, mas o texto evita a primeira pessoa do singular, que seria deslocada neste mundo de clausura totalmente despersonalizado.

«Os pensamentos de um prisioneiro -- também eles não são livres. Voltam insistentemente às mesmas coisas. Uma ideia torna-se fixa. Descobririram aquele bocado de pão no colchão? Teria sorte em conseguir baixa por doença nessa noite?» (p. 40) [Uso a tradução da primeira edição portuguesa, datada de 1963 para a Guimarães Editores, e assinada por Fernando de Melo Moser e Paulo Madeira Rodrigues a partir da versão inglesa.]

 

!BcO2CtQBGk~$(KGrHqUH-D!Epk1eu122BKzjmcVU3!~~_35[1Ivan Deníssovitch, um operário de 40 anos, fora mobilizado da sua aldeia para o exército a 23 de Junho de 1941, logo após a invasão nazi da Rússia. «Durante os anos passados em prisões e campos de concentração perdera o hábito de fazer planos para o dia seguinte, para daí a um ano ou para manter a família.» (p. 44) Vivia no limiar da sobrevivência, num combate permanente, sem desfecho à vista, contra o fio e a fome.

«Deve comer-se com todo o pensamento na comida -- como o fazia agora, mordiscando o pão aos bocadinhos, fazendo uma pasta da côdea com a língua e chupando com as bochechas. E como sabia bem, esse pão negro e húmido! (...) Comeu o pão até aos dedos, guardando só um bocadinho de côdea, da parte superior do pão em forma de meia lua -- porque para rapar bem uma malga de papas não há melhor colher do que a côdea do pão.» (pp. 51-53)

O combate não se trava só pela sobrevivência física, mas também pela integridade moral que Ivan consegue preservar a todo o custo sem odiar os carcereiros nem perder a fé, ainda que remota, num futuro menos sombrio. É uma vitória íntima contra um sistema concentracionário, que visa aniquilar qualquer resquício de vontade autónoma e suprimir a dignidade interior do ser humano quando tudo o mais lhe é negado.

 

Aqui não conhecemos só Ivan. Ficamos a conhecer também Vdovuchkín, ex-estudante universitário de Literatura, preso quando frequentava o segundo ano. E Buinóvski, capitão de marinha que manteve contactos com os aliados ocidentais de Moscovo durante a guerra, não tardando a cair em desgraça. E Fetiukov, ex-encarregado fabril, que «fora um tipo muito importante num serviço qualquer, com automóvel privativo». E Tsezar, antigo realizador de cinema. E Aliocha, cristão evangélico, que lembrava aos outros: «De todas as coisas terrenas e mortais que o Nosso Senhor nos ordenou que orássemos, foi só o pão de cada dia.» (p. 177).

Todos destituídos de cidadania. Todos até probidos de usar a omnipresente palavra "camarada".

Num dia sob 27 graus negativos, igual a tantos outros. Porque no Gulag todos os dias são pavorosamente iguais. «Nunca se deve dar nas vistas. O importante é nunca se ser notado por um guarda do campo, só em grupo. Quem podia adivinhar que o tipo não andava à procura de alguém para sobrecarregar com serviços, ou não caía em cima de um homem por rancor? Não tinham andado pelas casernas a ler-lhes o novo regulamento? Deviam tirar o gorro a um guarda cinco passos antes de passar por ele e só o colocar de novo dois passos depois.» (p. 18).

 

solzhenitsyn-visionforum-com[1].jpgSoljenítsine (1918-2008) conhecia bem o tema deste seu primeiro livro. Como Ivan, também ele combateu na II Guerra Mundial. E também ele foi preso -- apenas porque se referiu jocosamente a Estaline, chamando-lhe Zé dos Bigodes, numa correspondência privada interceptada pelos serviços da censura militar.

Também ele conheceu o Gulag por dentro antes de o revelar ao mundo, desfazendo de vez o mito do comunismo supostamente libertador.

Após oito anos de detenção e três forçado ao exílio interno, viu enfim a sua pena revista no breve período de degelo ideológico iniciado em 1956 pelo sucessor de Estaline, Nikita Krutchov. Ultrapassados trâmites políticos e burocráticos de toda a ordem, Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch saiu finalmente, em Novembro de 1962, nas páginas da revista Novy Mir [Novo Mundo], editada por Aleksandr Tvardoski, poeta e membro do comité central do Partido Comunista da União Soviética.

Editada em livro no ano seguinte, foi a primeira obra a romper as malhas da censura, merecendo o beneplácito do próprio Krutchov na sua estratégia de desmantelamento do totalitarismo estalinista, conforme declarou em 1961, no XXII Congresso do PCUS: «É nosso dever fazermos uma análise dolorosa e completa destes factos ligados ao abuso do poder. (...) E devemos fazê-lo para que tais coisas nunca tornem a acontecer.»

Soljenítsine, ex-prisioneiro político, conheceu então o seu único sucesso comercial no circuito editorial de Moscovo antes do fim do comunismo: num só dia, venderam-se 94 mil exemplares deste romance.

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Mas o degelo durou pouco. Krutchov viria a ser derrubado em 1964 por um golpe palaciano que lançou outro manto de chumbo sobre a Rússia. Novamente detido, novamente conduzido ao exílio interno, expulso da União dos Escritores Soviéticos, enfim deportado do país em 1974 (só então recebeu o Nobel da Literatura que lhe fora atribuído quatro anos antes), foi o escritor mais perseguido e proibido do regime: as suas obras posteriores -- incluindo O Pavilhão dos Cancerosos e O Arquipélago de Gulag -- teriam larga difusão, mas apenas através dos circuitos clandestinos.

Tal como Ivan, também o escritor soube resistir. Com a convicção de que é preciso superar um dia de cada vez.

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O Anão - O infra-homem

Grandes romances (22)

Pedro Correia, 21.09.14

 

 

O INFRA-HOMEM

O Anão, de Pär Lagerkvist

 

Há romances que nos seduzem pelo tema, que desce como um bisturi às entranhas da natureza humana. Outros que nos capturam pela depuração do estilo. Outros ainda que nos surpreendem com uma personagem que jamais se dissolverá na nossa memória.

 

O Anão, de Pär Lagerkvist (1891-1974), torna-se inesquecível por tudo isto. Livro de um autor sueco, ambientado numa corte renascentista em Itália, encerra uma mensagem de projecção universal: constitui uma poderosa alegoria do mal, concebida num tempo de falência das utopias, quando o mundo vivia mergulhado no pesadelo da guerra.

Porque Dvärgen (nome original do romance em sueco) é inseparável do ano em que foi impresso pela primeira vez. Combatia-se com ferocidade em várias frentes de guerra no planeta, incendiado pela demência nazi. Estávamos em 1944 e, sabendo isto, é impossível não associarmos este anão -- figura central e quase exclusiva do romance -- a Adolf Hitler. Com os seus rancores atávicos, a sua feroz misantropia, o seu instinto predador, os seus impulsos homicidas.

Todas as páginas são preenchidas pela presença obsessiva deste ser menor, com apenas 66cm de altura e uma estatura moral equivalente à sua compleição física. Encontramos nela reminiscências do discurso hitleriano que por sua vez nos remetem para a retórica de Nietzsche, que Lagerkvist argutamente inverte: este anão, chamado Piccolino (pequenino, em italiano), é um infra-homem como o falso super-homem de matriz ariana, gigante às avessas, grande apenas na sua impiedosa eloquência que devolve à voz humana o grunhido da besta.

«Um povo sem chefe é apenas um miserável rebanho de carneiros» (p. 126) e «nada existe mais ignóbil do que um ser humano» (p. 113), rumina o insólito narrador deste original romance sem capítulos, escrito em forma de diário de indefinidos contornos temporais e imprecisas coordenadas espaciais. Estamos em Florença ou Milão, algures no Renascimento, muito provavelmente nas décadas iniciais do século XVI. As personagens laterais desvendam-se só como silhuetas descritas pelo olhar deformado de Piccolino, émulo de Maquiavel desprovido de qualquer grandeza. Abandonado à nascença pela mãe, acabou acolhido na corte, onde requintou o instinto de sobrevivência expresso nesta frase emblemática: «Um príncipe tem sempre necessidade do seu anão.» (p. 142)

Surge-nos o príncipe, moldado provavelmente em César Bórgia: «De boa vontade diria que é um grande homem, se pudesse ser grande para o seu anão: sigo-o constantemente como uma sombra.» (p. 7). E a princesa Teodora, pretexto para o narrador exibir uma reprimida e dissimulada misoginia: «Odeio-a, desejaria vê-la morta, vê-la a arder no fogo do Inferno, com as pernas abertas e as chamas lambendo-lhe o ventre repugnante. (...) Odeio todos os seus amantes. Tive sempre o desejo de me lançar sobre eles, com o punhal na mão, e de ver o seu sangue correr.» (pp. 7/8) E Leonardo da Vinci, aqui chamado Bernardo, fugaz relâmpago civilizacional nestas páginas que podem ler-se como um tratado sobre a origem do mal.

 

Lagerkvist, um agnóstico nostálgico da fé perdida, orgulhava-se de ter crescido num lar onde havia apenas um livro: a Bíblia. Como sucede com muitos escritores influenciados pelo dogma cristão, toda a sua obra funciona como uma peregrinação dos filhos de Caim às raízes do pecado original.

A originalidade deste curto romance -- o primeiro livro que lhe deu projecção universal e, tal como Barrabás (1950), contribuiu para que fosse distinguido em 1951 com o Nobel da Literatura -- deve-se em grande parte à invocação da deformação física como espelho da degenerescência moral, sem ocultar uma visão profundamente pessimista sobre o destino da espécie humana.

Desengane-se quem aqui vier em busca de vestígios do "bom selvagem", de Rousseau: Piccolino odeia sorrisos, detesta crianças, abomina qualquer forma de compaixão e sente uma visceral repulsa por qualquer indício de amor: «Nunca fiz a experiência daquilo a que chamam amor e não tenho qualquer empenho em experimentá-la.» (p. 75) Um dia a princesa "ofereceu-lhe" uma anã: deixou-o totalmente indiferente.

 

Parábola do totalitarismo, que devastou o mundo em que o autor viveu, O Anão é uma obra-prima intemporal. Porque disseca de forma exemplar os mecanismos do poder absoluto. Porque desvenda com mestria a face oculta da natureza humana. Porque é um assombroso ensaio sobre o servilismo e a solidão. E ainda por ser escrita com espantosa contenção verbal -- própria do poeta que Lagerkvist nunca deixou de ser, além de romancista, dramaturgo e ensaísta.

Esta característica torna ainda mais impressionante a narrativa de Piccolino, que se gaba logo no parágrafo inicial de ter assassinado um semelhante para se tornar «o único anão da corte», professa uma crença inabalável num Deus vingativo e sente um prazer quase orgástico ao ouvir troar os cavaleiros do Apocalipse que anunciam a peste, a guerra, a fome e a morte.

 

Lançado em Portugal em 1955, pela já desaparecida editora Estúdios Cor, este romance regressou no ano passado às nossas livrarias, com a marca de qualidade da Antígona, recuperando a excelente tradução de João Pedro de Andrade. Foi um dos acontecimentos editoriais de 2013 em Portugal, permitindo reencontrar um título imprescindível da literatura mundial há muito esgotado por cá. Um livro que devia ser lido por todos os aprendizes da política, actividade povoada de anões que oscilam do narcisismo mais exacerbado ao servilismo mais rasteiro.

 

Duma fresta do castelo onde vive, Piccolino espreita certa noite o cerco dos exércitos sitiantes com indisfarçável fascínio:

«Quase poderia descrever os rostos dos mercenários quando, sentados em volta dessas fogueiras, contam uns aos outros os sucessos do dia. Lançam algumas raízes de oliveira no meio dos ramos que ardem e, ao clarão oscilante das chamas, os seus traços revelam-se duros e enérgicos. São homens que talham por sua mão o próprio destino e não vivem no eterno temor do que lhes trará o dia de amanhã. Acendem as suas fogueiras em qualquer sítio e preocupam-se pouco com o povo que lhes proporciona aquilo de que vivem. Não se interrogam sobre qual o príncipe que servem -- no fundo não servem ninguém senão a si mesmos. Quando estão cansados, deitam-se de costas ao comprido, nas trevas, e dormem até à carnificina do dia seguinte. São homens sem terra, mas toda a terra lhes pertence.» (p. 129)

Mercenários de ontem e de hoje. Anões morais de sempre. Prontos a devastar o mundo como se não houvesse amanhã.

 

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Grandes romances (21)

Pedro Correia, 14.09.14

 

EFÉMERO AMOR ETERNO

O Fim da Aventura, de Graham Greene

 

«É tão estranho descobrirmos e acreditarmos que somos amados, quando sabemos que ninguém há digno de amor, a não ser um pai ou um deus.» (p. 136)

 

Já distinguido pelo público após mais de duas décadas de actividade literária, Graham Greene quis escrever um livro diferente. Não ambientado em paisagens distantes, como o México ou a Libéria, mas no centro de Londres. Sem personagens exóticas, de características irrepetíveis, mas recorrendo a banais figuras da classe média. Sem as obsessivas situações  de perseguição que marcam tantos dos seus livros -- um dos temas principais da obra romanesca deste grande escritor inglês é a perseguição, podendo o perseguidor também ser perseguido, num singular efeito de ricochete que lhe devolve sombras do passado -- e aqui ficam reduzidas à expressão mínima.

 

O Fim da Aventura (The End of the Affair, 1951) nasceu deste desafio técnico, temático e estrutural que o autor de Jornada Sem Mapas lançou a si próprio: escrever um romance quase sem acção nem movimento, em que o eixo da narrativa se confinava à consciência da figura central, apenas vislumbrada em relances fragmentários.

Este exercício de estilo exigia a escrita na primeira pessoa do singular: todas as personagens são aqui desvendadas pelo olhar alternadamente cínico ou céptico ou nostálgico ou apaixonado do sujeito/narrador.

Era enfim um mergulho decidido e declarado num género literário capaz de produzir sérios danos na reputação de um escritor: o melodrama. Qualquer autor conceituado está consciente desse risco.

Nas suas memórias, Caminhos de Evasão, Greene explica por que motivo nunca tentara antes um romance escrito desta forma: «Quando por vezes encontrei a utilização da primeira pessoa nas novelas de Somerset Maugham e dos seus imitadores, sempre a achei um tudo-nada fácil e seca, e demasiado próxima da descuidada e incolor linguagem humana.»

Mas a leitura ocasional de Grandes Esperanças, de Charles Dickens, levou-o por este caminho, sem o qual O Fim da Aventura não seria a obra-prima que manifestamente é.

 

O livro começou a ser redigido longe do Reino Unido, com os ecos dos bombardeamentos da capital britânica durante a II Guerra Mundial já resguardados na memória. Era neles que Greene pensava quando meteu mãos à obra, em Dezembro de 1948, num quarto do Hotel Parma, em Capri. Necessitava de uma catarse: envolvera-se numa situação similar à do enredo do romance quando trabalhava para os serviços secretos britânicos e as bombas nazis caíam todas as noites sobre Londres. Procurava também depurar o estilo: pretendia por um lado conseguir uma escrita mais simples e clara; por outro, queria evitar a «entediante» sequência cronológica -- previsível, regular e arrumadinha.

Conseguiu o que pretendia, na forma e no conteúdo.

A "desarrumação" criativa ficou logo expressa na primeira frase: «Uma história não tem princípio nem fim: escolhemos arbitrariamente um momento da experiência, de onde olhar para trás, ou olhar para diante.» (Tradução de Jorge de Sena para a editora Estúdios Cor, 1ª edição portuguesa em 1953)

 

Esta história "sem princípio nem fim" tem três figuras centrais: o narrador/alter ego de Greene, não por acaso também escritor, aqui chamado Maurice Bendrix; um destacado quadro do Ministério da Segurança Interna britânico, Henry Miles; e a esposa deste, Sarah -- a mulher que ambos amavam, cada qual à sua maneira.

Mas será este romance em que tantas aparências iludem um livro de amor? Bendrix/Greene apressa-se a esclarecer-nos que estamos antes perante um «memorial de ódio», causado pelo mais rasteiro despeito, pelo mais corrosivo ciúme. «O ódio deve excitar as mesmas glândulas que o amor: pelo menos produz os mesmos efeitos. Se não nos tivessem ensinado a interpretar a história da Paixão, seríamos capazes de, pelas acções deles, saber qual dos dois, o invejoso Judas ou o covarde Pedro, amava Cristo?» (p. 53)

Este é, enfim, um livro que nos dá testemunho dos ínvios caminhos da fé.

A fé que, como a flor nascida do pântano, tantas vezes germina nos momentos em que a escuridão total parece ter-se apossado de um coração humano.

A fé que se apanha «como uma doença», na expressão lancinante de Sarah.

O que daríamos para trazer intacto aos nossos olhos o ser amado, que se encontrava no momento errado e no local errado quando uma bomba deflagrou?

 

Fascinado pelo cinema, Greene conciliou -- como nenhum outro escritor -- a arte literária com os mais populares subgéneros cinematográficos, incluindo os filmes de gangsters e de espionagem. «O Fim da Aventura é um romance policial em que o culpado é divino», observou David Lodge, com muita argúcia. O fascínio perene da obra deste escritor convertido ao catolicismo na idade adulta deve-se sobretudo à sua rara capacidade de conferir dimensão metafísica a qualquer personagem, envolvida na mais atribulada ou trivial circunstância.

Repito: estamos perante um melodrama. A que ninguém fica indiferente. Como ler sem emoção as páginas do diário de Sarah, que nos desvendam uma personagem tão diferente daquilo que todos imaginávamos -- incluindo o narrador? Como resistir ao comovente diálogo entre ela e Bendrix no solitário banco da igreja, naquela invernosa noite que nenhum deles imaginava ser a última?

 

Poucos romancistas podem gabar-se de contar com um Papa entre os seus leitores: Pio XII confessou ao bispo de Leeds, John Heenan, ter lido esta vibrante história de um amor póstumo desenrolada na escuridão das noites de guerra. «Acho que este homem [Greene] está a atravessar um momento difícil. Se alguma vez ele for ter consigo, ajude-o», disse-lhe o dirigente máximo da Igreja Católica. «Dando mostras de uma grande intuição», como um irónico Greene reconheceria no livro de memórias, lançado em 1980.

Mais reconfortado ficou certamente com a opinião emitida por um ilustre confrade das letras, William Faulkner, já então galardoado com o Nobel da Literatura: «É um dos mais genuínos e comoventes romances do nosso tempo, em qualquer língua.»

The End of the Affair esteve quase a valer o Nobel a Greene: no ano seguinte foi finalista do prémio, que seria atribuído a François Mauriac, católico como ele.

 

Falecido em 1991, aos 86 anos, Graham Greene acabou por nunca receber o Nobel. Nem os elogios de certa crítica, irremediavelmente míope. Mas nunca deixou de ter inúmeros leitores, rendidos à sedução da sua escrita elegante e luminosa. Isto ficou bem patente em 1999, com a estreia da excelente versão filmada d' O Fim da Aventura, realizada por Neil Jordan e interpretada por Julianne Moore (Sarah) e Ralph Fiennes (Bendrix), que encaminhou uma nova geração para o romance. Já em 1955 houvera outra adaptação -- menos feliz -- do livro ao cinema, com realização de Edward Dmytryk, sendo os principais papéis desempenhados por Deborah Kerr e Van Johnson.

Magnífico tradutor, Jorge de Sena assinala justamente no prefácio à edição portuguesa: «É através do carácter de acidentalidade, de que se revestem as relações humanas, que Graham Greene analisa a consciência moderna.»

Lemos este romance uma vez -- e outra, e outra -- e sempre nos sentiremos tocados pela perturbante mensagem que nos transmite dessa Londres nocturna, trespassada por bombas assassinas: nada é tão vulnerável e contingente, tão efémero e tão eterno como o verdadeiro amor. 

 

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Grandes romances (20)

Pedro Correia, 07.09.14

 

 

QUANTO PIOR, MELHOR

O Coração das Trevas , de Joseph Conrad

 

«O romance é muito provavelmente o esforço mais bem sucedido do homem para descrever a experiência de seres humanos individuais a moverem-se através do espaço e do tempo.»

David Lodge, A Consciência e o Romance

 

Ia começar um novo século, que todos anteviam luminoso. Mas um escritor oriundo do norte da Europa, com raízes aristocráticas e espírito aventureiro, preferiu apontar para as trevas em vez da luz. Simbolizando numa viagem angular pelo curso de um grande rio africano a doença sem remissão da civilização ocidental, pervertida pelos demónios da intolerância, do fanatismo e da cupidez.

O rio era o Congo, o segundo maior do continente africano -- a que os portugueses sempre chamaram Zaire. O lugar era o chamado Estado Livre do Congo (1885-1908), um protectorado da coroa belga, território de conquista do rei Leopoldo II, arrancado às profundezas da selva. O ano era 1890: Joseph Conrad, na altura desempregado, aceitou comandar uma embarcação fluvial ao serviço da Sociedade Anónima Belga para o Comércio no Alto Congo, a companhia que em regime de monopólio explorava as riquezas naturais da região, com destaque para o valioso tráfico de marfim.

O que por lá viu bastou para o fazer voltar a Londres muito mais cedo do que previa, sem bilhete de regresso a África. Oito anos depois transformou essa experiência num curto romance, concluído a 9 de Fevereiro de 1899, e deu-lhe um título certeiro: O Coração das Trevas. Inicialmente divulgado em três fascículos na revista londrina Blackwood's Magazine, ainda em 1899, seria publicado em livro três anos mais tarde, como obra secundária, sob o título Youth: a Narrative; And Two Other Stories (a terceira era The End of the Tether).

Autor e editor pareciam ter pouca fé numa novela que a editora Penguin Books viria a incluir entre os grandes textos literários do século XX e o Guardian não hesitou em mencionar entre as cem obras-primas da literatura em língua inglesa. Orson Welles adaptou-a em 1938 a uma das memoráveis peças radiofónicas difundidas pela sua companhia, Mercury Theatre. Francis Ford Coppola colheu aqui a inspiração para realizar Apocalypse Now, um dos mais fascinantes filmes de todos os tempos.

 

O Coração das Trevas é a memória dessa viagem de pesadelo entre a capital congolesa, então chamada Léopoldville, e Stanleyville (actual Kisangani), antes da construção da linha férrea, quando o rio servia de única via de comunicação. Conrad viu ali a face do mal nas suas múltiplas facetas: europeus contaminados pela atmosfera malsã dos pântanos tropicais, o chicote colonial vergastando indígenas, doenças epidémicas semeando a morte, uma atmosfera de loucura colectiva apossando-se de corpos e almas.

Num primeiro rascunho, o escritor baptizado na Polónia natal como Józef Teodor Nalecz Korzeniowski e naturalizado britânico aos 27 anos, em 1884, manteve os nomes dos locais. Mas viria a ocultá-los na versão definitiva da novela, sem mencionar sequer o Congo. O texto libertou-se assim do contexto histórico em que foi escrito, adquirindo o valor de uma alegoria transponível para qualquer época e qualquer lugar.

 

Romancista de transição entre a literatura oitocentista (que em regra atribuía a narração a um observador omnisciente) e a estética modernista (que privilegiava um olhar subjectivo, e necessariamente incompleto, a partir das características psicológicas das personagens), Conrad introduz aqui duas inovações que ajudam a explicar o magnetismo desta novela tão singular e enigmática: por um lado, a história vai-se desenrolando em fragmentos de uma narrativa dentro de outra narrativa, tornando-se cada vez mais densa e fantasmática; por outro lado, o protagonista prima pela ausência durante quase toda a obra e só nos é desvendado através do testemunho de terceiros até às últimas páginas, quando finalmente escutamos a sua voz.

Esse protagonista é Kurtz, um agente comercial de cultura acima da média que rumou ao continente africano na expectativa de propagar a mensagem civilizadora como «emissário da piedade, da ciência e do progresso» mas viu todo o idealismo dissolvido na atmosfera primitiva da selva, esse «grande estômago que digere os europeus, arrancando-lhes o fino verniz de civilização que os separa do animal», como observou Rosa Montero num ensaio sobre esta obra, intitulado "Entre los Terrores y las Maravillas" (El Amor de Mi Vida, Alfaguara, 2011).

Não podendo vencer as tribos de canibais e coleccionadores de cabeças humanas, Kurtz juntou-se a elas, dando largas ao seu ego exacerbado ao ver-se venerado como um deus, cortando amarras com o meio de origem. Somou àquela violência primitiva a sua recém-adquirida cobiça pelo comércio do marfim, à imagem e semelhança do ganancioso monarca belga. Que, à sua maneira, também matava, mutilava, espoliava.

E quanto pior, melhor: passou a conduzir pequenas multidões a patamares extremos de violência selvática, sob o grito de guerra «Exterminai todas as bestas!» Olho por olho, dente por dente: opressor e oprimido tornavam-se indistinguíveis na sua fúria irracional.

 

É o panorama que Charlie Marlow -- alter ego de Conrad, personagem recorrente em vários dos seus romances -- testemunha naquela insólita digressão rio acima, rumo ao desconhecido, cumprindo um rito iniciático que o marcará para sempre. Sente -- e nós sentimos com ele -- como é frágil, precária e a todo o momento reversível a fronteira que distingue a civilização da barbárie, a luminosidade do negrume, a sanidade da loucura. «Subir o rio era como viajar para trás, até aos mais recuados princípios do mundo, quando a vegetação transbordava da terra e as árvores imperavam. Todo aquele deserto, um grande silêncio, a floresta impenetrável. O ar quente e espesso, muito pesado e mole. Uma luz solar sem alegria.» (p. 56 da edição portuguesa, datada de 1983, com excelente tradução de Aníbal Fernandes e chancela da Editorial Estampa.)

Ao leme do barco, como o timoneiro de que nos falou Pessoa, Marlow é mais do que ele: carrega em cima dos ombros o "fardo do homem branco" no continente negro. Atordoado com a repulsa e o fascínio que sente em simultâneo por Kurtz, outrora músico e jornalista, filho de mãe meio inglesa e pai meio francês. «Toda a Europa contribuíra para fazer aquele Kurtz», que deixara noiva no Velho Continente. Noiva-viúva que Marlow visitará, no crepúsculo da novela: vendo-a ainda iludida sobre a verdadeira personalidade do inominável deus dos canibais, cala-se pudicamente sobre o destino daquele homem que simbolizava como poucos a cobiça desmesurada de um certo mercantilismo europeu em África.

Só por fanatismo ideológico ou miopia aguda alguém poderá colar o rótulo de racista ao autor d' O Coração das Trevas. Houve quem o fizesse, sem fundamento nem sucesso.

 

Num dos seus ensaios, Virginia Woolf traçou uma observação certeira sobre o polaco naturalizado inglês: «Os seus livros estão cheios de momentos de visão que iluminam uma personagem como um relâmpago.» Talvez em nenhum outro como este, feito de expressivas dicotomias: o Tamisa e o Congo, a luz e as trevas, o bem e o mal, a vida e a morte.

Marlow regressa para contar o que observou -- relato que por sua vez nos será transmitido por um narrador anónimo. Tornando tudo ainda mais ambíguo, hipnótico, impenetrável.

«A tarefa que me propus e me esforço por alcançar é, pelo poder da palavra escrita, fazê-los ouvir, fazê-los sentir -- é, antes de mais, fazê-los ver. Isso -- e nada mais, e é tudo.» Palavras do autor num prefácio a outro livro e que bem podem servir de epígrafe à sua arte literária.

Sem surpresa, esta obra percorrida pela angústia metafísica do homem num mundo que proclama a ausência de Deus como referência suprema de virtude e compaixão influenciou vários livros dados à estampa no século XX -- um dos mais sinistros e sangrentos que a humanidade já conheceu: Terra Devastada, de T. S. Eliot, O Nó do Problema, de Graham Greene, O Deus das Moscas, de William Golding, e A Curva do Rio, de V. S. Naipaul, por exemplo.

Quem a lê, permanece anos a fio a bordo daquele barco, escutando as palavras derradeiras de Kurtz, mais tarde repercutidas como um arrepio na voz de Marlon Brando, em Apocalypse Now: «O horror! O horror!»

Quantos milhões de vozes, ao longo daquele século, não soltaram o mesmo grito em viagens sem retorno aos abismos da condição humana?

 

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