Grandes romances (39)
À BEIRA DO ABISMO
O Jardim dos Finzi-Contini, de Giorgio Bassani
«Que podemos saber de nós e daquilo a que vamos ao encontro?»
(p. 202)
Na galeria das melhores personagens femininas da literatura europeia do século XX há um lugar de relevo para a bela Micol Finzi-Contini, nascida em Ferrara, em 1916, numa família da alta burguesia judaica ali estabelecida há séculos. Ficção largamente inspirada na realidade.
Pessoas importantes, como se comprova pelo jazigo do clã no cemitério local: tem aura de monumento. À semelhança da sumptuosa mansão muralhada que lhes serve de porto de abrigo, isolando-as do ruído da rua. Agregado à casa, há um imenso parque de dez hectares a que só por falsa modéstia se pode chamar jardim. Existe algo de edénico e virginal naquele amplo espaço onde só raros eleitos penetram. Também são poucos os que têm acesso ao campo de ténis onde Micol e o irmão mais velho, Alberto, exercitam dotes desportivos.
O narrador do romance, alter ego de Giorgio Bassani (1916-2000), é também judeu, embora de um meio social menos abastado. A diferença de classes apenas se esbate na sinagoga, em dias de culto: os Finzi-Contini sentam-se a escassos metros da família de classe média do narrador, que tem a idade de Micol.
Conheceram-se em miúdos, aos 12 ou 13 anos. Reencontram-se em 1938, já estudantes universitários. No mais quente e prolongado Verão das suas vidas. Dois meses após Benito Mussolini ter decretado a feroz lei anti-semita que privou os judeus da cidadania italiana, excluindo-os de cargos na administração pública. Ficavam igualmente proibidos os matrimónios mistos para preservar a “pureza racial”, em obsceno decalque da legislação nazi. Tornaram-se estrangeiros naquela pátria a que chamavam sua. Mesmo aqueles que militavam no Partido Nacional Fascista e o tinham financiado com generosas dádivas.
À superfície, nada alterava a elegante rotina dos Finzi-Contini. É o perplexo narrador que nos partilha estas confidências cerca de 20 anos após tudo ter acontecido, já no final da década de 50. Aquele reduto enclausurado parecia imune a todos os perigos na despótica Itália. Ali imperava Micol, como deusa pagã no esplendor da existência: é sempre em segunda mão que nos vai surgindo no romance. Nunca como sujeito próprio, apenas enquanto objecto da veneração de quem a descreve de modo ainda apaixonado mesmo depois de todos terem sido engolidos por um cataclismo que deixou a face do mundo irreconhecível.
Nós, leitores, estamos lá também. Contemplando-a nos seus harmoniosos movimentos a jogar ténis, fascinados por aquela beleza ainda mais intensa por a pressentirmos tão fugaz. Era fácil reconhecê-la à distância «pelos cabelos loiros, daquele loiro especial estriado de madeixas nórdicas», com a altivez natural da sua estirpe. Aos 22 anos, «em shorts e camisola de algodão, aquela Micol de aspecto tão livre, desportiva, moderna», parecia não ser dali.
Ele olha-a, enlevado: já não é a pré-adolescente que conheceu num dia em que o incentivara a escalar o alto muro do jardim. Ela e o irmão haviam estudado em Milão, regressavam à terra natal em idade adulta. Preocupações com os presságios de guerra? Nem por sombras, dissera Micol, indiferente às interdições em curso: «Jogar ténis, dançar e namorar» eram as suas prioridades declaradas. Não necessariamente por esta ordem. Mas é também apaixonada por literatura: estuda Germânicas, traduz poemas de Emily Dickinson.
Durante esses meses, pairava ali uma atmosfera quase irreal, de suspensão mágica: aquele Verão irá prolongar-se até meados de Novembro. Com forte carga simbólica – penúltimo acto, antes de tombarem as trevas outonais. «Os dias eram extraordinariamente belos mas ao mesmo tempo já muito assediados pelo Inverno, agora iminente. Perder um único parecia-nos um crime.» (p. 94 da edição portuguesa da Quetzal, excelente tradução de Egito Gonçalves).
O Jardim dos Finzi-Contini foi publicado em 1962 e logo galardoado com o Prémio Viareggio, um dos mais prestigiados de Itália. Deu fama a Bassani, que esteve envolvido na resistência clandestina durante a guerra, já formado pela Faculdade de Letras de Bolonha (1939). Chegou a estar preso, por oposição ao fascismo. Depois seria bibliotecário, argumentista cinematográfico, professor e actor esporádico. Dirigiu a Feltrinelli, uma das principais editoras italianas, e o Festival de Cinema de Veneza.
Este seu romance, de todos o mais célebre, é hoje estudado nas escolas. Continua a ser um dos livros mais lidos e apreciados em Itália. Começou como discreto conto homónimo, em 1955, escrito na terceira pessoa. Viria a ganhar asas na forma definitiva, redigido na primeira pessoa do singular: estava fadado para figurar no palco cimeiro da literatura.
É a história de um amor não correspondido entre dois jovens acossados, cada qual à sua maneira. Ele sentindo-se rejeitado por aquela rapariga com quem partilhara breves carícias e uns beijos furtivos, ela parecendo adivinhar que o dedo do destino não tardaria a dissolver qualquer vínculo que pudesse contrair. Melhor então não ter nenhum. Ambos à beira do abismo, ambos vítimas do pesadelo totalitário, cada qual também a seu modo. Em plena contagem decrescente para a II Guerra Mundial.
O Inverno chegou, a face luminosa de Ferrara tornou-se sombria. Alberto adoeceu gravemente – metáfora dessa Itália ameaçada por uma moléstia fatal, naquele mimetismo da Alemanha hitleriana. Aos poucos, a mansão da mais próspera família judia de Ferrara com a sua mítica biblioteca de quase 20 mil livros foi-se blindando. Ele, antes de partir para sempre, contempla da rua a janela do quarto dela, lá em cima, no último torreão. Está iluminada, o que ainda mais lhe aperta o coração. Mal saberia até que ponto.
Avistam-se pela última vez em Agosto de 1939: ao contrário do anterior, este foi um Verão amputado. Dolorosamente amputado. Nada seria como antes para aqueles judeus: quase todos mergulhariam numa noite sem fim.
O Jardim dos Finzi-Contini é percorrido por uma corrente de nostalgia, de luta inexorável contra o tempo. De vidas destruídas pela implacável vertigem política daquela época que transformou cada pessoa em títere involuntária da História. De um deslumbramento que sobrevive como melancólica recordação.
«Não pertencemos a esse mundo, por muito apaixonados que estejamos por ele. Deixar-nos-ão entrar apenas durante um Verão encantado, desfrutar de longos jogos de ténis, explorar o jardim, cair na rede do desejo, mas as portas voltarão a fechar-se. E esse espaço ficará unido para sempre à nossa melancolia. Quase todos nós, em algum momento da vida, espiámos de fora um jardim dos Finzi-Contini.» Palavras da escritora espanhola Irene Vallejo no seu fascinante ensaio literário O Infinito num Junco. Aludindo a este romance, que confessa ser um dos seus livros preferidos.
Oito anos depois, Vittorio de Sica adaptou-o ao cinema, com Dominique Sanda perfeita na pele de Micol: parece ter nascido para desempenhar este papel. A película viria a ser distinguida em 1972 com o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro: galardão merecido.
Dominique Sanda interpreta Micol no filme de Vittorio de Sica, (1970), galardoado com Óscar
Eis a consequência de um olhar apaixonado: dela acabaremos por saber muito; do narrador, quase nada. Nem sequer o nome.
Ele ficará irremediavelmente marcado por aquela paixão que nunca se consumou. O pai, médico proibido de exercer a profissão após ter sido expulso do partido único, soube ver tudo com nitidez numa larga madrugada em que trocaram confidências: «Na vida, para se perceber, mas perceber verdadeiramente, como são as coisas deste mundo, deve-se morrer pelo menos uma vez. E então, uma vez que é essa a lei, o melhor é morrer quando ainda se é novo, quando se tem ainda tempo, diante de si, para se aguentar no balanço e ressuscitar.»
Renunciar a Micol era a morte que lhe estava destinada. Restar-lhe-á a reminiscência daqueles «cabelos loiros e leves e levemente encaracolados, os olhos escandinavos, azul-celestes, a cútis cor de mel». Nenhuma ferida custa tanto a cicatrizar como a do fogo que arde sem se ver.
Ela jamais lhe pertenceu, mas de algum modo será dele para a eternidade. Ei-la nas páginas vibrantes deste romance, renascida em cada nova manhã do mundo: deslumbrante, radiosa, intemporal.
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