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Delito de Opinião

Grandes contos (25): Jack London

Pedro Correia, 21.03.21

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Num mundo devastado por um vírus mortal, um dos raros sobreviventes percorre antigos espaços urbanos agora devorados pela natureza inclemente. É um velho de 87 anos que caminha na companhia de três netos, pastores de cabras. Todos em busca de alimento e refúgio, na cíclica luta pela sobrevivência a cada dia.

Ninguém diria, mas este ancião sujo e coberto de andrajos chegou a leccionar numa das mais prestigiadas universidades da Califórnia: era o professor James Howard Smith, docente de Literatura Inglesa. Antes da peste escarlate que irrompeu sem se saber como e foi liquidando quase toda a espécie humana.

«Foi no Verão de 2013 que veio a pandemia. Eu tinha 27 anos e lembro-me bem», começa por recordar o velho quando pararam para comer qualquer coisa. Os  miúdos mal entendem o que diz: o avô usa termos obsoletos. Nasceram numa era pós-civilizacional, em que os livros se perderam e grande parte das palavras se extinguiram com eles. A comunicação é feita por gestos, grunhidos e um vocabulário cada vez mais estreito. Todos os substantivos abstractos deixaram de fazer sentido. As crianças são incapazes de perceber o significado da palavra milhão, por exemplo.

 

O surto epidémico começou em Nova Iorque, à época com 17 milhões de habitantes, tendo rapidamente alastrado a Chicago e outras grandes cidades americanas. Na Europa, Londres foi das primeiras a ser atingidas pelo misteriosa erupção escarlate que se espalhava como fogo no rosto e no corpo dos flagelados: eles permaneciam conscientes «até ao momento em que o coração esmorecia e parava», horas depois.

«O problema era a surpreendente rapidez com que esse micróbio destruía as pessoas e o facto de matar fatalmente qualquer corpo humano em que entrasse», ia relatando o velho perante a incompreensão dos netos.

Por capricho do destino, Smith estava condenado à sobrevivência: era naturalmente imune ao vírus. Foi talvez uma pena mais insuportável do que a morte: viu ruir tudo à sua volta. «Com a chegada da Morte Escarlate, o mundo desabou, absoluta e irremediavelmente. Dez mil anos de cultura e civilização esvaíram-se num instante, desfizeram-se como espuma» (recorro à tradução de Ana Barradas na mais recente versão portuguesa, com chancela editorial da Antígona, 2021). 

 

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Longo conto integrado no género de ficção futurista que Jack London (1876-1916) cultivou com brilho, ou uma novela segundo um discutível critério de medição de caracteres tipográficos (neste caso, cerca de 20 mil palavras), A Praga Escarlate, redigida em 1910, teve publicação inicial na revista britânica London Magazine dois anos depois, surgindo em livro só em 1915.

É uma arrepiante distopia que nos interpela sobre a fragilidade da condição humana, perdida nos labirintos da justiça metafísica. O idoso professor Smith testemunhou o carácter ilusório daquilo que tomamos como definitivo. No seu longo monólogo cujo significado as crianças mal entendem, lamenta o desaparecimento de antigos objectos de uso quotidiano, como fósforos ou sabão. A área outrora povoada de gente bem alimentada e bem vestida tornou-se domínio de lobos e ursos. «A vegetação selvagem sufocou e destruiu praticamente toda a vegetação domesticada.» Os escassos humanos vivem em contínuo sobressalto face à inclemência da natureza e agrupam-se em tribos onde impera o domínio do mais forte.

Depois do apocalipse, James Howard Smith viveu três anos em solidão absoluta. Um dia, não suportou mais aquilo: «Senti que estava a enlouquecer. Como os cães, eu era um animal social e precisava da minha espécie. Concluí que, assim como sobrevivi à peste, havia a possibilidade de muitas pessoas terem sobrevivido.» Encontrou-as junto a um lago, não muito longe da extinta área metropolitana de Oakland.

 

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A sociedade regredira ao núcleo original: fora capaz de superar incontáveis obstáculos mas sucumbira perante um micro-organismo.

«O grande mundo que conheci na minha infância e juventude desapareceu. Deixou de existir. Sou o último homem que estava vivo nos dias da peste e que conheceu as maravilhas daquela época longínqua. Nós, que dominámos o planeta - terra, mar e céu - e que éramos como deuses, agora vivemos na selvajaria primitiva, nas margens dos cursos de água desta região da Califórnia», lamenta James Howard Smith nestes seus dias crepusculares. 

Quando ele desaparecer, extingue-se o último vestígio do ser civilizado - aquele que sabia neutralizar relâmpagos, domar tempestades e manipular o vapor, tornando-o «mais forte do que dez mil homens»

 

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Impressionante, a lucidez de Jack London: 2013 já passou, mas vivemos há um ano num mundo de pernas para o ar, também subitamente flagelado pela pandemia, como o que ele antecipou com a sua sensibilidade de escritor atento aos sinais dos tempos e ao sinuoso devir da História. Sem ilusões quanto ao declínio e provável extinção das fortalezas físicas e dos baluartes morais que hoje nos parecem inexpugnáveis.

Há muito de kafkiano e de orwelliano nestas linhas escritas antes de Franz Kafka e de George Orwell. Lúcidas como poucas, tão arrebatadoras agora como quando foram lidas pela primeira vez. E, apesar de tudo, sem nunca estagnarem no cinismo ou desembocarem no desespero. 

«Da boca destes garotos vem a sabedoria de todas as épocas. Uns lutarão, outros governarão, outros ainda rezarão; e todos os restantes vão labutar e sofrer ferimentos enquanto sobre os seus cadáveres sangrentos será criada de novo, e uma vez mais, a beleza surpreendente e o esplendor insuperável do estado civilizado», pensa o velho professor, contemplando os netos.

É talvez a sua última reflexão, muito em breve fechará os olhos naquele ano de 2073. Com a esperança de que a semente frutifique: algo do que lhes transmitiu pode traçar uma nova fronteira, assinalando o princípio do fim desses tempos de barbárie.

 

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Anteriores contos desta série:

O Suave Milagre, de Eça de Queiroz

A Fogueira, de Jack London

Missa do Galo, de Machado de Assis

Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros, de José Cardoso Pires

Circe, de Julio Cortázar

Grandes contos (24): Eça

Pedro Correia, 23.12.17

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«O reino de Deus está dentro de nós.»

Lucas, 17, 21

 

Foi uma das mais fecundas viagens da literatura portuguesa. As sete semanas da jornada de José Maria Eça de Queirós (1845-1900) ao Egipto e à Terra Santa entre Outubro e Dezembro de 1869, a pretexto da inauguração do Canal do Suez, serviram de inspiração ao escritor até ao fim da sua vida demasiado breve. De lá o jovem jurista trouxe três cadernos de bolso e um grosso maço com tiras de papel almaço cheios de notas que jamais o abandonariam.

Teve a noção imediata do impacto que aquela digressão produziria na sua obra. E assim o confessaria anos depois, em alusão polvilhada de ironia, pela boca de uma das suas mais inconfundíveis criações literárias, Teodorico Raposo: “Esta jornada à terra do Egipto e à Palestina permanecerá sempre como a glória superior da minha carreira.”

Não se enganava. A viagem por terras do Oriente, como assinalou o seu biógrafo João Gaspar Simões, libertou-o do “metaforismo visionário dos folhetins» ao introduzi-lo nas virtudes da observação e da anotação. Proporcionando-lhe material para o que viria a ser um livro póstumo (O Egipto), um dos seus mais corrosivos e admiráveis romances (A Relíquia), diversas crónicas jornalísticas e aquele que figura entre os melhores contos escritos no nosso idioma: O Suave Milagre.

 

Com esta história (definição que Eça sempre preferiu à de conto), Jesus Cristo irrompe como inesperada personagem da literatura portuguesa.

Vasco Graça Moura não duvidou em classificá-la de “grande realização” no seu prefácio à antologia As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal (Quetzal, 3.ª edição, 2016). Num sentido metafórico, podemos na verdade inseri-la entre as prosas de recorte natalício, aliás com ampla tradição na nossa literatura. Mas O Suave Milagre, na brevidade das suas dez páginas, tem um alcance mais vasto: é uma pequena obra-prima sobre a inspiração da fé impregnada no recôndito da alma humana.

A acção, iniciada no pretérito mais-que-perfeito para acentuar a aura simbólica, decorre na época em que Cristo peregrinava pela Galileia, convertendo multidões à sua passagem. Aqui Eça recorre às paisagens visuais que lhe ficaram impressas na memória, transformando-as em matéria literária. Em 1869 o futuro romancista deambulara por Jerusalém, escutara missa no Santo Sepulcro, visitara o rio Jordão, o Monte das Oliveiras, as colinas de Judá, as ruínas do Templo, o Mar Morto. Numa espécie de rito iniciático que o sagraria como escritor – ali no centro da civilização do Livro. Logo a ele, que na juventude várias vezes se proclamou ateu militante.

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O Suave Milagre teve três versões.

A primeira, surgida em 1885 e denominada Um Amável Milagre, integrou-se numa colectânea intitulada Um Feixe de Penas, organizada com intuitos de beneficência por Maria Amália Vaz de Carvalho.

A segunda, mais seca e resumida, imprimiu-se em 1897 sob o título Um Milagre na edição inaugural de uma tal Revista Cor de Rosa.

No ano seguinte seria enfim divulgada a versão definitiva, na Revista Moderna, magazine editado em Paris, onde Eça desempenhava as funções de cônsul. É claramente a que tem uma escrita mais apurada, fruto do perfeccionismo constante de um prosador sempre insatisfeito em questões formais.

Em livro só sairia no volume de Contos, lançado em 1902, numa edição póstuma.

 

«Nesse tempo Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do Lago de Tiberíade: — mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar.»

É o sugestivo parágrafo inicial do conto, redigido segundo a toada dos textos evangélicos, com profusão de topónimos e antropónimos colhidos in loco, naquela viagem tão determinante para a vida e obra do autor.

Mas nem só o estilo bebe o exemplo dos Evangelhos: o mais determinante aqui é a intenção moral. Com uma assumida dicotomia entre os ricos e poderosos, que acumulam bens materiais mas são afinal impotentes no combate aos abismos da doença e da morte, e os pobres e despojados de bens materiais mas iluminados pela luz da fé, capaz de mover montanhas.

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Entre os primeiros figura o velho Obed, «senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas — e com o coração tão cheio de orgulho como o seu celeiro de trigo». Um «vento de desolação» arrasara-lhe as terras de cultivo e os pastos para o gado, e em consequência ele «ruminava queixumes contra Deus». Ao ouvir falar do rabi que fazia milagres na Galileia, imaginou-o como um feiticeiro capaz de lhe restituir a sorte e enviou uns servos com «cinturões de oiro» no seu encalço.

Em vão.

Figura também o centurião romano Publius Septimus, comandante do forte implantado no vale da Cesareia, «homem áspero», veterano de mil guerras que «enriquecera durante a revolta da Samaria com presas e saques». Adoecera-lhe a filha e ele despachou três centúrias de soldados às suas ordens para lhe acharem aquele rabi de que todos falavam, convicto de que o favoreceria com o seu «superior feitiço».

Também em vão: ninguém encontrou Jesus.

 

Cristo aparecerá, sim, mas ao mais humilde dos humildes: um menino entrevado, residente num casebre com a pobre mãe, que mais não tinha senão umas ervas secas para lhe mitigar a fome. Ao contrário do rico proprietário e do poderoso centurião, ele nada pede, nada exige, nada reclama: diz apenas à mãe que gostaria de «ver Jesus».

Querer ver sem duvidar do invisível: eis a expressão mais pura da crença despida de artifícios ou disfarces. Este menino sem nome, arquétipo universal de uma fé capaz de mover montanhas, será recompensado. Tal como a samaritana pecadora que deu de beber a Cristo no poço de Jacob. Ou como Inger, a mulher ressuscitada na sequência de uma prece do “tontinho” Johannes Borgen numa cena crucial d’ A Palavra, de Carl Dreyer – um dos mais belos filmes da história do cinema, estreado 70 anos após a publicação deste O Suave Milagre na sua versão inicial.

 

Jesus, personagem literária, profere neste conto apenas duas palavras: “Aqui estou.” É quanto basta enquanto essência da mensagem cristã – tanto mais divina quanto mais humana, tanto mais humana quanto mais divina.

Eis Eça, o ateu incerto que ajoelhou por atávico impulso religioso no Santo Sepulcro, a reconduzir-nos ao espírito mais genuíno do cristianismo: aquele que depura o dom da fé, libertando-o do ilusório poder material, da ostentação postiça, do farisaísmo dos sepulcros caiados.

“Aqui estou.” História de Natal, sim. Deslumbrante revelação de todos os verdadeiros Natais.

 

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Anteriores contos desta série:

A Fogueira, de Jack London

Missa do Galo, de Machado de Assis

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Circe, de Julio Cortázar

Natal, de Miguel Torga

Grandes contos (23): Jack London

Pedro Correia, 17.01.15

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É a história de um homem e um cão. Companheiros inesperados no combate à inclemência da natureza na imensidão do Alasca invernoso. Uma história descrita por um antigo aventureiro do Yukon na época da caça ao ouro, alguém que fazia questão de tudo experimentar antes de escrever, alimentado por aquela pulsão existencial a que já Camões aludia ao cunhar uma expressão que legou para sempre à língua portuguesa: saber de experiência feito.

Caminham ambos, homem e cão, com a urgência de quem sabe ou pressente que a parcela do destino que lhes coube em sorte pode esgotar-se a qualquer momento. Inexperiente naqueles trilhos agrestes, o indivíduo de quem nunca saberemos o nome cometeu a imprudência de se fazer às traiçoeiras rotas da neve sem se fazer acompanhar pelo menos de outro homem: a solidão, naquelas paragens, pode significar uma condenação antecipada à morte.

O cão segue-o sem vontade, com um temor ancestral pelos misteriosos elementos brotados do céu ou das entranhas da terra que ser vivo algum conseguiu domar desde a primeira madrugada ocorrida no planeta.

A temperatura nunca ali tinha sido tão baixa. Estavam mais de 50 graus negativos, como o homem descobriu ao verificar que o cuspo congelava no ar antes de atingir o chão. As bolachas com bacon que lhe serviriam de almoço estavam envolvidas num lenço por dentro da roupa, em contacto com a pele: só isso evitava a sua transformação em gelo.

Deviam chegar a um acampamento, já junto à zona índia, por volta das seis da tarde.

 

9789726081579[1].jpgO maior perigo eram os regatos que continuavam a brotar sob finas camadas de neve e por cima do gelo acumulado sobre os ribeiros - armadilhas em que se enterravam os incautos.

«Normalmente a neve que cobria os charcos ocultos formava uma depressão e tinha uma aparência granulosa que anunciava o perigo. Uma vez mais, porém, salvou-se por pouco; e, de outra vez, suspeitando do perigo, obrigou o cão a ir à frente. O cão não queria avançar. Resistiu até o homem o empurrar para a frente e atravessou rapidamente a superfície branca e lisa. De repente ela cedeu, deslizou de lado, mas o animal conseguiu alcançar terreno mais firme. Tinha molhado as patas dianteiras e as pernas, e a água que as cobria gelou quase de imediato. O cão fez esforços frenéticos para lamber o gelo das pernas, depois tombou na neve e começou a morder o gelo que se lhe formara entre os dedos. Era uma questão de instinto. Permitir que o gelo se instalasse era magoar as patas. Não sabia disso, limitava-se a obedecer ao impulso misterioso que surgia das profundezas do seu ser. Mas o homem sabia, por ter reflectido sobre o assunto, e retirou a luva da mão direita para o ajudar a libertar-se das partículas de gelo. Não expôs os dedos mais do que um minuto, e ficou surpreendido com a súbita rigidez que se apoderou deles. Estava mesmo frio. Calçou depressa a luva e começou a golpear furiosamente a mão contra o peito.» (Tradução de Ana Barradas, A Fogueira e Outros Contos, Antígona, 2004).

Eles caminham sem cessar. E nós, leitores, caminhamos com eles, guiados pela sedutora prosa de Jack London, incomparável narrador de pequenas e grandes odisseias do ser humano. À medida que avançam, vamos sentindo frio também. E passamos fome. E sentimos a silenciosa opressão desse vasto oceano de neve que é o Alasca. E percebemos, como só nestas circunstâncias extremas se percebe, como é frágil a nossa condição e desigual a nossa luta contra os arbítrios da natureza.

 

cover_78_buildafire[1].jpgAinda há tempo para acender uma fogueira que lhes permitirá o aconchego de um breve repouso acompanhado de uma refeição destinada a restaurar-lhes as forças. O homem guarda os fósforos como se de um tesouro precioso se tratasse: sem eles a condenação à morte está garantida.

Mas havia que retomar o trilho.

«O cão, desapontado, não queria abandonar a fogueira. Aquele homem não sabia o que era o frio. Possivelmente todas as gerações dos seus antepassados desconheciam o frio, o frio verdadeiro, o frio a cento e sete graus abaixo de zero. Mas o cão sabia o que isso era; todos os seus antepassados sabiam e ele herdara esse conhecimento. E sabia que não era boa ideia expor-se à intempérie num frio tão intenso. Era a altura de se anichar num buraco na neve e esperar que uma cortina de nuvens se entrepusesse entre a terra e o espaço exterior de onde vinha aquele frio.»

Nós, privilegiados, testemunhamos tudo.

Testemunhamos aquela trepidante luta pela sobrevivência em que cada minuto conta. Testemunhamos o diálogo mudo entre o indivíduo que trava o seu primeiro e talvez último combate longe das rotas da civilização e o descendente de lobo cujos ancestrais haviam trocado o amparo solidário da alcateia pelas incertezas do convívio com a espécie humana. Testemunhamos a humilde sabedoria do cão contrastada página após página com a arrogante intrepidez do homem nesta travessia iniciática que simboliza afinal a nossa frágil jornada à superfície da terra.

 

585087[1].jpgNenhum escritor como Jack London (1876-1916) soube escrever tão bem sobre animais em contos e novelas que cruzaram a infância e adolescência de sucessivas gerações de leitores -- inesquecíveis são obras como O Filho do Lobo, Colmilhos Brancos e O Apelo da Selva (cito os títulos portugueses das editoras Civilização e Publicações Europa-América, pioneiras na divulgação entre nós deste notável autor californiano, que tanto influenciou a literatura norte-americana do século XX).

A Fogueira -- To Build a Fire, no título original -- teve uma versão inicial, mais sucinta e destinada a um público juvenil, publicada em The Youth's Companion, a 29 de Maio de 1902. Mas a que passou à posteridade, dotada de inegável força alegórica, surgiu apenas em Agosto de 1908, impressa em dez páginas da revista The Century Magazine. É mais longa, mais rica em detalhes e com um desfecho diferente.

Este conto -- que ganha em ser lido no Inverno -- condensa todas as virtudes de London como prosador: o poder de recriar atmosferas com um vigor descritivo incomparável, a capacidade de captar a atenção do leitor desde as primeiras linhas e o sortilégio de uma escrita fluida, capaz de articular na perfeição conteúdo e forma.

Herman Melville rasgou estradas na prosa de ficção norte-americana, Mark Twain abriu-lhe cruzamentos e Jack London traçou-lhes múltiplas veredas com projecção universal. Como fica bem patente neste conto -- assombrosa parábola do homem no confronto ritual com a natureza, herói anónimo num combate sempre desigual, Sísifo condenado a erguer-se a cada adversidade mesmo com a certeza antecipada de que a morte será o fim.

 

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Anteriores contos desta série:

Missa do Galo, de Machado de Assis

Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros, de José Cardoso Pires

Circe, de Julio Cortázar

Natal, de Miguel Torga

Desatolado, de John Updike

Grandes contos (22): Machado de Assis

Pedro Correia, 24.12.14

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Fotograma da curta-metragem Missa do Galo, de Nelson Pereira dos Santos (1982) 

 

O talento de um escritor pode medir-se, entre outros atributos, na forma como utiliza as palavras para sugerir sem dizer. É o equivalente, em literatura, ao célebre Lubitsch's touch -- o traço distintivo do realizador austríaco Ernst Lubitsch (1892-1947), capaz de transformar as entrelinhas de um enredo cinematográfico numa sofisticada forma de expressão artística.

Muito antes de o cinema atingir a projecção universal alcançada no último século, já o maior dos escritores brasileiros, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), era um exímio cultor da elipse como figura literária. Sabendo, como sabia, que certos vocábulos ou certos conceitos ganham com frequência mais força quando surgem apenas implícitos.

Talvez em nenhum dos seus escritos tal característica seja tão vincada como num singelo conto natalício sem Natal denominado Missa do Galo -- obra-prima da sugestão e da concisão, publicada pela primeira vez no jornal A Semana, em 1893, e seis anos depois incluída no livro Páginas Recolhidas.

 

Aqui não há luzes nem presépio: na noite mais pura do imaginário católico, há indícios de pecado que não ultrapassam o patamar da ilusão.

Eis-nos transportados para o interior de uma casa burguesa do Rio de Janeiro em meados do século XIX, já de noite, como um teatro de sombras em unidade de espaço, tempo e acção.

Estamos perante um insólito triângulo do qual um dos vértices prima pela ausência: o dono da casa, viúvo de uma prima do estudante de 17 anos que ali se hospeda durante algum tempo. O homem, um tal Francisco Meneses, é escrivão e casou em segundas núpcias: à sua recatada esposa, Conceição, não falta quem chame santa pela virtude que evidencia e por tolerar num resignado silêncio as traições do marido, que passa uma noite por semana longe do domícilio conjugal alegando ir ao teatro.

 
 

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Os leitores mais atentos desconfiarão da exactidão desta história desvendada com excessiva minúcia de pormenores pelo narrador Nogueira, muitos anos depois do sucedido, quando se esperaria que o episódio já se tivesse diluído no fatal nevoeiro das evocações com prazo de validade.

Nogueira, provinciano de visita ao Rio, aguarda sem sono por um vizinho que o acompanhará à Missa do Galo frequentada pela corte do imperador Pedro II. Enquanto espera, lê um velho exemplar d' Os Três Mosqueteiros.

Em obediência a horários ancestrais, as demais ocupantes dormem na casa do escrivão ausente: esposa, sogra, duas escravas. Dormirão todas? Nem por isso: eis que Conceição irrompe na sala em silêncio. Vestindo «um roupão branco, mal apanhado na cintura».

 

Parecia o início de um vulgar relato de adultério. Mas tal como o Natal está ausente desta promessa de conto natalício também o sexo não comparece nesta promessa de traição não consumada.

Conceição aproveita o suposto serão de insónia para a primeira conversa longa com o jovem estudante -- conversa que seria também a última. Faz-lhe constantes perguntas de conteúdo aparentemente banal. Cada resposta provoca nova cascata de questões.

A dado momento ela diz: «Estou ficando velha.» Resposta pronta do jovem hóspede: «Que velha o quê, D. Conceição?» Palavras que a mulher, de 30 anos, acolhe com um sorriso enigmático.

«Há impressões dessa noite que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, de braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo.» (Excertos extraídos da edição portuguesa, chancela Alma Azul, 2005).

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Quebrada a unidade dramática, consistente ao longo de nove páginas, o conto chega subitamente ao fim. Machado de Assis apressa o epílogo, como se o que fosse relevante já estivesse dito -- sem dizer. Nas 15 derradeiras linhas ficamos a saber um pouco de tudo o resto, afinal quase nada.

«Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se, mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus 17 anos», relata o narrador.

Na manhã seguinte, já com o marido em casa, Conceição voltou ao discretíssimo comportamento anterior.

O jovem regressou à província. O escrivão morreu em Março, de apoplexia, e ela não tardou a casar com outro homem. Nogueira nunca mais a viu.

 

Terá o estudante mistificado os propósitos da dona da casa, confundindo-a com uma heroína romântica dos seus livros de capa e espada? Ter-se-á imaginado um D' Artagnan galante transposto para aquele velado aposento do Rio oitocentista? Terá o diálogo com a enigmática Conceição sido apenas fruto de um sono povoado de sonhos ditados pela voz do desejo naquela insólita vigília de Natal?

Jamais saberemos. Nem isso em boa verdade importa neste jogo de aparências transfiguradas pelos labirintos da memória. Porque é dessa realidade paralela, indiferente ao rigor dos factos, que irrompe por vezes o melhor da vida. Em forma de literatura.

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Anteriores contos desta série:

Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros, de José Cardoso Pires

Circe, de Julio Cortázar

Natal, de Miguel Torga

Desatolado, de John Updike

O Observador de Caracóis, de Patricia Highsmith

Grandes contos (21): José Cardoso Pires

Pedro Correia, 06.07.14

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Há um abismo entre a vida vivida e a vida sonhada: é isto que nos diz um dos mais ternos e amargos contos portugueses do século XX, com um título que logo pela sua originalidade nos sugere muito sobre esta enorme distância entre aquilo que se deseja e aquilo que se tem.

É uma história que funciona num cenário despojado, reduzido à mais extrema simplicidade para melhor "ir ao osso" -- expressão bem ilustrativa do estilo de José Cardoso Pires (1925-1998), um dos nossos mais notáveis prosadores no romance, no teatro, no conto e na crónica.

 

Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros é uma narrativa em dois tempos: o real e o literário. Com dois pares de protagonistas. Na vida real não têm nome, sequer: apenas os conhecemos pelos diminutivos -- Quim, ele, e Lisa, ela. Vivem numa rotina cinzenta, anódina, sem horizonte nem chama. Na vida literária, pelo contrário, estão apaixonados e cheios de esperança num futuro que só pode ser brilhante -- chamam-se Paulo e Maria (poderiam ser Paulo e Virgínia, como os adolescentes na ilha deserta do clássico romance de Bernardin de Saint-Pierre), e partilham «o melhor restaurante, a melhor praia, a melhor água, o melhor tudo» do mundo.

Lisa sofre de insónias, talvez por ter entrado na menopausa. Toma pastilhas que lhe alimentam a ilusão de que um dia irá emagrecer. Fala a todo o instante dos pequenos nadas que lhe povoam um quotidiano cada vez mais insípido e vazio.

Quim usa a literatura escapista para iludir a irreversível passagem dos anos: identificado com Paulo, o herói literário, regressa aos anos da juventude, em que a paixão se mantinha acesa e todos os sonhos eram possíveis antes de a realidade chã se encarregar de os destruir.

 

A discrepância entre os dois mundos fica bem expressa neste sucinto diálogo protagonizado pelos dois esposos no leito conjugal:

«"E é bom, o livro?"

"É uma história de dois tipos apaixonados. Dois tipos novos."

"Conta, Quim. É capaz de contar a história à sua mulherzinha?"

"Ora, quase não tem que contar. É um rapaz que está na praia com uma rapariga."

"E depois? Conta, não sejas chato."

"Depois vão tomar banho. À noitinha, quando o sol está mesmo a desaparecer."

"À noitinha? Tu não estás bom da cabeça, Quim."

"Verdade, à noitinha."

"Mas isso é só nos filmes dos milionários, lá nos mares do sul. Só aí é que há banhos à noite. Ou nas piscinas, quando está tudo bêbedo."

"Não, estes não estavam bêbedos nem eram milionários."

"Eram malucos. Ou então faziam isto para armar. Não me queres convencer que acreditas numa coisa destas."

"Claro que acredito. Porque não?"»

(Jogos de Azar, 6ª edição, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1993)

 

Estão ambos na cama, mas há um muro a separá-los.

Ela fala das trivialidades do dia-a-dia, ele lê em silêncio, projectando-se nas personagens da novela, ficção literária dentro de outra ficção literária como num jogo de caixas chinesas de óbvia inspiração cinematográfica a que Cardoso Pires confere acrescida verosimilhança ao desenvolvê-la em dois estilos muito distintos: Lisa e Quim numa linguagem seca e agreste, Maria e Paulo servidos num português colorido e expressivo, quase voluptuoso. E sempre em itálico para que não o confundamos com o registo "real" nem percamos a convicção de que o mundo dos sonhos é substancialmente diferente da vida sentida e experimentada.

O escritor pertencia aliás a uma geração que tinha um discurso muito crítico em relação à chamada literatura de evasão, que aqui de algum modo parodia, contrapondo-a a uma escrita que em momento algum esqueça as «desigualdades primárias» existentes «à face da Terra», como salientava em 1963 num notável prefácio à primeira edição da colectânea de contos a que deu o título de Jogos de Azar. Um título "político", claramente, entre outros motivos porque se ocupava dos deserdados da sorte no velho Portugal salazarista, crente -- como anotou neste prefácio -- de que «o indivíduo destituído de autoridade está condenado a tropeçar a cada passo nos caprichos daqueles que a detêm como exclusivo.»

 

Pessoas que já retratara em Histórias de Amor, livro publicado em 1952 e logo apreendido pela polícia política. Cardoso Pires nunca mais o reeditou, optando por transferir vários dos contos para Jogos de Azar, incluindo este, numa versão bastante retocada.  

Pessoas condenadas não à morte mas à vida. Condenadas a uma vida estreita, à dimensão do quarto de Lisa e Quim, sem rasgo nem chama, sem ardor nem paixão, onde jamais pousará uma simples flor nos teus cabelos claros. Os cabelos de Maria. Ou, pelo menos, como os cabelos que Paulo imagina de Maria. Ou, pelo menos, como os cabelos que Quim supõe que Paulo imagina de Maria naquela inacessível praia para sempre banhada por um impossível luar.

 

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Anteriores contos desta série:

Circe, de Julio Cortázar

Natal, de Miguel Torga

Desatolado, de John Updike

O Observador de Caracóis, de Patricia Highsmith

Os Bons Serviços, de Julio Cortázar

Grandes contos (20): Cortázar

Pedro Correia, 21.06.14

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Corria o ano de 1951 e ninguém falava ainda em realismo mágico. Julio Cortázar, pouco antes do desterro voluntário (e definitivo) na Europa, em protesto contra a ditadura do general Perón, lançou uma colectânea de contos -- com a chancela da Editorial Sudamericana, em Buenos Aires -- que ganhou fama nos meios literários argentinos. Com um título estranho mas muito ilustrativo do seu conteúdo: Bestiário.

Era a primeira vez que publicava um livro em prosa com o seu nome (antes utilizara o pseudónimo Júlio Denis), talvez consciente de que acabara de enviar ao prelo uma obra-prima.

Não admira que os contos de Cortázar tenham fascinado tantos cineastas -- Antonioni, Godard, Chabrol, Eastwood. Pela linguagem, tão original e apelativa. Pela capacidade de efabulação, cruzando banalíssimos quadros do quotidiano com erupções da fantasia mais delirante. Pelo imaginário, que salta consecutivas barreiras cronológicas. Por uma indefinível sensação de estranheza, desamparo e angústia que assalta tantas das suas personagens e se apodera delas, conduzindo-as aos mais inesperados desfechos.

 

Nascido ocasionalmente na Bélgica ocupada pelo império alemão, nas semanas iniciais da I Guerra Mundial (o centenário do seu nascimento celebra-se a 26 de Agosto), o futuro escritor viveu aqueles anos do mais sangrento conflito bélico até aí conhecido na história da humanidade em sucessivos locais de exílio que levaram a família Cortázar à Suíça e à Catalunha antes do regresso à Argentina, país natal do pai.

Nunca sabemos ao certo até que ponto as mais remotas reminiscências de infância perduram em nós pela vida fora. Aquele desenraizamento original, ocasionado pelos canhões da guerra, fez dele uma criança tímida e fechada, cujo único passatempo era ler livros atrás de livros entre as quatro paredes do quarto, numa casa com um vasto quintal situada nos arredores meridionais da capital argentina.

Alguns dos contos de Bestiário têm origem nessas remotas décadas do século XX em que Buenos Aires se assemelhava a uma grande capital de província, povoada de imigrantes oriundos de Palermo e da Galiza. Cada bairro era como uma aldeia, onde fervilhava a bisbilhotice quotidiana entre vizinhos.

Um bairro em que se escutavam nos modernos fonógrafos os primeiros tangos gravados por Rosita Quiroga, os filmes de Pola Negri davam azo a intermináveis discussões e se comentava o célebre combate de pugilismo entre Jack Dempsey e Luis Ángel Firpo, concluído com a derrota do argentino frente ao campeão mundial de pesos pesados em dois fulgurantes assaltos.

Um bairro em que vivia a bela e misteriosa Délia Mañara, suspeita de lançar peçonha aos namorados: o primeiro morrera com uma síncope fulminante à porta da casa dela, o segundo suicidara-se.

O conto chama-se Circe. Nome da feiticeira que transformava homens em bichos, imortalizada por Homero em dois cantos da Odisseia.

 

Diabolizada nas conversas de patamar do quarteirão, a jovem de 22 anos parecia indiferente ao falatório, vivendo em reclusão na mansão familiar onde fabricava suaves bombons e delicados licores. Loira e magra e pálida como um anjo, «deixava-se adorar vagamente» por um novo pretendente -- Mário, três anos mais novo, que a visitava nas longas tardes de domingo e defendia a sua amada das línguas viperinas da vizinhança.

Objecto simultâneo de um irreprimível desejo e um inconfessável temor, Délia torna-se protagonista de um dos mais singulares contos que alguma vez li. Um conto que nos é narrado, de forma original, não por Mário mas por alguém que lá não está nem nunca esteve: um miúdo à época com 12 anos, de quem nada saberemos a não ser que guardou este relato durante muito tempo na memória imprecisa («Recordo-me debilmente de Mário, mas dizem que fazia um lindo par com Délia»).

O ponto de vista de Délia nunca surge nestas linhas: ela é uma personagem difusa, aparentemente inalcançável: será, no fundo, o que nós projectarmos nela. Com os nossos fantasmas, os nossos delírios, as nossas obsessões.

Realismo mágico avant la lettre? Sem sombra de dúvida.

 

Com minúcia de cirurgião munido de bisturi, Cortázar conduz o leitor na trama da história reconfigurando o mito clássico num cenário realista e quase contemporâneo. À medida que viramos as páginas, vamos descobrindo um arrepiante universo de jaula humana, em que as distâncias entre pessoas e bestas são argamassadas.

«Todos os animais se mostravam sempre submetidos a Délia, não sabia se era carinho ou domínio, andavam perto dela sem que ela os olhasse» (uso aqui a tradução de Joaquim Pais de Brito para a versão portuguesa do conto, inserida em Bestiário, da Biblioteca de Bolso Dom Quixote, 1986). «A mãe dizia que Délia tinha brincado com aranhas quando era pequenita. Todos se admiravam, até Mário, que lhes tinha pouco medo. E as borboletas vinham ao seu cabelo.»

Fascínio fatal. Um dos falecidos namorados havia-lhe oferecido um coelho, que rapidamente morreu. O gato lá de casa aparecera com uma súbita indigestão e rumara ao jardim em busca de ervas curativas, mas em vão. Um peixe que navegava triste no aquário tinha o destino traçado: «Morre amanhã», sentenciou ela -- e assim sucedeu. Naquela casa de um bairro tão plácido e pacato desencadeava-se afinal uma luta sem tréguas entre o delírio e a razão.

Com esta condenada a perder o combate.

 

Seria Délia, tal como Circe, uma espécie de aranha a tecer a sua teia para condenar Ulisses -- aqui chamado Mário -- ao pior dos fins? Assim o sugere Cortázar -- mestre em jogos literários -- com o apelido Mañara, imperfeito anagrama de aranha (araña, em espanhol), ou um vocábulo quase homógrafo de mañera (fêmea estéril, no mesmo idioma).

Seria Délia-Circe, como um crítico sugeriu, afinal uma alusão irónica a Evita Perón, musa da ditadura que enfeitiçou gerações de argentinos? Estaremos perante uma Metamorfose, de Kafka, às avessas em que o insecto-homem se arrisca a transformar num homem-insecto?

Muitos anos mais tarde, já no exílio parisiense, o escritor confessava ter redigido este conto para esconjurar uma fobia que remontava aos dias da infância: «Enquanto comia, tinha o pavor de encontrar moscas ou outros insectos na comida. Escrevi Circe como um exorcismo. E resultou.»

Nunca saberemos se foi mesmo assim: quanta mentira existe afinal na verdade de um escritor?

 

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Natal, de Miguel Torga

Desatolado, de John Updike

O Observador de Caracóis, de Patricia Highsmith

Os Bons Serviços, de Julio Cortázar

Amor numa Rua Escura, de Irwin Shaw

Grandes contos (19): Torga

Pedro Correia, 24.12.13

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A ficção de formato curto é tão pouco valorizada no cânone literário português que até admira como vários escritores a têm cultivado ao longo dos últimos dois séculos. Um dos nossos melhores artífices de contos, nem sempre reconhecido como tal, foi Miguel Torga (pseudónimo do médico Adolfo Rocha, 1907-1995), mais conhecido como poeta e sobretudo como autor do monumental Diário, que se estendeu de 1932 a 1993 e constitui hoje um notável documento dessas décadas da vida portuguesa e da própria história do século XX.

Torga foi um produtor irregular de ficção, reunida essencialmente em três volumes de contos: Bichos (1940), Contos da Montanha (1941) e Novos Contos da Montanha (1944). São pequenas histórias -- às vezes simples quadros -- de um mundo agreste, duro, mineral, tantas vezes despojado dos mais singelos sentimentos. Um mundo povoado de sombras ancestrais, de superstições, de ritos cuja origem se perde nos confins dos tempos. Um mundo percorrido por um rasto de pobreza que irmana seres humanos e animais, ungidos pelo mesmo solo pedregoso e estéril.

 

«Corre por estes montes um vento desolador de miséria que não deixa florir as urzes nem pastar os rebanhos», observava o autor no prefácio à segunda edição dos Novos Contos da Montanha, em Setembro de 1945. A data merece ser fixada pelo seu significado quase paradoxal: no preciso instante em que o mundo se despedia da devastação da guerra, o Portugal de Salazar que a ela ficara imune permanecia prisioneiro de uma opressão antiga.

Torga quis acentuar o contraste entre este imutável rincão de espectros e escarpas e a janela de esperança que naquele momento se rasgava à escala universal. Mas o rastilho político está ausente da sua ficção, o que o distingue da escola neo-realista, contemporânea destes livros, e o "herói colectivo" é uma noção totalmente alheia aos seus contos que germinam entre valados e penedias em páginas admiráveis de autenticidade e concisão. Páginas onde desfilam almocreves, pedintes, cavadores, deserdados da sorte, «almas penadas dum Portugal nuclear», como o escritor as classificava no prefácio à terceira edição dos Novos Contos da Montanha (1952).

 

Este livro contém alguns dos melhores contos portugueses. Mas nenhum me comove tanto como uma pequena narrativa simplesmente intitulada Natal -- história que evita todos os estereótipos da quadra para nos conduzir ao reduto essencial da solidão humana diluída na imensidão da natureza, história de um velho pedinte galgando quilómetros nas veredas serranas, de lugarejo em lugarejo, procurando o sustento mínimo com as forças que lhe sobram de longos anos a desafiar a meteorologia inclemente e o inelutável egoísmo dos homens.

 

É um conto de um homem só. O velho Garrinchas, desfavorecido pelo destino na recta final da vida, esquecido de todos e quase sem lembrança das horas doces há muito sepultadas na memória. Caminha pelos montes, em véspera natalícia, «com o coração a refilar», quando sobre ele se abate um forte nevão que lhe trava o passo.

Acolhe-se então no adro de uma ermida -- o mais inesperado e singular presente de Natal.

 

Esgueira-se na capela, encontrando a porta entreaberta, e perante a ameaça do frio nem hesita em deitar mão ao andor da procissão que descobre ali a um canto. «Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.»

Ocorre então, perante a fogueira acesa naquele adro perdido na vastidão da montanha, a mais original das consoadas quando o velho Garrinchas se senta a comer a broa e o naco de presunto que trazia no bornal. «Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate.» Retorna à entrada da ermida e vê a imagem de Nossa Senhora com o Menino Jesus ao colo. «A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.»

Chega-se ao altar, pega na imagem, instala-a junto dele, ao calor da fogueira: «A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.»

Um inesperado presépio, talhado à medida da fé pura e rude de quem tinha todos os motivos para descrer da providência divina.

 

Todos os Natais regresso a este Natal que tanto me deslumbrou ao ouvi-lo narrar, ainda criança, pela primeira vez. E logo a nostalgia dos Natais verdadeiros se enlaça nos ecos encantatórios deste Natal de ficção, unindo vida e literatura. Como só a melhor arte literária é capaz de fazer.

 

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Desatolado, de John Updike

O Observador de Caracóis, de Patricia Highsmith

Os Bons Serviços, de Julio Cortázar

Amor numa Rua Escura, de Irwin Shaw

Nevoeiro na Cidade, de Mário Dionísio

Grandes contos (18): John Updike

Pedro Correia, 15.09.13

 

As telenovelas e a literatura de cordel costumam parar precisamente no ponto onde o mundo de John Updike começa. Na fase (e na frase) "casaram e viveram felizes para sempre".

A melhor ficção contemporânea desvenda o lado oculto do conto de fadas, sem a menor concessão ao imaginário pseudo-romântico das revistas cor-de-rosa. E se há escritor capaz de nos transmitir sem lamechices nem ridículos sentimentalismos como é delicada e precária a frágil arquitectura das relações humanas, esse escritor é o norte-americano Updike (1932-2009). Galardoado com o Pulitzer em 1982 e 1991, mas injustamente esquecido pelo júri do Nobel, mais propenso a distinguir autores envolvidos nas chamadas grandes causas do que a literatura dos pequenos quadros da rotina quotidiana, sugeridos e não proclamados, como é próprio dos melhores escritores.

 

«O homem não foi destinado para viver no paraíso.»

Esta frase, que encerra um dos seus contos, pode servir de mote a muita da ficção de Updike, por onde desfilam todos quantos não chegaram a ser fadados pelo dom da felicidade, ao alcance de poucos. Talvez porque não exista sequer felicidade, mas apenas uma rara sucessão de momentos felizes. Que nem todos sabem aproveitar.

Alguns taxidermistas de turno, disfarçados de críticos literários, apressaram-se a colar neste escritor o rótulo de especialista em "ficções domésticas". Mas toda a etiqueta é redutora: a questão dos géneros, como nos ensinou Fernando Savater, é «mera ervanária académica».

Grande romancista, como se percebeu logo após a publicação do seu segundo romance, Corre, Coelho (1960), Updike também cultivou a arte do conto em livros como The Same Door, Pigeon Feathers e Olinger Stories, povoados de histórias de famílias fragmentadas e desamparadas pela esterilidade dos elos no mundo contemporâneo. A várias das suas personagens bem poderiam aplicar-se estas palavras de Giovanni Papini: «O homem paga a sua grandeza com muitas insignificâncias, a sua vitória com muitas derrotas, a sua riqueza com muitos fracassos.»

 

Há um conto dele -- com poucas páginas e de uma aparente simplicidade capaz de propiciar vários níveis de leitura, como é característica dos grandes contos -- a que regresso com frequência. Foi publicado originalmente em 1962 na revista New Yorker e reunido em volume só um quarto de século mais tarde, numa colectânea de contos intitulada Trust Me (Uma Questão de Confiança, na edição portuguesa da Difel, com data de 1988). O conto chama-se Unstuck -- Desatolado, na versão que lhe deu o tradutor, Daniel Gonçalves -- e tem um jovem casal sem filhos como personagens centrais.

Percebemos desde o início, por várias frases em discurso directo ou indirecto, que aquela relação está tensa. Mas o maior indício é-nos fornecido simbolicamente pela meteorologia: é de manhã cedo, caiu um nevão durante a noite, cercando a moradia de um vasto «deserto branco».

O homem chama-se Mark, mas o nome dela nunca é mencionado: como se, ao casar-se, tivesse sofrido um golpe irreparável na sua individualidade.

A marca de um grande escritor detecta-se em pormenores como este.

 

Aquele casal, residente num casarão demasiado grande e demasiado vazio da Nova Inglaterra, perdeu de vez a inocência do olhar -- algo vital para continuar a crer nas virtudes da partilha conjugal.

Sabemos isso por uma frase desgarrada que ela profere, como se pretendesse capturar fragmentos de felicidade há muito perdidos: «Eu costumava adorar tempestades de neve.» Ele, obviamente, ignora este súbito assomo de nostalgia e limita-se a pedir-lhe uma pá para tentar desobstruir o acesso à rua.

Ignorando os apelos dela, o homem insiste em ir trabalhar nessa manhã tão fria. Mas vê-se incapaz de utilizar o carro, cercado pelo manto de neve. Bloqueado fisicamente, bloqueado também num nível simbólico, incapaz de encontrar um meio de saída, Mark só conseguirá mover-se graças ao contributo da mulher sem nome neste conto que nos fala ao ouvido, quase num sussurro, sobre os ténues laços do amor. Além de nos recordar como é sempre desigual a luta do ser humano contra os intangíveis caprichos da natureza.

 

A capa da Time com John Updike em destaque é de 26 de Abril de 1968

 

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O Observador de Caracóis, de Patricia Highsmith

Os Bons Serviços, de Julio Cortázar

Amor numa Rua Escura, de Irwin Shaw

Nevoeiro na Cidade, de Mário Dionísio

Empresta-nos o Seu Marido?, de Graham Greene

Grandes contos (17): Highsmith

Pedro Correia, 03.09.13

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Todos os voyeurs serão castigados: esta parece ser a moral a extrair de um extraordinário conto de Patricia Highsmith, um dos mais memoráveis que li até hoje de qualquer autor. Intitula-se O Observador de Caracóis e, como tantos outros desta escritora, foi publicado originalmente numa revista de ficção científica, denominada Gamma, tornando-se universalmente conhecido só a partir de 1970, quando a autora decidiu incluí-lo a abrir uma colectânea de 11 contos -- quase todos obras-primas do género -- a que deu o anódino e quase irónico título de Eleven.

 

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O mundo de Patricia Highsmith (1921-1995), como justamente assinalou Graham Greene em prefácio destinado a esta edição, é «irracional e claustrofóbico». Entramos nele sempre «com uma sensação de perigo pessoal» e raramente adivinhamos o seu desfecho.

Os norte-americanos, que adoram etiquetas e rótulos, apressaram-se a catalogar esta sua compatriota que optou por morar os últimos 32 anos de vida na Europa entre os autores de "suspense e mistério". Puro logro: ela é muito mais que isso. Qualquer tentativa de definição precisa da sua obra dentro dos parâmetros clássicos está condenada ao fracasso.

Que o digam todos os seus leitores atentos - entre os quais me incluo, desde o final da década de 80. Que o digam até as suas personagens, enredadas em kafkianas teias de taras, fobias e complexos de toda a espécie, onde matar ou morrer se torna tantas vezes no dilema dominante.

Personagens como o banalíssimo Peter Knoppert, residente num respeitável subúrbio nova-iorquino, um citadino inveterado tomado de uma ancestral nostalgia pelo reino da natureza que jamais conheceu. Sócio de uma firma de corretagem, um impulso momentâneo levou-o certo dia a chegar a casa com uma mão-cheia de caracóis.

«Nunca na minha vida me preocupei com a natureza», foi a lacónica justificação que deu a Edna, sua esposa (recorro aqui à tradução de Paula Reis para a edição portuguesa, com chancela da Teorema, em 1987, sob o título O Observador de Caracóis e Outros Contos, precisamente os que foram reunidos 17 anos antes em Eleven).

 

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Nada mais insignificante do que um caracol. Mas a vida naquela casa nunca mais foi a mesma. Sobretudo desde a noite em que o seco e circunspecto Knoppert se dirigiu à cozinha e fixou os olhos fascinados num casal de caracóis: «Mais ou menos erectos sobre a cauda, moviam-se um diante do outro como que dançando e, para todos os efeitos, pareciam duas serpentes hipnotizadas por um tocador de flauta. Viu, momentos depois, os seus focinhos tocarem-se num beijo de intensa volúpia. (...) Algo acontecia: uma protuberância, tipo orelha, aparecia no lado direito da cabeça de ambos os animais. O seu instinto disse-lhe que estava a observar um certo tipo de actividade sexual.»

Possuído deste insólito fascínio, passou a gastar todas as horas disponíveis na contemplação dos caracóis, ignorando as compreensíveis expressões de censura da mulher. A nível profissional, o seu desempenho melhorou. E, como tantas vezes sucede nas perturbantes páginas de ficção de Patricia Highsmith, começou a registar-se nele uma dissimulada mas crescente degeneração moral: «Tornou-se mais ousado nas suas jogadas, mais brilhante nos seus cálculos, na verdade tornou-se mesmo um pouco corrupto nos seus esquemas, mas arranjou dinheiro para a empresa. Por votação unânime, aumentaram-lhe o ordenado base, de 40 mil para 60 mil dólares. Quando alguém dava os parabéns ao Sr. Knoppert pelas suas proezas, este atribuía tudo aos seus caracóis e à descontracção benéfica que obtinha da sua observação.»

 

Na última vez em que Knoppert se deu ao incómodo de os inventariar, havia cerca de mil e duzentos espalhados pelo estúdio da sua casa. Depois disso, desistiu de contá-los: reproduziam-se a uma incrível velocidade, desmentindo todos os mitos sobre a lentidão dos caracóis e apoderando-se de todo o espaço disponível naquela divisão. Até que a dado passo as criaturas se apossaram do criador, a natureza venceu a civilização, a animalidade mais rasteira e viscosa conquistou o sofisticado habitat do próspero corretor, numa espécie de darwinismo às avessas.

Não é nada bonito espreitar por buracos de fechadura -- em sentido próprio ou figurado. Eis uma sábia lição de vida que teria sido certamente muito proveitosa a Peter Knoppert se ele tivesse vivido o tempo suficiente para a assimilar.

 

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Empresta-nos o Seu Marido?, de Graham Greene

Um Cântico de Natal, de Charles Dickens

Grandes contos (16): Cortázar

Pedro Correia, 05.05.12

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«Yo no soy un hombre, ni un poeta, ni uma hoja, /

pero sí un pulso herido que sonda las cosas del otro lado»

García Lorca

 

Júlio Cortázar (1914-84), um dos maiores escritores latino-americanos de todos os tempos, costumava comparar a prosa de ficção ao boxe: «O conto deve ganhar por knock-out, enquanto o romance deve vencer aos pontos.»

Ele foi o primeiro a aplicar esta teoria. Exímio na arte do conto, deixou-nos várias obras-primas do género em livros como Bestiario (1951), Final del Juego (1956) e Las Armas Secretas (1959). Obras-primas na técnica e na temática, inovadoras ao nível da estrutura narrativa, muito influenciada pela imagens caleidoscópicas do cinema e pelos mais diversos géneros musicais.

Cortázar, que chegou a tocar piano e saxofone, garantia que «se pudesse escolher entre a literatura e a música escolheria a música». O som das palavras é fundamental no seu sofisticado estilo literário: analogias e metáforas sugerem a melodia, aliterações marcam o ritmo e o compasso. Não por acaso, o seu primeiro livro de poemas incluía uma secção intitulada "Prelúdios e Sonetos", enfatizando o estreito vínculo que une a música à literatura.

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Los Buenos Servicios (intitulado Os Bons Serviços na edição portuguesa de 1984, intitulada Blow-Up e Outras Histórias, com chancela Europa-América e tradução de Maria Manuela Fernandes Ferreira) é daquelas histórias que, na definição do próprio Cortázar, «funcionam como sementes de grandes árvores que vão crescendo e nos perduram na memória». Escrito na década de 50, quando este argentino nascido em Bruxelas vivia já no seu voluntário exílio parisiense (vindo a receber a nacionalidade francesa na década de 80, pouco antes de morrer vítima de leucemia), é um conto originalíssimo, relatado na primeira pessoa do singular, sobre uma viúva idosa e pobre que um dia é contratada para tomar conta de uns cães mimados durante uma festa numa casa onde o luxo impera e as convenções sociais mal disfarçam uma atmosfera onde escasseiam os afectos e sobra a mentira.

Madame Francinet estabelece uma intensa cumplicidade com o leitor enquanto nos introduz, através das suas palavras ingénuas, neste hipócrita mundo de sombras que lhe é tão alheio, descrevendo-o sobretudo através de cores e aromas: «Só pelo cheiro se notava o luxo e também pelas alcatifas, tão fofas.» O mordomo tem patilhas cinzentas, a luz é amarela, o dono da casa surge-lhe com cara verde. Da janela coa-se uma luz cor-de-rosa. E há um estranho visitante muito jovem «todo vestido de branco» e com «uns dentes perfeitos e as mãos mais brancas num homem» que ela jamais observou.

Um mundo de máscaras onde ninguém a olha nos olhos. Madame Rosay, a senhora que a contratou, tem uma «maneira de fazer perguntas um pouco para fora da pessoa, como se perguntasse a um bengaleiro ou uma porta». Monsieur Rosay - que a contrata uma segunda vez, num contexto bem diferente, quando os risos dão lugar às lágrimas e a hipocrisia se acentua - «olhava para onde quer que fosse de modo a não se encontrar com os meus olhos». Um mundo oposto ao de Madame Francinet, nesta sátira quase doce - mas nem por isso menos corrosiva - à alta burguesia parisiense onde quase nada é o que parece e os cães chegam a receber melhor tratamento do que os seres humanos.

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Num conto, ao contrário do que sucede num romance, o tempo joga contra o escritor. Tensidão e intensidade são ingredientes fundamentais: Cortázar domina-os, com inegável mestria. E vence por KO. Os Bons Serviços - um dos cinco contos, todos excelentes, inseridos em Las Armas Secretas - é daqueles que nos perduram na memória.

Sentimos Madame Francinet como uma velha tia da província em contínuo e acelerado assombro perante o espectáculo do mundo, repetindo para si própria uma vez e outra: «Quando vejo alguma coisa esquisita pergunto-me com todas as letras se não estarei sonhando.»

A realidade depende do modo como a encaramos. É sempre possível olhar sem ver. E é sempre possível ultrapassar as aparências, com «um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado».

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Um Cântico de Natal, de Charles Dickens

Grandes contos (15): Irwin Shaw

Pedro Correia, 14.04.12

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“But Paris was a very old city and we were young and nothing was simple there, not even poverty, nor sudden money, nor the moonlight, nor right and wrong nor the breathing of someone who lay beside you in the moonlight.”

Ernest Hemingway, A Moveable Feast

 

E se de repente uma rua - uma vulgar rua de traseiras numa grande cidade - se tornar um microcosmo de um povo ou de um país? É um cenário admissível: não há impossíveis em ficção. E é um cenário que, pela mão de um escritor de talento, ganha a dimensão de uma tela viva.

Senti isto ao ler Amor numa Rua Escura, singular homenagem de Irwin Shaw a Paris, numa confirmação de que a capital francesa é capaz de seduzir sem remissão os olhares norte-americanos.

Shaw (1913-84) exilou-se voluntariamente na Europa em 1951, no auge das perseguições maccarthistas, depois de ter sido incluído na lista negra dos estúdios de Hollywood ao assinar petições em defesa aberta de John Howard Lawson e Donald Trumbo, argumentistas de cinema como ele.

O contraste entre os sonhos asfixiados na América desses anos da Guerra Fria e a esperança renovada num Velho Continente que irrompia das cinzas do mais trágico conflito de todos os tempos está bem patente neste seu conto sobre um jovem engenheiro norte-americano que aguarda uma chamada telefónica para a namorada em Nova Iorque enquanto lê Madame Bovary «para melhorar o seu francês» num minúsculo apartamento de primeiro andar arrendado na estreita rua por detrás do Boulevard Montparnasse.

Dois meses depois da chegada a Paris, naquele fim de Verão, tudo ainda ali está envolvido numa atmosfera de estranheza para este forasteiro, Nicholas Tibbell. «Todos os franceses lhe pareciam possuir um vocabulário ligeiramente arcaico e sublime, e sempre lhe soavam como se estivessem a fazer um discurso aos senadores, no Forum, ou a exortar os atenienses a matar Sócrates. Longe de o aborrecer, esta particularidade dava um acréscimo de misterioso encanto aos seus contactos com os habitantes do país e, nas raras ocasiões em que compreendera uns termos de calão, sentira que um picante se acrescentara às suas relações com a língua.»

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Passa da meia-noite em Paris, são oito horas em Nova Iorque. As duas cidades estão separadas por 5500 quilómetros. Mas a diferença não é apenas de fuso horário. Aquela rua exígua e antiquada fervilha de vida, em perfeito contraste com a modorra insonorizada do moderno prédio onde mora Betty, a namorada de Tibbell.

Há um par de namorados beijando-se como sombras furtivas no umbral de uma porta - «o que era ser francês, pensava ele, e não sentir vergonha do desejo, e ser capaz de o expor com tanta franqueza na via pública.» Mais adiante, uma jovem de cabelo louro, «no inevitável estilo Brigitte Bardot daquele ano», discutia acaloradamente com o ex-namorado, um parisiense chamado Raoul, dono de uma Vespa. Ela gritava e chorava e barafustava. O pai dela, que «aparentava ser um engenheiro respeitável ou um funcionário público», surge em defesa da filha, chamando «porco» ao homem da motorizada. Ele acaba de lhe anunciar que irá casar com outra, ela ameaça suicidar-se. «No país estrangeiro que era a França, onde o código de conduta entre os sexos era, para ele, na melhor das hipóteses, um mistério titilante», Tibbell «apenas podia desejar que tudo acabasse em bem».

Desfilam mais personagens. Uma mulher de sotaque espanhol abandona bruscamente um Alfa Romeo conduzido por um homem de fato preto que a persegue em vão. E a noiva de Raoul, que surge mais tarde, à pendura na Vespa. Tudo sublinhado pelo coro grego das velhas da vizinhança, que vão subindo e descendo persianas à razão inversa dos picos de emoção destes pequenos dramas românticos desenrolados na rua.

 

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Deste conto editado originalmente em 1965 (que li na versão portuguesa das Publicações Europa-América, com tradução de Carmen González, embora esteja igualmente editado com a chancela Livros do Brasil) irrompem genuínas vozes humanas com o seu cortejo alternado de esfuziantes alegrias e amargas decepções. Há amor e fúria, desejo e ódio. Sem sermões morais e com o autor confinado no seu reduto de espectador atento.

Romancista de talento e mérito (Os Jovens Leões; Lucy Crown; Homem Rico, Homem Pobre; Duas Semanas noutra Cidade), Irwin Shaw era igualmente um excelente contista, como esta saborosíssima história de um americano em Paris demonstra e a colectânea Short Stories: Five Decades (1978) confirma.  

 

A leitura de Madame Bovary ficou a meio, o telefonema para Betty acaba por não se concretizar. Quem quer a vida imaginada quando tem a vida real - promissora e palpitante - ao pé da porta?

Terminado o conto, chega-nos como eco distante uma frase emblemática de Hemingway, outro americano que se apaixonou irremediavelmente por França: «Se tiveres a sorte de viver em Paris enquanto jovem, para onde quer que fores durante o resto da tua vida levarás essa experiência contigo. Porque Paris é uma festa móvel.»

Uma frase tão sugestiva, tão sedutora. E tão verdadeira.

 

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Passeio Nocturno, de Rubem Fonseca

Grandes contos (14)

"Nevoeiro na Cidade", de Mário Dionísio

Pedro Correia, 25.02.12

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Um  homem acossado num quarto que não é seu aguarda com crescente impaciência o desenrolar das horas. Terá um encontro com outro, integrado na mesma rede clandestina, quando a noite se abater sobre a cidade envolta em nevoeiro. Mas afinal aquela noite, aquela névoa densa, são mais que isso, como um leitor atento rapidamente perceberá: são poderosas metáforas de um país asfixiado por uma ditadura.

Nisto se resume Nevoeiro na Cidade, o conto inaugural de uma das mais notáveis obras portuguesas do género: O Dia Cinzento e Outros Contos (1944). Bastaria este livro para consagrar o seu autor, Mário Dionísio, entre os melhores prosadores do nosso século XX, tão fértil em efémeros valores literários - à época enaltecidos em função de simpatias ideológicas ou clubismos políticos - que hoje são simplesmente ilegíveis.

Como tantas vezes sucede com obras que acabam por transcender o contexto em que foram escritas, o livro foi acolhido com reservas e frieza pelos próprios cultores do neo-realismo, corrente estética em que Dionísio se integrava. Criticaram-lhe a prosa despojada, a economia de meios, o olhar quase fotográfico, a aparente ausência de estilo - «esse estilo que, para lembrar um dito célebre, rangia em muitas obras como as botas novas de um noivo de aldeia e que era preciso começar por destruir», anotava o autor em prefácio à quarta edição d' O Dia Cinzento (Publicações Europa-América, 1977).

Todos estes críticos foram incapazes de captar o essencial: aquilo que contestavam em Dionísio era afinal o mais sólido e perdurável da sua obra.

 

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«Não havia sol há muitos dias. Uma luz fosca velava, por ali abaixo, a massa acidentada dos telhados, tufos de árvores, algumas ruas já com luz. Tudo impreciso e distante. Mesmo os telhados mais próximos, a torre da igreja, se esbatiam na névoa. E, dentro de casa, havia uma outra névoa que encobria as pessoas. As deformava, as isolava.»

Neste conto, como acontece em poucos outros, a atmosfera é tão forte e tão sugestiva que acaba por tornar-se o próprio motor da história. Em mais de um sentido da expressão, pois  Nevoeiro na Cidade é um produto exemplar daquilo que noutros tempos se chamou literatura engagée - uma literatura comprometida com a sua época e que faz desse compromisso a sua causa justificativa acima de considerações estéticas. Como Dionísio admite no prefácio, o objectivo era contribuir para a transformação do mundo. «Entre escrever um livro e preparar uma manifestação, distribuir a imprensa clandestina e cumprir qualquer outra tarefa de organização ou agitação não havia diferença apreciável.»

 

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Vivia-se o auge da guerra, vivia-se o auge do salazarismo, lutar era um imperativo cívico, escrever sem esse fito era um luxo quase imperdoável. Para conferir um selo de urgência acrescida à sua escrita e contornar simultaneamente as malhas da censura, Mário Dionísio (1916-1993) atribuiu na versão original de Nevoeiro na Cidade nomes franceses às suas personagens: Edmond, Louis, Evelyne, Suzanne.

A ideia era ocultar sob os bastidores da resistência ao regime de Vichy na França ocupada a acção das redes comunistas clandestinas em Portugal. Augusto Abelaira viria a fazer algo semelhante quase década e meia mais tarde no seu romance A Cidade das Flores, ao utilizar Florença como disfarce da Lisboa de Salazar.

Dionísio desfez o ardil na segunda edição d' O Dia Cinzento - datada de 1967, com alterações e ampliações de diversa ordem -, quando a censura se tornou menos severa. Sem deixar de se surpreender com o facto de alguns dos leitores supostamente mais inteligentes da primeira versão do conto mal tivessem entendido que a cidade nunca nomeada no original cenário francês era afinal Lisboa. Uma incompreensão que entroncava com outra das críticas que na década de 40 lhe fizeram à esquerda: enquanto a esmagadora maioria dos autores da primeira corrente neo-realista optava por temáticas rurais, também para melhor iludir os censores, em O Dia Cinzento não há marcas de ruralidade. Nisto Dionísio é precursor, como o é também na sua linguagem adaptada a um olhar cinematográfico, que viria a influenciar vários autores. Um deles, José Cardoso Pires, reconheceria sem rodeios que este livro contribuiu para a sua «formação de escritor».

 

Os neo-realistas como Mário Dionísio escreviam sobre um mundo a preto e branco que era o da sua geração. Talvez por isso, Nevoeiro na Cidade pode também hoje ser lido quase como um thriller: há nele ambiências de filme noir - a tal ponto que admira como é que este conto nunca foi transposto para um guião cinematográfico.

Os tempos alteraram-se, as correntes estéticas também. Mas confesso que é sempre com emoção que regresso a este livro, a esta história, a este parágrafo inicial: «Os dedos grossos passaram no trinco, no buraco da chave, na lingueta. Só depois empurraram a porta devagar. O fecho estalou.»

A política muda, a literatura subsiste. Haja nevoeiro ou haja sol.

Grandes contos (13): Greene

Pedro Correia, 28.01.12

 

Para Graham Greene (1904-91), a vida humana dividia-se em duas etapas essenciais: a "idade da confiança" e a "idade do cinismo". O grande escritor britânico havia entrado já nesta última fase quando decidiu entregar-se à arte do conto, que sempre desdenhara até então, praticando-a com sofisticada ironia, como exímio herdeiro de um Oscar Wilde. Daí nasceu uma das suas mais singulares obras de ficção: May we borrow your husband? (1967), que tem como subtítulo "and other comedies of the sexual life". Para trás ficara a etapa dos excelentes romances em que o Greene da "idade da confiança" nos legou títulos inesquecíveis como O Poder e a Glória, O Fim da Aventura e O Nó do Problema.

Ancorado em Antibes, no sul de França, este Greene que se intitula cínico deixou aparentemente de se envolver e de se comover com as grandes causas que fazem girar o mundo, fixando-se apenas nas minudências de um quotidiano banal. Com sarcasmo autodepreciativo, apresenta-nos o seu alter ego, William Harris, como "um homem já de certa idade que só deseja bom vinho, bom queijo e pouco trabalho".

 

Harris é a figura central do longo conto em oito capítulos que dá título a Empresta-nos o Seu Marido? (edição portuguesa da Bertrand, com tradução de Bertha Mendes). Escritor notoriamente entediado com a vida após dois casamentos fracassados, tenta redigir num hotel de Antibes a biografia do Conde de Rochester, poeta do século XVII. É Outono, a vila balnear encontra-se quase deserta, mas nem assim Harris mergulha com facilidade no seu manuscrito: o século XX teima em distraí-lo da tarefa. Numa saborosa cumplicidade com o leitor, vai-nos guiando numa comédia de enganos protagonizada por quatro inesperados hóspedes do hotel: três homens e uma mulher em lances voluntários ou involuntários de sedução. Algumas aparências iludem, outras nem tanto. No desfecho, como era de esperar, ficarão múltiplas cicatrizes -- quatro é número que equivale a multidão nos labirintos do amor. Mas talvez quem saia mais ferido seja afinal a quinta personagem: precisamente o narrador supostamente distanciado que acaba por envolver-se mais do que devia. O espectador passa por sua vez a ser espiado -- por cada um de nós.

A progressiva manipulação do leitor, que acaba enredado num jogo de caixas chinesas por esse hábil prestidigitador de emoções que é sempre um grande escritor, constitui o maior fascínio deste conto. Greene garante ter-se tornado um cínico, mas não consegue despojar-se do romantismo nesta trama de obsessão e desejo. Também aqui as aparências iludem.

 

"No termo do que se chama 'vida sexual' o único amor que dura é o que tudo aceitou, todos os desapontamentos, até o triste facto de no fim não existir desejo tão profundo como o simples desejo de não nos sentirmos sós", reflecte Harris. Que é Greene. Melancólico leitor dos poemas anacrónicos de Rochester. Um deles significativamente intitulado "O Prazer Imperfeito", que poderia servir também de título deste conto se o autor tivesse querido dar mais ênfase à tragédia que se insinua nas entrelinhas do que à farsa que voga na superfície.

Não quis -- e fez bem. Nada mais adequado para melhor compor esta teia de ilusões.

Grandes contos (12): Dickens

Pedro Correia, 24.12.11

 

Há muitos contos de Natal. Mas nenhum tão perene, tão influente, tão memorável como este que Charles Dickens escreveu em seis semanas para o Natal de 1843, no rescaldo imediato de uma visita a Manchester, onde ficou assombrado com as situações de injustiça e miséria ali vigentes. Um Cântico de Natal impôs-se desde logo como um hino à fraternidade, à esperança e à recuperação dos ideais evangélicos, perdidos no coração da Inglaterra no auge da Revolução Industrial -- gananciosa, desumana e fria.

A primeira frase, que logo agarra o leitor, é digna de um policial: "Marley estava morto, é ponto assente." Mas este longo conto -- quase uma novela -- pertence afinal a outro género, o da literatura fantástica. Com um pressuposto: nenhum homem é mau por natureza. E uma convicção: estamos sempre a tempo de corrigir o rumo das nossas vidas. Este é o repto lançado à personagem principal: o prestamista Ebenezer Scrooge, talvez o homem com o mais endurecido coração da Londres vitoriana, um ser incapaz de se integrar na atmosfera festiva do Natal. "Feliz Natal! Que direito tens para ser feliz? Que razão para isso? Para mais, pobre como és!", atira o velho avarento ao sobrinho que lhe dirige palavras de boas festas.

Scrooge não imaginava então o que lhe sucederia horas mais tarde, ao recolher ao leito na vasta, velha, feia e fria casa onde vive solitário: três espíritos visitam-no em sonhos, proporcionando-lhe a visão dourada de um remoto Natal da sua infância, a visão real do Natal contemporâneo -- na cidade, no campo, nas minas e no mar -- e a visão aterradora do primeiro Natal futuro, com ele morto sem ninguém a velar-lhe o corpo ou a lamentar-lhe o infortúnio. Um dos espectros fala-lhe ao coração: "Nenhum remorso pode resgatar as ocasiões perdidas da vida."

Estas visões conjugadas funcionam nele como um toque a rebate: o Scrooge que desperta deste estranho sonho, não sendo um homem novo, é no entanto um novo homem. "Tornou-se um bom amigo, um bom patrão, um bom homem, tão bom como nenhum comerciante de Londres antes ou depois dele" (Contos de Natal, de Charles Dickens; tradução de João Costa; Guimarães Editores, 2003).

 

Um escritor atinge verdadeiramente a imortalidade quando as suas personagens se tornam arquétipos da espécie humana: foi precisamente o que Dickens conseguiu com este conto, onde são patentes os traços autobiográficos de menino miserável em Londres -- de resto presentes em toda a sua obra. Scrooge incorporou-se no vocabulário inglês, tornando-se símbolo de cupidez, insensibilidade e desprezo pelos restantes mortais. "Vi os seus pensamentos mais nobres desvanecerem-se um a um, até a paixão dominante, a paixão do lucro, o ter absorvido", diz-lhe Belle, a antiga noiva com quem nunca chegou a casar, na mágica digressão ao passado guiada pelo primeiro dos três espíritos.

A Christmas Carol foi um êxito imediato de público, reforçado com o aplauso da crítica. A tal ponto que contribuiu para recuperar as celebrações natalícias, que estavam em desuso no Reino Unido, e popularizou a expressão "Merry Christmas", que desde então já deu incontáveis voltas ao mundo em cada Natal que passa. As reuniões familiares em fartas mesas com bebida e comida, os cânticos e até o peru da consoada anglo-saxónica são tradições que se devem igualmente à extrema popularidade deste conto, confirmando como a vida pode tantas vezes imitar a melhor ficção.

Dickens foi escrevendo outras histórias natalícias, até 1865. Reunidas em volume, nunca deixaram de ser reeditadas nos mais diversos idiomas. A fama de Scrooge -- e outras personagens deste conto, como o sobrinho Fred, o amanuense Bob Cratchit, o sócio Jacob Marley e o pequenito deficiente, Tiny Tim -- consolidou-se com inúmeras adaptações para teatro, cinema, televisão, ópera, bailado e até um musical da Broadway. Despertando, no tempo e no espaço, esta convicção que nos anima em cada noite de Natal: é sempre possível darmos um novo rumo à vida. Regressamos afinal à mensagem de Jesus, relatada de forma admirável no texto eterno de São Marcos: de que serve ao homem conquistar o mundo inteiro se acabar por perder a alma?

Grandes contos (11): Rubem Fonseca

Pedro Correia, 29.10.11
Lirismo? Qual lirismo? Rubem Fonseca escreve sobre o lado escuro da vida, sobre o lado negro do mundo. As suas personagens são duras. E feias. E sujas. Portam-se mal. Batem, ferem, agridem. Matam.
Enquanto uns cantam loas à lua, ele vislumbra a face lunar do quotidiano. E transfigura-a de forma admirável nas suas narrativas, virando todas as convenções do avesso -- a começar pelas convenções literárias, transportando para as suas páginas de ficção a linguagem crua das ruas, dos morros, dos becos, das vielas. A Copacabana dele não é a "princezinha do mar" de que nos fala o samba-canção. A Avenida Paulista dele não tem néons faiscantes: tem vultos voláteis, agindo na sombra à revelia de todos os códigos e leis. Como assinalou António Alçada Baptista, que o apresentou ao distraído público português, a literatura dele "mergulha totalmente no perímetro da grande cidade e não é possível analisá-la sem ter presente a dimensão, o peso e a respiração do espaço urbano e da sua capacidade de segregação miasmática".
Este filho de transmontanos, que passou toda a vida em demanda das raízes ancestrais, introduziu na prosa brasileira, até então mergulhada em arcaísmos de toda a espécie ou viciada num exotismo de bilhete-postal, a vibração das grandes metrópoles, com a sua trepidação febril, os seus sons dissonantes e os seus equívocos morais. Características que estão patentes em romances admiráveis, como Agosto ou Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. Mas são ainda mais nítidas na sua vasta galeria de contos, claramente influenciados pelos mestres do minimalismo americano e pelo filme negro, povoado de anti-heróis.
Um desses contos, obra-prima de contundência temática e concisão estilística, é Passeio Nocturno - aliás desdobrado em duas histórias que se complementam como faces de uma só moeda. Histórias que ilustram bem a "socialização da esquizofrenia" contemporânea a que Alçada Baptista aludia no prefácio ao livro Feliz Ano Novo (1975), onde foram originalmente publicadas antes de saltarem para várias antologias dos melhores textos de ficção brasileira.
Tudo começa como a mais banal das rotinas: "Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos". Mas cedo desemboca numa impiedosa violência, com um determinismo trágico. O autor sabe bem do que fala: a sua experiência como delegado de polícia ensinou-o a não ter ilusões sobre a natureza humana. E a ser um adversário implacável da retórica: nos seus textos não há um vocábulo a mais. Como diz uma das suas personagens, invertendo o cliché, "uma palavra vale mil fotografias".
Com Rubem Fonseca percebemos que o país do carnaval, do samba e do futebol também segrega monstros, aliás comuns a todas as latitudes. E não é um mundo longínquo: está à distância de uma simples porta de rua. Pode ser até um mundo que começa entre as quatro paredes de qualquer lar.

Grandes contos (10): Hemingway

Um Gato à Chuva

Pedro Correia, 24.09.11
Ernest Hemingway, que se tornou muito conhecido pelas suas proezas reais ou imaginárias na pesca, na caça e até na guerra, era afinal um indivíduo extremamente sensível, como demonstram vários dos seus contos - entre eles Um Gato à Chuva, que tem tradução portuguesa de Alexandre Pinheiro Torres (Livros do Brasil, Lisboa).
Gabriel García Márquez considerou-o "o melhor conto do mundo".
É uma singela história de cinco páginas originalmente publicada na colectânea In Our Time (1925), na melhor estética “minimal” de Hemingway - autêntico "mestre na arte da elipse", como bem assinalou Enrique Vila-Matas. Mas é quanto basta para nos proporcionar um dos mais perturbantes retratos de fragilidade feminina que já encontrei em literatura.
Um jovem casal americano hospedado algures em Itália. Têm todos os motivos para ser felizes. Todos? Talvez não. Pressente-se uma tensão subtil neste casal, revelada apenas no comportamento dela, subitamente identificada com a chuva que cai, com um gato desamparado que caminha debaixo de água. Há um jogo de contrastes nesta ficção povoada de personagens anónimas: o marido indiferente/o afável proprietário já idoso do hotel; a mulher pequena perante aquele homem alto que lhe provocava “um aperto na garganta”; a falta de desejo latente naquele quarto e a obsessão dela em resgatar o gato da chuva. (Desejo inconsciente de um filho que talvez acabe por nunca vir?) E, enfim, a presença obsessiva do dilúvio climático.
O rigor da meteorologia serve afinal de metáfora a este quadro humano tão singular mas também tão emblemático. Quantas mulheres terão sentido o mesmo “aperto na garganta” que esta americana vislumbrada pelo génio de Hemingway entre os pingos de chuva?

Foto: Michele Rain

Grandes contos (9): James Joyce

Pedro Correia, 27.08.11
Vivendo em Roma, saudoso da sua Irlanda natal, James Joyce escreveu em estado de graça um dos mais belos textos de ficção em língua inglesa: um longo conto, quase uma novela, intitulado O Morto. É a última história incluída no excelente livro Gente de Dublin (1914), polvilhado de retratos densos e dramáticos de pessoas de todas as idades e condições na nebulosa capital irlandesa do início do século XX, ainda sob domínio inglês. George Steiner, com toda a razão, chamou-lhe "mestre da modernidade urbana": há uma Dublin reinventada pela pena de Joyce, adquirindo vida própria, bigger than life. Uma Dublin cheia de contrastes sociais e de oscilações meteorológicas que reflectem o estado de alma dos seus torturados habitantes.
O Morto podia ser a simples história de um jantar redigida numa toada quase musical, alternadamente em ritmo de valsa ou de polca, com ocasionais sopros de ópera. Mas, à medida que os parágrafos se sucedem, torna-se muito mais que isso, destacando-se como uma metáfora da própria Irlanda - no preciso instante em que um mundo ruía e outro ganhava forma. Sem o saberem, quase todas as personagens em redor daquela mesa farta, entre brindes de vinho do Porto e de xerez, testemunhavam o irreversível desmoronar de uma era: algumas, como as duas velhas tias, já sentiam rondar a morte; outras, mais jovens, estavam emocionalmente exauridas. Gabriel Conroy, o protagonista, resume tudo numa frase: "A nossa passagem pela vida é sempre cheia de memórias tristes" (edição portuguesa da Vega, tradução de B. de Carvalho).
Em pouco mais de 40 páginas, este conto atinge a densidade de um romance de Balzac ou de Flaubert. Fala-nos do sentimento de perda, de memórias nostálgicas e da erosão do tempo fazendo-nos desfilar figuras de todos os matizes como num coro polifónico: estão lá o padre ortodoxo, o alcoólico frívolo, o músico arrogante, a jovem idealista, o professor estrangeirado. Nesta Dublin estranha, invadida pela neve, perpassa ainda a evocação de uma paixão atraiçoada pela morte num tempo em que "todos se transformavam em sombras". Em crescendo, como nos compassos de uma ode musical, o autor conduz-nos aos fulgurantes parágrafos finais que tornam a história verdadeiramente memorável. Joyce, ainda longe de ser o reconstrutor do idioma que seria no seu Ulisses, era já aqui um estilista consumado - mestre na arte dos diálogos e na construção de atmosferas sibilinas.
Poderia dizer-se também, muito simplesmente, que este é um conto que nos fala de um amor impossível. Concluindo ser "preferível passar para o outro mundo no apogeu de uma paixão do que envelhecer e morrer" entre espectros do passado. Só lendo saberemos porquê.
Começa em allegro, termina em adagio: O Morto é uma magnífica sinfonia em celebração da vida.

Grandes contos (8): Vergílio Ferreira

Pedro Correia, 30.07.11
Há em Portugal uma espécie de pudor atávico em praticar a arte do conto - característica que felizmente tem vindo a dissipar-se nas duas últimas décadas, com nomes que vão de Mário de Carvalho a Rui Zink. Entendido como género "menor" pela generalidade dos exegetas lusos de matriz universitária, o conto foi sendo considerado uma espécie de parente pobre da nossa literatura. Quem o cultivava quase tinha de pedir licença prévia para o efeito.
Alguns dos mais estimulantes autores portugueses do século XX, como Vergílio Ferreira, José Rodrigues Miguéis e José Cardoso Pires, dedicaram uma atenção marginal ao conto, sem repararem por vezes que nessas breves páginas se concentrava do melhor da sua escrita. Os notáveis Contos de Vergílio Ferreira, reunidos em volume em 1976 (Edição Bertrand), são bem a prova disso. Trata-se do espelho perfeito da obra de um romancista que começou integrado na corrente neo-realista e depois se tornou uma das vozes mais originais do nosso idioma.
Contos reúne ficções originalmente repartidas por dois títulos: A Face Sangrenta (1953) e Apenas Homens (1972). É um Vergílio Ferreira em transição da escola realista para a temática existencial que viria a coroar a fase "madura" da sua obra, este que emerge num dos mais tensos e vibrantes contos que conheço. Chama-se O Encontro e arranca deste modo tão sugestivo: "Agora a serra descia a toda a pressa para a aldeia. Depois, tranquila, alastrava devagar num grande vale, para subir ainda, suavemente, lá ao longe. Quebrado de cansaço e quase de surpresa, o engenheiro parou um instante no alto de um penhasco, soprando o fumo largo do cigarro, olhando em roda o silêncio da tarde. Um grande vento de solidão e montanha embatia-lhe no peito, inchando-lhe a camisa desapertada, penetrando-o de grandeza e de um incerto pavor."
Frases magníficas, num português sem rugas, mas que nos introduzem afinal num mundo primitivo, com as suas anacrónicas noções de honra e os seus insólitos rituais de inspiração bíblica. Vergílio Ferreira, escrevendo no Portugal de Salazar, descreve um país ancorado nos confins dos tempos e que permaneceu inalterado quase até aos nossos dias. Um crítico marxista falaria em luta de classes nesta história do engenheiro anónimo, oriundo de Lisboa, que se confronta com os códigos vigentes numa remota aldeia do interior. Na longa cena final, redigida quase com pulsão cinematográfica, de súbito "uma submissão milenária esmagou os dois irmãos" sedentos de vingança.
Mas esta é uma narrativa que não se deixa aprisionar por esquematismos de ordem estética ou ideológica: O Encontro merece lugar destacado em qualquer recolha dos melhores contos portugueses. E no entanto o autor, num prefácio escrito para a edição de 1976, quase pediu desculpa aos leitores pelo atrevimento: "Escrever contos foi-me sempre uma actividade marginal e eles relevam assim um pouco da desocupação e do ludismo." Não havia necessidade. O Vergílio Ferreira-contista nada fica a dever ao Vergílio Ferreira-romancista: em qualquer dos casos é sempre um vulto maior das nossas letras.

Grandes contos (7): José Cardoso Pires

Pedro Correia, 26.06.11
 
Estilista incomparável no romance, José Cardoso Pires foi também um excelente cultor da narrativa curta, atingindo a expressão máxima da sua arte de ficcionista num dos melhores volumes de contos de toda a literatura portuguesa: Jogos de Azar (1963). São oito histórias com raízes muito diferentes: umas tinham sido originalmente publicadas no livro de estreia do autor, O Caminheiro e Outros Contos (1949), de temática tradicional, embora inovadores e arrojados na escrita; outros constam da obra Histórias de Amor (1952), de cunho mais urbano e até político, que acabaria por ser apreendida pela PIDE. Exigente ao extremo, o autor viria a expurgar vários deles ao lançar esta colectânea. Foi mau juiz em causa própria, o que aliás é frequente em literatura.
Jogos de Azar é, na definição do escritor, um conjunto de "histórias de desocupados, de criaturas privadas de meios de realização", num país de horizontes estreitos e ansiedade à flor da pele, pastoreado por um ditador quase invísivel. Um país ainda acentuadamente rural e cheio de marcas campestres transplantadas para as malhas citadinas. É nesse terreno de inadaptados, verdadeiros apátridas, que circulam as personagens de um filme como Verdes Anos, de Paulo Rocha (estreado no mesmo ano de Jogos de Azar), e também as que José Cardoso Pires introduz nestes contos.
Um deles, o que me traz aqui, chama-se Week End: história de um amor fugaz que se dissolve na espuma dos dias, por imposição das circunstâncias. Uma história banal como as ondas do mar a rebentar na praia, mas também como elas de uma beleza indescritível. Cardoso Pires revigorou a técnica narrativa então vigente em Portugal, muito adjectivada e cheia de inúteis preciosismos literários, impondo um ritmo quase cinematográfico às suas histórias, assente num discurso directo credível por influência dos melhores autores americanos - Hemingway, desde logo.
É um estilo despojado, directo "ao osso" da intriga (para usar uma expressão a que JCP recorria com frequência), que nos apresenta as duas figuras centrais deste enredo: ele apaixonado e disponível, ela casada e incapaz de tornear o espartilho das convenções sociais. Despedem-se num quarto de hotel à beira da praia, numa tarde ardente de sol. Não podia ser mais acentuado o contraste entre a atmosfera exuberante de calor meteorológico e o gelo afectivo subitamente instalado naquele aposento, entre os "banhistas sentados na esplanada, perdidos no tempo", e os dois jovens desamparados que contam os minutos para o último capítulo de um romance chegado ao fim. "Nada disto faz sentido. O pior é estarmos cercados por coisas sem sentido e termos de aceitar o cerco", diz-lhe ela, resignada.
Nesta admirável teia de metáforas, oculta em diálogos só na aparência banais, o cerco expandia-se das paredes daquele quarto, atingindo a dimensão do País submerso na ditadura. Linhas paralelas de uma linguagem afinal só tornada eficaz pelo talento sem medida de um escritor como Cardoso Pires.

Grandes contos (6): Ernest Hemingway

Pedro Correia, 28.05.11
Existe algo a que possamos chamar o conto mais belo de sempre? Sim: é um texto que só nos fala de ilusões. Foi escrito por um americano apaixonado por Espanha e passa-se em Madrid, num dos anos mais funestos de que há memória. É um impressionante retrato de um país que não tardaria a mergulhar num dilacerante conflito cujo rasto perdura.
Falo de um conto intitulado A Capital do Mundo (ed. Livros do Brasil), que Ernest Hemingway publicou em Junho de 1936, já entre presságios da guerra civil. Toda a acção decorre no espaço fechado de uma pensão na calle San Jeronimo, perfeito microcosmos de uma Espanha em convulsão. O herói desta saga é um adolescente chamado Paco. Não poderia haver nome mais vulgar – e por isso mesmo tão simbólico. Este Paco, um miúdo órfão, veio da província em busca de um lugar ao sol na fervilhante Madrid da II República, efémera “capital do Mundo”. É na cozinha da pensão Luarca, entre panelas e pratos, que Paco dá largas à imaginação: sonha ser um toureiro, em traje de luces, aplaudido por milhares em delírio numa faiscante tarde de glória. O sonho de qualquer miúdo espanhol da época.
Os sonhos não tardaram a ruir. E nem era preciso sair da sala de refeições da pensão para perceber isso. Lá estavam dois padres galegos, pregando que “não se pode ir contra a autoridade” e ruminando contra Madrid, “que mata a Espanha”. Lá estava o empregado anarquista defendendo a vantagem de “matar cada touro e cada padre”. E lá surgiam três toureiros, ilusórios ídolos das massas: “um estava doente e tentava ocultá-lo, outro passara de moda e o terceiro era um cobarde”. Uma cornada “logo na sua primeira época de matador de cartaz” deixara-o incapaz de voltar a olhar um touro de frente. Era um drama íntimo, desconhecido das multidões – e tanto mais pungente quanto mais ele procurava disfarçá-lo naquela Espanha em que todas as aparências iludiam.
Paco bebia o ambiente circundante: “desejava ser um bom católico, um revolucionário e também gostaria de ser toureiro”. Se o destino o permitisse, haveria de conhecer tempos de triunfo, haveria de matar um miúra a las cinco en punto de la tarde.
Mas o destino não o permitiu: morreria tragicamente, naquele mesmo espaço fechado, naquela mesma noite, enquanto as irmãs mais velhas – também empregadas da pensão – viam uma decepcionante fita protagonizada por Greta Garbo num cinema da Gran Vía. Morreria com a graça e a dignidade de todos os heróis de Hemingway, personagens tocados pela tragédia. Não colhido por um touro, mas por uma traiçoeira faca de cozinha que lhe rasgou a artéria femural.
A “capital do mundo” dobrava a finados: faltava muito pouco para irromper a guerra, com o seu macabro cortejo de um milhão de vítimas. Mortes tão absurdas como a de Paco, que nunca conseguiu ser toureiro nem viu chegar a revolução libertadora que o seu colega anarquista profetizava. A Espanha moderna e cheia de luzes era afinal tão bárbara e ancestral como os espectros das telas de El Greco, era tão faminta de sangue como os grotescos vultos pintados por Goya.
Hemingway percebeu isso antes de qualquer outro nesta "exposição quase cervantina das falsas ilusões de quem vivia em Madrid durante a República", como anotou Edward Stanton – prova evidente de que os melhores escritores são também excelentes oráculos. Madrid, sim, capital do mundo. Mas de um mundo lunar onde os Pacos não viveriam para ver o raiar do sol. Um mundo povoado de sombras, prestes a desembocar num mar de cinzas. Fala-se agora tanto na necessidade de resgatar os fantasmas da guerra civil: releia-se este conto premonitório para se perceber melhor a génese desse imenso pesadelo.