Grandes contos (25): Jack London
Num mundo devastado por um vírus mortal, um dos raros sobreviventes percorre antigos espaços urbanos agora devorados pela natureza inclemente. É um velho de 87 anos que caminha na companhia de três netos, pastores de cabras. Todos em busca de alimento e refúgio, na cíclica luta pela sobrevivência a cada dia.
Ninguém diria, mas este ancião sujo e coberto de andrajos chegou a leccionar numa das mais prestigiadas universidades da Califórnia: era o professor James Howard Smith, docente de Literatura Inglesa. Antes da peste escarlate que irrompeu sem se saber como e foi liquidando quase toda a espécie humana.
«Foi no Verão de 2013 que veio a pandemia. Eu tinha 27 anos e lembro-me bem», começa por recordar o velho quando pararam para comer qualquer coisa. Os miúdos mal entendem o que diz: o avô usa termos obsoletos. Nasceram numa era pós-civilizacional, em que os livros se perderam e grande parte das palavras se extinguiram com eles. A comunicação é feita por gestos, grunhidos e um vocabulário cada vez mais estreito. Todos os substantivos abstractos deixaram de fazer sentido. As crianças são incapazes de perceber o significado da palavra milhão, por exemplo.
O surto epidémico começou em Nova Iorque, à época com 17 milhões de habitantes, tendo rapidamente alastrado a Chicago e outras grandes cidades americanas. Na Europa, Londres foi das primeiras a ser atingidas pelo misteriosa erupção escarlate que se espalhava como fogo no rosto e no corpo dos flagelados: eles permaneciam conscientes «até ao momento em que o coração esmorecia e parava», horas depois.
«O problema era a surpreendente rapidez com que esse micróbio destruía as pessoas e o facto de matar fatalmente qualquer corpo humano em que entrasse», ia relatando o velho perante a incompreensão dos netos.
Por capricho do destino, Smith estava condenado à sobrevivência: era naturalmente imune ao vírus. Foi talvez uma pena mais insuportável do que a morte: viu ruir tudo à sua volta. «Com a chegada da Morte Escarlate, o mundo desabou, absoluta e irremediavelmente. Dez mil anos de cultura e civilização esvaíram-se num instante, desfizeram-se como espuma» (recorro à tradução de Ana Barradas na mais recente versão portuguesa, com chancela editorial da Antígona, 2021).
Longo conto integrado no género de ficção futurista que Jack London (1876-1916) cultivou com brilho, ou uma novela segundo um discutível critério de medição de caracteres tipográficos (neste caso, cerca de 20 mil palavras), A Praga Escarlate, redigida em 1910, teve publicação inicial na revista britânica London Magazine dois anos depois, surgindo em livro só em 1915.
É uma arrepiante distopia que nos interpela sobre a fragilidade da condição humana, perdida nos labirintos da justiça metafísica. O idoso professor Smith testemunhou o carácter ilusório daquilo que tomamos como definitivo. No seu longo monólogo cujo significado as crianças mal entendem, lamenta o desaparecimento de antigos objectos de uso quotidiano, como fósforos ou sabão. A área outrora povoada de gente bem alimentada e bem vestida tornou-se domínio de lobos e ursos. «A vegetação selvagem sufocou e destruiu praticamente toda a vegetação domesticada.» Os escassos humanos vivem em contínuo sobressalto face à inclemência da natureza e agrupam-se em tribos onde impera o domínio do mais forte.
Depois do apocalipse, James Howard Smith viveu três anos em solidão absoluta. Um dia, não suportou mais aquilo: «Senti que estava a enlouquecer. Como os cães, eu era um animal social e precisava da minha espécie. Concluí que, assim como sobrevivi à peste, havia a possibilidade de muitas pessoas terem sobrevivido.» Encontrou-as junto a um lago, não muito longe da extinta área metropolitana de Oakland.
A sociedade regredira ao núcleo original: fora capaz de superar incontáveis obstáculos mas sucumbira perante um micro-organismo.
«O grande mundo que conheci na minha infância e juventude desapareceu. Deixou de existir. Sou o último homem que estava vivo nos dias da peste e que conheceu as maravilhas daquela época longínqua. Nós, que dominámos o planeta - terra, mar e céu - e que éramos como deuses, agora vivemos na selvajaria primitiva, nas margens dos cursos de água desta região da Califórnia», lamenta James Howard Smith nestes seus dias crepusculares.
Quando ele desaparecer, extingue-se o último vestígio do ser civilizado - aquele que sabia neutralizar relâmpagos, domar tempestades e manipular o vapor, tornando-o «mais forte do que dez mil homens».
Impressionante, a lucidez de Jack London: 2013 já passou, mas vivemos há um ano num mundo de pernas para o ar, também subitamente flagelado pela pandemia, como o que ele antecipou com a sua sensibilidade de escritor atento aos sinais dos tempos e ao sinuoso devir da História. Sem ilusões quanto ao declínio e provável extinção das fortalezas físicas e dos baluartes morais que hoje nos parecem inexpugnáveis.
Há muito de kafkiano e de orwelliano nestas linhas escritas antes de Franz Kafka e de George Orwell. Lúcidas como poucas, tão arrebatadoras agora como quando foram lidas pela primeira vez. E, apesar de tudo, sem nunca estagnarem no cinismo ou desembocarem no desespero.
«Da boca destes garotos vem a sabedoria de todas as épocas. Uns lutarão, outros governarão, outros ainda rezarão; e todos os restantes vão labutar e sofrer ferimentos enquanto sobre os seus cadáveres sangrentos será criada de novo, e uma vez mais, a beleza surpreendente e o esplendor insuperável do estado civilizado», pensa o velho professor, contemplando os netos.
É talvez a sua última reflexão, muito em breve fechará os olhos naquele ano de 2073. Com a esperança de que a semente frutifique: algo do que lhes transmitiu pode traçar uma nova fronteira, assinalando o princípio do fim desses tempos de barbárie.
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Anteriores contos desta série:
O Suave Milagre, de Eça de Queiroz
A Fogueira, de Jack London
Missa do Galo, de Machado de Assis
Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros, de José Cardoso Pires
Circe, de Julio Cortázar