A Antígona e o covid
Antígona condenada à morte por Creon, Giuseppe Diotti
Há cerca de 2500 anos, Sófocles escreveu a Antígona.
Pelo que sei, esta foi apenas uma de sete outras representações teatrais que chegaram aos nossos dias. Muitas outras terão sido perdidas pela voracidade do esquecimento.
Esta obra relata a defesa apresentada por Antígona perante um coro de anciãos de Tebas, que representam a polis.
Depois de inúmeras maldições que lhe fulminaram a família, os seus irmãos, Etéocles e Polinices, combateram e morreram em lados opostos numa luta que levou o tirano Creonte ao poder.
O cadáver de Etéocles, por vontade do novo soberano, foi tratado de acordo com a justiça e a lei, sendo homenageado honrosamente e recolhido a um sepulcro.
Polinices, pelo contrário, seria deixado por enterrar. Seria um tesouro bem-vindo para as aves de rapina. Por ordens de Creonte os cidadãos ficaram impedidos de o lamentar e até o facto de o seu cadáver ter sido coberto com pó, fez o guarda que assegurava o cumprimento da sentença correr risco de vida .
A outra irmã deles, Ismena, teme a lei tirânica e tenta dissuadir Antígona dos seus planos.
Durante a representação diz Ismena:
- Sou incapaz de de actuar contra o poder da cidade.
E responde-lhe Antígona
- Eu por mim vou erguer um túmulo ao meu irmão tão querido.
- Ai desgraçada como temo por ti!
- Não temas por mim. Assegura a tua vida. (…) Mas deixa-me a mim e à minha loucura, a sofrer este mal terrível. Eu por mim, não creio que haja outro tão grande como morrer sem honra.
Não quero ser spoiler e não vou revelar o desenrolar do drama, até porque se trata de uma obra que se lê num dia. E merece ser lida.
Perante isto, perante a sabedoria dos clássicos, questiono-me sobre que causas na actualidade levariam um cidadão a ir contra a polis a ponto de arriscar a própria vida.
A tecnologia permitiu-nos alargar a duração da vida e a resposta ao “até quando vale a pena viver?” tem diversas formas. A polis vacila entre a defesa da eutanásia e a proibição do tabaco. No geral privilegia-se o prolongamento da vida, o que é um bom critério.
Mas questiono-me se, apenas porque é possível, é motivo suficiente para prolongar a vida?
A Covid trocou-nos a voltas em muitos detalhes do dia a dia e, entre outras coisas, colocou os anciãos da actualidade num isolamento que mais não é que um ensaio para o além.
As residências de idosos, especialmente neste tempo de pandemia, não são mais do que antecâmaras da casa velório.
Quantos dos nossos, que para lá estão emprateleirados, não trocavam três ou quatro meses mais de uma existência asséptica, com cortinas de acrílico, com cheiro a desinfectante e habitada por andróides de máscara e viseira, por uma dúzia de abraços sentidos, por um passeio à beira mar, por uma sardinhada ou uma matança do porco, a ouvir crianças aos gritos, com o sol a bater na testa, com os pássaros a cantar, com vinho tinto entornado na toalha da mesa, com uns bafos de cachimbo e, no final, com o esterno enxaguado por uma aguardente velha?
Já nem é de honra que falo, mas apenas de propósito.
PS:
O coro de anciãos de Tebas, do além, deixou um recado para os animalistas:
- Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem.