Não vai nem racha*
Diz-se que a fragmentação política implica a recomendação para entendimentos que os eleitorados, na sua superior sapiência, fazem; e que na Europa são cada vez mais os governos de coligação.
Cada caso é um caso mas se a tendência é generalizada (naqueles países em que os sistemas eleitorais não são da variedade que afunila os resultados por as circunscrições serem do tipo quem ganha ganha tudo, como no Reino Unido, ou outra combinação que remeta partidos pequenos para as franjas da opinião) isso carece de interpretação. A qual consiste num crescente mal-estar num continente a envelhecer, invadido por hordas de jovens e famílias que vão constituir guetos por vezes de difícil, ou impossível, integração, com o pano de fundo difuso de a Ásia e os EUA (estes desmentindo a decadência que vozes sábias periodicamente lhes anunciam) a crescerem como há muito por cá não se vê e a ameaça, para a qual a UE não está (nem poderia estar) preparada, mas os países que a constituem também não, viciados no tradicional chapéu americano da OTAN, de uma guerra generalizada.
Chegam também modas de pensamento, quase todas sob a égide do pujante marxismo do séc. XXI: onde dantes havia o proletariado explorado há agora uma minoria qualquer (ou maioria, se forem mulheres) alegadamente oprimida cuja vanguarda mora nas universidades e nos partidos da extrema-esquerda, a qual se veio associar, e em parte substituir, à tradicional.
Sucede que o caso português tem, como não podia deixar de ser, particularidades: a Europa em retrocesso relativo no plano mundial é o Eldorado dos empregos bem remunerados que cá não há; os que se criam, sobretudo na estância turística que hoje o país é, são crescentemente preenchidos por imigrantes com menos formação do que os emigrantes; e uma grande fatia do eleitorado é hoje uma massa de velhos sentados à mesa da Segurança Social para a sua sobrevivência, enquanto jogam sueca no café, ou no jardim quando o tempo está bom.
Este é o resultado de mais de 20 anos de doutrina socialista, em que pese o PSD ter tibiamente, quando a oportunidade surgiu, tentado reverter o processo. Que processo é esse? O da dependência da esmola europeia para um módico de investimento e funcionamento de uma administração aliás pletórica; a cativação para a dependência do Estado de uma mole de eleitores; uma comunicação social falida repetindo os puídos motes da gesta de Abril como se esta, depois de um parto difícil, pudesse dar por si, além da democracia razoavelmente consolidada, desenvolvimento; e uma classe política cansada repetindo o mesmo jogo, que é o único que o eleitorado consente, com novos actores porque os outros se reformaram, foram reformados ou morreram.
O problema de atraso relativo que nos acompanha há mais de 200 anos (e que foi interrompido durante o Estado Novo, sobretudo na sua última década, mas cujo preço alto, sob a forma de autoritarismo e atropelo de direitos, é hoje impensável) não está em vias de solução prospectiva; e a propaganda da magra convergência com a média europeia resulta apenas das dificuldades da RFA e da Itália, que puxam a média para baixo.
Tudo isto, e mais, é sabido. A AD ganhou as eleições porque, sem ofender nenhum benefício dos que o Estado outorga a quem outorga (pelo contrário, prometendo reforçá-los modestamente) pareceu mais capaz de oferecer algum crescimento e a eficácia dos SNS e outros serviços na qual o PS, para lá da barragem da sua eficaz propaganda, falhou. O PS perdeu porque não se pode enganar toda a gente o tempo todo; e aquela vitória da AD, por previsivelmente exígua, criou um problema inteiramente novo, que é o da ingovernabilidade.
Disse antes das eleições, aqui e aqui, que as linhas vermelhas em torno do Chega eram um erro estratégico; e, depois das eleições, que com o PS não se podem fazer as reformas que este nunca fez, nem sabe ou quer fazer.
Sucede que no tempo já decorrido o Chega, livre de peias, tem asneirado com abundância: a acusação de traição à Pátria contra Marcelo, além de uma aberração jurídica (o Presidente é apenas réu do crime de querer agradar a qualquer plateia que tenha pela frente e ser um depositário acrítico, como sempre foi, de patetices que imagine consensuais), é uma oportunista confusão entre assuntos de natureza política e criminal; a aliança com o PS na abolição de portagens nas SCUTs é, objectivamente, uma participação num conluio perigoso para pendurar ao pescoço da AD a derrapagem nas contas públicas; e a inacreditável entrevista do putativo conspiracionista e anti-Judeu cabeça de lista às Europeias, o embaixador Tânger Correia, é uma ilustração penosa da falta de quadros do partido. É certo que aquele tentou, e em parte conseguiu, em nova entrevista, desta vez à TVI, corrigir o tiro. E no debate de quarta-feira passada na RTP3 pareceu um modelo de sensatez e equilíbrio. Mas no resto da mesa estavam Paupério e Fidalgo, respectivamente do Livre e do PAN, que têm opiniões com acne e toilettes retóricas de arco-íris; e Catarina Martins, mais polida nos delírios sobre uma Europa na versão do capitalismo anticapitalista que o BE defende, e que todavia não conseguiu (nem sequer se esforçou) disfarçar o genuíno ódio que nutre pelo que considera ser o partido que o promove contra os imigrantes.
Se acordos discretos com o Chega já eram difíceis agora ficaram-no mais. De modo que de reformas (as quais, por definição, desagradam sempre a uma parte do eleitorado) estamos conversados. Resta esperar que o Governo não caia na esparrela de ficar mal na fotografia da comparação com o PS, que com algumas moscambilhas de permeio, as cativações à sorrelfa e a ajuda da inflação, se apresentou como o campeão da redução da dívida pública. E se o preço dessa defesa de um módico de racionalidade tiver de ser entregar as chaves de S. Bento a Belém, que Montenegro não hesite, informando o senhor Presidente: Não fui eleito para desgovernar.