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Temos o privilégio masoquista, que nos dão as redes quase instantaneamente, de assistir a execuções extrajudiciais.
Não a todas, claro, nem sequer à maior parte. Apenas àquelas que são praticadas em sociedades democráticas onde o uso de telemóveis para esse efeito não acarrete riscos sérios para os cineastas amadores, ou onde sejam os próprios justiceiros fardados obrigados a filmar os seus actos, como sucede em alguns estados (ou apenas condados? Não apurei) americanos.
Os States estão a ferro e fogo por causa desta última e, como de costume, proliferam as análises profundas, quase sempre nem tanto, a elaboração de receitas para os males americanos, feita por locais e estrangeiros, e o atrelar pornográfico da indústria de causas a esta desgraça que deveria envergonhar a land of the free, home of the brave – e de facto envergonha um número crescente, que se traduz no gigantismo da parte não-violenta das manifestações.
Não vou resolver o problema da violência americana (das armas, do crime, dos gangs, das minorias violentas e segregadas, das instituições penais, seja a legislação, os tribunais, as polícias ou as prisões) porque não sei. E isso não constitui qualquer embaraço porque o problema é de tal modo complexo que não terá solução para o mês que vem, ou na próxima presidência, e certamente não a teve até agora.
A reivindicação simplista da proibição do porte de armas choca com a cultura americana, com a Constituição (numa leitura discutível, mas em boa parte inútil porque a questão não é de hermenêutica jurídica) e com a tradição do crime com arma de fogo, das quais há incontáveis milhões, o que implica, no caso de proibição, facilitar a vida a criminosos e dificultá-la a quem se quer defender.
Os gangs e as minorias (com excepção da negra, que é um caso à parte) resultam de ser a América uma terra de atracção, e ter desde sempre permitido o maior grau de liberdade cultural e religiosa das suas comunidades, com o único cimento da igualdade dos cidadãos perante a lei, a língua inglesa (esta a abrir brechas) e um patriotismo de adopção fundado na excepcionalidade americana e na consciência de um destino comum. A liberdade de ser diferente, que está na génese da América, está também na génese de um apartheid soft de culturas paralelas, unidas pela Coca-cola, as calças de ganga e a falta de maneiras à mesa, porque o país foi feito com o lúmpen de outros.
O caso dos negros é bem mais complicado por a comunidade descender de escravos e ter um longo e doloroso percurso, bem conhecido, até atingir, apenas nos anos 60, a igualdade perante a lei em todo o território, mesmo assim perdurando um rasto de desvalia factual que as políticas ingénuas de discriminação positiva, criando privilégios que despertam ressentimentos em outras comunidades, e alimentando sentimentos de entitlement na negra, muito pouco têm feito para diminuir. A isto acresce a desestruturação das famílias, os bairros problemáticos onde reina a violência, o tráfico de droga e crimes sortidos, o ensino medíocre para alunos que veem na rua o futuro que não está na escola, e uma litania de vários problemas, mais intratáveis uns que outros
A esquerda, lá como cá, costuma arrumar o problema da criminalidade debaixo da epígrafe “desigualdade”. Com razão: numa sociedade igualitarista há menos progresso material, e polícia mais eficiente porque ainda não se inventaram sociedades igualitaristas sem reforço dos poderes do Estado, e eliminação dos cidadãos. O mesmo poder que serve para destruir as oposições, estrangular a iniciativa e reprimir os que querem cometer o crime de enriquecer serve para controlar os outros. A América não tem porém essa tradição, e foi aliás por não a ter, para além de razões geo-estratégicas, que se tornou numa super-potência, dada a prodigiosa vitalidade do seu aparelho produtivo.
Não tem essa tradição mas tem outras, por exemplo a de eleger magistrados (que não sejam federais) e certos polícias (os xerifes dos saudosos westerns). E isto significa que uns e outros têm um altíssimo grau de dependência em relação à opinião pública, que se comunica aliás ao resto da estrutura policial e judiciária, mesma a nomeada, com excepção talvez dos juízes do Supremo, que o são vitaliciamente. Este sistema tem vantagens mas, no plano criminal, está longe de demonstrado que as concepções populares de justiça sejam… justas. O medo aos criminosos, a ira popular e o simplismo das reacções criam o caldo de cultura para a violência do Código Penal, a desumanidade das cadeias, a negociação de penas contra confissões, na prática extorquidas para o acusador público mostrar serviço ao eleitor, e o reforço dos poderes das polícias, que conseguiram ser legalmente inimputáveis.
Na realidade, pode-se dizer com boas razões que a América tem um sistema penal bárbaro (coisa que os americanistas, que são legião, aliás negam) porque são uma sociedade violenta, ou que o sistema penal contribui (é a minha posição, mas não sou americanista nem sofro de outras doenças infecto-contagiosas) para essa violência.
O que não se deveria dizer é que o assassinato de George Floyd foi necessariamente um acto de racismo porque o crime foi presenciado por outros agentes, dos quais pelo menos dois são de ascendência não-wasp; porque a percentagem de negros que morre às mãos da polícia é maior do que a de brancos, mas o polícia que aborda um negro sabe que a probabilidade de este ser um criminoso é muito maior do que se for um branco; e, sobretudo, porque a alegação de racismo só envenena as coisas: as polícias precisam de ter códigos de conduta que incluam sanções severas por ofensa de direitos de cidadania, que são iguais para todos. Sanções agravadas porque o polícia deve ter especiais obrigações, dado o poder de que dispõe, não especiais direitos. Protegido o indivíduo nos seus direitos, está protegida a comunidade a que pertence – o que carece de sanção são actos ilícitos, não a imaginada ou real motivação.
Finalmente: a escumalha infecta que se associou às manifestações para destruir propriedade, assaltar estabelecimentos e causar confrontos deu uma grande ajuda a Trump, que sabe perfeitamente que o grosso do eleitorado, que está em casa, não aprecia motins. Semelhante facto não me incomoda, mas infirma a tese, corrente entre nós nos meios de gente aguda, de que a direita é estúpida. A de Ventura será sem dúvida primária, por muito sucesso que se lhe atribua (o homem ainda hoje se aliviou de sabão macaco opinativo, a benefício de cowboys justicialistas) mas a esquerdista Antifa, entre nós representada pelos dementes do Bloco, é, além de estúpida, criminosa: gente que coonesta a ideia de que há boas razões para pilhagens e incêndio de casas e automóveis, em nome de uma sociedade alternativa mal explicada, não merece figurar no perímetro da respeitabilidade.
That’s all folks.
A propósito do texto desta tarde da Maria Dulce Fernandes. Muito poderia ser dito sobre descrever-se motins violentos como terrorismo, mas deixarei de lado essa divagação. Do texto ficou-me sobretudo uma das últimas frases; julgo que não terá sido exactamente isto que a Maria Dulce queria dizer, mas acabou por ser isto que disse:
Não é possível apagar um crime hediondo praticando milhares de outros que tais, igualmente injustificáveis e desprezíveis.
Não é, de facto. Mas motins violentos e homicídio - George Floyd não foi vítima de outra coisa - não são igualmente injustificáveis e desprezíveis. Nunca serão.
Protestos pacíficos são muito bonitos e dão fotos catitas para as redes sociais, mas o mundo não muda com toda a gente a dar as mãos e a cantar a Imagine. Protestos pacíficos são, na verdade, uma forma muito eficaz de aparentar movimento sem sair do mesmo sítio, de mostrar apoio a uma causa sem grande convicção e, sobretudo, sem grande compromisso. Sem grande sacrifício. Marcha-se um bocadinho, sorri-se para as câmaras, proferem-se palavras de ordem estridentes e vazias, manifestam-se as melhores intenções do mundo - e, no final, vai cada manifestante à sua vidinha, e o mundo continua a rodar no mesmo sentido. Quem estava bem, continua bem; quem estava assim-assim continuará assim-assim; e quem estava mal, continuará mal.
Toda a gente sabe, afinal, que lugar está cheio de boas intenções.
(Por cá orgulhamo-nos de ter feito uma revolução sem derramar sangue. Esquecemo-nos - fingimos esquecer-nos, não dá muito jeito - é dos quase cinquenta anos de ditadura que aguentámos enquanto povo, mansamente, encolhendo os ombros, incapazes de partir a loiça. Bem vistas as coisas, não foi grande coisa a nossa revolta contra a tirania; salvo raríssimas excepções, limitámo-nos a esperar que o regime caísse de podre. Como teria de cair, inevitavelmente. Calhou terem sido quase cinco décadas; podiam ter sido seis ou sete.)
Mas divago. Colin Kaepernick protestou pacificamente contra a discriminação racial e a brutalidade policial nos EUA. Serviu de muito.
As imagens de violência que chegam das cidades norte-americanas são chocantes, de facto, e a sua fúria esconderá imensas injustiças e inúmeros aproveitamentos de uma indignação mais do que legítima. Mas de todas as imagens que vi até agora dos motins e da destruição causada impressiona sequer uma fracção do que choca o vídeo da morte de George Floyd, esmagado pelo joelho de um polícia e pela indiferença de outros dois ou três. Não houve ali a mais remota tentativa de "proteger e servir", como não houve qualquer esforço de praticar algo que se aproximasse de qualquer ideal de Justiça, por mais imperfeito que esse ideal pudesse ser. Houve, sim, um homicídio. Mais um.
Talvez os protextos violentos não mudem nada, mas desta vez ninguém poderá dizer que não ouviu.
Sobre este tema, e fazendo a ligação a um outro caso muito recente que, apesar de chocante e sintomático, felizmente não acabou com ninguém morto, recomendo as palavras de Trevor Noah.