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Delito de Opinião

Êxodos, massacres, genocídios e omissões

Pedro Correia, 26.10.23

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Crianças arménias refugiadas em 1915: o primeiro genocídio documentado do século XX

 

Também em matéria de "catástrofes humanitárias" (como agora tantos dizem, numa tradução imbecil do 'amaricano') há umas mais iguais do que outras.

A Arménia, lá nos confins do Cáucaso, sem jornalismo nem "activismo" nas redondezas, pode ser chutada para o rodapé pelo supremo responsável da segurança global (atenção: as cinco anteriores palavras são em registo irónico).

 

Convém nunca esquecer que os arménios sofreram o primeiro genocídio documentado dos tempos modernos. Há pouco mais de cem anos, cerca de milhão e meio foram massacrados pelo já decadente Império Otomano, avô da Turquia actual - incluindo deportações e assassínios em massa.

Seguiu-se o tenebroso Holodomor - a condenação de um povo inteiro à morte pela fome. Neste caso ucranianos, submetidos à mais cruel pena capital colectiva pela URSS de Estaline em 1932/1933.

 

Massacres étnicos originaram também grandes êxodos - de dezenas de milhões de pessoas. É outro dramático legado do século XX.

Entre 1944 e 1949, 1,7 milhões foram expulsos da Polónia para a Ucrânia - e vice-versa.

Após 1945, cerca de 8 milhões de alemães foram evacuados dos chamados "territórios de Leste" para o perímetro da actual fronteira alemã - e, depois, muitos fugiram da RDA para Ocidente.

O desmembramento do Hindustão britânico originou entre 1947 e 1951 o êxodo cruzado de 15 milhões de pessoas da União Indiana para o Paquistão - e vice-versa. Nessa traumática jornada entre fronteiras recém-estabelecidas, terão morrido cerca de dois milhões de pessoas.

O genocídio ocorrido no Camboja submetido ao domínio totalitário comunista de Pol Pot, entre 1975 e 1979, custou pelo menos dois milhões de vidas humanas.

A disputa pelo enclave que acaba agora de mudar de mãos no Cáucaso originou em 1994 a deslocação forçada de cerca de 400 mil arménios e de mais de um milhão de azeris.

Menos expressivo, mas não menos doloroso, foi o êxodo ocorrido em Chipre na sequência do golpe ilegal ali protagonizado pela Turquia em 1974 que dividiu a ilha até hoje: 200 mil gregos e 60 mil turcos desalojados.

Viria a acontecer, em escala maior, nas guerras dos Balcãs da década de 90 - ainda cheia de chagas por cicatrizar.

E no Ruanda, na sanguinária guerra civil de 1994: cerca de um milhão de mortos em apenas três meses apenas por pertencerem à "etnia errada" (tútsis, sobretudo).

Sem esquecer a guerra no Sudão, culminada na "limpeza" étnica no Darfur, em 2003: pelo menos 2 milhões de mortos e 6 milhões de refugiados nos vinte anos seguintes. Primeiro genocídio documentado deste já tão triste século XXI.

 

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Guterres na fronteira entre Gaza e o Egipto (20 de Outubro)

 

Existirá, nos casos de grandes êxodos, uma figura da justiça internacional denominada "direito ao regresso" dos desalojados, apenas invocada no caso da Palestina?

Fica à consideração dos especialistas.

Ao secretário-geral da ONU nem é preciso perguntar: dirá logo que sim. Num reflexo condicionado semelhante ao que no passado dia 20 o levou a mostrar-se aos repórteres do lado da fronteira egípcia com Gaza numa arenga cheia de bonitas frases humanitárias que esqueceram os mais de 200 reféns israelitas e de outras nacionalidades levados à força pelo Hamas, em circunstâncias bárbaras.

Também se peca por omissão. Eis um destes casos.

Ruanda

jpt, 08.04.19

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25 anos sobre o cume da eficácia genocida, no Ruanda. Para se compreender o acontecido - e muito mais relevante do que as súmulas de jornais - deixo aqui um texto (20 páginas) do meu amigo (e colega), e ex-co-bloguista, Fernando Florêncio, professor em Coimbra. O qual, logo após a hecatombe, esteve dois anos no país (1994-1996) a chefiar uma missão internacional. Homem discreto, pois muito mais teve para contar, mas reteve-o, decerto que por demais doloroso para ser passado à escrita. Mas narrava-o nos nossos almoços e jantares, quando nos cruzávamos em Lisboa. E bem lembro o que avançava sobre a emergente guerra no então Zaire, muito efeito da crise ruandesa, coisas que o poder político-diplomático luso, sempre tão lânguido, não tinha interesse em ouvir (e chega este tipo de diplomata a embaixador e ministro ..., gente impávida na sua extrema mediocridade). Tão discreto que googlo agora sobre se algum órgão de comunicação social o contactou mas nada, preferirão os habituais tudólogos, profissionais de painéis.

Do acontecido lembro o "frisson" com que se recebiam as notícias, estava então na missão eleitoral na África do Sul. Era imensa a festiva expectativa com a chegada ao poder de Mandela (nesse mesmo Abril de 94). Mas também o receio que a situação descambasse num conflito, na confluência de revanchismos. O Ruanda era um horror mas também um pesadelo, a aterrorizar o futuro.

Para a actualidade retiro duas coisas: a peçonha de haver investigadores portugueses pagos pelo Estado, e estabelecidos em instituições públicas, que publicam textos (no "referencial" Público) afimando que "só há racismo dos brancos, os negros quanto muito poderão ter preconceitos". A sujeição prostituta de alguns "cientistas" sociais à agenda do BE serve para tudo.

E recordo também tempos de meados de 2000s, quando tive alguns alunos ruandeses, normalmente cursando a licenciatura de ensino de francês. Refugiados, vindos do campo de Bobole (ainda não tinha havido a concentração em Nampula). Homens já crescidos, no dealbar dos 30s. E recordo da minha disciplina, de nunca lhes perguntar - em particular a um, mais habitual visita do meu gabinete, interessado em temáticas mais socioantropológicas - qual a respectiva origem. Não querendo assim entreabrir a porta do Horror. Não querendo saber o passado desses seus agentes ... E é importante lembrar isso neste tempo de burguesotes sacralizando "refugiados". Pois a realidade não cabe toda na rua da Rosa, 1985.

Ainda a bestialidade.

Luís M. Jorge, 06.12.11