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Delito de Opinião

“Genética maravilhosa”?

Cristina Torrão, 17.08.24

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No início de Agosto, Mariana Patrocínio publicou, na sua conta do Instagram, esta fotografia com sua mãe e quatro das suas irmãs. Uma seguidora comentou “genética maravilhosa”. E eu atrevo-me a discordar. Melhor falando, penso que a genética apenas contribui com 20% a 30% para resultados destes. O resto é berço e disciplina nas práticas alimentares e de exercício. No caso desta família, o berço inclui aliás dinheiro q.b. para gastar em ginásios e institutos de beleza. Não menciono, porém, a questão monetária com cinismo. Quem nasce em ambiente propício, faz muito bem em aproveitá-lo. Eu faria o mesmo. Berço, no entanto, é bem mais do que notas e cartões de crédito.

O cerne da questão é a genética estar muito sobrevalorizada. A silhueta das beldades da foto está ao alcance da maioria das mulheres. Para adquirir boas práticas de alimentação e exercício físico, o berço pode ser de classe média, ou até pobre. Mas cumpre um papel importantíssimo. Alcançar, na idade adulta, figuras deste tipo, é quase impossível para quem cresceu num ambiente de obesidades e más práticas alimentares.

Muita gente não acredita, mas criar crianças obesas é estragar-lhes o futuro. E uma família não precisa de ser rica para comer com discernimento e incentivar a actividade física. Uma alimentação equilibrada também não significa dietas, não há alimentos proibidos. Mas é preciso saber quando comer o quê e em que quantidades. Talvez seja bom acabar com o hábito de dizer às crianças “come lá mais uma fatia de bolo” ou “então não acabas a carninha”, quando elas dão sinais de já estarem satisfeitas. Parece que não, mas é muito importante aprender a interpretar os sinais do corpo. Muitas vezes, continuamos a comer, apesar de já estarmos cheios até à goela.

Actividade física também não implica ginásios caros, podem-se inscrever as crianças num clube desportivo acessível à família, seja de futebol, voleibol e outros “ois”, ginástica, natação, patinagem, dança, skate, ciclismo, etc. Mas é igualmente importantíssimo dar o exemplo em casa, fazendo, quanto mais não seja, caminhadas regulares com os pimpolhos. Pode-se aproveitar o caminho para a escola, ou mesmo a ida ao café. Se o café for perto é até aconselhável fazer um desvio generoso. E quem alegue não ter tempo para passeios durante a semana, pode fazê-los ao fim-de-semana. Uma hora de caminhada faz milagres em todos, pais e filhos. E, quem chega a adulto habituado a estas andanças, normalmente, continua a praticá-las.

A genética está igualmente sobrevalorizada noutros campos, como o artístico, ou o intelectual. O ambiente e os hábitos conhecidos desde o berço são muito mais importantes. Filhos de escritores habituam-se, desde sempre, a hábitos e conversas de e sobre os livros e escrita, incluindo as visitas e amigos dos pais. Filhas de actrizes crescem no meio dos cenários, das câmaras, dos holofotes, dos gritos de “acção”, do decorar dos papéis e também os frequentadores da casa familiar pertencem maioritariamente a este meio. O mesmo acontece com músicos, cantoras, pintores, cientistas, jornalistas, etc. Porém, mesmo quem não pertença a mundos destes, pode transmitir aos filhos o interesse pela cultura, interessando-se ele próprio. Quem não é incentivado, na infância, também pode lá chegar, mas é bastante raro.

Por isso, quando se quer elogiar uma pessoa elegante, considero mais adequado dizer “bons hábitos” do que “bons genes”. Também é mais lisonjeador, pois, na verdade, em nada contribuímos para ter os genes que temos. Já elogiar-nos os hábitos é elogiar o que é da nossa responsabilidade.

Não estou a dizer que a genética não contribui. O mais importante, contudo, é como aprendemos a estar no mundo. E, na infância, vemos o mundo através dos olhos dos nossos pais.

A espada de D. Dinis, Alcanices e os meus antepassados espanhóis

Cristina Torrão, 30.10.22

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A recuperação da espada funerária de D. Dinis, em sequência do restauro do seu túmulo, é uma sensação arqueológica mundial. Escolhi, de propósito, uma imagem com legenda em inglês, de uma página do Facebook intitulada Swordmaker, a fim de mostrar o quanto este achado já agitou a comunidade internacional, tanto de profissionais, como de entusiastas e amantes da época medieval. É uma espada lindíssima, que será restaurada e dará informações preciosas sobre a arte e a estética medievais ibéricas, mas também sobre a sua relação com as restantes tendências europeias.

Com a abertura do túmulo, recuperaram-se, igualmente, restos mortais, nomeadamente, o crânio, possibilitando uma reconstituição do rosto de D. Dinis (algo que aguardo com grande expectativa), assim como os tecidos das suas vestes. Ainda há muito para descobrir sobre a Idade Média. Em muitos campos, como o do vestuário, continua a trabalhar-se com hipóteses ou probabilidades (não exclusivamente).

D. Dinis é conhecido por ter sido poeta/trovador, fundado a Universidade e incrementado a agricultura, mas os seus quarenta e seis anos de reinado (1279-1325) tiveram bem maior significado. O cognome Lavrador não lhe faz justiça. Além da agricultura, ele incrementou a pesca e o comércio. Além disso, incentivou a substituição do latim pelo português nos documentos oficiais (dando um grande contributo para a uniformização da nossa língua), reformou quase todos os castelos e foi um diplomata de excepção (importantíssimo para a estabilidade do reino castelhano, à época, cheio de convulsões internas). O seu reinado teve, porém, facetas amargas, como o conflito armado com o irmão Afonso e os desentendimentos com o seu próprio herdeiro, futuro D. Afonso IV, que mergulharam o reino numa guerra civil e terão inclusive tirado anos de vida ao Rei Poeta.

Há ainda algo que raramente se refere, mas de uma importância extrema: D. Dinis foi o responsável pelas fronteiras definitivas de Portugal, ao incluir no reino, de forma pacífica, as localidades de Moura, Serpa, Noudar e Mourão, e alguns lugares de Ribacoa, como Castelo Rodrigo, Almeida e Sabugal. Foi este o resultado do Tratado de Alcanices (ou Alcañices), assinado a 12 de Setembro de 1297, entre D. Dinis e D. Fernando IV, sob a tutela de D. Maria de Molina, mãe do rei castelhano, que, à altura, tinha apenas onze anos.

Emociona-me que D. Dinis possa, sete séculos depois da sua morte, contribuir tanto para entendermos melhor a sua época. Ele tem sido uma presença recorrente na minha vida, ao longo da última década. Comecei por gozar da sua “companhia” nos dois anos passados em trabalhos de pesquisa e na escrita da sua biografia romanceada, hoje existente apenas numa reedição de autor (neste caso, de autora).

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Mas o meu elo de ligação ao Rei Lavrador passa também por Alcanices, uma ligação que não reside apenas no facto de já lá ter passado dezenas de vezes, nas minhas viagens entre a Alemanha e Portugal, pois entro pela fronteira de Quintanilha. Uma das minhas bisavós (avó paterna do meu pai), Maria de Jesús Rodriguez, era natural de Fonfría, uma localidade do concelho de Alcanices, por onde aliás também passo (não há auto-estrada entre Zamora e Quintanilha). Os pais e os avós de Maria de Jesús Rodriguez (meus tris- e tetravós) eram todos daquela zona. Além de Fonfría, registam-se outros lugares com nomes tão interessantes como Carvajales, Mancenal del Barco e Perrilla de Castro. Tudo isto eu apurei no Arquivo Distrital de Bragança, onde já passei horas e horas a consultar, transcrever e fotografar registos dos livros paroquiais antigos. Se quiser ir mais longe na árvore genealógica, terei, aliás, de ir ao Arquivo de Zamora.

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Esta zona espanhola (eu gosto de dizer leonesa), tão parecida com Trás-os-Montes, no seu isolamento e nas suas pequenas aldeias (algumas não chegam a atingir a centena de habitantes) tornou-se de grande importância para mim. Não passo lá uma única vez sem imaginar os meus antepassados nos seus trabalhos quotidianos e D. Dinis a assinar um dos tratados mais importantes da nossa História.

História viva

Cristina Torrão, 08.11.20

Museu Casa da Roda Torre de Moncorvo

Museu Casa da Roda, Torre de Moncorvo © 2016 Horst Neumann

 

Antigamente, os bebés abandonados eram denominados de expostos. Existiam casas da roda um pouco por todo o país. Na Lisboa queirosiana, o hospital dos expostos da Santa Casa da Misericórdia era o destino de cerca de trezentos e cinquenta bebés por ano. Estes são vários registos de baptismo dessas crianças. Concentremo-nos no primeiro, o Assento nº 4:

1890-01-08 Carlos da Graça e Santos PT-ADLSB-PRQ-

«No dia oito do mês de Janeiro do ano de mil oitocentos e noventa, pelas duas horas e meia da tarde, entrou para o Hospital dos expostos de Lisboa, uma criança do sexo masculino, nascida em vinte e três de Dezembro do ano próximo findo, trazendo o seguinte: camisa, fralda e envolvedouro de algodão, um cueiro de baetilha branca, um embrião (?) de chita de riscas amarelas e encarnadas com raminhos pretos, touca de malha de lã cor de rosa e branca e um xaile de algodão em xadrez preto e branco. Foi hoje solenemente baptizado com o nome de Carlos pelo Reverendo José António Conceição Vieira, tesoureiro da Igreja da Santa Casa da Misericórdia; sendo padrinho o moço de capela Manuel de Oliveira Nunes. E para constar, lavrei este assento, que assino com o referido padrinho.

Padre Leonardo Avelino Ribeiro

Manuel de Oliveira Nunes»

Na barra do lado direito, foi, mais tarde, acrescentado o seguinte:

«Este exposto casou com Ana de Jesus Coelho, no dia 03 de Novembro de 1909, como consta do ofício do Reverendo prior de Assentiz, de 20 do corrente. Lisboa, 23 de Novembro de 1909. O substituto do Padre ??? Padre Fonseca»

A noiva, Ana de Jesus Coelho, tinha dezanove anos e o exposto, que, no registo de casamento, surge com o nome de Carlos da Graça e Santos, também ainda não completara os vinte. Casaram na freguesia de Assentiz, concelho de Torres Novas, a terra-natal da noiva. Carlos e Ana tiveram nove filhos. A terceira dessas crianças foi baptizada com o nome de Deolinda e haveria de ser a minha avó materna.

É difícil de descrever a comoção sentida, quando finalmente encontrei o registo de baptismo do bisavô Carlos. Não fazia ideia de que ele tinha estado na Santa Casa. Na família, sempre se disse que era filho de um padre, mas falava-se na freguesia do Olival, concelho de Ourém, onde a minha avó e, penso, os seus irmãos nasceram. Também se diz que o padre vivia com uma irmã e uma prima, sendo esta a mãe do filho dele, mas as pessoas ainda vivas não sabem dizer nomes, ou outros pormenores. Ou não querem dizer.

Ao encontrar o registo, senti-me muito próxima deste bisavô, que nunca conheci. A descrição das roupinhas faz-me pensar que estava bem tratado. Pergunto-me, porém, como se sabia a data do seu nascimento. Noutros registos, referem-se certidões que os bebés traziam consigo, passadas nos hospitais onde nasciam; outros nada traziam e são baptizados, sem se referirem datas. No caso do meu bisavô, porém, há uma data de nascimento, sem se explicar de onde ela vem.

A pesquisa familiar é, para mim, fascinante, embora seja uma actividade que exige muito tempo, muita persistência e ânimo para ultrapassar desilusões de documentos perdidos, ou de perguntas por responder (além do esforço para decifrar estas escritas antigas). Ainda assim, em Portugal, a pesquisa está bastante simplificada. Na página https://tombo.pt/ tem-se gratuitamente acesso a muitos livros paroquiais digitalizados (e continuam a digitalizar-se os que faltam). É um excelente trabalho dos nossos arquivos, que me permite fazer esta pesquisa a 2.500 km do meu país, confortavelmente, em casa.

O meu lado materno é bastante variado, abrange V. N. de Gaia, Mealhada, Torres Novas e possivelmente Lisboa. Infelizmente, nunca vou ficar a saber onde nasceu o meu bisavô Carlos, nem quem eram os seus pais. Já o lado paterno é mais simples, pois quase toda a família é proveniente da freguesia transmontana do Lombo, concelho de Macedo de Cavaleiros. Numa certa linha, já cheguei ao século XVII, ao encontrar o registo de um casal que contraiu matrimónio a 14 de Abril de 1698, Miguel Moreno e Catarina Alves, meus oitavos avós.

 

1698-04-14 Casamento Miguel Moreno e Catarina Alve

 

Não ando à procura de antepassados nobres, que não os tive. Mas, por algum motivo, fascina-me saber quem eles eram e tento imaginar as suas vidas. Ao mesmo tempo, aprendo bastante sobre o Portugal de antigamente, pois, como diz o Professor Mattoso: «O passado dos homens não foi só a sua vida pública. Foi também o jogo ou a luta de cada dia e aquilo em que eles acreditaram».

Não obstante, também do lado do meu pai vão ficar questões por esclarecer. À parte um trisavô filho de pai incógnito (precisamente, o trisavô Torrão!), tive uma bisavó espanhola, natural da freguesia de Fonfria, concelho de Alcanices. Acontecia bastante famílias espanholas assentarem arraiais em aldeias transmontanas. Contudo, no reino de nuestros hermanos, parece não existir uma página que me permita consultar os livros paroquiais online. Teria de ir ao arquivo de Zamora e passar lá um dia, ou dias, inteiros, a consultar os calhamaços. Isto, claro, se conseguisse ler o castelhano de séculos passados…

Fico com pena de nunca ter conhecido o bisavô Carlos, que foi depositado, ainda tão frágil, no hospital dos expostos. Nem sequer tenho uma fotografia dele. Mas tenho da mulher com quem ele casou, que aliás me lembro de visitar, em Porto de Mós, onde ela faleceu em 1976, tinha eu quase onze anos.

 

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Bisavó Ana de Jesus Coelho, mãe da minha avó materna