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Delito de Opinião

O glutão

José Meireles Graça, 29.09.24

Como é que se topa um glutão à mesa? Explico:

A consulta da lista é momento de demorado exame, madura reflexão e eventual consulta ao empregado no caso de o prato ter, como às vezes tem, uma designação confidencial ou para especialistas (“bife à casa” – casa de quem?; perdiz à conventual – mas qual convento?).

Segue-se o problema do que os restantes comensais vão pedir. Porque a ideia de que cada qual encomende o que lhe apeteça é conceito que o glutão rejeita. Segundo o próprio porque assim se evitam erros, na realidade porque tem um medo pânico de que, chegado o conduto, conclua que afinal devia era ter encomendado o que vem para o vizinho.

Com frequência assume para si o papel de dirigente das operações, servindo de intermediário para o empregado. E como não toma nota de nada, antes vai memorizando o que cada um diz, que entremeia com comentários e sugestões, cantarola no final o resultado com defeitos, que os companheiros de mesa vão corrigindo com precipitação e surpresa, o destinatário da lista improvisada, estoico, tentando navegar na algaraviada e na confusão que se estabeleceram.

Admitindo que não haja enganos (e raramente há, uma singela homenagem a quem tem a obrigação de, com simpatia, perceber no nevoeiro das contraordens o que cada um quer) regressa-se ao convívio e, nesse intervalo, dir-se-ia que o glutão é uma pessoa normal.

O problema é quando chegam as travessas ou os pratos. Porque responde mecanicamente à pergunta que ficou em suspenso, ou titubeia distraidamente uns apostos ao que estava a dizer, os olhos brilhando de gula e seguindo com fixidez os maneios do empregado. Mandam as regras que se comece só quando toda a gente está servida. E o sacrifício nesse pequeno intervalo, se fosse dedicado à invocação de Nossa Senhora por quem o sofre, faria com que não poucos se safassem do Inferno indo parar ao Purgatório, onde parece que o passadio é melhor.

Só isto? Não. Gente ingénua suporá que a conversa gire durante algum tempo em torno do apuro ou mediocridade dos cozinhados. Que nada, isso é coisa para gente com moderado apetite. Quem o tem em abundância está ocupado a atochar-se e acha, mesmo que não o confesse, que quando é bom é muito bom e que quando é mau também é bom, de modo que contribui apenas com uns murmúrios para devaneios conversariais.

Provar dos pratos dos outros é coisa, se o ambiente não for demasiado formal e houver variedade, de rigueur. E o maduro que não quer provar nada e resiste a que lhe invadam o prato com um garfo intrometido passa por antipático.

A sobremesa encomendam as senhoras e os tíbios. Porque os glutões (não contemplei até agora a hipótese de haver mais do que um porque semelhante infelicidade, felizmente rara, complexifica excessivamente esta problemática) não querem sobremesa. Oficialmente. Porque depois provam de tudo, só para ver se está bom, momento em que, devido às movimentações, algumas nódoas vão, se não aconteceu antes, ornar as camisas até aí irrepreensíveis. Medalhas, dirão com satisfação se interpelados.

A gula, pecado capital. O que me vale é que, não sofrendo de soberba, perdoo e a alguns até aprecio a companhia.  

No "Gambrinus" Conversando Sobre Livros

jpt, 18.07.24

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O dia fora péssimo, acometera-me uma irritação gigantesca - desnecessária de injusta que tanto a senti -, nisso um gigantesco pico de tensão, tamanho que  me ocorrera, ainda que militante anti-hipocondríaco seja, um "será isto um enfarte?". Mas bom amigo havia-me desafiado para ir petiscar jantar e não me neguei, num "navegar é preciso...", urge viver a vida, parca que esta seja, e sempre na crença de que o bom convívio é bálsamo.  E assim acorri ao "Gambrinus", o balcão lendário, no qual não aportava desde o covid, malvado.

Está o estabelecimento como sempre esteve, excelente! E nisso o que este - cada vez mais  frugal - cliente realça é a qualidade do serviço, a elegância sem mesuras, a atenção acolhedora, a boa educação para isso sumarizar. Cada vez mais rara na cidade, massificada e gentrificada, assim boçalizada. Fomos ambos parcimoniosos, ele bebendo cerveja de pressão mesclada, ali dita "mestiça" - "já não se pode dizer mulata, pá!", esclareceu-me, sábio [Adenda: de imediato recebo nota de um amigo, verdadeiro veterano e sábio: e diz-me ele, "não era nem mulata nem mestiça, era um "gambrinus"!!" Obrigado, Nuno, temos de lá ir "antes que a gente morra"]. E eu fiquei-me na clássica "loura", a qual também mudou de epíteto, é agora remediada como "branca", derivas até paradoxais da actual higiene semântica. Entretanto, ocorreram-nos umas importantes torradinhas debruadas a fino presunto, que por si só justificariam a visita. E cada um de nós enfrentou um trio de croquetes, esses ex-líbris da casa, deliciosos como sempre o foram, satisfazendo o agora também ao convocarem laivos de memórias de incursões no antanho, naqueles apetites juniores ali mesmo recompensados. Este decorrer exagerou-nos a gula, e por isso coroámos o repasto com um prego per capita, "meio-termo" como o deve ser, cuja definição apropriada me exigiria o socorro de um qualquer dicionário de adjectivos, dada a extrema compostura do que me foi apresentado.

 

 

Sujar as mãos e lavar a alma

Pedro Correia, 25.05.24

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É o melhor programa sobre gastronomia que tenho visto em televisão desde há muitos anos. Passa na SIC, às sextas-feiras, integrado no Jornal da Noite - seguindo a lógica corrente de integrar programas dentro do principal bloco informativo do dia, que padece de gigantismo incontrolável. Disso não tem culpa o Ricardo Dias Felner, autor deste espaço de divulgação que contrasta com as habituais rubricas sobre comidas, bebidas e dormidas - autênticas "publi-reportagens" camufladas de jornalismo a exaltar o magnífico e fenomenal e caríssimo hotel X ou restaurante Y, a preços obscenos para a carteira do cidadão comum.

Conheci o Ricardo das lides jornalísticas. Era um talentoso repórter político, com pena acutilante e óbvia qualidade de escrita. Estou à vontade para elogiá-lo, pois trabalhávamos em jornais concorrentes. Um dia ele cansou-se do jornalismo político - ou talvez essa incómoda modalidade de jornalismo se tenha cansado dele - e decidiu especializar-se em gastronomia. Mas não toca de ouvido, como aqueles que peroram sobre culinária sem saber estrelar um ovo. 

É preciso conhecer bem aquilo de que se fala para fazer um programa exigente como este seu O Homem que Comia Tudo. Fala-nos de uma Lisboa ainda oculta aos olhos de quase todos nós. A Lisboa globalista que atrai gente de todas as parcelas do planeta e as integra numa amálgama caótica mas harmoniosa. A velha capital portuguesa enriquece com estes novos contributos. Também no paladar. E é isto que o Ricardo partilha, com a abertura de espírito inscrita no próprio título do programa. Sem dogmas culinários, sem tabus, sem preconceitos. 

Vale a pena ir com ele a estes restaurantes fora dos circuitos em voga. Podem ser simples tascos onde é garantido que se come bem - até sem necessidade de talheres. Comida diferente, sim, mas sempre recomendável. Do Brasil, de Cabo Verde, de Angola, de Moçambique, da China, do Japão, do Nepal, de Goa. Muitas vezes comida crioula, arraçada, com aquele toque de mestiçagem herdado dos descobrimentos portugueses, notáveis também por isto: levaram sabores daqui, a bordo de cascas de noz, e trouxeram sabores de lá. Sendo  quase o mundo inteiro.

«Comida de festa, para sujar as mãos e lavar a alma.» Eis uma das definições do Ricardo, neste caso em louvor da comida mexicana - ela igualmente já com redutos gastronómicos em Lisboa que funcionam como genuínas legações diplomáticas. Porque nada aproxima tanto os povos como aquilo que comemos.

Também por isto, O Homem que Comia Tudo presta serviço público. Mesmo sem passar na RTP.

Comer (15)

A literatura que vai à cozinha

Pedro Correia, 10.05.24

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 O arroz de favas com galinha corada descrito por Eça no romance A Cidade e as Serras

(foto: blogue Outras Comidas)

 

1

Come-se pouco e mal na literatura portuguesa. E bebe-se ainda pior.

Percorremos centenas e centenas de páginas escritas pelos nossos mais reputados escritores sem deparar com um almocinho homérico ou um jantarinho opíparo. Falta vibração latina aos literatos lusos na hora de comer.

Por motivos que não vêm ao caso, tenho percorrido nas últimas semanas largas dezenas de obras de ficção de autores nacionais sem deparar com uma só refeição memorável. Tirando as excepções da praxe, Eça e Camilo sobretudo, dir-se-ia que os nossos romancistas fizeram votos perpétuos de castidade gastronómica.

Pessoa, Torga, Miguéis, Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira, Régio, Sophia, Namora, Ruben A, Sena, Sttau Monteiro, Abelaira, Urbano, Carlos de Oliveira, Cardoso Pires, Santareno, Nuno Bragança: obra após obra, capítulo após capítulo, página após página sem um repasto digno de nota.

O mesmo para Saramago ou Lobo Antunes. De Aquilino, retive sobretudo as trutas – o que me parece coisa pouca.

Já nem menciono os neo-realistas puros e duros - um Redol, um Soeiro, um Manuel da Fonseca – para quem a frugalidade era uma bandeira e qualquer comezaina soava a pecado mortal no Portugal salazarista.

 

2

Desde quando a gula ficou arredada das letras pátrias?

Não era assim na época e na arte de Camilo, que nos legou inesquecíveis parágrafos de volúpia refeiçoeira – como bem documentou José Viale Moutinho na sua obra Camilo Castelo Branco e o Garfo (Âncora Editora, 2013). Ou nas incontáveis incursões de Eça pelos prazeres da boa mesa, culminando na ascensão de Jacinto a Tormes, onde comeu o melhor arroz de favas da sua vida.

 

3

Gostava que a literatura portuguesa se reconciliasse com a gastronomia, seguindo o excelente exemplo desses nossos maiores.

Gostava que nos legasse manjares perpétuos, como a magnífica paelha real invocada por Manuel Vázquez Montalbán no seu romance Os Pássaros do Sul (Los Mares del Sur, 1979) – «a do país autêntico, a que se fazia antes de ter sido corrompida pelos pescadores ao afogarem peixe em refogado». Com os ingredientes descritos assim: «Meio quilo de arroz, meio coelho, meio frango, um quarto de quilo de bajocons [variedade de feijão verde catalão], dois pimentos, dois tomates, salsa, alhos, açafrão, sal e nada mais. Tudo o resto são estrangeirismos.» Ou as superlativas beringelas gratinadas com gambas e presunto, descritas com minúcia na mesma obra. Tudo regado talvez com um Albariño Fefiñanes, «uma das melhores coisas que nos chegaram através da estrada de Santiago».

 

4

Gostava que a arte culinária deixasse de ser encarada como um pecado social pelos nossos escritores que cultivam uma prosa ensimesmada e meditabunda, sem vestígios de risos ou alegria. A ditadura passou há muito, mas legou-nos uma atmosfera de clausura que tarda em dissipar-se - como a nossa ficção literária bem demonstra.

Apetece-me pedir aos romancistas: deixem as vossas personagens comer e beber e gargalhar à vontade. Façam como Montalbán. Ou como Rex Stout, um dos mestres maiores da literatura que nunca se fica pela sala ou pelo quarto: entra sempre na cozinha.

«Quando terminámos o sumo das amêijoas, Fritz apareceu com a primeira dose de pastelinhos, quatro para cada um. Um dia gostaria de saber durante quanto tempo conseguiria comer os pastelinhos de Fritz, feitos com tutano de vaca picado, pão ralado, salsa (cebolinho, hoje), casca de limão ralada, sal e ovos, escalfados durante quatro minutos em caldo de carne forte. Se ele os escalfasse todos ao mesmo tempo, ficariam moles depois dos primeiros oito ou dez, mas ele só faz oito de cada vez, e continuam sempre a chegar.»

Deliciosas linhas contidas no romance Clientes a Mais (Too Many Clients, 1960). De ler e chorar por mais.

 

Texto reeditado

O "Kuxuva", restaurante goês em Maputo

jpt, 22.09.23

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Sou mesmo avesso ao tétrico "saudosismo", aquilo do "antes é que foi bom", no fundo nada mais do que um "ó tempo, volta para trás". Que é inibidor, acima de tudo porque embrutecedor, pois sendo a memória selectiva sempre ela nos conduz a pensar e sentir o passado depurado das pústulas dolorosas que teve, enquanto maximizamos as leves actuais cicatrizes que delas nos sobraram. Sim, claro que se preferiria ser mais-novo do que este agora mais-velho, mas isso é outra coisa, tem a ver com as cáries, o desentumescimento, artrites e radiculites, o desmemoriar, a mouquidão, etc. E, acima de tudo, a inadjectivável morte, a alheia e até a nossa próxima, cada vez mais próxima.
 
Já a "saudade" é outra coisa. Falo da real, não a metafórica "do futuro", que isso sempre me pareceu trinado de poetice. É legítima essa "saudade" por alguns dos nossos que tão bem nos fizeram sentir, entusiasmando-nos, e já não nos estão próximos: aquela antiga e bela namorada agora decerto que já vetusta hárpia, o querido amigo depois desavindo, afinal um traste que é melhor nem encontrar, os ídolos que nos constituíram gente, a beleza de Vítor Damas e Rui Manuel Trindadade Jordão no verdadeiro José de Alvalade, Bernstein a ensinar música na televisão, o cego Borges a cirandar pelo mundo... E, mais do que tudo, pelos nossos ascendentes, naturalmente já findados, a argúcia culta da minha avó materna, conjugada com a boa mesa (ou assim me sabia) que comandava, o Senhor meu tio, homem verdadeiramente marcante. E, claro, os pais: o que não daria eu para me sentar aos 59 anos a falar com eles nos seus 60? Agora, "saudade" do passado tal qual ele foi, como seria bom voltar? Nada disso, por demasiado lânguido, que um tipo saudoso fica um odalisco.
 
O que louvo é a "saudadezita". Isso do inesperado, o de súbito ser assomado, nisso mimado, por excertos do passado, laivos do vivido, breves odores, sumarentas risadas, vislumbres, aquela carícia afinal indelével, acordes, sabores, estes até indiscerníveis... Sim, "saudadezita" que não diminutiva, bem pelo contrário, engrandecedora, pois resquícios alentando-nos no refrescar do necessário "avante".
 
Essa "saudadezita" que me invadiu ao ler este artigo. Pois durante quase duas décadas fui cliente regular do "Petisco", o célebre restaurante "goês" de Maputo, casa modesta, pois sem ademanes, cozinha familiar assente em legado de gerações, ambiente gentilíssimo, comida deliciosa - e decentemente barata. Lá fui inúmeras vezes, em família, junto a amigos, mesmo em momentos da vigorosa indústria de seminários, e até a festas de aniversário da petizada, naquela minha era de pai algo recente. E quantas vezes a ir buscar comida, o "take-away" obrigatório, nisso sempre me abastecendo da magnífica panóplia de achares e chutneys, e de piripiri. E, como é óbvio, filiando-me nas suas chamuças, ali âncoras da minha adesão à ideologia chamucista. O "Petisco" foi-me paisagem vivida, calcorreada. Sentida.
 
Há algum tempo soube que fechara, devido a razões várias - entre as quais o embate sofrido com a pandemia Covid. Muito o lamentei. Mas sei agora que a industriosa família se reorganizou, apesar da dolorosa perda entretanto sofrida. E que agora abriu um novo restaurante, nas imediações do anterior (na Mártires da Machava), mantendo-se fiel ao reconhecido perfil gastronómico: a cuidadosa continuidade da tradição goesa, já de si uma mescla de séculos, mas ali completando-se na harmonia com os saberes circundantes.
 
É o "Kuxuva" - "saudade" em changana ("mas "saudade" não há só em português?", clamarão os das versalhadas avulsas). E a esta "Saudade" eu prezo, pratico-a. E nesta madrugada deixo-me pensar, não nostálgico mas viçoso, que se chegar a Mavalane "te" direi "leva-me directo à Mártires da Machava", "ao Kuxuva". E alambazar-me-ei.
 
(Postal para o Nenhures)

Um almoço em Sines

jpt, 08.09.23

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A minha querida amiga - ainda que rabugenta e um pouco instável - Vida levou-me hoje até Sines, onde não ia há anos. Acordara eu às 3.30 da manhã, por mandamentos do psicossomático. Umas horas passadas, já sob Sol enublado, bebera a malga de café (Vumba, que moera na véspera) e comera três figos apanhados na hora. E fizera-me à estrada. Bem depois, já cerca das 13 horas, aportei ao A Nau, restaurante sem ademanes na dita Sines, que também resguarda os clientes numa simpática esplanada. E na qual me deparei com um atendimento simpático, até jovial, mas nisso sem exageros. Para a refeição rápida os meus vizinhos de mesa pediram sardinhas assadas - que vieram a louvar. Eu indaguei se os joaquinzinhos o eram ou se seriam Joaquins. Afiançaram-me da justeza do diminutivo. Convoquei a dose. Não que estivesse esfaimado mas em mim grassava já o apetite, dado o historial desta jorna. Trouxeram-me um arroz de tomate solto, que saudei - detesto o habitual arroz de tomate empapado, "malandrinho" dizem-no, pois pesado, sempre gastricamente aziago. E os peixinhos estavam deliciosos. E quando me encontrei saciado o meu prato tinha este aspecto.
 
Após o café chegou a (muito em) conta. E assim aqui deixo a nota, para quem passar pela terra da refinaria - ou do "elefante branco", como há quem a diga. Acomode-se no Restaurante "A Nau". Eu, se voltar à região, repetirei...

O pernil e a idade

jpt, 03.09.23

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Há uns anitos fui a uma consulta de rotina, dessas onde se encomendam as vasculhas em busca de hipotéticas maleitas esconsas. Deparei-me com um novo "médico de família", um tipo afável, ainda relativamente jovem. Fez-me algumas perguntas, a deixar-me falar para que conhecesse ele o mortal paciente que ali enfrentava. Discorri um pouco sobre o meu corpo - pois aos médicos se deve dizer o que nem às paredes confessamos. E fui-me queixando disto da degenerescência etária, do "idadismo" da Natureza, essa que nos discrimina progressivamente, retirando-nos "direitos adquiridos", até "inalianáveis". Ao que o doutor intercalou, sorridentemente irónico - e já depois de me ter dado a novidade de precisar eu de deixar de fumar, pois é algo prejudicial à saúde - "já vi que o senhor tem problemas com a idade!". Ao que lhe respondi, com evidente sageza - a qual tenho de assumir - "não, não tenho quaisquer problemas com a idade. Tenho é problemas da idade...", o que é bem diferente. Ao que ele anuiu - até porque não se iria por a discutir com o paciente, ainda por cima estando espartilhado pelas métricas do SNS, que lhe impunham, e impõem, consultas aceleradas para que se componham belas estatísticas.

Lembro-me disso devido ao jantar de ontem. Um par de gentis amigos, pai e filho, levaram-me a jantar à Baixa lisboeta, conduzindo-me ao já tradicional "Solar dos Presuntos". Aceitei com agrado o convite, mas friso que o júbilo sentido se devia à companhia. Não ia ali desde antes do Covid, pois o célebre restaurante - recoberto, como sabem os seus frequentadores, com inúmeras caricaturas e fotografias dos seus mais afamados comensais de antanho e de agora, dando evidente realce ao King Eusébio e ao Imperador CR7, apostos logo à entrada - está (bem) acima das minhas disponibilidades económicas. Não estou a reclamar que seja caro, apenas constato que é dispendioso. Avante, e sigo a narrar a refeição havida, não por gulodice mas para ecoar o tal perverso "idadismo" de que sou vítima.

Entrámos na casa e logo fomos recebidos pelo pessoal com gentileza, nessa afabilidade sem mesuras que cada vez mais escasseia - a qual antes se descrevia pelo galicismo do "savoir faire" -, fazendo-nos sentir como se "clientes da casa". O nosso trio comensal é frugal, e ontem não foi excepção. Evitámos os vinhos - e depois também os digestivos - e ficámo-nos por algumas, parcas, cervejas de pressão, muito bem "tiradas". Encetámos pelo consuetudinário couvert, um mero compósito com salpicão, presunto e queijos, tudo apreciável.

Mas logo nesse entrementes se me colocou um problema da sociologia da alimentação. Pois na mesa estava um cesto - o qual veio a ser preeenchido algumas vezes -, com um sortido de pães. Ora acontece que um dos problemas actuais nas cidades portuguesas é a catastrófica situação da panificação. Pois, destroçada a pequena indústria panificadora, esquartejada a rede de pequenas padarias locais, o pão - base da nossa alimentação - é comercializado pelas "grandes superfícies", essas empresas potenciadas pela ignara desregulação urbanística, e cujas famílias proprietárias continuam a surgir na imprensa popular (das CNN às revistas de "referência") em artigos exaltadores das suas excelências. Apesar de serem um oligopólio que nos impingem pães miseráveis, decerto que devido à sanha de lucros apresentada como "criação de empregos". Este meu trautear do "De Pé, Ó Vítimas da Fome" adveio-me, exclusivamente, da excelência dos pães que os simpáticos funcionários do "Solar dos Presuntos" nos cumularam. E deles me atafulhei, tamanha a saudade que tenho de pão decente...

Seguimos às breves entradas, das quais apenas convocámos duas: uma dose de lingueirão que nos veio à moda de Bulhão Pato. Acontece que, e nisso serei minoritário no país,  julgo bastante desinteressante esse omnipresente Bulhão Pato. Não só as suas memórias, que encetei há alguns anos, são um texto até impertinente de vácuo, tanto que nem nunca lhe visitei a propalada poesia, como o raio do molho que (imerecidamente) levou o seu nome tende a ser uma mistela, quantas vezes até sopeira, que recoze os víveres. Não foi ontem nada o caso: o lingueirão, até raro alimento que tanto prezo ("adoro", no parco léxico em moda), chegou-nos magistral. A outra entrada foi um trio de pastéis de massa tenra de lavagante, um item algo excêntrico (exquisite, no português d'agora), acolhido com satisfação geral - pese embora ser eu muito especioso com os pastéis de massa tenra, devido à minha longa experiência de cliente do restaurante maputense Ka Mpfumo, onde comi os melhores exemplares da minha vida. Ou seja, se ontem não rejubilei com a massa - ainda que a tendo apreciado - constatei que o seu recheio era magnífico.

Depois seguiu-se uma demasiada pausa. Sublinho ter sido nossa culpa, máxima culpa. Pois entre as conversas iniciais - eu particularmente loquaz, como me acontece quando com gente de que realmente gosto - e as hesitações nas escolhas, havíamos pedido bebidas, só depois as entradas, e algo depois lá encomendámos as "peças de resistência". Assim provocámos a tal pausa, a qual nada nos custou a cruzar - entre a continuada converseta até à escapadela até à rua para o cigarro. Os meus, de facto, anfitriões acolheram - em evidente devaneio - fartas doses de pregado e de arroz de garoupa com gambas. Eu fui mais terra-a-terra e avancei para um pernil assado, do qual acima deixo testemunho iconográfico. Estava soberbo! Na conjugação do estaladiço exterior e da languidez, até sensual, interna. E tudo tão condignamente temperado.

Mas nesse entretanto, que estava a ser extremamente prazeroso, fui avassalado pela referida Idade. A qual terá sido convocada pela tal pausa prévia - essa que tendo acontecido há alguns anos teria servido de pretexto para um mariola "pede-se mais uma garrafita de tinto, não?". Mas que agora me fez tombar numa tão precoce saciedade, imobilizando-me a cerca de um terço da tarefa comensal. E tão deliciosa estava ela. Não lamento o desperdício, fico-me mesmo nas lágrimas da frustração. A frustração de um (quase)velho que já não dá conta de um Magnífico Pernil! Resta-me a egoísta consolação de constatar que os meus parceiros - o pai, meu camarada de geração, o filho, nisso camarada da minha filha - cediam também diante da generosa profusão alimentar que lhes coubera em sortes. E é claro que não houve (como podia haver?) sobremesas. Um café final, sem destilados posteriores, repito. E seguimos, julgo que (ainda) mais felizes do que chegáramos.

Que a vida me sorria um pouco mais, nas matérias terrenas. E que este fenecer do apetite seja lento. Para que eu, em breve, vos possa convidar a regressar ao "Solar dos Presuntos"...

Domingo com biscoitos

José Meireles Graça, 13.02.23

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No Domingo passado fui a Rebordões almoçar, a um restaurante que já era antigo antes do 25 do quatro e que tem as suas raízes no tempo longínquo em que era um tasco que aquecia nas brasas diariamente as marmitas de centenas de trabalhadores fabris que havia por aquelas bandas. No Vale do Ave, a região objecto das piadas foleiras de urbanitas e economistas metidos a empresários de paleio, cuja gesta (a dos trabalhadores e a dos empresários que faziam empresas) nunca encontrou um Camilo que a cantasse. Depois, fui ao mosteiro de Santa Escolástica, ali perto, por mor destes biscoitos que aqui se veem. Na pérfida Albion consomem-se biscoitos para acompanhar o chá; e em França deve haver muito disto porque há tudo de comeres e teorias, e as abadias eram avonde. Mas iguais a estes? Não, só em Roriz e no céu.

Em Fão, no "Rita Fangueira"

jpt, 09.11.22

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(A Norte do Trancão [4])

Domingo já basto percorrido, eu feito andarilho desde a quase alvorada, entre passadiços, dunas e marés vivas, fui transportado até ao que me foi afiançado ser "referência" local, em plena Fão. A instituição em causa era o "Rita Fangueira", há pouco transitado para novas instalações, sito agora face a uma pequena praceta ribeirinha, um recanto encantador mas o qual, por si só, não suspenderia o afã crítico de amador, até porque seguia eu já esfaimado.

Começámos bem, pois apesar da hora tardia a que aportámos para almoçar a recepção foi afável, numa gentileza sorridente, mas felizmente sem pinga daquelas irritantes popularuchas familiaridades nem quaisquer ademanes altaneiros, esses que até antecipara dado que acabara de cruzar a vizinha Ofir, a qual presumi ser ainda refúgio dos descendentes daquele "dinheiro novo" do Estado Novo portuense.

Não tendo eu, nem a minha cicerone, quaisquer prosápias de analistas gastronómicos e ainda menos tendências glutonas, não procedemos a demorada análise do cardápio. E assim, amáveis clientes, acolhemos os conselhos de quem ali trabalha. Para encetar aconcheguei-me com um copo de tinto da casa, um Douro de 2019 (Fronteira) de qualidade muito mais do que aceitável para este iletrado vinícola. Desconhecedor dos costumes locais, mas de sensibilidade etnógrafa, muito notei que a taça chegou à mesa acompanhada da garrafa por encetar e de um "sirva-se, por favor", que bem entendi como um "vá-se o senhor servindo a seu gosto", modo que veio a ter o inesperado efeito de, duas horas depois, o vasilhame estar prestes a ser escorropichado, dado o alento que entretanto viera eu, a solo para aquele propósito, a receber por via dos víveres apresentados. 

O referido vinho foi inicialmente acompanhado por uma muito civilizada cobertura, saudavelmente apartada das pantagruélicas "entradas" que constam da mitografia nortenha: um par de croquetes, esquecíveis, e um outro de pastéis de bacalhau que, ao invés, justificaram a atenção. Mas o relevante foi a concisa cesta de pão, decerto que proveniente de decente padaria: algumas fatias de regueifa, na textura e sabor adequados, outras de broa e ainda outras de broa de carne, ambas assinaláveis. E tudo potenciado pelo seu acompanhamento, a extraordinária manteiga de Marinhas, um produto local digno dos maiores encómios. Ou seja, a bem dizer-se estava eu já almoçado, e bem, e ainda não haviam chegado os pratos, ali e assim verdadeiramente presigos.

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A nossa recatada opção recaíra sobre o prato do dia, um porco assado com castanhas, e o fígado de bovino de cebolada ("iscas", como dizemos nos Olivais e vizinhança). A minha atenção inicial incidiu sobre estas últimas - as quais estavam literalmente de "chorar por mais", e de tal forma que quase monopolizaram as minhas disponibilidades. Alguns entendidos nestas matérias propagandeiam um ideário que consagra haver uma graduação na dificuldade da confecção de alimentos e na execução das respectivas receitas. Não sei se nessas visões escolásticas as "iscas" estarão no topo mas confesso a minha surpresa, esta de perceber como um prato tão corrente - e nisso dito pouco "nobre", quiçá até "fácil" - pode ser apresentado de forma tão rara de excelsa.  Ao porco, e suas amásias castanhas, enfrentei-o já em dificuldades, até algo notórias, mas ainda assim pude constatar - e num "prato de dia" - que nos chegava exactamente como os mandamentos o ditam, sem inovações nem derrapagens. Ou seja, ambos os manjares ali estavam no estrito respeito pelos valores devidos, mas - e o que é ainda mais notável - sem quaisquer ribombos folcloristas.

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Após isto impôs-se um breve intervalo, à esplanada na fruição de um rolo de Amber Leaf, enquanto o eficiente "colaborador" recolhia o vasto remanescente das duas opíparas "meias doses" (?), destinado a recompensar o imaginário canídeo da clientela em questão. Regressei para enfrentar a recomendada sobremesa, uma parelha advinda da confeitaria local, um excelente folhado de ovos moles de Fão, que justifica sobressair no imenso rol de artigos aparentados que a tradição conventual legou à nossa "doce pátria", e uma "Clarinha", um esplêndido pastel de gila (ou chila) também típico daquela Fão assim dulcíssima.

E desta suculenta forma terminou o repasto, que senti e recebi como excepcional. O preço desta para sempre memória? Num restaurante que me dizem renomado junto à zona de veraneio das elites económico-culturais nortenhas? Mais barato do que uma qualquer patetice italiana ou fancaria indiana na capital... 17 euros por pessoa! Algo está mal na república. E não é, garanto, em Fão.

A Norte do Trancão (2)

jpt, 08.11.22

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(A Norte do Trancão [2])

"Em Roma sê romano", clamava a sageza republicana, tão avessa à barbárie multiculturalista que tanto, neste depois, viria a ensombrar o Império.

Nessa crença sendo, cruzando o Porto fui conduzido ao Velasquez para proceder à obrigatória "observação-participante": ali, entre ordeiros e satisfeitos grupos provenientes de um bem sucedido encontro futebolístico local, um "dérbi" como sói dizer-se - no qual os vizinhos vindos da industriosa Paços de Ferreira haviam soçobrado -, confrontei-me com a célebre "francesinha", essa avoenga do hambúrguer de queijo disposta em maré viva de gordura. Foi um apreciável acto etnográfico. Agrado que se me sublinhou à saída, na gentil despedida que me foi ofertada, uma "boa estada cá pelo Norte" concedida pelo "colaborador" que nos atendera, a qual me foi logo interpretada como devida não só a ter eu pedido, repetidamente, "uma imperial, por favor" como por o ter feito com aquilo a que aqui chamam, erradamente, "sotaque".

A Crise

jpt, 14.04.22

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Para aqueles de memória curta ou de passado escasso talvez isto pouco interessará. Ainda assim sigo avante. Em 1980 e 1981, nos meus 16 e 17 anos, os meus pais renderam-se, regressavam a casa e deixavam-me ficar para trás, mais uns dias em São Martinho do Porto, onde sempre passávamos férias. Eu aboletado em casa de amigos ou talvez nem tanto, esticando o veraneio. Esses foram os meus inícios da boémia - lá havia uma grande discoteca, a "Pink Panther", a qual tinha um magnífico e super-actualizado disc-jockey, coisa espantosa para aquele ali nesse tempo. E um ambiente entusiástico.
 
Mas esses períodos de passagem, de iniciação às noites e outras facetas da vida, foram-me acima de tudo a aprendizagem da fome, que então ainda desconhecia. Pois o dinheiro que me deixavam era escasso, não só pela frugalidade vigente e por ser eu um ainda petiz, galarote. Mas porque então se vivia sob o espectro do FMI, entre aquelas suas duas intervenções - e falo aqui da época anterior a Ernâni Lopes ser demonizado... Nisso a espórtula paternal era escassíssima, a contribuição materna um pouco mais mimosa, e valia-me a adenda avoenga. Assim sendo comia em casa anfitiriã com a parcimónia cerimoniosa que a voracidade adolescente permitia, num noblesse oblige inculcado, e torrava os parcos escudos em tabaco (até mesmo os "Definitivos", "Provisórios" e "Kentucky") e nas cervejas e "Cubas Livres" - sim, era um miúdo - na referida "Pink Panther".
 
Nesses entretantos, às tardias alvoradas - que ainda não eram ditas horas de brunch - e às ceias acorria ao Café "Rosa", entre o Samar e o "Careca", defronte à tabacaria e à papelaria, ladeando o "Clube", e alimentava-me do peculiar prato "Crise" - pois esta não nasceu neste XXI, como pensarão alguns amnésicos. Constava ele de batatas fritas e um ovo estrelado. Ou dois, se estivéssemos esfaimados - e, se não me falha a memória, custava 5 escudos na versão de ovo duplo.
 
Confidência feita talvez os meus amigos possam compreender o enorme prazer que tenho, agora que 40 anos passados, ao sentar-me hoje, no popular Restaurante Cabeça de Touro nos Olivais, onde se confeccionam as melhores batatas fritas ao sul do Trancão, e encomendar uma réplica dessa saudosa "Crise". Estou mais espartano do que nessa era, pois falta-me o crédito do futuro que então tinha. E venho acompanhado de José Rodrigues Miguéis, nas suas belas crónicas em "É Preciso Apontar" (1964), que há tão pouco me foram ofertadas. Mas logo as largo, espraiando-me nas memórias dos tempos daquela "Crise". Quando tudo estava ainda ali mesmo à frente.
 
Mas não sou um saudosista. Por isso, para me mostrar que tudo mudou, no fim do repasto peço um "Famous Grouse".

Sopa turva

José Meireles Graça, 13.06.21

Há uns anos, escrevi um texto seminal e definitivo sobre aspectos essenciais da fritura do bacalhau, nomeadamente no tocante à distinção, que até então a doutrina mal fazia, entre o frito e o fritado do precioso gadídeo. Uns anos volvidos, uma amiga querida sugeriu que o mesmo discernimento e empenho fossem empregues na dilucidação da problemática do ovo estrelado, ao que com gosto anuí.

O segundo post deixou de fora, por economia de tempo, alguns aspectos relevantes, em particular a comparação de vários tipos de ovos, diferenças regionais entre Norte e Sul, e influência deletéria que a poluição gourmet, e a cozinha autoral, têm vindo a exercer na confecção dos géneros em geral, incluindo portanto o ubíquo ovo na sua preparação mais comum.

Proponho-me hoje, com o habitual desprendimento e apenas com a pretensão de abrir caminho para a elaboração de estudos mais aprofundados sobre esta matéria tão rica de implicações, deitar uns olhos inquisitivos e meditativos sobre a sopa.

A razão é que, a pretexto de ir jantar a Lisboa com pessoas de representação, fiquei por lá uns dias. E hoje, como estivesse com falta de apetite ao almoço, fiquei-me por uma sopa de feijão verde (é assim que a sopa de vagens é designada no dialecto local).

Toda a minha vida as refeições começaram com sopa ou caldo, de inúmeras variedades, com excepção de paleio, um género que nem por ser abundante, largamente consumido e sem contraindicações para a saúde, faz pratos aceitáveis para cristãos tementes a Deus.

Estabeleçamos desde já a diferença entre sopa e caldo: quem for procurar vai descobrir que os soi-disant entendidos dizem que o segundo é um concentrado e por isso pode servir de base para a primeira; e, se forem nutricionistas, aproveitam para pendurar uma série de elogios na sopa, e reservas ao caldo porque falta isto e aquilo.

Tretas: sopa é o que assim é considerado pela tradição local; e caldo também. De modo que eu como sopa de nabos, num prato bem fundo, e um primo que nasceu a 50 km chama-lhe caldo de nabos e faz muito bem; e, do lado de lá da fronteira, fazem um caldo galego que não é muito diferente da nossa sopa de cozido. Quem quiser transtornar o assunto pode aliás ir ao francês e apurar a distinção entre soupe, potage, bouillon e consommé, com a garantia de escaldar, não a língua, mas a cabeça.

E então, a tal sopa, estava boa? Não, não estava: era na realidade um caldo de batata com umas rodelas de cenoura e uns talos de vagens. Se fosse caldo verde, em vez dos talos tinha uns fiapos de couve galega segada; e se fosse sopa de beldroegas, ou de olhos (olhos de couve, entenda-se), ou de couve branca, ou doutro vegetal qualquer, teria uns tímidos vestígios da espécie à qual pilhasse o nome.

Sucede que as boas sopas não são nem caras nem excessivamente difíceis de cozinhar, e portanto cabe perguntar por que razão os restaurantes não as fazem, nem têm variedade na oferta. O motivo é que o cliente típico não as pede, e a que têm na ementa é mais para o velho ocasional, ou a criança, ou o tipo que tem a dentadura num oito. Para o cliente ordinário não, que esse não sai de casa para comer uma sopa, credo.

Pois não. É que, além do mais, é uma coisa muito nossa, típica de um país pobre em que gerações sucessivas tiveram de se alimentar com o que tinham à mão, e pôr-lhe água para enganar a fome, e aquecê-la para matar o frio.

Coisa pobreta e antiga, portanto – nada a ver com a União Europeia, e o TGV, e as estrelas Michelin, e o PS costista, e os gostos das hordas de motoristas de táxi que, em matéria de typical, se ficam pelas sardinhas, que não os escaldam se as deixarem cair em cima das alpergatas, e pelo peixe e marisco, que é muito mais barato do que o que encontram nas terras brumosas de onde provêm, e é além disso cozinhado com sal porque as autoridades de saúde, para já, só impuseram o seu ponto de vista fascista nas padarias.

Mesmo em casa, pergunto-me se essa geração do Uber Eats, e do takeaway, se dá ao trabalho de fazer a sopa dos seus pais e avós – talvez ache que é uma coisa ultrapassada.

É como as contas sãs, a ética da pessoa de bem, o espírito de missão e outras obsolescências caídas em desuso – não desapareceram, apenas estão em stand-by.

O quê, o PS misturado com esta temática? Isso não será forçar a nota? Não, nem por sombras: ele também há a sopa turva, e dessa, realmente, ainda comemos todos os dias.

O ovo estrelado

José Meireles Graça, 23.12.20

Ao princípio era a galinha.

Calma, não pretendo tomar partido na vexata quaestio (esta expressão é em atenção dos leitores juristas, que gostam de fingir que sabem Latim) de apurar se veio ela primeiro, ou o ovo; e ainda menos consignar, neste recanto obscuro, uma piada de mau gosto sobre as deputadas do PAN.

O que quero dizer é que uma coisa é uma galinha que esgaravata até ao pôr-do-sol e recolhe para a noite depois da farelada (farelo, couves segadas e água); e outra, muito diferente, um bicho engaiolado alimentado a ração. É bom de ver que os ovos que produzem são muito diferentes.

Tomemos um ovo fresco (saído pelo ducto apropriado há um ou dois dias) da primeira galinha. Da segunda nem mo-lo digas, que a clara espraia-se na frigideira criando uma mancha quase tão vasta como a corrupção no PS, e recompensa inferiormente paladares amantes da tradição, refractários ao paleio gourmet.

Há que frigi-lo. Óleo ou azeite? O óleo já foi aconselhado pela classe médica, que tem o hábito deplorável de recomendar asneiras, mas a prática reconfortante de as substituir de dez em dez anos. Seja azeite, que o óleo é uma mixórdia de origem suspeita, ainda que de uso intensivo na cozinha. Vozes radicais gostariam de o erradicar, uma tese que não subscrevo por ter dúvidas sobre se alguns não serão apropriados para este fim, em vez do de lubrificar engrenagens metálicas.

Não convém ser muito poupado: a quantidade tem de permitir que, inclinando ligeiramente a frigideira, se possa recolher com uma colher o bastante para entornar por cima da gema, no momento certo para criar uma película branca que deixe a gema líquida. E a temperatura? Não pode ser muito alta, senão tosta os bordos da clara. De modo que o ovo vai para o seu natural destino quando, pondo uma mão espalmada um palmo acima da frigideira, se sinta o quente.

De sal umas pitadas, espalhadas com dois dedos criteriosos em cima da gema (antes da manobra de entornar o azeite), mas refinado - de todo o modo uma invenção de um demo menor preguiçoso - nunca.

O olho é, como nos negócios, fundamental: o ovo está estrelado quando já não exista clara no estado líquido, e retirado antes de começar a estar tostado nos bordos. Nas pequeníssimas bolsas onde exista ainda algum azeite, a ponta de um bocado de papel absorvente chupa-a.

E voilà: não é um ovo estrelado de snack, com a gema meia cozida; não é um ovo estrelado do restaurante, puxa-saco seja ele; e não é um ovo estrelado citadino.

Ignoro se Bertha Rosa Limpo ou Maria de Lourdes Modesto, e menos ainda João da Matta, alguma vez desceram a esta coisa tão simples. Mas desço eu, que a distância para mim é muito menor. E depois tenho um amigo que me disse há dias no Facebook que eu nem um ovo conseguia estrelar, o grande insolente, decerto ignorante do meu texto absolutamente seminal sobre a distinção entre o bacalhau frito e o fritado Que ponha aqui os olhos, a benefício do seu aprimoramento como cozinheiro.

Psicodrama à mesa

Pedro Correia, 18.08.20

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"Os portugueses sabem comer bem e apreciam boa comida." Oiço esta frase desde sempre e há muitos anos que a contesto.

Penso cada vez mais o contrário. E tenho a prova por estes dias. Janto num dos restaurantes que servem melhor peixe e marisco em Lagos. Fica junto à lota, os frutos do mar desembarcam praticamente do barco para a cozinha.

Aqui só como peixe, devo confessar. Apesar disso, nas mesas em redor escuto insistentes pedidos de gente a suplicar por "bitoque" e "picanha". O que me deixa estarrecido.

 

Há dois dias, um miúdo malcriado pôs-se a fazer birra, dizendo que só comia piza. Com palavrinhas doces, os pais procuravam convencê-lo que ali não havia disso: o "melhor" que se arranjava era um hambúrger.

Ao fim de muito tempo, lá acabaram num consenso: o puto acedeu mas o pai da criancinha teve de implorar por um prato "cheio de batatas fritas" para calar o palerma do filho. Que daqui a uns anos andará obeso e a competir no campeonato nacional do colesterol.

 

Enquanto este psicodrama decorria, eu degustava um petisco bem algarvio: barriga de atum, acompanhada com batata cozida e salada mista, temperada a meu gosto. Pensando: a instrução gastronómica faz parte da educação integral. Os pais que começam por falhar aqui, acabam por falhar em quase tudo.

Depois são capazes de culpar tudo e todos: o Estado, o Governo, os partidos, os políticos, sei lá o quê.

Mas a culpa é só deles - e dos péssimos exemplos que dão aos filhos.

Delito à mesa (17)

Pedro Correia, 14.12.19

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Uma das salas do Medieval

 

As cidades também nos conquistam pelo estômago: eis dois restaurantes clássicos de Évora agora revisitados para proveito de quem não anda em busca de modernices de importação nem da última moda mastigatória.

 

Já não é a primeira vez que menciono isto: considero Évora uma das capitais da gastronomia portuguesa. Regresso sempre com a certeza antecipada de que farei por cá refeições dignas de guardar na memória. E a convicção reforçada de que as cidades também nos conquistam pelo estômago.

Volta a acontecer-me. Comecei por matar saudades do Dom Joaquim, que já apresentei aqui: lá me esperava desta vez uma salada de camarão com papaia e manga (entrada), seguida de terrina de bochechas de porco estufadas em vinho tinto com esmagada de batata trufada e legumes salteados.

Mantém o patamar de excelência que me levou a elegê-lo como melhor restaurante da nobre e bela urbe alentejana.

 

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Superada a prova inicial com gosto e proveito, em dias subsequentes tenho lançado âncora noutras enseadas gastronómicas eborenses, aproveitando esta época em que por cá se circula com muito mais tranquilidade e desafogo do que nos Verões recentes, insuflados de turismo internacional.

Permiti-me revisitar o Medieval, um dos meus portos de abrigo na cidade, chova ou faça sol. Sei de antemão, por experiência acumulada, o que encontro nesta casa: genuína comida tradicional do Alto Alentejo, sem concessões a modernices de importação nem às mais recentes modas mastigatórias.

Antecipo um conselho: evitem trazer pressas. A cozinha cá do burgo tem o seu ritmo muito próprio de elaboração, nada condizente com o frenesim lisboeta daqueles que chegam afogueados e pedem «o que estiver mais pronto a sair» porque têm o carro «mal parado», não desgrudam os olhos do telemóvel e alegam «não ter tempo a perder com refeições».

Coitados. Sabem lá eles o que é perder ou ganhar...

 

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Migas com carne de porco preto

 

Abanquei aqui pronto a matar saudades das típicas migas com carne de porco preto. Ele, o bicho, com fritura adequada. Elas como eu gosto: moldadas com água a ferver numa massa de pimentão e alhos pisados, depois douradas em frigideira ou tacho de barro antes de rumarem à mesa.

Casamento perfeito. E abençoado com um jarro de tinto da casa, oriundo da região de Borba.

 

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Noutro dia, pousei n' O Trovador. Menos popular e mais sofisticado do que o anterior, mas respeitando os pergaminhos gastronómicos locais. E mantendo a atmosfera caseira que tanto aprecio nestas incursões.

Aqui optei pela clássica sopa de cação, prato que só consumo no Alentejo. Chegou à mesa em dose abastada, convenientemente repartida: travessa reservada ao peixe cartilaginoso, parente dos tubarões, e a terrina onde repousava o caldo - numa base de azeite, cebola, alho, louro e abundantes coentros - e generosas fatias de bom pão de trigo alentejano.

A mistura é feita no prato, ao gosto de cada um.

Garanto-vos: em qualquer dos casos, apetece regressar. Não só pela qualidade do que se come mas pelo módico preço que se paga. E pelo incomparável sossego que se desfruta: o tempo aqui rende sempre mais.

 

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Sopa de cação

 

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Restaurante Medieval                                                                                     

Rua do Raimundo, n.º 47, Évora.

Telefone 266 744 116.

Horário: 10.00-22.00. Encerra à segunda-feira.

 

Restaurante O Trovador                                                                                       

Rua da Mostardeira, 4-6, Évora.

Telefone 266 707 370.

Horário: 12.30-15.30, 19.30-23.00. Encerra ao domingo.

Um manifesto político caseiro

João Campos, 30.09.19

O porta-voz do PAN (Pessoas-Animais-Natureza), André Silva, afirmou há um ou dois dias que “comer é um acto político” e, por isso, defende informação sobre as pegadas hídricas e carbónicas dos alimentos e o fim de apoios à produção de carne. 

Por este andar ainda trocamos, com benefícios evidentes, a ARTV pelo 24Kitchen: a Filipa Gomes sempre faz muito melhor figura na cozinha do que o deputado médio no parlamento. Mas já que, segundo o líder do PAN, comer é um acto político, então aqui deixo o humilde contributo cá de casa para esta campanha eleitoral:

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  • Carne de porco oriunda de uma pequena produção doméstica no concelho de Odemira, com porcos criados no campo e mortos de maneira tradicional (naquilo a que por lá designamos simplesmente como "morte de porco" ou "matança de porco"). A banha de porco na qual se fritou a carne tem a mesma origem, tal como a linguiça que picámos para as migas (não garanto que tenha sido do mesmo porco, mas não andou longe). 
  • O alho utilizado na confecção tanto das migas como da carne também é de produção doméstica lá da terra. Idem para o azeite e para o louro.
  • O pão veio da padaria de Sabóia (guardamos as sobras, já duras, para migas, açordas e sopas de pão).
  • A laranja foi comprada numa excelente mercearia tradicional na Estrada de Benfica.
  • Não me recordo que vinho acompanhou a refeição (já foi há alguns meses...), mas terá sido alentejano. Costuma ser. 
  • A ver se para a próxima, para além de arranjar uma foto melhor das migas, incluo também a aguardente de medronho (caseira) que bebi a seguir. 

Se o Sr. Silva encontrar uma refeição mais ecológica do que esta, pago-lhe uma bifana. Até pode ser de tofu, desde que eu não tenha de comer uma também. 

Falar muito e comer quase nada

Pedro Correia, 04.07.19

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Já aqui expressei a minha perplexidade pelo facto de haver tão escassas descrições de lautos manjares na literatura portuguesa. Perplexidade tanto maior quanto é sabido que gostamos de comer e encontramos uma apreciável variedade de opções gastronómicas no País, viajemos para onde viajarmos dentro das nossas fronteiras. Às vezes parece-me que os nossos escritores consideram o tema um assunto menor. Ou, para ser mais directo, que não apreciam mesmo os prazeres da mesa. Podemos percorrer a obra inteira de vários autores sem depararmos com um único repasto memorável. 

Há excepções, claro, e bem notáveis. Mas, certamente não por acaso, são aquelas que todos conhecemos - com destaque para a inesquecível ceia proporcionada a Jacinto na sua primeira noite em Tormes. 

 

Foi, portanto, com imenso agrado que deparei há dias com uma apetecível refeição descrita por Agustina Bessa-Luís na terceira e última parte do seu romance Fanny Owen. Abriu-me o apetite, confesso. De tal modo que não resisto a partilhar convosco esse excerto:

«Faziam-se bolachas de amêndoa e de cidrão, assim como refrescos de violeta e de bergamota. Servia-se peru à Cardeal, colorido com cascas de camarões pisados e assado no espeto, receita que só era ainda aviada nas cozinhas de Mesão Frio, assim como a empada de lombo de lebre, assim como leitão de javali com molho picante.»

 

Caramba, uma descrição destas até dá gosto. Sobretudo por ser tão rara nas nossas pomposas letras, jamais propícias a trocar a sala pela cozinha. Falta-nos um Rex Stout, falta-nos um Georges Simenon, falta-nos um Vázquez Montalbán - escritores que não tinham complexos em demonstrar a sua paixão pela arte culinária. Ao contrário do que sucede na literatura portuguesa, em que muito se fala e quase nada se come.

Mais um motivo para aqui lhe deixar a minha vénia grata enquanto seu leitor muito atento, Dona Agustina. 

A literatura que vai à cozinha

A literatura que vai à cozinha

Pedro Correia, 18.05.17

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 O arroz de favas com galinha corada descrito por Eça no romance A Cidade e as Serras

(foto: blogue Outras Comidas)

 

1

Come-se pouco e mal na literatura portuguesa. E bebe-se ainda pior.

Percorremos centenas e centenas de páginas escritas pelos nossos mais reputados escritores sem deparar com um almocinho homérico ou um jantarinho opíparo. Falta vibração latina aos literatos lusos na hora de comer.

Por motivos que não vêm ao caso, tenho percorrido nas últimas semanas largas dezenas de obras de ficção de autores nacionais sem deparar com uma só refeição memorável. Tirando as excepções da praxe, Eça e Camilo sobretudo, dir-se-ia que os nossos romancistas fizeram votos perpétuos de castidade gastronómica.

Pessoa, Torga, Miguéis, Ferreira de Castro, Vergílio Ferreira, Régio, Sophia, Namora, Ruben A, Sena, Sttau Monteiro, Abelaira, Urbano, Carlos de Oliveira, Cardoso Pires, Santareno, Nuno Bragança: obra após obra, capítulo após capítulo, página após página sem um repasto digno de nota.

O mesmo para Saramago ou Lobo Antunes. De Aquilino, retive sobretudo as trutas – o que me parece coisa pouca.

Já nem menciono os neo-realistas puros e duros - um Redol, um Soeiro, um Manuel da Fonseca – para quem a frugalidade era uma bandeira e qualquer comezaina soava a pecado mortal no Portugal salazarista.

 

2

Desde quando a gula ficou arredada das letras pátrias?

Não era assim na época e na arte de Camilo, que nos legou inesquecíveis parágrafos de volúpia refeiçoeira – como bem documentou José Viale Moutinho na sua obra Camilo Castelo Branco e o Garfo (Âncora Editora, 2013). Ou nas incontáveis incursões de Eça pelos prazeres da boa mesa, culminando na ascensão de Jacinto a Tormes, onde comeu o melhor arroz de favas da sua vida.

 

3

Gostava que a literatura portuguesa se reconciliasse com a gastronomia, seguindo o excelente exemplo desses nossos maiores.

Gostava que nos legasse manjares perpétuos, como a magnífica paelha real invocada por Manuel Vázquez Montalbán no seu romance Os Pássaros do Sul (Los Mares del Sur, 1979) – “a do país autêntico, a que se fazia antes de ter sido corrompida pelos pescadores ao afogarem peixe em refogado”. Com os ingredientes descritos assim: “Meio quilo de arroz, meio coelho, meio frango, um quarto de quilo de bajocons [variedade de feijão verde catalão], dois pimentos, dois tomates, salsa, alhos, açafrão, sal e nada mais. Tudo o resto são estrangeirismos.” Ou as superlativas beringelas gratinadas com gambas e presunto, descritas com minúcia na mesma obra. Tudo regado talvez com um Albariño Fefiñanes, “uma das melhores coisas que nos chegaram através da estrada de Santiago”.

 

4

Gostava que a arte culinária deixasse de ser encarada como um pecado social pelos nossos escritores que cultivam uma prosa ensimesmada e meditabunda, sem vestígios de risos ou alegria. A ditadura passou há muito, mas legou-nos uma atmosfera de clausura que tarda em dissipar-se - como a nossa ficção literária bem demonstra.

Apetece-me pedir aos romancistas: deixem as vossas personagens comer e beber e gargalhar à vontade. Façam como Montalbán. Ou como Rex Stout, um dos mestres maiores da literatura que nunca se fica pela sala ou pelo quarto: entra sempre na cozinha.

"Quando terminámos o sumo das amêijoas, Fritz apareceu com a primeira dose de pastelinhos, quatro para cada um. Um dia gostaria de saber durante quanto tempo conseguiria comer os pastelinhos de Fritz, feitos com tutano de vaca picado, pão ralado, salsa (cebolinho, hoje), casca de limão ralada, sal e ovos, escalfados durante quatro minutos em caldo de carne forte. Se ele os escalfasse todos ao mesmo tempo, ficariam moles depois dos primeiros oito ou dez, mas ele só faz oito de cada vez, e continuam sempre a chegar."

Deliciosas linhas contidas no romance Clientes a Mais (Too Many Clients, 1960). De ler e chorar por mais.

Delito à Mesa (6)

Francisca Prieto, 08.12.16

Vai para uns quantos anos que, quando chega Agosto, enfio os malotes no carro e trato do exílio familiar para a Costa Vicentina.

Gastronomicamente falando, o mês é intercalado por cachorros quentes na praia e, à noite, peixe escalado, do fresquíssimo, ali pescado por gente local. Acrescenta-se com frequência pratadas de percebes (ou perceves, consoante a corrente) e um ou outro churrasco caseiro, quando aparece um habilidoso capaz de dominar a labareda.

Há porém o dia da rebeldia. Várias famílias de amigos deixam os filhos ao abandono e marca-se uma mesa de estadão na Eira do Mel, o respeitado estabelecimento de restauração, sito em Vila do Bispo.

Assim que chegamos, começa o choradinho do “Leite Queimado”, uma rara iguaria, servida à sobremesa, que só há de vez em quando e que, quando há, acaba logo na primeira ronda de clientela. O objectivo primordial é assegurar, à partida, umas quantas doses que permitam acabar o jantar em beleza.

A Eira do Mel proclama-se como um restaurante de Slow Food e faz jus ao que promete, o que quer dizer que leva uma eternidade a servir uma mesa do tamanho da nossa. De maneira que, invariavelmente, vão chegando várias garrafas de vinho até que se consiga ferrar o dente nas entradas. Na altura de apreciarmos os magníficos ovos mexidos com morcela ou o camarão mergulhado em molho fenomenal, já soaram as primeiras gargalhadas guturais que ditam o tom para o resto da refeição.

Das entradas ao prato principal decorre mais um período de tempo considerável. Tanto, que dava para assistir a uma prova do Grande Prémio, com a parte da subida ao podium e tudo. Mas nós não reclamamos porque, para além de continuarmos entretidos nas degustações vinícolas, sabemos o que lá vem: uma cataplana de polvo com batata doce de fazer chorar qualquer coração mais empedernido.

Só por causa desta cataplana, a Michelin devia deixar-se de mariquices e atribuir cinco estrelas ao Chef José Pinheiro.

E é assim que, já com um par de grãos na asa, os convivas contam e recontam vezes a fio as mesmas histórias dos velhos tempos de Sagres, enquanto perdoam a longa espera e molham pão saloio no molho da panela.

No final, se há Leite Queimado assegurado, manda-se servir para acompanhar uns copitos de medronho, daqueles que não se devem beber sozinhos.

No dia a seguir há lamentos na praia, mas todos concordamos que o ritual se há-de voltar a cumprir. Afinal, temos doze meses para recuperar da epopeia.

 

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