Victor
Não poderia faltar. Por isso lá estive.
Onde? Perguntar-me-ão.
Ali, na Casa Garden, paredes-meias com o Jardim Luís de Camões, onde está o espartano busto do dito, gravado no tempo da antecâmara feita na solidez da rocha que o protege das intempéries.
Ontem esteve lá o Victor. O autor, em 1989, da capa do I Glossário Jurídico Luso-Chinês. Nessa altura ninguém sabia quem era ele. E ainda hoje não sabem. Os portugueses. Os outros sabem.
Pois bem, o Victor lançou um livro, imaginem só, com todos os desenhos que fez para os cartazes do Dez de Junho. Desde 1990. Falhou dois anos. Houve um espírito menor iletrado que passou pelo Instituto Cultural sem ter percebido quem era o Victor.
A bem dizer não é um livro. É uma enciclopédia. Uma novela. Um filme. Está lá tudo. Até o quase de que quase nunca ninguém fala. Mais a senhora dona Amália e o Eusébio.
Mas ontem o Victor falou. Disse umas palavras com tudo aquilo que lhe ia na alma. Emocionou-se. Eu vi. E foi como se a noite anterior ainda não tivesse acabado. E o Álvaro, o Miguel e eu, que quase nunca estamos com o Victor, tivemos o privilégio de nos termos encontrado com ele de véspera. Mais o Nelson. Até parecia que tinha sido combinado. Ah, les grands esprits. Sauf moi.
E depois, aquela cumplicidade no olhar, tão querida e descomprometida, de quem já fez o caminho das pedras sem se perder. E voltou sempre. Deixando tudo no mesmo sítio, seguindo a ordem natural das coisas, a natureza dos homens, a beleza das mulheres, e o respeito por tudo aquilo que nos rodeia. O respeito e a gratidão.
O Victor sublinhou-o. Eu também o sublinho.
A ética dos homens livres, que sabem qual o preço da sua liberdade e o custo da ousadia, medem isso mesmo. Lêem todos o mesmo painel que o Victor registou. São três palavras muito simples, e que dizem tudo. Liberdade, respeito e gratidão.
A ordem dos factores não é aleatória. Não se nasce antes de morrer. Embora haja alguns que conseguem morrer sem nunca terem nascido. E mandam.
O Victor é tudo isso. Porque o talento dos grandes nunca sai desses parâmetros. Não há cagança, há discrição. Não há serodismo, há História.
Tal e qual como na profundidade do olhar do mocho, protegido na sua terna penugem, atravessando a cortina do tempo na verticalidade dos anos. Um após outro.
E depois, o Victor é um tipo de uma generosidade extrema, de uma alma imensa, com uma portugalidade tão vincada que me faz sentir o quanto sou pequenino, o quanto somos todos menores perante um traço maior que nos define nos cinco continentes. Para todo o sempre.
É claro que gostei do livro (obrigado pela dedicatória e o autógrafo), do momento, de sentir o quanto o Victor estava emocionado.
E recordei-me daquele dia de manhã em que me telefonou porque tinha levado o quadro errado, porque o meu não estava na galeria, estava em casa dele. Agora está em Cascais, onde pertence.
Mas não foi por isso que fiquei grato ao Victor, nem é por tal que escrevo estas linhas.
Eu escrevo porque gosto de cumprir as minhas obrigações.
Neste caso é mais do que uma obrigação. E ao contrário da minha sombra, eu não tenho gosto em deixar uma obrigação por cumprir. Cumpri-las também me dá gozo, me dá prazer, e é um acto intrínseco de liberdade. Como quando bebo um gin & tonic e fumo um charuto.
E escrevo aqui e agora, nesta hora de onde não avisto o golfo de Sorrento, porque os cartazes do Dez de Junho do Victor deverão, a partir de hoje, percorrer o mundo. E depois deverão ser expostos na Assembleia da República, no Museu da Presidência, percorrendo as escolas de Portugal e ilhas. Espero que a Isabel Moreira esteja atenta.
Espero que o outro Victor, o de Tóquio, ainda os possa acolher na nossa Embaixada. E que eu possa lá ir. Mais a outra sombra que me acompanha.
E que em Lisboa, no Porto, em Paris, em São Paulo, em San José, na Horta, talvez no Peter´s, onde for, encontrem um espaço e um mecenas, já que há tantos nas revistas, para pagar o transporte dos cartazes. Para que todos possam ver e conhecer o Victor. Em toda a sua simplicidade.
O que lá está não pode ser descrito. Não vemos todos a mesma coisa. E sabemos haver gente com olhos que não vê, e cegos que vêem para lá dos limites da Eternidade. Ou que viam. Como o meu padrinho Fernando Luís. Ou o Jorge Luís Borges. Que saudade, de ambos, meu Deus.
Em rigor, a razão de escrever estas linhas é que também há coisas que têm de ser ditas. Para que não se pense, um dia, que os portugueses importantes de Macau, e aqui agradeço ao anónimo, são pequenos lucíferes anões, milionários, sem pátria, que têm tempo de antena à segunda, terça e quarta-feira sempre com o mesmo fato e a mesma gravata.
Até porque o Victor não usa gravata. Não sei mesmo se ele sabe o que isso é, embora eu goste muito gravatas. De boas gravatas. E faça gosto em usá-las. Quando posso. Até se desfazerem. Às vezes depois disso.
Não, o que aqui me traz é muito mais importante do que tudo isso, só tendo paralelo na generosidade do Victor. E o Carlos irmão que me perdoe com toda a sua simpatia.
Porque o que é mesmo importante aqui ficar escrito, e os meus amigos que me desculpem, a começar pelo José Manuel, o Rui e o Luís, que já cá não estão, é que o Victor, que é igualmente um amigo, é o maior português de Macau desde os tempos do Camilo Pessanha. Isto tinha de ficar escrito.
E isto é tão rigoroso quanto a minha saudade pela Mélita, a minha paixão pela música do Brel, o encanto pela Loren, pela poesia do Fernando, a escrita do José ou do António, ou a minha paixão pela ternura da M.T. e os meus amigos.
O Victor é uma espécie de Serge Gainsbourg que fala português. Sabe rir em chinês e ainda pisca o olho aos amigos.
Não falo nelas porque nisso ele é como eu, e eu não sei quem é a sua Jane Birkin. Não temos tempo para lhes piscar os olhos porque gostamos de os ter bem abertos quando mergulhamos no seu olhar. E nos perdemos até reencontrarmos o caminho de volta.
Tirando isso, que acima ficou escrito para memória futura, recomendo-vos que façam uma visita à Catarina Cottinelli e à Casa Garden.
Certamente que já não encontrarão por lá a Amélia, nem o Carlos, que têm outras vidas, e já fizeram o seu trabalho, como outros também o fizeram, a partir do Porto, para trazerem, e entregarem, verdade seja dita, o Victor a Portugal e aos portugueses.
E uma vez mais, no mesmo dia em que Portugal estraçalhou os nossos amigos turcos em Dortmund, sob a batuta de um inspirado capitão, recomendo-vos a liberdade, o olhar, a generosidade, o encanto e a serenidade de um português de Macau.
Português como nós. Quer dizer, um bocadinho maior do que nós.
Coisas que todos os milionários querem comprar, mas que só está ao alcance de espíritos superiores.
De génios na sua arte. De talentos que não se mercadejam. De gente como o Victor.
Saravah, Victor. A bênção, Senhor.
P.S. Fez bem em estar presente o cônsul-geral de Portugal, Alexandre Leitão. Amanhã, provavelmente, será também caricaturado. Como muitos outros o foram. Mas só os imbecis não são suficentemente inteligentes para não se rirem da sua própria caricatura.