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Delito de Opinião

Quebrando tabus

Cristina Torrão, 19.03.24

Homossexualidade no futebol 01.png

Vai-se quebrando um dos grandes tabus do futebol masculino. Muita gente com tendências homofóbicas pode perguntar-se se é necessária tanta ostentação. Desdenha com frases feitas, do género: “Que façam o que quiserem à porta fechada, mas não o exibam em público”. Palavras destas revelam grande cinismo. Por um lado, é óbvio que pares como o da foto não estão a fazer aquilo que possam fazer em privado. Por outro, é uma declaração de apoio à discriminação, na medida em que se assume haver seres humanos não dignos de um convívio social sadio e se devem esconder. E, por fim, muitas dessas pessoas deliram com declarações de amor ou propostas de casamento públicas entre um homem e uma mulher (incluindo a hipocrisia de certos homens casados ou comprometidos, que, depois de exultarem com cenas dessas, apoiando a família tradicional, se dirigem ao bordel mais próximo).

Ignoram a verdadeira mensagem de gestos desta natureza: a luta pela inclusão social. Não é fácil esconder de todos uma parte importante da nossa vida. Há festas, convívios, reuniões de família, onde homens e mulheres surgem com os seus parceiros e parceiras, conversam, riem, divertem-se. Um homossexual que ainda não se tenha revelado como tal nunca se pode divertir, nessas situações. Passa o tempo a fingir, a esconder, a tentar responder de maneira mais ou menos adequada a perguntas como: “outra vez sozinho?”; “quando arranjas namorada?”; “já é tempo de constituíres família”. Por vezes, apresentam-lhes mulheres solteiras, com um olhar que encerra a obrigatoriedade de ir para a cama com ela. E o homossexual tenta superar, tão bem quanto possa, o desgosto de, afinal, ter namorado, mas ter de prescindir dele, em momentos importantes da sua vida. A isto acrescem-se olhares e sorrisinhos a insinuar: “há algo de errado com ele”; “deve ser bicha”; “coitado”.

É muito difícil viver sob carga psicológica tão negativa. Muitos homossexuais e lésbicas deixam-se mesmo arrastar para a marginalidade, com todas as consequências nefastas que isso acarreta. E, no entanto, apenas desejam ser aceites, como qualquer outra pessoa. É disso que se trata, não de exibicionismo ou imposição de formas de vida que não cabem nos esquemas sociais transmitidos. São seres humanos à procura da estima dos seus semelhantes. Há séculos. Melhor dizendo, há milénios.

É interessante verificar que a homossexualidade é aceite no futebol feminino. Na verdade, muita gente considera as jogadoras serem todas lésbicas, o que está longe de ser verdade. Mas não menosprezemos, com isso, o papel fundamental das lésbicas na emancipação feminina. Elas estiveram presentes, desde o início, foram importantes impulsionadoras das suffragettes e de outros movimentos. Também na aceitação de muitas modalidades desportivas no feminino. Não se sentindo dependentes de homens, possuíam amiúde mais coragem para lutar. E encorajaram muitas outras mulheres a fazerem-no, lutaram em nome de todas. Também em meu nome. Agradeço-lhes.

A gota de água

Cristina Torrão, 15.09.23

Algo está podre. Desta vez, não no reino da Dinamarca.

As futebolistas espanholas campeãs do mundo e outras jogadoras decidiram não responder à próxima convocatória da selecção, considerando insuficientes as mudanças na Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) após o designado "caso Rubiales".

Logo nos dias posteriores à final do mundial, mais de 80 futebolistas espanholas divulgaram um comunicado de solidariedade com Jenni Hermoso e anunciaram que recusavam jogar na selecção nacional de Espanha se não houvesse mudanças na federação.

Mais deste assunto?

A procissão parece ir apenas no adro. O episódio do beijo mais não foi do que a gota de água.

E não subestimemos a "nossa" Mariana Cabral.

O futebol foi exclusivamente masculino durante quase um século. É natural que, atingindo o futebol feminino grande notoriedade, as estruturas entrem em convulsão. Natural e necessário.

Espero que as jogadoras espanholas sirvam de exemplo nos quatro cantos do mundo.

O beijo que ajudou a limpar a toxicidade

João André, 01.09.23

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Depois do Mundial de futebol feminino estive perto de escrever um texto. Foi o mundial mais bem sucedido de sempre, com mais espectadores, com mais entusiasmo, foi expandido para 32 equipas e várias das equipas estreantes deram excelente conta de si. A qualidade do futebol foi excelente e deu-me muito mais prazer que a esmagadora maioria das competições futebolísticas que vi nos últimos 10 a 20 anos. Muito sinceramente penso que quaisquer investidores que coloquem o seu dinheiro no futebol feminino terão um retorno enorme dentro de apenas 5 anos.

No entanto tudo isto foi ofuscado pelo caso com Jenni Hermoso e Luis Rubiales. Não descrevo o caso em si além disto: ele deu-lhe um beijo na boca sem ter qualquer razão para isso fora a sua própria vontade. Mas posso adicionar elementos de que a maioria da imprensa portuguesa não parece ter feito caso.

Há cerca de 1 ano, 15 jogadoras da selecção espanhola escreveram uma carta à Federação indicando que não queriam voltar à selecção enquanto certas coisas não mudassem. Acusaram a falta de profissionalismo, respeito, apoio, etc. Houve também uma pouco velada crítica ao seleccionador e a exigência implícita que ele fosse demitido porque elas não tinham confiança nele. Na altura a Federação espanhola fez finca-pé e as 15 jogadoras decidiram não voltar, ao mesmo tempo que a Federação as afastou enquanto não renunciassem às exigências. 3 das jogadoras acabaram por o fazer e jogar nestes campeonatos do mundo.

Na altura, apesar de não terem subscrito a carta, algumas outras jogadoras solidarizaram-se com o conteúdo e as subscritoras. Uma delas foi Alexia Putellas, já 2 vezes considerada a melhor jogadora do mundo, e outra foi Jenni Hermoso, que era na altura também a capitã da selecção espanhola. O resultado para estas foram advertências e, no caso de Hermoso, ver retirada a braçadeira de capitão. Foi então punida por ter tomado uma posição.

Agora avancemos para este cenário. Uma empresa acaba de ter os melhores resultados da sua história e festejam esse feito. No processo, um dos empregados mais séniores, que no passado tinha sido líder de equipa mas depois despromovido após apoiar alguns dos seus colegas mais juniores numa reclamação, é beijado na boca pela presidente da empresa, a qual tinha diso responsável pela despromoção. O empregado decide ignorar, contente que está pelo que foi alcançado, mas depois queixa-se do ocorrido, afinal de contas, a presidente não lhe pediu para lhe dar um beijo e, mesmo que o tivesse feito, não era coisa para se fazer em público.

Após a queixa, a presidente inicialmente parece receptiva a pedir desculpas mas depois queixa-se das mentalidades, faz finca-pé, diz que a mentalidade de mariquinhas está a destruir a sociedade e que o beijo não foi mais que "um beijinho".

É óbvio onde quero chegar com isto - e se não for peçam ajuda que eu não estou para explicar. O chefe máximo abusou da sua posição e fez algo que não podia, de maneira nenhuma, fazer. Nem seria necessário falar de toxicidade masculina. Isto é simplesmente despropositado em qualquer situação. Mas o machismo que ainda é reinante na Espanha (e não só, Portugal não se escapa, nem a maioria dos países), apesar de menos proeminente que no passado, não pode ser removido da equação. Rubiales comportou-se assim porque entendeu que podia fazê-lo. Porque é o presidente e porque é um homem.

Jenni Hermoso decidiu de outra forma. As outras jogadoras, várias treinadoras e treinadores e até alguns jogadores, e muito da população também. E é o irónico disto, porque agora já não há outro caminho: ao cometer um acto de abuso, de toxicidade, Rubiales terá ajudado a limpar o ar.