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Delito de Opinião

O Pote de Ouro

jpt, 17.03.23

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Acima de tudo, muito mais do que paixão o futebol  - nisso entenda-se o quotidiano Sporting e, ocasional e secundariamente, a selecção nacional - é-me um placebo. Ou seja, aos desaires trato com um lesto e dialogante monólogo interior feito de viscosos palavrões e vigorosas invectivas às Entidades desavindas, ou mesmo através de resmungos partilhados com a escassa vizinhança, e logo me dedico a outras temáticas, decerto que não mais relevantes. E nos triunfos significativos - não tão habituais assim, dada a minha amada "condição" sportinguista - emerge-me um frenesim exultante que recobre, dissolve até, todas as agruras e desconchavos da (minha) vida, reacção alquímica que leva, felizmente, alguns dias a fenecer.

A vitória londrina de ontem, com o Sporting a arrumar o este ano fortíssimo Arsenal - meu clube inglês desde petiz -, e após um primeiro jogo em que  havia sido basto prejudicado por uma arbitragem reverente ao poder mediático, foi um desses momentos de felicidade (a qual nunca é espúria, seja lá qual for a sua causa) para mais tarde recordar - e a fazer-me lembrar uma outra vitória épica, quando há uma década se eliminou o Manchester City, jogo que vi em Maputo entre queridos amigos sportinguistas, alguns dos quais já cá não estão, numa noite terminada, alguns de nós numa euforia já algo inebriada, a pagar luxuosas rodadas generalizadas nos restaurantes da Julius Nyerere e a ofertar rosas a todas as mulheres - para gaúdio de um noctívago vendedor ambulante... Despesa que quase teria custeado a minha ida a Manchester....

Mas sigo diferente agora, nesta década que passou. Vi o jogo em ambiente rural, solitário sportinguista diante da tv. E mesmo, por acasos telefónicos, solitário espectador na parte final do jogo. Enfraquecido geronte, percebi-me - e de forma mais ríspida do que quando adormeço no sofá diante de um qualquer Sporting-Arouca. Pois perto do final não mais me apeteceu ver o jogo, entre o militante pessimismo ("vamos levar um golo mesmo no fim, é sempre a mesma coisa...") e um difuso desconforto, um emergente metabolismo que temi prejudicial. E assim, cinco minutos antes do temido/ansiado "apito final", levantei-me e fui dar uma volta, cristãmente temeroso de que "não vá o Diabo tecê-las". Depois, relógio consultado, regressei pronto a tomar conhecimento da derrota para, afinal!, ser recebido por um sorridente "então pá, onde é que foste?"/"vão a penaltis!". Aos quais, pois teve de ser, assisti, metafisicamente ombreando com todo o "Universo Sporting", assim podendo exultar, demencial até, no final glorioso - não é toda a glória espúria, vã e passageira? Tudo proporcionado por um conjunto de "heróis" (grande jogatana) e por um maravilhoso Pote de Ouro, pois grande golo... A promover(-me) um sorriso para alguns dias.

(Leio que o confrade bloguístico José da Xã passou por mal-estar semelhante, no seu caso tendo-se ausentado dos penalties. Um abraço leonino, e que tenhamos mais sustos destes...)

O Benfica e a Ucrânia

jpt, 31.01.23

Bandeira ucraniana acenada em meio à destruição provocada pela guerra

Acaba agora o Janeiro - incrível como isto voa... E se assim acaba o Janeiro seguir-se-á, dirão que teria dito o Senhor de La Palice, o Fevereiro. Por isso há hoje dois marcos: para quem se interessa pelo assunto encerra hoje o mercado de transferências futebolísticas; e neste próximo mês cumprir-se-á um ano da guerra russo-ucraniana (sim, como disse acima, o tempo voa...). Por isso volto atrás, a esse início de 22 e à que Moscovo julgou uma "guerra relâmpago", na crença putinista da adesão ucraniana aos libertadores russos - "contra o poder nazi e drogado" - e da emergência do silêncio fariseu europeu e da atrapalhação bidenesca, esta antes demonstrada em torno de Cabul.
 
Lembro esse início por cá, os russos saudados, implícita e explicitamente, pelos do "compromisso histórico", aquele entre os comunistas brejnevistas (os do "simpático" António Filipe, que se desdobrou em dislates russófilos) e dos enverhoxistas, maoístas, trotskistas, polpotistas e quejandos, em tempos agregados sob os velhos Louçã/Rosas/Fazenda e agora ditos "sociais-democratas" sob as "meninas" do Rosas. Todos esses neste putinismo agregados aos fascistas, ditos "soberanistas", esses do tipo Tanger, o dirigente do CHEGA em tempos tão peculiar nosso cônsul em Goa - "once a fascist always a fascist" poder-se-ia clamar se não tivéssemos dado o nome de um hitleriano ao aeroporto da capital...
 
Enfim, devaneio, a embrulhar o que foi óbvio: no início da guerra ucraniana fascistas e comunistas ergueram-se a defender a legitimidade do "espaço vital" russo - o argumento nazi então adoptado pela futura professora do ISCTE Mortágua, a "inteligente" do BE. E a maioria da sociedade ergueu-se, irada ou incomodada, em defesa da agredida Ucrânia, tal como aconteceu nas congéneres democracias. Desde então seguiu o apoio possível (apesar das trapalhadas ministeriais - vão os tanques diz o MNE, não vão os tanques diz a ministra da Defesa, enfim, quem conheça os ministros que lhes pergunte o que andam para ali a fazer...). O país aderiu, Milhazes mandou os russos para o "caralho" e virou ícone, cerrámos fileiras com as democracias ocidentais contra o imperialismo russo e nisso até aturámos os generais comunistas e os académicos "alterglobalistas" e "abissais" a defender Putin nas tvs e jornais "de referência". "Comme il faut" na democracia, dar a voz pública aos trastes...
 
Isso implicou as possíveis sanções económicas (dada a dependência energética) - mas ainda assim imensamente maiores do que o então foi alvitrado. Cesuras político-diplomáticas. Enorme apoio militar a Kiev, e económico. E ruptura de relações desportivas, pois estas entendidas como vector de propaganda nacionalista. E tudo isso implicando, por cá e alhures, inflação, empobrecimento, convulsão política e aquecimento intelectual. No início também uma, compreensível mas logo combatida, xenofobia: alguns factos de "cancelamento" ou censura a vultos russos. Logo revertidos, no entendimento que as objecções a ter não são contra os cidadãos russos (muitos em êxodo após as mobilizações generalizadas). Mas sim contra o Estado de Putin, os seus grandes apoiantes (ditos "oligarcas") e as empresas russas. Tudo isso são os custos da luta (guerra) pela democracia, por defeituosa que esta seja e surja aqui e ali.
 
Mas entretanto, hoje, 31 de Janeiro, quando avançamos para um ano de guerra inaceitável, o Sport Lisboa e Benfica, instituição de utilidade pública e sempre sequiosa do apoio estatal, anuncia o segundo acordo com clubes moscovitas para transferência de jogadores de futebol. Não há um ruído na imprensa, não há um desconforto governamental, um remoque partidário. Nem um protesto dos "democratas" benfiquistas. A direcção do popular clube vira as costas ao Estado, à sociedade, no afã de uns milhõezinhos de euros naquela economia paralela do jogo. Ou seja, a escumalha da bola faz o que quer no país de opereta... E os nossos líderes nada mais anseiam do que o convite para os camarotes, enquanto os "colunistas" nada mais querem do que o fakeorgasm do Marquês...
 
E se isto não é um sinal da derrota democrática então não sei do que precisais. Eu reencho-me de Queen Margot e ouço o velho "Safe European Home". Porque o punk não são os putinistas identitários...
 

London Calling_Safe European Home/The Clash in Japan1

Bilhete para a eternidade

Sérgio de Almeida Correia, 30.12.22

Os dedos de uma mão deverão ser suficientes para se contar os verdadeiros génios que o mundo conheceu no último século. Houve gente magnífica, excepcional, extraordinária nalguns dos seus feitos. Génios, poucos. E não será fácil reconhecer e atribuir esse estatuto a alguém. Seja em que campo for. Da ciência à literatura, da pintura à música, da cultura em geral ao desporto. Não me atrevo, até porque isso poderia ser injusto para outros, a elencá-los, mas sou capaz de reconhecê-los. Sei quem são quando me surgem ao caminho.

Se Edson Arantes do Nascimento foi um homem normal; Pelé foi um génio. Aquele partiu hoje, o segundo ficará para a eternidade.

E de todas as homenagens, deixo aqui as palavras que lhe foram dirigidas por Maurizio Crosetti, no La Repubblica, adiante parcialmente transcritas, e a recordação da sua passagem por Hong Kong, no South China Morning Post, quando com a camisola do seu Santos recusou, para poder ficar com os companheiros, a penthouse suite que lhe estava destinada no mítico e saudoso Hong Kong Hilton, onde há três décadas, antes da sua demolição, ainda tive o privilégio de algumas vezes jantar.

Como alguém escreveu, olhando para tudo o que os outros fizeram, Pelé fez primeiro. Que descanse em paz.

"Può esserci un mondo senza Pelè? Artista e comunicatore istintivo, senza però l'aura maledetta di un Maradona che per sempre gli contenderà il giudizio di mezzo genere umano: meglio Pelè o Diego? Risposta impossibile, è come dover scegliere tra Leonardo e Michelangelo. Pelè è arrivato prima, in un calcio diversissimo e non ancora mondializzato. Pelè era il nome di un sogno, il nome di dio. Aveva una voce profonda e cavernosa da contrabbasso, e quel suono usciva da un corpo per nulla impressionante, un metro e settanta di altezza, neppure 75 chili di peso. Ma si trattava di un'illusione ottica, perché la struttura fisica di Edson Arantes do Nascimento era invece l'assoluta perfezione: gambe ipertrofiche, potenza in ogni gesto e insieme agilità, equilibrio sublime. Qualcosa di esplosivo ed elastico. E poi la tecnica mostruosa, il dribbling unico al mondo, la precisione nel tiro e nel colpo di testa, la visione di gioco che gli permetteva ogni volta di celebrare due partite insieme, contemporaneamente, una al servizio dell'altra: la sua e quella della squadra, cioè il Santos in maglia bianca oppure il meraviglioso Brasile. Mai nessuno così, mai più. Ci ha lasciato dopo un'agonia lunghissima, eppure ne siamo stupefatti."

Le Pen en Afrique

jpt, 14.12.22

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Há já mais de duas décadas, o fascista e racista (e até negacionista do Holocausto) Jean-Marie Le Pen clamava que não se revia numa selecção francesa então campeã do mundo de futebol, devido à abundante presença de jogadores de origem "ultramarina" - da África, sobre e subsaariana... "Africanos", não franceses, entenda-se.
 
O argumento foi absorvido pela "esquerda" americanófila, fiel à ideologia "comunitarista", essa do "identitarismo" por lá dito "Woke". E nesse eixo raci(ali)sta há alguns anos tornou-se "viral" (como se dizia antes do Covid-19) o vitupério do comediante sul-africano Trevor Noah - encarregue do Daily Show, espectáculo televisivo de militância do Partido Democrata americano -, também ele afirmando a primazia da excentricidade dos jogadores franceses de ascendência estrangeira que em 2018 se haviam sagrado campeões mundiais. Então contestado pela embaixada francesa em Washington, Noah viria a fazer um retórico ligeiro passo atrás quanto aos jogadores, mas embrulhando-o numa veemente crítica ao modelo social laico francês e elogio ao molde racialista americano (baseado no secularismo), seguindo exactamente as pisadas do miserável discurso do então presidente Obama após o atentado à Charlie Hebdo. As suas audiências, internas e estrangeiras, rejubilaram com essa sarcática negação da efectiva nacionalidade francesa dos praticantes de ascendência ultramarina (nem a Noah nem a Le Pen chocavam os Djorkaeffs ou Griezmanns, esses que de ascendências euroasiáticas).
 
E é interessante ver como agora em África, neste actual cume do entretenimento global que é o Mundial de futebol, se vai interpretando a equipa francesa. Principalmente hoje, quando ela se apresta a culminar a revalidação do título. Pois está amplamente disseminada esta visão raci(ali)sta: jogadores "negros"? São "africanos". Selecção com jogadores "negros"? Selecção "africana".
 
Enfim, o velho Le Pen (e decerto que também a sua filha, congénere e até conviva do nosso prof. Ventura) deve rir-se ao ver que se tornou global - e até com ajuda yankee -, num verdadeiro álbum "Le Pen en Afrique".

Viva Figo! (18 anos depois)

jpt, 12.12.22

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Eu blogo há 19 anos (já nem mania é, será mesmo defeito). Em 2004 deixei este postal "Viva Figo" a propósito da campanha contra os "velhos e acabados" jogadores da selecção durante o Europeu feito em Portugal. Será excêntrico partilhar no FB um texto tão antigo mas a semelhança com o que se passou agora é patente - na altura era Figo o grande alvo (ainda veio a fazer o extraordinário mundial de 2006). Também ele era acusado de ser "rico" e "mercenário" ("pesetero"), "imoral" (infiel aos clubes), auto-centrado... e velho.
 
Tal como agora os impropérios vinham das catacumbas digitais onde vegetam os opinadores anónimos, de clubismo ferino e vida desesperada. E também, mas com argumentos mais palavrosos, dos praticantes do sociologês moralistóide - no fundo apenas uma deriva do esquerdalhismo blasé, tão típico da pequena "lisboa".
 
 

 

Catar - o rescaldo

jpt, 11.12.22

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(Postal no meu mural de Facebook)

1. O plano para ontem era assistir ao Portugal-Marrocos e ao França-Inglaterra. Logo adveio o infausto destino luso - algo imerecido, insisto, pois a equipa "das quinas" criou um punhado de hipóteses de golo ultrapassando o autocarro de Rabat, jogando muitíssimo melhor do que a vice-campeã mundial Croácia, a celebrada Bélgica e a mui convencida Espanha o haviam feito diante daquele antipático e infértil catenaccio berbere.

Acontecido o desastre pátrio foi patente o acabrunhamento da nossa pequena comunidade, sanguinolento neste vosso "amigo-FB" letrado e patente nos restantes presentes. Após o (longo) estupor inicial decidi ultrapassar a minha abissal vertigem suicidária através de trechos de uma bôla de carne (de Lamego) acompanhados de um tinto de Setúbal apresentado em vasilhame de cartão a 3 euros o litro, de marca esquecível e de sabor bem bebível. Fui nisso ombreado por uma das ali teleespectadoras, gentil o suficiente para aturar as algo engrandecidas memórias de vida aventurosa que fui então desfiando, nisso tentando esquecer o vazio existencial desde agora feito definitivo - o meu artificial "daqui a 4 anos há mais Mundial!" fora acolhido com evidente fastio, algo que li como uma ali generalizada descrença de que eu ainda por cá ande nessa época.

Nisso começou o conflito (de séculos) França-Inglaterra, o qual por todos foi ignorado, sem qualquer azedume pois apenas um desinteresse fruto do torpor desesperançado. "The Show Must Go On", pensámos - em réstias do recente apoio aos pupilos do cidadão Kane -, e refugiou-se o contingente num restaurante da planície vizinha, que tem os defeitos de parecer "Lisboa", em cardápio, confecção e ambiência "classe média" local. Lânguido, rebaixei-me a um hamburguer (com lâmina de queijo industrial) num pão - ao qual ali dão o patusco nome de caco, correspondente ao estado em que me sentia - acompanhado de mais um par de copos de vinho da região. E nesse longo entretanto, horas decorridas, fui ignorando a miríade de mensagens recebidas, algumas iradas (com o engenheiro Santos e avulsos jogadores), outras mesmo humorísticas. Para além das condolências recebidas de amigos moçambicanos, nas quais viria a detectar algum ligeiro e risonho sarcasmo, malévolo.

2. A alvorada de hoje recebeu-me nebulosa e chuvosa. Estou de viagem, cumpre-me percorrer cerca de 20 kms até à serra defronte ao mar, para almoço em casa amiga. Mas o pior já passou, percebo que encontrei em mim mesmo forças para enfrentar os anos vindouros mesmo sem a taça almejada no bojo. Será, é certo, uma vida triste. Mas é o fado, como antevi ontem.

3. Que retirei desta última experiência havida? Isto, o filho do jogador croata a percorrer o campo para saudar/animar o seu ídolo Neymar, este choroso após a derrota eliminadora. Em radical contraposição com o acontecido no mesmo dia, os energúmenos jogadores argentinos (encabeçados pelo benfiquista - tinha de ser - Otamendi) gozando os também devastados eliminados holandeses. E o ídolo Messi, insultando o derrotado adversário que esperava para o cumprimentar... Ocorre-me aquela piada que me contam há pouco: "o melhor negócio possível é comprar um argentino pelo preço que vale e vendê-lo pelo preço que ele julga valer!". Não, não é apenas a voluptuosa Miss que me faz torcer, com a diminuta energia que me restou, pela Croácia.

4. É geral - vê-se nos "memes", percebo-o no que leio entre os meus amigos austrais - a saudação aos bons "africanos" marroquinos, representantes dos "vencidos", de África, do "Mundo Árabe", reconquistadores do Al-Gharb, o pérfido "ocidente". Para além do meu incómodo com estas politiquices da bola, mas porque elas "fazem parte", respondo em dois fascículos: 1) "Poitiers" (ou "Tours") - sim, eu sei que a batalha é muito mitificada, e terá sido menos relevante militarmente do que diz a lenda, mas é um bom símbolo; 2) para os mais políticos pan-africanistas, com pitada de revanchismo até nisto da bola (e para os "decoloniais" que se comoveram com a bandeira palestiana nas mãos de um jogador marroquino após uma vitória), deixo apenas, e nisso com uma implícita citação do agora celebrizado José Milhazes, "Saara Ocidental". Ou seja, deixem-se de tretas...

5. Tenho as minhas ligações de FB apinhadas de postais de portugueses (e de partilhas de postais de jogadores internacionais) louvando o ídolo e grande campeão Cristiano Ronaldo. Ou seja, não exageremos, há muito ressabiamento por cá, entre doutores comentadores, jornalistas, painelistas e anónimos vis. Mas, de facto, nós-plebe adoramos o CR7!

Vou então ao almoço. Com uma garrafa de tinto de Palmela debaixo do braço.

Catar - a sociedade das ordens

jpt, 10.12.22

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[(Magnífico) Cartoon de Gargalo]

Tão falado tem sido o caso, verdadeiro drama nacional, que nem é necessário resumir os episódios que o vêm alimentando: é chegado o ocaso de Ronaldo, fenece irremediavelmente o maior atleta português, o mais célebre desportista mundial? Ou, de maneira mais chã e imediata, deve ele ser ainda titular nesta campanha do mundial de futebol? E, ainda mais, é ele ainda credor de algum apreço dos patrícios?

Grassa o azedume avesso ao CR7. O qual não nasceu agora - convém lembrar que ainda em 2013, já ia o homem basto titulado e na ombreira dos 30 anos, ainda era recebido por adeptos portugueses com provocações elogiando Messi. E quem ao longo aos tempos tenha lido jornais digitais bem terá visto constantes coros de invectivas patrícias contra ele (tal como contra Mourinho, um fenómeno similar). Saudando insucessos, anunciando-lhe a degenerescência, a queda iminente, apupando-lhe feitio pessoal e a família, jurando-lhe malfeitorias sexuais ou aventando práticas consideradas "desviantes". Muito disso terá tido uma origem linear, o clubismo: formado no Sporting ele foi mal-amado e, depois  - principalmente após um grandioso hat-trick na Suécia -, apenas pouco-amado por adeptos benfiquistas, monoteístas fanáticos sempre ciosos de garantirem o lugar supremo no panteão do King Eusébio, um pouco à imagem dos velhos (e já quase todos falecidos) sportinguistas irredentistas no clamor de que Peyroteo marcava mais golos do que Eusébio... Só que estes não tinham redes sociais nem jornais digitais para verter o fel.

Mas há uma outra razão, muito mais estrutural - cultural, se se quiser - para este azedume para com Cristiano Ronaldo, o qual agora irrompe de modo desbragado. É a sua personalidade, apupada como "egocêntrica". Nisso sendo considerada como desrespeitadora dos seus colegas de equipa e, por extensão, de todos nós, pois constitutivos da "equipa de todos nós", a sacralizada selecção nacional.  E tantos reclamam face à inexistência de "humildade" no atleta.

Isto é interessante, pois qualquer "campeão" tem de ser egocêntrico. Só se é campeão, mestre e sábio numa actividade, através de uma dedicação afectiva e intelectual extrema: o "nerd" da informática, o "grande-mestre" de xadrez, o enorme maestro clássico, o prolífico romancista, o pintor abrasivo, etc., são indivíduos que podem ser mais ou menos simpáticos mas são aquilo a que chamamos "aéreos", "distraídos", vão "na sua"... Seguem ensimesmados - o que não sinónimo de enclausurados -, egocentrados. Por maioria de razão segue isso num atleta de alta (altíssima) competição, não só uma vida dedicada a uma disciplina férrea como a uma rotina total. E em que o egocentramento não é apenas uma predisposição para o devaneio imaginativo (do excelso programador informático ou do poeta esconso) mas muito mais o desvelo pelo próprio corpo - nisso assim um Ego hipercorporizado, em que uma leve cárie, o simples quisto, o comichoso calo são prementes questões sobre si-mesmo e não ligeiros incómodos dos quais tantas vezes nós, vulgo, nos abstraímos imersos nos nossos afazeres e mundanidades, dadivosos até.

Ou seja, a "humildade" do (grande) atleta (e do grande artista, do grande criador) é para consigo mesmo, existe na fidelidade às rotinas que o potenciam e possibilitam, e a sua altivez é a descrença na necessidade dessa auto-disciplina. E o "egocentrismo" é a sua condição, sine qua non, de existência - essa existência que nós tanto ansiamos, louvamos e até cantamos, berramos e abraçamos nos momentos de gáudio.

Vejo agora constantes queixas sobre a tal arrogância desmedida do CR7, sempre comparada com a humildade (generosa) dos campeões anteriores, nossos ídolos. Mas isso é tudo falso, pois os anteriores grandes campeões tiveram processos similares, principalmente os surgidos no sempre difícil ocaso das carreiras: Luís Figo, também ele um dia eleito Melhor Futebolista do Mundo, também ele já super-estrela neste mundo globalizado, em pleno estádio português durante a orgia nacionalista do Euro-2004 zangou-se por ser substituído e fugiu para os balneários ("foi rezar à Virgem Maria", veio depois dizer o sabido Scolari, pondo àgua na fervura naquele ambiente...); Futre (eleito apenas o 2º melhor do Mundo) fez birras clamorosas no Atlético de Madrid; o agora falecido bi-bota, Fernando Gomes, protestava durante o Euro-84 estar a viver "o pior momento da carreira" por não ser titular e depois veio a entrar em conflito com o seu tão querido clube devido a ser considerado algo vetusto; António Oliveira (um génio do futebol) e Rui Jordão (outro) nem se falavam na mesma equipa, tamanho o choque de egos, para sofrimento dos sportinguistas. O Enorme Carlos Lopes, ainda que tendo sido uma criatura de Mário Moniz Pereira, teve com este profundos desaguisados após a vitória olímpica. Joaquim Agostinho, tão simbólico do povo, era uma personagem irada, e ficou célebre a birra que fez durante o Tour de France, parando durante uma etapa (dez minutos ou mais) deixando o pelotão ir embora, apenas porque não lhe deram uma Coca-Cola (o falecido Carlos Miranda contava essa e tantas outras histórias em magníficas crónicas no "A Bola"). Etc.

Enfim, os grandes campeões não podem ser "humildes" (no sentido vulgar do termo). Podem ser dadivosos, até filantropos (CR7 é-o), mas têm de ser egocentrados, extremamente ciosos de si mesmos e nisso absolutamente convictos. "Férreos" "como o aço"! E a todos custa envelhecer, pois acham que ainda têm dentro de si algo que os outros não vêem - como não viram ao longo de todos os seus trajectos. Caso contrário não são grandes campeões, serão atletas talentosos, até bem sucedidos. Mas não extra-ordinários (assim mesmo, com hífen, para sublinhar que não são pessoas normais).

Qual a razão de a tantos custar a aceitar estas características dos seus campeões - mesmo que tanto fruam dos seus sucessos, em particular os no "desporto-rei", actual paixão nacional? Porque esta gente, estes atletas, quase sempre "vem de baixo". Ou, alguns, agora, da "classe média remediada". E ascendem ao topo, o das disponibilidades económicas e ao topo das propriedades simbólicas (a visibilidade é a moeda desta vertente). Transcendem as "ordens" pré-estabelecidas, as da velha sociedade tradicional. Fazem-no com estrondo. E nisso descuram demonstrar o "respeitinho", aquele que "é muito bonito", face ao "que deve de ser", nesse entretanto retorcendo o chapéu entre mãos, servis diante do destino que os fez subir. Enquanto nós outros para aqui andamos, raisparta, nesta merda de vida...

Enfim, deve Cristiano Ronaldo jogar hoje? É evidente que a decisão compete ao seleccionador Fernando Santos. Sobre cujo trabalho já aqui opinei, sabiamente.

A recepção do Mundial

jpt, 07.12.22

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(Postal no meu mural de Facebook)
 
"Ensaio" blogo-facebuquesco sobre a recepção do Mundial
 
1) Quase todas as minhas 4000 ligações-FB são com moçambicanos ou portugueses.
 
2) Entre as com os portugueses - e por ter blogado de Moçambique durante anos - tenho muitas ligações com quem viveu lá (ou em África). Neste Mundial de futebol (tal como nos anteriores) neste "universo" imensos a ele aludem.
 
3) Entre os portugueses "africanistas" é recorrente a simpatia para com as equipas africanas. Como eu, agora a apoiar o Gana ou o Senegal - este mesmo com a equipa pejada de (também) franceses, o que é um (mais) um caso interessante de inversão da "apropriação", que escapa à atenção dos doutos "póscoloniais", pois não lhes cabe na esquemática cartilha denunciatória, pejada de referências bibliográficas ao Prof. Maniqueu.
 
 
 

Lamento de quem admira o génio

Sérgio de Almeida Correia, 07.12.22

thumbs.web.sapo.io-2.webp(créditos: SAPO/Fabricce Cofrini/AFP)

A cena não é nova. De vez em quando, o tipo amua, torna-se ordinário, e comporta-se como um vulgar badameco desmerecedor do seu talento, sucesso, honras e encómios.

Confesso que não percebo porquê.

Todos temos os nosos egos. De um modo ou de outro vivemos os nossos momentos, os bons e os menos bons. Mas há alturas em que se exige a todos e a cada um de nós a superação. Não tanto enquanto desportistas ou heróis; antes como simples e discretas peças de um todo muito maior, que em cada dia nos obriga a elevarmo-nos, a procurar fazer sempre mais, a dignificarmos a nossa herança e a preparar o futuro das gerações vindouras na base do trabalho, da preserverança e do exemplo.

Vê-lo sair assim do campo, como se a festa não fosse também dele, como se não tivesse contribuído para o êxito, torna-o pequenino e distante. Como se afinal não fosse mais um de nós, um dos poucos que conseguiu elevar-se da medriocridade institucionalizada pela força do trabalho e carácter.

Os portugueses, a Nação, dispensavam estes amuos em final de carreira.

Tudo perdoamos, tudo esquecemos, e muitas vezes ignoramos o que não pode passar despercebido. Porque não somos ingratos e continuamos a acreditar. 

Certamente que não deixaremos de fazê-lo, de enaltecer os seus méritos e virtudes, porque os possui, dando-lhe toda a gratidão pelo que de bom fez e tem feito, talvez elevando-nos, algumas vezes, muito acima daquilo de que efectivamente somos merecedores. Mas depois de tudo o que dias antes aconteceu, que de tão feio deverá ser rapidamente esquecido, ao ver a atitude dos seus companheiros, sempre, que nunca lhe regatearam estatuto, apoio e aplausos, exigia-se outra grandeza na hora da celebração, dispensando-se desculpas estafadas, respostas para cretinos.

E quando se olha para a forma como um Hajime Moriyasu se dirigiu aos adeptos que acompanharam a sua equipa na hora da derrota, e o modo como os outros o viram, não deixa de ser penoso e triste, para mim, ver o princípe abandonar o campo da maneira que o fez.

É nos momentos difíceis que se reconhecem os que são capazes de se elevar acima do mundo, os que pela criação se fizeram e aprenderam a perdurar para além do tempo, os que à sua dimensão e no seu lugar, com a sua humildade e génio, foram absolutamente excepcionais. Em quase tudo; sempre no que é essencial, estruturante e nos define.

Eusébio foi um deles. Pelé também, uma espécie de segundo nós quando não havia mais Eusébio.

Gostava que Cristiano também o tivesse sido. E gostava, ainda mais, que fosse capaz de ainda o ser. Para bem dele, dos seus filhos, e satisfação de todos nós quando um dia falarmos dos seus feitos aos nossos, aos que um dia hão-de vir para nos ajudarem a recordá-lo. De sorriso largo e reconfortante. Como tantas vezes o vimos.

Catar: Portugal-Suíça, o fim de uma era

jpt, 06.12.22

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O fim de uma era e o atavismo da imprensa prisioneira do entretenimento: enquanto tocava o hino, os fotógrafos cercavam o banco e Ronaldo.

Quanto ao jogo, e a esta campanha desta selecção no Mundial, já alcançados os quartos-de-final? Repito o que disse durante o último Europeu: "Como é óbvio contestei com vigor e sageza veterana o pendor conservador do nosso engenheiro seleccionador, antevendo uma deslustrada campanha sob tal "motorista". E elogiei a extrema capacidade do nosso engenheiro seleccionador - sempre avesso à fugaz embriaguês do espectáculo - montando uma equipa tacticamente irrepreensível, delineada para enfrentar os gigantes que se sucederão, e clarividente nas letais e oportunas alterações que decidiu, mostrando que iremos longe sob tal "motorista"."*

* Durante o Europeu-21 Fernando Santos definiu o seu papel como de "motorista" da selecção.

Catar 10 - o Cristão

jpt, 06.12.22

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Nesta época em que alguns constatam o choque das civilizações, em que outros se esforçam por o acicatar, e outros se esgadanham por o inventar e às putativas "identidades" que lhes travarão os combates com que têm sonhos até lúbricos, é muito interessante esta coisa do futebol no advento da terceira década do XXI, o tal milénio começado pela queda dos arranha-céus da Babel nova-iorquina. 

Pois no meio disto tudo, do satanismo "ocidental" e do furibundismo islâmico - para além da milenar malvadez do mandarinato e da lendária perfídia dos hindus, ainda que agora estes alheados no seu críquete -, o que surge é que foram todos jogar à bola para o Golfo Arábico, no tão estrito Catar. Onde - até hoje à noite, pelo menos, que aquilo não parece andar nada bem para o nosso lado - lá vai reinando o nosso ídolo, amado com furor pelas massas locais. E o qual, por isso mesmo, por essa imensa paixão que colhe, logo seguirá para a temível vizinha Saudita, pago a peso de imenso oiro, verdadeiro luxo asiático, tanto que serve para estupefacção global...

E nisto só atento, sob esse tal fundo de "choque de civilizações" e de questiúnculas de "identidades", que naquela radical Arábia amam e cobrem de riquezas um tipo chamado Cristão que se preparou para este Mundial com um novo brinco em forma de Cruz de Cristo. Noutros tempos - nem tão recuados assim - passaria ele por Cruzado, assim apupado (para não dizer pior).

É esta a força da bola, dos seus imponderáveis rumos até beijar as redes. Para o pulo e grito em uníssono.

Portugal-Coreia do Sul

jpt, 03.12.22

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Após a vitória de ontem da Coreia do Sul (equipa que jogou com muita... tranquilidade) fui ao cinema ver o "Bilhetes para o Paraíso", com o par romântico Clooney & Julia Roberts, devoto que sou desta diva. A historieta é muito fraquinha, o filme é um filminho. Mas o que mais me impressionou foi constatar que a actriz está um pouco... antiga. Óptima, resplandecente, lindíssima. Mas um pouco... antiga, repito. Algo que em nada apouca o meu culto, até pelo contrário, fidelíssimo vou até que o forno me consuma.
 
Pipocas terminadas apercebi-me da situação, tal e qual a da selecção e do CR7. Ele um pouco... antigo, e todo o filme mais dependente da historieta e da forma de a contar. Quanto ao público ocorre-me que muitos ainda clamam que a Sofia Loren é que era, que ninguém se compara com a Ava Gardner, e nisso invectivam, com sanha sarcástica, a bela Julia. E outros mais conspícuos falam, com lubricidade palpável, das Jennifer Lawrence d'agora.
 
Pobre gente..

Futebol surreal

Cristina Torrão, 02.12.22

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O Mundial do Catar tem sido um fiasco em questão de audiências televisivas, na Alemanha. E, agora que a Mannschaft já deixou as arábias, até me pergunto se os canais estatais ARD e ZDF continuarão a transmitir os jogos.

Algo se passa na selecção alemã. Um tipo de futebol que deixou de funcionar? Falta de adaptação dos seleccionadores (sempre alemães) ao novo estilo de jogadores com origem migrante, como Serge Gnabri, Leroy Sané e Jamal Musiala? Enfim, nem sequer sou treinadora de bancada, não me compete dar respostas, muito menos, encontrar soluções. Mas a maneira como a Alemanha foi eliminada, desta vez, foi muito deprimente. O jogo de ontem teve momentos surreais.

A Alemanha tinha de ganhar. Mas estava, ao mesmo tempo, dependente de uma vitória da Espanha. Os primeiros golos foram marcados quase ao mesmo tempo: a Alemanha aos 10 minutos, a Espanha aos 11 minutos. Estava tudo a correr bem. Mas, aos 48, o Japão empatou e aos 51 pôs-se em vantagem. Logo a seguir, aos 58 minutos, a Costa Rica empatou. Aqui, o meu marido e eu passámos a torcer por uma vitória da Costa Rica. E note-se que o meu marido é alemão! Porquê? Se a Alemanha já não tinha praticamente hipóteses, que fosse a Espanha também eliminada. E não é que a Costa Rica marca o segundo golo aos 70 minutos?

Alegria efémera. Três minutos depois, Havertz empatou o jogo. Maldito Havertz! Ficámos numa situação muito ingrata, não me lembrava de já ter vivido semelhante, a assistir a um jogo de futebol. Deveríamos torcer pelo terceiro golo da Costa Rica? Mas: e se a Espanha ainda conseguisse virar o resultado?

O que veio a seguir foi surreal. A Alemanha começou a marcar golos e a Costa Rica desesperava. Tudo em vão. O marcador do Japão-Espanha congelara naquele fatal 2:1. Foi penoso ver a Alemanha a aumentar a sua vantagem, sabendo que tal vitória beneficiava apenas a Espanha.

Só nos resta esperar que “Marruecos” trate da saúde a “nuestros hermanos”.

E, de resto, viva Portugal!

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A propósito de justiça e sorte

Pedro Correia, 01.12.22

Há dois conceitos que evito associar às minhas reflexões ocasionais sobre o fenómeno desportivo - e o futebol em particular.

O primeiro é o conceito de justiça. Escuto e leio muitas análises aos jogos ancoradas neste conceito - «se houvesse justiça, a equipa X teria ganho»; «a vitória da equipa Y foi justa».

Ora, salvo no que se refere a procedimentos disciplinares, a justiça não é para aqui chamada. Um desafio de futebol não é uma audiência de tribunal. Aqui o importante é vencer - por uma margem muito dilatada, de preferência, mas se for pela diferença mínima também serve. Que se vença até por «meio golo», como na velha boutade das conversas de café.

 

 

Ao pretendermos explicar tudo em futebol recorrendo ao conceito de justiça, acabamos por não explicar nada. Porque aquilo a que por comodidade chamamos injustiça é uma espécie de lei não escrita imanente a todo o jogo. Uma das mais brilhantes proezas técnicas da carreira em campo de Cristiano Ronaldo foi aquilo a que se chama um golo limpo, "injustamente" anulado pelo árbitro por alegada deslocação de Nani numa vitória da selecção portuguesa contra a Espanha.

Eu estava lá - e vi. Nunca hei-de esquecer aquele golo, reproduzido aqui mais acima.

 

É inútil insistir no contrário: não existe uma justiça poética nos estádios que resgata os verdadeiros campeões, projectando-os da relva dos estádios para esse simulacro de Campos Elíseos a que se convencionou chamar verdade desportiva. Penso nisto todas as vezes que me lembro de um dos jogadores mais celebrados da história do futebol. Diego Maradona, ele mesmo. Um dos seus golos mais famosos - e decisivos - foi marcado com a mão, à margem das leis do jogo. Passou à eternidade não como infractor, mas como lenda viva.

Onde mora a justiça em tudo isto?

 

 

O segundo conceito é o de sorte.

Diz-se que Fulano é um sujeito com sorte ou que Beltrano, figura estimável, padece no entanto do facto confirmado por todas as evidências de não ser acompanhado por essa cobiçada deusa a que chamamos Sorte. E ninguém quer figuras tocadas pelo estigma do azar na sua equipa do coração.

A sorte conquista-se, constrói-se. Dá muito trabalho. Prefiro sempre usar a palavra mérito em vez da palavra sorte. E volto a Cristiano Ronaldo: desde cedo, ainda na escola desportiva de Alvalade, onde se formou para o futebol e para a vida, o campeão madeirense prolongava as sessões de treino, continuando a exercitar-se mesmo após a partida dos colegas. Aperfeiçoou e desenvolveu da melhor maneira as suas aptidões naturais. Ultrapassou a fronteira que separa os jeitosos (que é quanto basta quase sempre em Portugal) daqueles que têm verdadeiro talento.

A sorte ajuda? Pois ajuda. Mas não explica nada. Quando Cristiano, com um remate bem colocado, cheio de força, faz tremer o poste da baliza adversária, os analistas que adoram cultivar o lugar-comum dirão: «Teve azar.» Ele será o primeiro, no entanto, a reconhecer que esteve quase mas terá de esforçar-se ainda um pouco mais para a bola entrar na próxima vez. Que poderá ser já no minuto seguinte.

 

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Foto de Robert Capa no Dia D (Normandia, 6 de Junho de 1944)

 

Experimentem usar mérito ou competência no lugar da palavra sorte.

Não é uma simples questão semântica: há toda uma filosofia de vida subjacente às palavras que escolhemos.

Cristiano Ronaldo está para o futebol como Robert Capa estava para as reportagens de guerra. Merecidamente distinguido em vida com o título de melhor repórter fotográfico da sua geração, Capa costumava dizer: «Se a foto não estava suficientemente boa é porque não estavas suficientemente perto.»

A sorte é isto. E constrói-se a todo o tempo por aqueles que beneficiam dela.

Catar 6 - Portugal - Uruguai, o hat-trick conseguido

jpt, 28.11.22

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Lá no Catar anda endiabrado o nosso Bruno Fernandes, até agora sempre tão contestado pelo seu rendimento na "equipa de todos nós". Se no jogo anterior oferecera dois golos agora ainda mais se aprimorou e não só bisou como esteve prestes a alcançar o tricórnio, o famoso hat-trick, que teria conseguido não fora o esforço final do guarda-redes adversário e ainda a férrea oposição do poste alheio.

Mas um verdadeiro hat-trick, glorioso, conseguiu-o este atleta popular, irrompendo campo afora, com codícia surpreendendo a defesa de betão da equipa FIFA, numa magnífica investida box-to-box, tão escorreita que escapou ao escrutínio televisivo do VAR. Jogada enleante e letal e num ápice 1-0, pela Ucrânia, 2-0 pelo povo iraniano, 3-0 por isto de vivermos e amarmos como queremos sem sermos perseguidos por isso.

Sem qualquer dúvida foi o melhor jogador em campo...

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Catar 5 - Viva Carlos Queiroz!

jpt, 27.11.22

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O desporto serve de propaganda dos países - e daí todas as manipulações estatais desse património, desde a simples associação dos políticos aos ídolos aos apoios cirúrgicos a actividades que possam fazer resplandecer os Estados e seus próceres. Até, de forma ainda mais perversa, às indústrias de aplicação de drogas - o sempre dito "doping" - centrifugadas pelos Estados, principalmente, mas não só, os ditatoriais. Mas ao mesmo tempo - numa confluência avessa a leituras lineares, encomiásticas ou denunciatórias -, o desporto é o espelho das sociedades, assim não só matéria através da qual se descortinam características fundamentais mas também dinâmicas transformativas emergentes ou existentes.

Em Portugal tal complexidade foi patente durante as guerras coloniais, com as espantosas epopeias do Benfica europeu - e, em menor escala, do Sporting - e, ainda mais, dos "Magriços", essas amálgamas de filhos de operários e agricultores miserabilizados pejadas, estreladas e até capitaneadas por mulatos "filhos do Império" (estes assim elevados a "brancos", como lembrou o Monstro Sagrado Mário Coluna na sua biografia), equipas que se poderiam dizer epítomes do então propagandeado "luso-tropicalismo", quase como se o seu seleccionador fosse, afinal, o brasileiro Gilberto Freyre.*