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Delito de Opinião

A liberdade em marcha-atrás

Mortágua em 2024 desmente o Louçã de 2008

Pedro Correia, 21.05.24

 

Mariana Mortágua lidera um movimento favorável à supressão da liberdade de expressão no reduto onde ela deve estar mais salvaguardada: a sala das sessões da Assembleia da República, sede da soberania nacional.

Uma frase de mau gosto debitada por André Ventura na sexta-feira de manhã desencadeou uma onda de exclamações inflamadas contra o presidente da Assembleia da República por não ter mandado silenciar aquele deputado. Aguiar-Branco declarou, pelo contrário, que advoga um conceito muito lato, nada restrito, da liberdade de expressão. Pelo mais louvável dos motivos: não tem vocação para censor.

Faz muito bem. O contrário é que seria preocupante, tratando-se da segunda figura do Estado.

Era o que faltava, neste ano em que celebramos o 50.º aniversário do 25 de Abril, os cravos murcharem ao ponto de alguns quererem transformar o presidente da AR num mestre-escola a distribuir reguadas pelos meninos irreverentes ou num velho regedor de aldeia pronto a suprimir expressões indecorosas. Como se a liberdade em Portugal andasse em marcha-atrás.

 

Acontece que o presidente da AR não pode censurar nenhum deputado. O mandato popular confere-lhes, em absoluto, o direito a não serem perseguidos judicialmente pelas opiniões que emitem em sede parlamentar.

Nem poderia ser de outra forma. Concordemos ou discordemos do que dizem, todos representam a nação, eleitos pelos portugueses. Se exprimirem opiniões que detestamos, mais ainda devemos garantir que possam continuar a emiti-las.

Esta é uma trave mestra da democracia liberal. 

 

Não me espanta que a coordenadora do Bloco de Esquerda pretenda silenciar quem discorda dela: o radicalismo que imprimiu ao partido, desfazendo o legado de relativa moderação de Catarina Martins, é o corolário disto.

Nem sequer me surpreende que um cortejo de «personalidades da música e do entretenimento» tenha logo saído em defesa da lei da rolha. E que uma organização intitulada SOS Racismo, que nenhum português elegeu, exija aos gritos a demissão de Aguiar Branco. Dando razão a Ricardo Araújo Pereira, quando em 24 de Abril escrevia no Expresso: «A frase, tão popular, "a minha liberdade acaba onde a dos outros começa" é curiosa porque, fingindo ser sensata, costuma ser usada para justificar vários atropelos à liberdade. Normalmente, quem a profere não está mesmo a falar dos limites da sua liberdade. A minha formulação "a minha liberdade acaba" faz parte do logro. É sempre da liberdade dos outros que se trata.»

Já me espanta um pouco mais que uma dirigente socialista que respeito, como Alexandra Leitão, navegue nas mesmas águas. Ao ponto de, nessa manhã de sexta-feira, quase ter intimado Aguiar Branco a retirar a palavra ao líder do Chega. Como se o presidente da AR tivesse alguma tutela sobre aquilo que os restantes 229 deputados afirmam, no pleno uso da liberdade que a Constituição lhes faculta.

 

Neste lamentável episódio, Mortágua faz o papel de José Sócrates, que em 11 de Julho de 2008, no mesmíssimo local, exigiu a Francisco Louçã - fundador e então deputado do BE - que tivesse «tento na língua». Enquanto bradava: «Eu não confundo a liberdade com a liberdade de insultar.» E perorava sobre «o excesso de liberdade que põe em causa a liberdade dos outros.» Nada mais triste.

Levou réplica sem demora.

«Entendo que qualquer vertigem censória nunca passará neste parlamento. Eu direi sempre aqui, na minha bancada e neste parlamento, tudo aquilo que quero dizer. E se algum dia alguém lhe disser a si para ter tento na língua, eu estarei a defendê-lo. A grandeza da democracia é defender também o direito de opinião de todos, sem excepção.» 

Palavras de Louçã nessa sessão parlamentar, ripostando a Sócrates em defesa intransigente da liberdade de expressão. Palavras que mereciam aplauso antes e continuam a merecer aplauso agora.

Que diferença. Que degenerescência do Bloco de Louçã para o actual bloco censório de Mariana Mortágua. Pronto a silenciar os outros - hipocritamente, em nome da liberdade.

O Funeral da Rainha e o Futuro

jpt, 19.09.22

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Sentei-me a ver o funeral "da" rainha. Zapping - estações árabes (Aljazeera), "europeias" (Euronews), espanholas, francesas, britânicas (claro), norte-americanas, alemãs, portuguesas, italianas e decerto que tantas outras, às quais não tenho acesso, mundo afora a transmitirem o funeral em directo. Quando a rainha nasceu a Grã-Bretanha era o maior império do mundo e quase ainda se poderia dizer a "Rule Britannia, (Royal Navy) rule the waves". Não é o caso agora, o país e sua "armada" algo secundários - mas menos do que poderá parecer aos distraídos, mostra-o o espantoso impacto mundial do dia de hoje.
 
Impressiona-me a enormidade e o rigor de todo este aparato mortuário, uma riqueza simbólica cuja miríade de detalhes, decerto que desejavelmente significantes, me escapam. Uma monumentalidade faraónica, exclamo sem o mínimo menosprezo, nesta atenção longamente planeada pela transição para um Além. Um Além que é, crenças religiosas à parte, o Futuro, este pensado como corolário de uma continuidade, transportada em marcha lenta mas nunca imóvel.
 
Quem se recusa a entender isto, entrincheirado em questões de "regime" ou em atoardas politiqueiras, nada entende de política. E de cidadania. Li há dias que um pobre "mestre de pensamento" português, de extracção enverhoxista ou quejanda, clamou ser ter sido mais influente e frutífero Godard do que Isabel II. Como é que há gente que ainda lê e ouve este tipo de argumentação? Somos nós filhos/netos de Darwin, Dickens, Stuart Mill, Turner ou de Vitória? Isto será questão a colocar por quem pense política, História ou, pura e simplesmente, a vida? Então para quê aturar esta encenação? Não a da realeza. Mas sim a pobre encenação de um pensamento crítico...

Frei Anacleto*

José Meireles Graça, 01.04.22

Dizem pessoas de bom critério que, face a discursos que não se apreciam, se devem atacar as ideias que eles contêm, não as pessoas que os proferem.

Pois sim, mas isso é se os oradores não forem umas pestes e se as doutrinas de que são depositários não lançarem uma luz ominosa sobre tudo o que dizem. Frei Anacleto Louçã pode afirmar que cozidos à portuguesa há muitos mas que as suas qualidades são tributárias das dos requinhos sacrificados para o efeito, declaração que nunca proferiu e que eu aprovaria com entusiasmo se feita por outrem. Por ele, todavia, suspeitaria de imediato que se propunha, no mínimo, destruir os empresários da pecuária.

Quem é esta peça, professor de economia (!), ex-deputado, figura tutelar do Bloco, conselheiro de Estado e opinante contumaz?

É comunista, da variedade democrática, coisa do arco-da-velha porque a expropriação dos meios de produção é uma violência e a débacle económica que transformações radicais deste tipo originam implica a tentativa de derrube do governo que as encabece, o qual reage fatalmente com os meios coercivos necessários para se manter – um estado comunista é necessariamente policial, que uma democracia não pode ser por definição.

Ou então Louçã não é comunista (há declarações suas em que parece que sim e outras em que parece que não), mas quer depurar o capitalismo eliminando-lhe os defeitos, a começar pelo da desigualdade, através da fiscalidade e com um fortíssimo sector público. Com o que mataria o motor do crescimento, como se tem visto com a governação PS desde fins de 1995 (os interregnos de 3 anos 2002/05, com o gestor de carreira Durão e o nem isso Santana, e de quatro (2011/15) com Passos Coelho, não afectaram significativamente o pendor socialista do regime porque ao último destes governantes, que tinha a vontade e a convicção para lhe sustar a deriva esquerdista, faltou uma vitória absoluta depois de remendar o tecido esgarçado das finanças).

Ninguém sabe se Costa aplicou a receita falhada de aumentar o número de dependentes directos e indirectos do Estado, para isso subindo a carga fiscal e mesmo assim a dívida, como preço que teve de pagar às duas demências que sustentavam a sua maioria ou como resultado fatal das suas crenças. Eu acho que o homem tem a consistência e a habilidade dos fura-vidas políticos de sucesso, mas com ideias basicamente erradas sobre o que é o motor do desenvolvimento – sozinho ou acompanhado pela tralha comunista o resultado não é, porque não pode ser, senão atraso relativo.

É aqui que estamos – mais uns anos e os filhos da geração mais bem formada de sempre emigrarão para países para os quais, à data das respectivas adesões à UE, olhávamos com alguma sobranceria, como sucede com a Irlanda. Um cidadão da exígua classe média, hoje, entrega cerca de metade do seu rendimento, que já é dos mais baixos da Europa, ao Estado, e do que sobra mais de um quarto é sugado em IVA e em impostos e taxas sortidas para consumir ou luxos como andar de carro, quando não é para despesas da saúde para todos tendencialmente gratuita, mas só no caso de poderem esperar meses e anos.

Ainda há quem escape a esta mediania pobreta. E são esses que o PCP e o Bloco tenazmente perseguem – aquela gente encasquetou nas cabeças atulhadas de tresleituras esquerdosas que a maneira de acabar com os pobres é acabar com os ricos, coisa que nunca funcionou em lado nenhum. E agora que o país já se livrou das duas seitas poderíamos talvez sonhar com um módico de sanidade – se o PS de Costa não fosse, como é, uma versão edulcorada do Bloco, completa com líderes alternativos, como o celebrado Pedro Nuno Santos, que deveria, para ser coerente, realizar as suas reuniões com a equipa do ministério num avião de sucata da TAP, a beber espumante reles meio-doce.

Adiante, que quem me ocupa é o pastor Anacleto, que tudo leva a crer continuará a andar por aí a aliviar-se do asneirol untuoso que é a sua marca d’água.

Diz a peça que a solidariedade que não está a faltar aos refugiados ucranianos faltou aos curdos, aos sírios e aos afegãos, entre muitos outros deslocados de guerra, e que, “para o escrever com todas as letras, o racismo foi a razão para a discriminação”.

Não apenas entendo a discriminação como a defendo. Não exactamente no caso de guerras, mas Anacleto, na realidade, não está muito interessado na distinção entre refugiados e imigrantes económicos: em havendo discriminação contra negros e muçulmanos, por exemplo, qualquer que seja a origem deles, aponta o dedo fremente de indignação e, com o cenho carregado de virtuosa indignação, sai logo espadeirando com acusações de racismo.

Daqui decorre a putativa superioridade moral de Anacleto e do seu convento sobre a massa ignara dos incréus, que calha no caso serem pessoas de direita, ou da esquerda sem antolhos, que também há. Donde, a acusação e o assunto precisam de clarificação.

Quanto ao racismo convém esclarecer que a lei, cedendo aos Anacletos deste mundo, parece criminalizar não apenas atitudes racistas mas também a difusão de ideias racistas. Ora, o legislador, ao proteger a vítima de discriminação em casos concretos, o que está a fazer é a defender a igualdade dos cidadãos perante a lei, que é um adquirido civilizacional. Mas isso não deve implicar a criminalização de opiniões, porque as ideias não se combatem com proibições.

Depois, os cidadãos estrangeiros não têm de beneficiar automaticamente dos benefícios da cidadania portuguesa, ou outra qualquer, porque as leis portuguesas se aplicam a portugueses em Portugal, ou outros que a comunidade admita – Portugal não é, nem nenhum país pode ser obrigado a ser, a casa da Mãe Joana.

A Europa completamente aberta à imigração teria o grave defeito de deixar de ser a Europa que atrai imigrantes, e cada um dos nacionais de cada país rapidamente se daria conta de não reconhecer nem as instituições, nem os costumes, nem o ordenamento jurídico, tudo subvertido pelo enxerto de mundividências alheias – disso já há, e há muito, fartos sinais naqueles países que por razões várias têm comunidades alienígenas demasiado significativas, o que não é o caso do nosso.

Isto significa que na prática todos os países fazem dissimulada ou ostensivamente discriminação, e fazem bem. Ter comunidades demasiado extensas de, por exemplo, negros ou muçulmanos, é constituir um reservatório de problemas para o futuro: os EUA vivem permanentemente com problemas de índole racial, não obstante todos os esforços de décadas de discriminação positiva, porque o passado projecta sombras compridas e a sua população negra (à volta de 14%) tem dificuldades em furar o círculo infernal da guetização. E imigrantes muçulmanos, mesmo existindo em várias declinações e obediências, tendem a, se o seu número for suficientemente expressivo, adoptarem comportamentos em desafio dos ordenamentos jurídicos em que as mulheres, por exemplo, têm um estatuto de igualdade legal e prática – coisa que a esquerda bloquista, cá e em todo o lado, ignora por razões interesseiras.

Depois, cada país é um caso. Portugal, que tem um passado imperial, tem deveres especiais de acolhimento (na minha opinião) em relação a oriundos das antigas colónias, mesmo que, sendo negros, o risco da guetização exista, como não existe, por exemplo, em relação a Brasileiros.

Mas, não podendo acolher toda a gente, e tendo a Europa desesperadamente necessidade de imigrantes, é natural que prefira os que contribuem para o seu desenvolvimento, e não para o desenvolvimento de problemas. Os Ucranianos preenchem todos os requisitos, como o preenchem os Portugueses que dão à sola para o Reino Unido, ou França, ou o que calha.

Anacleto mistura tudo e classifica de racismo a defesa legítima de interesses nacionais. Chamar-lhe estúpido por causa deste sincretismo cretino é uma tentação, mas mesmo que o homem seja, como é, uma esponja de quanta baba suja anda no ar do marxismo reciclado, estúpido não é – apenas calculista. A tropa de combate dos marxistas da Bayer in illo tempore era o operariado, que agora está sentado diante de um computador a aliviar-se de vivas ao Chega! nas redes sociais. De modo que as novas tropas, além da juventude com acne e a cabeça cheia de revoluções, só podem ser as das minorias oprimidas. O que Louçã quer é clientes, admiradores e eleitores. Para ele fazer e ser o que fez e foi toda a vida: um magistrado da opinião que tem os lugares, e a audiência, que não merece. Vens de carrinho, Chico.

Finalmente, uma nota pessoal: se eu fosse racista di-lo-ia, desassombradamente. Sei que não sou porque se tivesse netas mulatas ou de traços asiáticos estimá-las-ia tanto como se fossem hispânicas, para usar a estúpida terminologia americana, e só olharia para o genro de esguelha se este fosse desarrumar-me as estantes. O que não é a mesma coisa que achar que todas as sociedades estão no mesmo estado de adiantamento civilizacional ou que a religião é irrelevante: os muçulmanos não resolveram ainda o problema da separação entre a igreja e o Estado por causa de o fundador ter sido um chefe militar e civil, que estabeleceu regras para a organização da sociedade, enquanto que o do cristianismo desde o princípio que quis deixar a César o que é de César. E, portanto, tenho uma mensagem para os freis Anacletos, intelectuais Pachecos e figuras menores do palavreado antirracista: Ide pentear macacos. Não utilizo uma expressão vernácula porque sou do tempo em que não se diziam palavrões à beira das senhoras e estou convencido de andarem por aqui algumas leitoras que, com alguma ingenuidade, me tomam por um cavalheiro.

 

* Publicado no Observador

Conselheiro de Estado

jpt, 30.03.20

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1. Num dia indignamo-nos com as declarações de um ministro holandês sobre as finanças do Estado espanhol, em plena crise desta temível pandemia.

2. No dia seguinte, o Professor Francisco Louçã, conselheiro de Estado e vulto-mor da esquerda "urbana" diz-nos, sobre a referida temível pandemia, que "A Alemanha gosta desta situação", pois "beneficia com estas crises". A tal "esquerda urbana" que o subscreve, e tantos deles seus colegas, anuiu pelo silêncio e - imagino, pois sigo confinado - num "o Louçã tem razão, sim senhor ...".

3. No dia seguinte suicida-se Thomas Schafer, ministro das finanças de Hesse, um dos estados da Alemanha Federal, e seu provável futuro ministro-presidente. Pois, e para além de outros hipotéticos problemas pessoais, se encontrava avassalado com os efeitos económico-financeiros desta ... temível pandemia.

Conselheiro de quê? ..

As coisas mudam

Pedro Correia, 30.10.19

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Revi-me há dias nesta imagem de arquivo no Jornal da Noite da SIC. Estava sentado na bancada de imprensa da Assembleia da República com os meus colegas Nuno Simas e Paula Sá - os três em representação do Diário de Notícias. No primeiro dia da legislatura 1999/2002, há 20 anos exactos.

À nossa frente, dois deputados caloiros: Francisco Louçã e Luís Fazenda. Acabavam de ser eleitos e recusaram sentar-se numa segunda ou terceira fila, como figuras adjacentes da bancada parlamentar comunista. O PCP não queria dar palco político e mediático àquele jovem partido que prometia crescer à custa de fatias cada vez mais dilatadas do seu eleitorado.

Louçã e Fazenda teimaram em permanecer de pé, recusando os postos secundários que lhes haviam sido destinados por consenso dos imobilistas que dominavam no Parlamento - mesmo os da autoproclamada esquerda, tão avessos como os outros à mudança. E fizeram muito bem. Viriam a ter os lugares que reivindicavam: um na primeira fila, o outro atrás dele. Em lugar nobre do hemiciclo e perto dos focos mediáticos. Não podiam, aliás, estar mais perto: a bancada da imprensa é logo ali.

 

2

Revejo com certa nostalgia esta foto do meu tempo de repórter parlamentar, onde surge Lino de Carvalho, qualificado deputado comunista, tão prematuramente desaparecido. Parece que foi anteontem e já nos transporta ao século passado. Estreantes no hemiciclo, Louçã e Fazenda vestiam a rigor, ambos com fatinho de deputado: a única nota de rebeldia, que na altura gerou imenso clamor, foi a ausência da gravata - prenunciando o que o Syriza, na Grécia, fez 16 anos mais tarde e o deputado da Iniciativa Liberal faz hoje em São Bento, duas décadas volvidas.

Basta esta imagem fixada no tempo para se perceber como os padrões de vestuário mudaram entre as vetustas paredes do Palácio de São Bento. Falta pouco para vermos deputados de chinelos. Alguns equipam-se mais a rigor quando vão para a esplanada do que quando chegam ao Parlamento. Embora exijam - estou certo disso - code dress num posto clínico, numa esquadra, num tribunal ou até num daqueles restaurantes caros e péssimos que costumam frequentar.

O modo como nos vestimos diz muito do nosso respeito pela casa que visitamos - respeito suplementar tratando-se de uma instituição angular da democracia portuguesa. No caso dos jornalistas, acresce que - como um dia disse a um colega mais jovem, quando o vi em São Bento de sandálias e calções - não estamos ali em representação própria, mas do órgão de informação em que trabalhamos. Razão acrescida para salvaguardar a imagem desse título jornalístico: naquele momento, naquele local, ele é personificado em nós.

Fala-se muito na degradação dos trabalhos parlamentares, evidenciada pela fraca qualidade média dos deputados. Essa degradação começa nos padrões de vestuário. Anda tudo ligado, como dizia o outro.

 

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Esta imagem reconduz-me também a um episódio da vida jornalística que demonstra como a inércia é uma força muito poderosa nas redacções dos jornais. Quem assumia então responsabilidades na secção política do DN entendeu distribuir equipas de trabalho para cobrir a campanha eleitoral de 1999 em obediência ao cânone tradicional: PS, PSD, CDS e PCP.

Quando perguntei, numa reunião, quem iria acompanhar o BE, obtive uma resposta burocrática: «É irrelevante. Seguimos pela Lusa.» Contestei, argumentando que o recém-surgido Bloco iria ser a novidade daquelas legislativas. E lá voltou o contraponto burocrático: «Nem pensar. É um epifenómeno, mero folclore eleitoral.»

Insisti. Como o Parlamento estava fechado, ofereci-me como voluntário para cobrir as acções de campanha do BE. E lá andei na rua, acompanhando a ainda incipiente caravana bloquista, cada vez mais convicto de que a razão estava do meu lado. Como se viu. O novo partido não se limitou a eleger um solitário representante, como noutros tempos sucedeu com a UDP ou o efémero Partido da Solidariedade Nacional de que já ninguém se lembra, mas dois deputados - requisito mínimo para constituir grupo parlamentar. E aquela legislatura revelou-se crucial para o seu crescimento.

Foi, aliás, uma legislatura histórica desde o primeiro dia - a que decorreu sob o signo 115-115, quando o número de deputados apoiantes do Governo se equivalia ao dos representantes da oposição todos somados, o que acabou por ditar o seu fim prematuro.

 

4

Lembro este episódio e concluo que nestes últimos 20 anos, nas redacções jornalísticas, só se mudou para pior. Desde logo pela flagrante falta de meios em comparação com os que existiam em 1999.

Voltaram a imperar as rotinas burocráticas, voltou a evidenciar-se a falta de rasgo na cobertura de campanhas eleitorais, voltou a apostar-se só no que já se conhecia. Quase nenhum meio informativo acompanhou em pormenor as acções de campanha das três forças políticas emergentes das legislativas de 6 de Outubro: Chega, Iniciativa Liberal e Livre. Imagino que alguns repórteres terão ouvido, nas respectivas redacções, os mesmos argumentos que eu ouvi há duas décadas das chefias de turno: são epifenómenos, não chegarão a lugar algum.

E no entanto as coisas mudam. Basta por vezes vermos uma foto antiga para percebermos isto.

De olhos bem fechados

Pedro Correia, 23.02.19

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«Há um perigo na Venezuela», onde um tirano proto-comunista, cabeça de turco de uma ditadura militar, não hesita em mandar atirar contra o povo, condenando-o à doença e à fome, perante a indignação universal.

Universal? Nem tanto. Ainda não li nenhum texto indignado contra Maduro subscrito em conjunto por Freitas do Amaral e Francisco Louçã, semelhante ao que publicaram há dois meses no El País em vigoroso alerta contra Bolsonaro. Quanto à Venezuela, continuam de olhos bem fechados.

Jornalismo ZEN.

Luís Menezes Leitão, 03.07.17

Confesso que não tenho paciência nenhuma para assistir a políticos travestidos de comentadores. O comentário pressupõe distanciamento sobre o que se comenta, o que alguém envolvido no combate político manifestamente não tem. Mas em Portugal entrou na moda os políticos com ar mais senatorial vestirem o fato de comentadores. Foi assim sucessivamente com Marcelo Rebelo de Sousa, António Vitorino, José Sócrates, Marques Mendes, Santana Lopes e Francisco Louçã. Claro que os mesmos pretendem convencer-nos de que a sua carreira política terminou, e que por isso estão à vontade para comentar, mas tal é completamente falso. Marcelo Rebelo de Sousa construiu laboriosamente a sua campanha presidencial na televisão e José Sócrates, se o tivessem deixado, também o teria feito.

 

Mas o que me choca mais não são esses espaços de verdadeira propaganda política, que as televisões permitem, e que já se sabe que esses políticos aproveitarão no seu próprio interesse. O que me preocupa é a figura do jornalista ali presente que, ou faz de ponto, ou assiste passivamente a autênticas manipulações sem fazer a mínima correcção ou esclarecimento ou sequer uma simples pergunta. Com a honrosa excepção de José Rodrigues dos Santos, que muita polémica deu, os jornalistas alinham pacificamente nestas verdadeiras operações de propaganda.

 

Vem isto a propósito do momento ZEN de Francisco Louçã, em que ele resolveu comparar as questões de Assunção Cristas no parlamento sobre o combate aos fogos com declarações anteriores da mesma de que, como pessoa de fé, aguardaria pela chuva. O problema é que essas declarações de Assunção Cristas, proferidas em 21 de Fevereiro de 2012, eram relativas à seca e não aos fogos, que não se verificam no pico do Inverno. Quem referiu que a chuva poderia combater os fogos foi Catarina Martins, mas sobre ela obviamente que Louçã não abre a boca.

 

Não me espanta nada que Louçã use o seu espaço televisivo para operações de manipulação, uma vez que nunca esperei dele outra coisa. O que me espanta é que esteja uma jornalista presente a permitir esta operação sem um único comentário ou questão ao entrevistado. É com este tipo de jornalismo ZEN que a comunicação social vai perdendo credibilidade.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 26.08.16

«As coisas correram pessimamente ao Governo durante o mês de Agosto. Pelo caso da GALP e pela forma muito amadora como pareceu ser tratada a escolha da administração da Caixa Geral de Depósitos e depois a sugestão de uma proposta de lei para favorecer pessoas especificamente - isso é uma coisa que não se faz. (...) A economia está estagnada. (...) Era preciso haver melhores notícias para os salários, para as pessoas, para o investimento, para o emprego.»

Francisco Louçã, na SIC Notícias

Sobre o manifesto (9)

Pedro Correia, 24.03.14

Vamos brincar à demagogiazinha

Pedro Correia, 10.11.12

Não sei se havia pobres na convenção do Bloco de Esquerda que hoje elegeu uma liderança bicéfala (ou paritária, em politiquês correcto). Mas, segundo os relatos da imprensa, não faltaram vaias à presidente do Banco Alimentar contra a Fome, um dos organismos que mais tem socorrido os pobres em Portugal - não com palavras mas com actos concretos, generosos, solidários. Os verdadeiros pobres, os de carne e osso - não os pobres dos discursos destinados a aliviar boas consciências e a desempoeirar a ideologia - sabem a que porta hão-de bater quando precisam. E o Banco Alimentar contra a Fome é uma delas.

"Sei que nos chamam radicais por querermos correr com a 'troika' desde o dia zero. E agora quando vemos uma senhora do movimento nacional feminino [Isabel Jonet] a brincar à caridadezinha o que lhe vão chamar?", disse Francisco Louçã na sua última intervenção como líder do Bloco, numa das tiradas mais demagógicas que alguma vez lhe ouvi e em nada condizente com o seu recente discurso de renúncia como deputado à Assembleia da República.

É demasiado fácil, para um político tão bem-falante como Louçã, fazer demagogia com alguém que não se distingue pelo dom da palavra mas pela dádiva do seu exemplo. Seis minutos de declarações inábeis, num debate em directo na televisão, não podem apagar 20 anos de serviço à causa pública. "Aproveitar onde sobra para distribuir onde falta" num país onde um quinto da população vive abaixo do rendimento mínimo é o lema do Banco Alimentar, distinguido em 2005 - por unanimidade - com o Prémio Direitos Humanos da Assembleia da República.

Nessa altura, não consta que Louçã e os seus pares tivessem assobiado Isabel Jonet.

A elegante despedida de Louçã

Pedro Correia, 25.10.12

Acompanhei o percurso de Francisco Louçã desde os primeiros passos que deu como deputado, era eu repórter parlamentar, e bem cedo percebi que estava perante um político que marcaria as legislaturas seguintes. Assim foi. O coordenador do Bloco de Esquerda, que em breve cessará estas funções, distinguiu-se como uma das vozes mais qualificadas da Assembleia da República, adversário temível de cinco primeiros-ministros (de António Guterres a Pedro Passos Coelho) e um hábil cultor do verbo parlamentar ao longo de 1012 intervenções - ao nível dos melhores tribunos que já desfilaram pelo púlpito de São Bento. Não é necessário ser simpatizante do BE para reconhecer esta evidência.

Treze anos depois da estreia, Louçã decidiu hoje pôr termo à sua vida parlamentar com uma inesperada declaração aos jornalistas, no estilo contundente a que nos habituou mas com um traço de emoção que costuma estar ausente das suas intervenções públicas.

"Quero deixar cristalinamente claro, sobretudo hoje, que não cedo em nenhum momento, nem um milímetro que seja, a qualquer populismo antiparlamentar. E por isso quero afirmar-vos a minha verdade: encontrei neste parlamento homens e mulheres extraordinários, adversários extraordinários. E eu respeito os meus adversários que são fiéis ao seu programa e ao mandato pelo qual foram eleitos. Por isso mesmo reafirmo convictamente que quem quer beneficiar do populismo que grasse na sociedade para ter algumas vantagens terá sempre a minha frontal oposição. É um crime antidemocrático deixar diminuir ou deixar corroer o pluralismo político - e nunca podem contar comigo para isso", afirmou.

Palavras importantes. Por expressarem uma confiança inabalável na instituição parlamentar e uma recusa intransigente da demagogia rasteira que ameaça minar a democracia representativa nos mais diversos recantos da Europa, já tão esquecida das lições das duas grandes guerras.

Não sei se o Louçã de 1999 teria falado assim. Mas é importante que o Louçã de 2012 se pronuncie desta forma no momento em que se despede do Parlamento, renunciando às funções de deputado para que foi cinco vezes eleito. Com palavras de apreço pelos adversários num momento em que faltam gestos de civilidade na crispada política portuguesa. Palavras que deviam generalizar-se, agora e sempre, contra o espírito de trincheira que nos impede de reconhecer mérito a quantos não pensam como nós.

Louçã, o Rei Momo de 2012

Rui Rocha, 05.02.12

A tradição já não é o que era. Já se sabia. Agora o que não se esperava é que Jardim, candidato natural a rei de todos os carnavais, fosse destronado no Entrudo de 2012 por Francisco Louçã. Todavia, esta frase permite entronizá-lo como Rei Momo indiscutível dos carnavais deste ano:  “A existência de uma tolerância de ponto, de um dia em que não se trabalha no Carnaval, é um direito das pessoas, não é um baile, é um direito das pessoas fazerem o que querem, é um dia em que não são obrigadas a trabalhar de graça pela força do Governo”. Não se trata do acto revolucionário de exigir o respeito pelos direitos adquiridos. Não. Agora entramos numa fase mais avançada da luta. A do respeito pelas tolerâncias adquiridas. A tolerância é um direito. Se tudo correr bem, a expectativa, mesmo a mais carecida de protecção, vai tornar-se um dia um direito potestativo. No mínimo, será protestativo. Saliente-se, entretanto, que o Carnaval não é um baile. Registado. Não sei bem o que será. Mas, qualquer mente progressista, com um lenço tipo Arafat ao pescoço, estará em condições de afirmar que é uma manifestação cultural. O Estado paga 50.000.000 por ano para subsidiar filmes que são vistos por 2.000 pessoas? Então o Carnaval, cultural como só ele, também deve ser subsidiado. Para quê? Para investir em carros alegóricos, pagar aos cabeçudos e dar umas mamas novas (que não sejam PIP) às gajas despidas que vão nos cortejos a bater o dente. Mas, a vertigem destrambelhada continua:  o Carnaval é um dia para as pessoas fazerem o que querem. Por exemplo, Louçã quer armar-se em patarata com pose e pretensão moralista. Pode. É Carnaval. Ninguém leva a mal. O problema não está no que faz nesse dia, mas no que diz ao longo do resto do ano. Entretanto, para o final está reservado o melhor: as pessoas são obrigadas a trabalhar de graça pelo Governo. Claro que alguém que não pretenda andar disfarçado de palhaço responderá que as pessoas têm um salário mensal. E que, se é assim, cada uma delas que vai ao Carnaval está a obrigar quem lhes paga a que o faça sem a contrapartida natural: o trabalho. Aliás, como o David Levy refere, por cada dia de tolerância, o Estado paga 700.000 dias de salário para nada receber em troca. 700.000 dias de salário para financiar o Carnaval de Ovar, de Loulé, do Funchal e do CaraçasMaisVelho. A menos que me queiram convencer que 1 dia de trabalho de 700.000 funcionários públicos não tem utilidade, a conta sai baratinha. Ainda veremos alguém decretar Carnaval todo o ano para estimular a economia. Ou me engano muito, ou será Louçã.