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Delito de Opinião

Do meu baú (8)

Pedro Correia, 07.05.25

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No inigualável cenário da Capela Sistina, começa hoje o terceiro conclave do século para eleger um Papa. Haverá novidades já amanhã? Não faço previsões. Prefiro revisitar a minha hemeroteca: dela extraio este recorte. «Seis candidatos da América», peça de abertura da página 6 no El País de 7 de Abril de 2005.

João Paulo II falecera cinco dias antes, especulava-se sobre quem seria o seu sucessor. Neste artigo, escrito por Francesc Relea, equaciona-se a hipótese de o Sumo Pontífice vir da América hispânica. Sendo indicados seis nomes: o hondurenho Óscar Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa; o argentino Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires; o brasileiro Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo; o cubano Jaime Ortega, arcebispo de Havana; o colombiano Darío Castrillón, prefeito da Congregação para o Clero na cúria vaticana; e o mexicano Norberto Rivera, arcebispo da Cidade do México.

 

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Sabemos hoje que o trono de Pedro não foi ocupado por nenhum deles nesse Abril de há vinte anos: no dia 19, o conclave elegeria o alemão Josef Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. 

Mas há um toque profético neste artigo, arquivado no meu baú: Bergoglio seria mesmo eleito Papa. Não daquela vez, mas no conclave seguinte, a 13 de Março de 2013.

Foi preciso esperar oito anos para a hipótese se tornar realidade. o argentino Francisco, primeiro chefe da Igreja oriundo do continente americano e do Hemisfério Sul, primeiro pontífice católico não nascido na Europa em mais de 1200 anos.

 

Sobre o jesuíta Bergoglio, Relea escreveu as seguintes linhas:

«Aparece em várias listas [de possíveis Papas]. Estudou Química e é considerado progressista. Teve papel destacado na fracassada tentativa de conseguir um largo entendimento entre amplos sectores da sociedade argentina após a grave crise política, económica e social desencadeada em Dezembro de 2001 que provocou a queda do Governo de Fernando de la Rúa.»

 

Por curiosidade, o que sucedeu aos cinco restantes?

Óscar Maradiaga manteve-se até 2023 à frente da maior diocese das Honduras: é hoje, aos 82 anos, arcebispo emérito e participa no restrito grupo de cardeais que estudam a revisão da constituição apostólica Pastor Bonus, na Cúria Romana.

Cláudio Hummes permaneceu como arcebispo de São Paulo até 2010. Faleceu em 2022, aos 87 anos. 

Jaime Ortega viria a renunciar ao posto máximo da Igreja cubana em 2016, após 35 anos em funções, tendo assumido relevante papel de mediador no restabelecimento das relações diplomáticas entre Havana e Washington, ocorrido em Julho de 2015, durante a administração Obama. Faleceu em 2019, aos 82 anos.

Darío Castrillón - o mais velho deste grupo destacado no El País - renunciou no ano seguinte às funções que desempenhava no Vaticano. Faleceu em 2018, aos 88 anos.

Norberto Rivera cessou funções, a seu pedido, como arcebispo primaz do México em Dezembro de 2017 após 22 anos neste posto. Hoje, com 82 anos, integra a Cúria do Vaticano. 

 

Sairá fumo branco da chaminé da Capela Sistina ainda no decurso desta semana? É esperar para ver. Muitos são chamados, mas só um é escolhido.

Franciscus

Pedro Correia, 27.04.25

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Interior da Basílica de Santa Maria Maior, última morada terrena do Papa

 

Vimo-lo pela última vez faz hoje uma semana, Domingo de Páscoa. Debilitado, enfraquecido, mas com vontade indómita de pronunciar uma última mensagem urbi et orbi, tão inspiradora como a primeira que nos transmitiu mal fora eleito Papa, a 13 de Março de 2013. «Boa noite», afirmara então, mal assomou nesse instante inicial como Pontífice ao balcão da Basílica de São Pedro antes de pedir aos 1400 milhões de católicos que rezassem por ele.

«Boa Páscoa», disse neste dia 20, em cadeira de rodas, à multidão de fiéis que o escutava. Já tão próximo do seu limite físico, pronunciou a palavra que - mais do que qualquer outra - significa a transição da morte para a vida.

 

Repousa desde ontem na Basílica de Santa Maria Maior, no chão de uma nave lateral. Tendo inscrito apenas o seu nome em latim no mármore oriundo da Ligúria, região natal dos seus avós.

«Franciscus».

Ei-lo ali, humilde até ao fim, no termo da sua peregrinação terrena, após os grandes do planeta se despedirem dele numa soalheira manhã em Roma e cerca de meio milhão de pessoas comuns terem acompanhado a urna ao longo do cortejo de seis quilómetros. 

 

Pedra tumular rasa, sem luxo nem ornamentos, para aquele que foi sem dúvida um príncipe da Igreja Católica neste primeiro quartel do século XXI. Quem lhe suceder no trono de Pedro tem um encargo muito pesado: permanecer à altura do legado de Jorge Mario Bergoglio, o bom pastor que veio dos confins do planeta com a missão de unir o mundo. Cumprindo a Parábola dos Talentos, uma das estimulantes lições de vida que podemos colher dos Evangelhos.

Os seus restos mortais moram agora na laje do templo mariano onde nenhum pontífice era sepultado desde Clemente IX, em 1669. O último chefe da Igreja antes dele a escolher como derradeira morada terrena um cenário alternativo à Basílica de São Pedro havia sido o grande Papa Leão XIII, sepultado há 122 anos em São João de Latrão.

 

Ninguém deve invejar a tarefa de quem irá seguir-se, por eleição dos seus pares, no conclave dos cardeais. Terá de prosseguir, sem desfalecimentos, a marcha contra a globalização da indiferença. Por uma igreja sem muralhas, onde «todos possam entrar», na senda deste belo lema que Francisco nos transmitiu.

Acusam-no alguns de se ter desviado da rota. Gente de pouca fé: esta mensagem está inscrita desde o início, na Parábola do Bom Samaritano (Lucas X, 25-37). Pronunciada de viva voz por Jesus no seu apelo de amor ao próximo que nos leva a socorrer os mais necessitados, venham de onde vierem, por imperativo moral. 

«Amarás o teu próximo como a ti mesmo.» Dois mil anos depois, nenhum estribilho ideológico conseguiu ser mais inspirador e luminoso do que este mandamento, pedra angular da civilização. 

Sérgio de Almeida Correia, 26.04.25

StanzaFrancesco.jpg(créditos: daqui)

Gostava de futebol, apreciou a beleza feminina, namorou, sabia saborear um bom vinho. Depois escolheu o seu caminho.

Atingiu o pináculo do poder terreno da sua tribo no trono de São Pedro. Dispensou os múleos papais vermelhos da Prada, não usava óculos Gucci, e viveu uma dúzia de anos no quarto 201 da Casa Santa Marta.

Encarou os erros, procurou corrigir, pediu desculpa quando importava fazê-lo. Não perdeu a face.

Sorria, ria com gosto, tinha sentido de humor.

Trabalhar, rezar, cumprir as suas obrigações, cuidar da sua gente, pensar nos outros, estender-lhes a mão, ajudar quem precisava a levantar-se, mantendo a postura, a dignidade, o carácter, a autenticidade, a humildade, o amor até ao fim.

Fé é isto.

Gostava de ter esperança.  De ter fé. Por eles – fiéis, infiéis e os outros –, também por mim.

Não sei se alguma vez haverá outro como ele. Mas seria bom.

Polémica tuga sobre o luto pelo Papa

Pedro Correia, 26.04.25

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Medra uma acesa polémica nas redes digitais em torno dos três dias de luto nacional concedidos pelo Governo para assinalar o falecimento do Papa Francisco, esta manhã sepultado em Roma.

Porquê? Porque Portugal "é um Estado laico". 

Uma daquelas polémicas tipo bolhas de sabão, tão férteis no caldeirão das redes, como a dos jacarandás de uma avenida lisboeta que há um par de semanas sobressaltava outras almas - ou talvez as mesmas. 

 

Acontece que o luto nacional por um líder religioso em nada fere a laicidade do Estado. Muito débil andaria a dita laicidade se assim fosse. Muito menos de uma confissão religiosa claramente maioritária no País (80,2% dos portugueses declaram-se católicos) e que aliás precede a própria fundação da nacionalidade. Ou seja, antes de haver Estado neste território que hoje chamamos Portugal, já existia religião cristã. 

Acresce que a declaração de três dias de luto nacional é prática reiterada, não nasceu agora. Aconteceu há 20 anos, quando faleceu o Papa João Paulo II e o Chefe do Estado português era Jorge Sampaio, que aliás compareceu às exéquias solenes do Pontífice no Vaticano. À data, José Sócrates chefiava o Governo.

Falta sublinhar que, à luz do direito internacional, Francisco era também chefe de um Estado - a Santa Sé. Figura política, não apenas religiosa. 

 

Três dias de luto nacional decretados pelo Estado português mereceram antes, por exemplo, o presidente egípcio Anwar Sadat (1981), Samora Machel (1986), o imperador japonês Hirohito (1989), Nelson Mandela (2013) e a Rainha Isabel II (2022), aliás também chefe da Igreja Anglicana. 

Já o Estado brasileiro, igualmente laico, não fez a coisa por menos: Lula da Silva decretou sete dias de luto nacional pela morte do Papa. E dirigiu-se aos cidadãos do seu país enaltecendo a figura de Francisco em palavras comovidas, além de ter comparecido não apenas no funeral mas no próprio velório do Santo Padre, que contou com a presença de 60 chefes de Estado - 51 presidentes e nove monarcas - e 18 primeiros-ministros. 

O que talvez cale alguns dos críticos cá na terra, muitos deles admiradores incondicionais do socialista Lula. Ou, se calhar, não. As redes equivalem às fornalhas: precisam de ser alimentadas com incessante combustível. Quando não há polémica, qualquer pretexto serve para parir mais uma.

Leitura recomendada

Pedro Correia, 22.04.25

Não acredito em bruxas...

João André, 21.04.25

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O Papa Francisco passou cerca de 60 anos sem parte de um pulmão, sobreviveu recentemente a uma infecção pulmonar com múltiplas complicações que levaram o mundo católico a preparar-se para o pior. Depois de receber alta voltou a casa, visitou o Vaticano, visitou prisioneiros, apareceu na varanda sobre a Praça de S. Marcos. Tudo isto aguentou.

Ontem concedeu uma audiência "relâmpago" a JD Vance. Hoje não está vivo.

Correlação, causalidade e tal mas... que las hay, hay!

Nota: não sendo católico, a morte do Papa Francisco não me afecta muito, haverá novo Papa em breve. Como pessoa, lamento a morte de um homem bom, que tentou trazer boa vontade a um mundo em mudança e demonstrou sempre enorme abertura de espírito para com os outros, mesmo - ou especialmente - quando não concordava com eles. O mundo ficará mais pobre sem ele.

«Sou apenas um passo»

Pedro Correia, 21.04.25

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Ainda ontem, no balcão de São Pedro, o ouvimos desejar «boa Páscoa» aos fiéis da cidade de Roma e ao mundo. Já com a voz muito enfraquecida mas mantendo o ar bondoso que lhe conhecemos desde que, ali mesmo, pronunciou há 12 anos as primeiras palavras como pastor universal da Igreja Católica.

A um marco histórico - a primeira renúncia de um Pontífice máximo em mais de meio milénio - sucedia outro: o primeiro não-europeu em 1200 anos, o primeiro oriundo do continente americano, filho de imigrantes italianos radicados na Argentina. Cardeal de Buenos Aires, vivia num modesto apartamento, deslocava-se em transportes públicos, cozinhava as suas próprias refeições.

Encorajava os jovens a descobrir Cristo entre os pobres.

 

Francisco - que escolheu chamar-se assim em homenagem explícita ao santo de Assis - foi uma extraordinária figura à escala global. Daí a notícia da sua morte, ao início da manhã de hoje, ter mergulhado grande parte do mundo em profunda tristeza. O mundo católico, sim. Mas a dor é partilhada por muita gente de outras confissões e até por pessoas que não professam religião alguma. Ecoando o brado que Francisco soltou em Lisboa, na memorável Jornada Mundial da Juventude, em Agosto de 2023: «Todos, todos, todos!»

A voz de uma Igreja que não exclui. A voz de uma Igreja que não prega no deserto, mas no coração das urbes contemporâneas, atenta aos pecados perpetuados por incontáveis gerações. Como ensina frei Bento Domingues, «uma Igreja só pode ser católica, isto é, universal, quando é uma escola de aprender a servir, sem olhar a quem».

Servir as pessoas, não ideologias, como Francisco acentuou na sua peregrinação de 2017 a Cuba.

 

No próprio dia em que foi eleito, a 13 de Março de 2013, anotei aqui: «Também ele apareceu com ar despojado, fraterno, repassado de fragilidade humana. De braços caídos, sem pedir aplausos, com um sorriso tímido, parecia querer dizer aos mil e trezentos milhões de crentes que o reconhecem a partir de hoje como dirigente espiritual que está disposto a aceitar este imenso desafio que o destino lhe proporciona embora não se sinta verdadeiramente digno dele.»

Nunca perdeu o sorriso tímido, jamais se deslumbrou com as ilusórias luzes do poder terreno. «Sou apenas um passo», insistia em dizer. Sem humildade existencial ninguém é verdadeiro discípulo de Jesus. 

 

Nos doze anos do seu pontificado, revelou-se mais inspirador do que qualquer líder político do nosso tempo. Com a palavra e o exemplo, tornou-se «pároco do mundo», na feliz definição da revista italiana Panorama

«Regressa à Casa do Pai» - terminologia oficial hoje usada na Santa Sé - neste momento em que tanto precisávamos dele, neste momento em que a Igreja tanto necessita de um sucessor à altura do seu legado - o do retorno à pureza da mensagem evangélica, contrariando a volúpia da guerra e a cupidez da plutocracia.

«O mundo de Francisco acabou. O todos, todos, todos deu lugar a um mundo assente no tudo, tudo, tudo», lamentava há menos de um mês Jorge Botelho Moniz num amargurado texto de reflexão no Público.

Deus queira que não.

De coração cheio

Maria Dulce Fernandes, 21.04.25

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Em 2016 tive o privilégio de assistir à missa presidida pelo Papa Francisco, na Basílica de S. Pedro. Durante uma visita a Roma, no dia 17 de Abril bem cedo, fomos conhecer a Praça e a Basílica com o mesmo nome. Era dia de aniversário do meu marido e tínhamos planos para um almoço de comemoração. Dentro da Basílica, fomos abordados pela segurança do Papa e questionados se queríamos sair ou ficar lá dentro por duas horas, com as portas fechadas e assistir à missa. A cerimónia era de ordenação sacerdotal. Ficámos. Não almoçámos. Nunca nos arrependemos. Saímos de coração cheio. 

Reflexão do dia

Pedro Correia, 26.03.25

«O mundo de Francisco acabou. O todos, todos, todos deu lugar a um mundo assente no tudo, tudo, tudo. E, com isso, o mundo das suas encíclicas pereceu. A Evangelii Gaudium ou Alegria do Evangelho (2013) foi substituída pelo populismo religioso e pela politização da religião que só olha com alegria para o Evangelho para desvirtuá-lo e para servir as suas agendas político-religiosas. A Laudato si (2015), sobre o cuidado da casa comum, a ecologia integral e o meio ambiente, foi substituída pelo "drill, baby, drill", pela reabertura das centrais a carvão e pelo reforço da aposta nos combustíveis fósseis. A Fratelli tutti (2020), impulsionadora da fraternidade e amizade social, foi trocada pelas câmaras de eco das redes sociais e pela quase vergonha no emprego das ideias de solidariedade, caridade ou amizade.»

Jorge Botelho Moniz, no Público

Francisco

Sérgio de Almeida Correia, 07.08.23

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(créditos: Miguel A. Lopes/Pool via Reuters)

Embora educado de acordo com os seus valores, e de uma vez, estando de férias em casa de uns tios, me terem posto a ajudar à missa, da qual rapidamente me afastaram depois de ter ido, mais o outro sacristão estival, provar a vinhaça do cura, há muito que me afastei da Igreja Católica Apostólica Romana, da missa dominical e dos seus ritos.

Do clero, em geral, sempre desconfiei, até porque o meu irmão teve a infelicidade, a que eu escapei por ser mais novo e contar com a sua ajuda, de passar por um colégio interno gerido por um louco, acompanhado de outros dementes, que impunham castigos medievais, e eu próprio conheci alguns que me inspiravam tudo menos confiança.

E apesar de algumas vezes, ao longo da vida, me cruzar com um ou outro mais mundano, civilizado e bem disposto que passava lá por casa para tomar chá com a Mélita, a quem até quase ao final da adolescência, e mesmo depois, muito mais tarde e mais velho, acompanhava à missa para ela não ir sozinha, nunca gostei da "padralhada". E do Cerejeira nem é bom falar.

Todavia, não foi isso que me impediu de ir acompanhando a sua vida, de ver como muitos faziam o seu percurso opondo-se à ditadura, mantendo-se firmes na defesa dos verdadeiros valores da instituição que serviam, lutando contra e denunciando as atrocidades do colonialismo; ou de eu próprio voar para Roma mais do que uma vez, de percorrer o Vaticano, de numa ocasião ter ido a Castel Gandolfo, de continuar a entrar nos seus templos espalhados por Itália e pelo mundo, e aí me recolher para, à minha maneira, ir conversando com Ele, até porque a fé não se explica, cada um tem a sua e as pessoas não são todas iguais e dotadas de igual racionalidade. 

Depois, as posições conservadoras do Papado, as ideias ultra-radicais de uns quantos padres, a forma como a Igreja se ia afastando da sociedade, protegendo bandidos ricos e ignorando pobres e desvalidos, ao mesmo tempo que através dos seus membros se envolvia em negociatas pouco recomendáveis, com mafiosos e gente estruturalmente desonesta, e o modo como muitos dos seus se comportavam, tão depressa fazendo de empreiteiros como de ladrões, antes mesmo dos sucessivos escândalos que abalaram as paredes milenares do seu edifício, do Banco Ambrosiano à pedofilia e à protecção durante anos de mentecaptos de batina e de toda a canalhada pedófila, tudo isso contribuiu para olhar para ela não com um mas com os dois pés atrás. Dali nunca vinha coisa boa. Até há pouco.

A ascensão de Francisco, a inteligência e a franqueza com que iniciou o seu caminho, a leitura que fiz da sua encíclica Laudato Si' e de outros textos, as suas sucessivas intervenções, que não se afastando daquela que será a própria lógica da Igreja imprimiram uma marca distintiva de humanidade e de uma maior aproximação ao mundo real e aos problemas do quotidiano, tentando mudar por dentro, firmemente, contra toda a resistência de muitos no seu interior, fizeram-me olhar para ele, enquanto Papa e ocupante do trono de S. Pedro, com outros olhos.  

Verdade seja dita que de alguém que tomou o nome de Francisco pelas razões que logo nos deu a saber, que jogou futebol e gosta de futebol, que se apaixonou e namorou na juventude antes de fazer a sua escolha, que é capaz de apreciar os pequenos prazeres desta vida, e de olhar para os outros como se nunca tivesse saído do mundo, já faziam dele um tipo diferente.

Mas ver como foi capaz de reaproximar a Igreja das pessoas, de que a JMJ de Lisboa constitui inequívoco exemplo, de compreendê-las, de se envolver com todos, devolvendo fraternidade, candura e ternura de onde estas se tinham eclipsado, despojando-se de muita da pompa e da ostentação cultivada pelos seus antecessores, mostrando ao seu rebanho e aos outros, dos mais crentes aos menos crentes, aos agnósticos e aos ateus, que nem tudo está perdido e que há um caminho comum a percorrer com todos, incluindo com os que não acreditam e com os seguidores de outros credos, para a construção de um mundo melhor, mais justo, mais equilibrado, mais verde e mais inclusivo, fazem dele um homem diferente.

Acompanhando à distância a visita de Francisco – e também alguns excessos do Estado laico e dos seus representantes de ocasião –, vi, não obstante as suas limitações físicas e o natural cansaço, próprios de uma pessoa adoentada e com a sua idade, o seu empenho em chegar a todos, em dar uma imagem diferente da Igreja, em deixar o exemplo, em lançar uma semente que possa frutificar saudável. Como vi a sua aposta num diálogo franco e aberto, sem que isso o obrigue a mudar de convicções, de valores ou de princípios.

Não creio, ainda que quisesse acreditar, que alguma vez mudarei a minha relação com a Igreja e o clero, ou a forma como olho para Deus. Todo o sofrimento que vi, e o que ao longo da vida fui obrigado a acompanhar, não me permitem pensar de outra maneira. Porque há sofrimentos absolutamente inexplicáveis, injustiças inauditas e crimes que nenhum Deus poderoso, se existisse, no seu perfeito juízo permitiria. E não me venham com as vossas justificações, poupem-me à estupidez.

Não obstante, do homem que por momentos está como Papa, daquele que diz, e repete, que a Igreja é de todos – embora eu ainda não consiga alcançar que Igreja será essa, nem quando será de todos –, e que diz aos fiéis que "sejam surfistas do amor", linguagem que sou capaz de entender, só posso dizer que não existe. Este Papa não existe.

Francisco sim. E este parece-me ser, com todos os seus defeitos, nos dias que correm, um tipo absolutamente excepcional.

Quem sabe se por isso, por uma vez, não deverei dar graças a Deus?

Em nome do Papa

Pedro Correia, 21.05.23

Este ano, rompendo um hábito antigo, farei férias em Agosto. Quero fugir de Lisboa - já hoje quase intransitável - na altura da grande enchente que se anuncia com a Jornada Mundial da Juventude. 

Procuro o mesmo hotel onde fiquei no Verão passado, à beira-mar, a cerca de 40 km da capital. Com entrada a 29 de Julho.

Ainda há vagas. Mas pedem-me um preço absurdo: cerca do dobro do que paguei em 2022. «Efeito da inflação?», pergunto na recepção, com óbvia ironia.

«Não, é por causa do Papa.»

Questiono-me se Francisco fará ideia desta obscena espiral especulativa praticada em nome dele, que tantos exemplos de frugalidade e desprendimento material nos tem dado. É óbvio que não. 

Alarguei o perímetro: vou distanciar-me ainda mais de Lisboa. A preços do ano passado, também junto ao mar. Já feita a reserva. Fico a ganhar com a troca.

Não basta olhar: é preciso ver

Pedro Correia, 13.03.14

 

As primeiras impressões são as que mais contam. Releio o que escrevi faz hoje um ano, aqui no DELITO, sobre o recém-eleito Papa Francisco. Nunca tinha ouvido falar do cardeal Jorge Mario Bergoglio. Aquelas linhas foram redigidas de forma espontânea por efeito exclusivo do que acabara de ver e escutar, em directo do balcão principal da Basílica de São Pedro, tal como centenas de milhões de pessoas um pouco por todo o globo.

"Há-de receber os grandes do mundo, há-de ter reis e presidentes a pedir-lhe a bênção, há-de escutar incontáveis ovações. Mas hoje, no balcão da basílica, parecia não ambicionar nada mais do que ser irmão de todos nós", escrevi então. Os 12 meses entretanto decorridos só reforçam essas primeiras impressões, atestando a profunda autenticidade do sucessor de Bento XVI, um Papa que chegou "do fim do mundo", como ele disse de si próprio.

Francisco -- como preferiu chamar-se em homenagem ao santo de Assis, príncipe supremo do despojamento e da humildade, é hoje uma das raras personalidades que gozam da simpatia generalizada à escala universal com o seu jeito afável mas desassombrado. Realmente inconfundível.

 

Recordo-me bem desse fim de tarde de 13 de Março de 2013. E também das lamentáveis atoardas que nos dias imediatos alguns por cá se apressaram a divulgar sobre o novo chefe da Igreja Católica, apontando-o sem sombra de hesitação como cúmplice da tenebrosa ditadura argentina. Com aquele automatismo típico das "redes sociais", em que se dispara primeiro e se reflecte depois, logo os ecos da atoarda se propagaram. E nem o desmentido categórico de uma voz autorizada, a do Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquível, bastou para travar a torrente de impropérios.

Destacou-se nesta lamentável missão o professor Fernando Rosas, que como historiador tinha a obrigação de ser mais criterioso na selecção das suas fontes. Utilizando o púlpito televisivo em que costuma perorar, na TVI 24, surgiu a dizer coisas como esta: "O passado dele não é muito animador. Observo com reserva um Papa que foi duro com Kirchner e mole com a ditadura."

 

Curiosamente, nunca mais ninguém reincidiu nestas atoardas. Pelo contrário, Francisco é hoje mencionado como referência por alguns daqueles que há um ano, sem o conhecerem, se apressaram a denegri-lo antes de passarem a confessar-se seus admiradores. Invocam o Papa Francisco, utilizam-no como fonte de autoridade moral, repetem com ele que "esta economia mata".

Falharam por completo nas primeiras impressões. Por arrogância intelectual e humana, por aversão atávica à Igreja, por estarem condicionados pelo preconceito.

E falharam sobretudo por olharem sem ver. Porque o Francisco de hoje era já aquele que assomou à varanda na Praça de São Pedro, intitulando-se não Papa mas mero bispo de Roma e pedindo com humildade aos fiéis para rezarem por ele.

Humildade que nunca abandonou de então para cá.

Com a força inequívoca do seu exemplo, digno de um genuíno discípulo de Jesus, tornou-se fonte de inspiração para todos, partilhem ou não da sua fé.

Francisco: eis o homem

Rui Rocha, 08.11.13

Têm razão os mais ortodoxos quando referem que Francisco não mudou nada no essencial das posições dogmáticas da Igreja Católica, nomeadamente no que diz respeito às questões ditas fracturantes. O que temos é uma mudança radical de atitude, que não nos princípios. Não questionando de momento o essencial do ponto de partida, Francisco revaloriza o ponto de chegada. O Papa que pergunta, o Papa que acolhe, o Papa do exemplo da humildade sobre a ostentação, da valorização do perdão sobre a condenação, o Papa da compaixão ainda e sempre, mesmo e sobretudo para os que não escolheram o caminho que a Igreja Católica prega. O Papa dos tresmalhados, dos desiludidos, dos esquecidos, dos doentes, dos pecadores, dos perdidos, dos imigrantes, dos sem pátria, dos inocentes. O Papa a quem o míudo quer roubar a cadeira. O Papa que abraça e beija os disformes. Este é um Papa próximo de Cristo e pouco ou nada preso à norma teológica. O risco é evidente. Francisco pode vir a ser o exemplo humano e vivo da viabilidade de um último reduto de redenção e de esperança das mulheres e dos homens. Todavia, é possível acreditarmos em Francisco sem que nos seja urgente redimirmos a Igreja Católica. Como se Francisco estivesse aqui para nos recordar que Cristo veio primeiro e só depois vieram a(s) sua(s) igreja(s).