Francisco
(créditos: Miguel A. Lopes/Pool via Reuters)
Embora educado de acordo com os seus valores, e de uma vez, estando de férias em casa de uns tios, me terem posto a ajudar à missa, da qual rapidamente me afastaram depois de ter ido, mais o outro sacristão estival, provar a vinhaça do cura, há muito que me afastei da Igreja Católica Apostólica Romana, da missa dominical e dos seus ritos.
Do clero, em geral, sempre desconfiei, até porque o meu irmão teve a infelicidade, a que eu escapei por ser mais novo e contar com a sua ajuda, de passar por um colégio interno gerido por um louco, acompanhado de outros dementes, que impunham castigos medievais, e eu próprio conheci alguns que me inspiravam tudo menos confiança.
E apesar de algumas vezes, ao longo da vida, me cruzar com um ou outro mais mundano, civilizado e bem disposto que passava lá por casa para tomar chá com a Mélita, a quem até quase ao final da adolescência, e mesmo depois, muito mais tarde e mais velho, acompanhava à missa para ela não ir sozinha, nunca gostei da "padralhada". E do Cerejeira nem é bom falar.
Todavia, não foi isso que me impediu de ir acompanhando a sua vida, de ver como muitos faziam o seu percurso opondo-se à ditadura, mantendo-se firmes na defesa dos verdadeiros valores da instituição que serviam, lutando contra e denunciando as atrocidades do colonialismo; ou de eu próprio voar para Roma mais do que uma vez, de percorrer o Vaticano, de numa ocasião ter ido a Castel Gandolfo, de continuar a entrar nos seus templos espalhados por Itália e pelo mundo, e aí me recolher para, à minha maneira, ir conversando com Ele, até porque a fé não se explica, cada um tem a sua e as pessoas não são todas iguais e dotadas de igual racionalidade.
Depois, as posições conservadoras do Papado, as ideias ultra-radicais de uns quantos padres, a forma como a Igreja se ia afastando da sociedade, protegendo bandidos ricos e ignorando pobres e desvalidos, ao mesmo tempo que através dos seus membros se envolvia em negociatas pouco recomendáveis, com mafiosos e gente estruturalmente desonesta, e o modo como muitos dos seus se comportavam, tão depressa fazendo de empreiteiros como de ladrões, antes mesmo dos sucessivos escândalos que abalaram as paredes milenares do seu edifício, do Banco Ambrosiano à pedofilia e à protecção durante anos de mentecaptos de batina e de toda a canalhada pedófila, tudo isso contribuiu para olhar para ela não com um mas com os dois pés atrás. Dali nunca vinha coisa boa. Até há pouco.
A ascensão de Francisco, a inteligência e a franqueza com que iniciou o seu caminho, a leitura que fiz da sua encíclica Laudato Si' e de outros textos, as suas sucessivas intervenções, que não se afastando daquela que será a própria lógica da Igreja imprimiram uma marca distintiva de humanidade e de uma maior aproximação ao mundo real e aos problemas do quotidiano, tentando mudar por dentro, firmemente, contra toda a resistência de muitos no seu interior, fizeram-me olhar para ele, enquanto Papa e ocupante do trono de S. Pedro, com outros olhos.
Verdade seja dita que de alguém que tomou o nome de Francisco pelas razões que logo nos deu a saber, que jogou futebol e gosta de futebol, que se apaixonou e namorou na juventude antes de fazer a sua escolha, que é capaz de apreciar os pequenos prazeres desta vida, e de olhar para os outros como se nunca tivesse saído do mundo, já faziam dele um tipo diferente.
Mas ver como foi capaz de reaproximar a Igreja das pessoas, de que a JMJ de Lisboa constitui inequívoco exemplo, de compreendê-las, de se envolver com todos, devolvendo fraternidade, candura e ternura de onde estas se tinham eclipsado, despojando-se de muita da pompa e da ostentação cultivada pelos seus antecessores, mostrando ao seu rebanho e aos outros, dos mais crentes aos menos crentes, aos agnósticos e aos ateus, que nem tudo está perdido e que há um caminho comum a percorrer com todos, incluindo com os que não acreditam e com os seguidores de outros credos, para a construção de um mundo melhor, mais justo, mais equilibrado, mais verde e mais inclusivo, fazem dele um homem diferente.
Acompanhando à distância a visita de Francisco – e também alguns excessos do Estado laico e dos seus representantes de ocasião –, vi, não obstante as suas limitações físicas e o natural cansaço, próprios de uma pessoa adoentada e com a sua idade, o seu empenho em chegar a todos, em dar uma imagem diferente da Igreja, em deixar o exemplo, em lançar uma semente que possa frutificar saudável. Como vi a sua aposta num diálogo franco e aberto, sem que isso o obrigue a mudar de convicções, de valores ou de princípios.
Não creio, ainda que quisesse acreditar, que alguma vez mudarei a minha relação com a Igreja e o clero, ou a forma como olho para Deus. Todo o sofrimento que vi, e o que ao longo da vida fui obrigado a acompanhar, não me permitem pensar de outra maneira. Porque há sofrimentos absolutamente inexplicáveis, injustiças inauditas e crimes que nenhum Deus poderoso, se existisse, no seu perfeito juízo permitiria. E não me venham com as vossas justificações, poupem-me à estupidez.
Não obstante, do homem que por momentos está como Papa, daquele que diz, e repete, que a Igreja é de todos – embora eu ainda não consiga alcançar que Igreja será essa, nem quando será de todos –, e que diz aos fiéis que "sejam surfistas do amor", linguagem que sou capaz de entender, só posso dizer que não existe. Este Papa não existe.
Francisco sim. E este parece-me ser, com todos os seus defeitos, nos dias que correm, um tipo absolutamente excepcional.
Quem sabe se por isso, por uma vez, não deverei dar graças a Deus?