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Delito de Opinião

O Mundo de Agora

Luís Naves, 03.09.24

Gosto imenso de um livro extraordinário de Stefan Zweig, O Mundo de Ontem. É uma obra estranhamente atual. As passagens sobre a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, fazem lembrar o clima de intolerância provocado pela Guerra da Ucrânia ou o conflito de Gaza, sobre os quais é bem difícil, nos dias de hoje, manter uma discussão serena ou ter uma posição favorável à diplomacia.

Podemos ler nestas memórias que no Verão de 1914, numa transição de poucas semanas, os amigos de Zweig estavam transformados em fanáticos, "anexionistas insaciáveis", que diziam as frases mais disparatadas e acusavam o escritor pacifista de já não ser austríaco. "Só restava uma solução: retirar-me para dentro de mim e guardar silêncio, enquanto os outros bramavam exaltados. Não era fácil, porque nem sequer viver no exílio, que conheci até bem de mais, é tão mau como estar sozinho na pátria". (o livro foi escrito muito mais tarde, em 1942, pouco antes do suicídio do escritor).

Dizer que aquela guerra era um crime tornara-se uma opinião perigosa, que muitos dos antigos amigos achavam merecer ser denunciada. Um pouco mais à frente no livro, Zweig conta os episódios de 1915: era sargento trintão e velho para combater, recebeu um posto burocrático de retaguarda, mas viu pessoalmente a desgraça dos soldados numa viagem em comboio hospital que vinha da frente para Budapeste (a frente ficava naquilo que é atualmente território ucraniano). Esta experiência provocou-lhe o impulso de denunciar a guerra: "Tinha reconhecido o adversário contra o qual se impunha combater - o falso heroísmo que prefere enviar os outros para o sofrimento e para a morte, o otimismo barato dos profetas sem consciência, tanto políticos como militares, que, prometendo sem escrúpulos a vitória, prolongam a carnificina. (...) Quem lutasse contra a guerra, na qual eles próprios não sofriam, era rotulado de traidor. Era o eterno bando, o mesmo através dos tempos, que chamava cobarde aos prudentes, fracos aos humanos, para depois ficar sem saber o que fazer na hora da catástrofe que levianamente provocara".

Sabemos como é que a história acabou, a Áustria foi derrotada, Zweig foi um vencido dentro do desastre. Infelizmente, o autor austríaco não escreveu apenas sobre o Mundo de Ontem, mas de maneira trágica também sobre o de agora, como se a humanidade não conseguisse aprender nunca. Somos pois testemunhas de duas calamidades simultâneas e tudo aquilo que ouvimos, dos políticos e dos militares, é essencialmente a mesma profecia de outrora sobre a necessidade de continuar o massacre.

Este livro O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu, é fácil de encontrar nas livrarias, em edição da Relógio D'Água, tradução de Ana Falcão Bastos.

Os debates tóxicos

Luís Naves, 03.09.24

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Deixou de existir ambiente propício à discussão política. Os debates são agora tóxicos. Governos com escassa legitimidade eleitoral tomam decisões sem consultar os partidos de oposição. Mente-se com a cumplicidade da imprensa, a qual há muito tempo desistiu do seu papel de controlo do poder. Esta é a situação e não vale a pena pensar que a democracia vai melhorar, pelo contrário. Os regimes ditos liberais estão a resvalar com rapidez para sistemas sem liberdade. Burocratas não eleitos dizem coisas que podem levar países para a guerra, enquanto dirigentes em pânico fazem emendas piores do que os sonetos. Como será Portugal daqui a dez anos? Uma incógnita, pois é difícil fazer previsões para Portugal no próximo ano. Muito provável que haja recessão, instabilidade política, marasmo. O mesmo se pode dizer sobre a Europa. Dez anos? Uma eternidade. É quase impossível antecipar o que será daqui a um ano: a economia no fundo, a guerra da Ucrânia perdida, o insuportável clima de repressão da opinião pública, com redes sociais proibidas. A crise dos regimes liberais europeus estará a acentuar-se em cada nova eleição. Os dirigentes parecem baratas tontas, com as suas linhas vermelhas, a reclamação de pureza ideológica e os cordões sanitários, que mais não são do que tapar o sol com a peneira.

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Planeta Hollywood

Luís Naves, 02.09.24

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Há quem acredite que a comunicação pode mudar a realidade, mas tenho dúvidas de que isso possa ser mantido por muito tempo. As duas maiores guerras do presente estão a ser combatidas ao nível mediático e o ocidente é mestre nisso, mas os factos não sustentam as ilusões dos combatentes. A guerra da Ucrânia está perdida para os ocidentais e, em Israel, o massacre de Gaza terá consequências: quem puder vai abandonar o país; Israel tem o seu futuro comprometido. Nos EUA, o planeta Hollywood tenta eleger uma candidata que nunca foi a votos e se distingue por dizer banalidades, pela incompetência que demonstrou numa crise que devia ter tentado solucionar, sobretudo pelo vazio das suas posições políticas. Duvido que isto possa funcionar, mas a imprensa amiga abdicou de refletir sobre os perigos de eleger alguém que nunca passará de marioneta de interesses obscuros. Ao pensar sobre isto, admito que o problema esteja na forma como estes interesses eliminaram a diversidade na comunicação social. Dizem todos as mesmas coisas, num coro afinado que é um simulacro de liberdade de Imprensa. Este é o problema, deixou de existir liberdade de Imprensa e, em breve, nas sociedades ditas liberais, não haverá sequer liberdade de expressão.

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O povo é um estorvo

Luís Naves, 01.09.24

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O que mais custa na nossa época é a aceitação do horror. A comunicação social banalizou a desgraça e acha estranha a virtude. O mundo caminha para uma guerra geral, mas os atores políticos parecem aceitar isso com naturalidade e as notícias refletem a despreocupação de quem ainda pode travar a descida ao abismo. A lealdade não está na moda e vivemos um tempo tenebroso em que se instalou o medo, até o receio de falar se instalou, de contestar algo que nos repugna, mas que a maioria aceita em nome de valores que foram distorcidos. Manter este tipo de sociedade é insustentável, os poderosos fazem o que querem, as populações são desprezadas e parecemos gado a caminho do matadouro. Não há voz sensata que seja escutada, a sensatez é agora oficialmente perversa e, em breve, será delinquente. A política perdeu o sentido da honra e do serviço, transformou-se em exercício cru de poder, sem vigilância, sem qualquer ética ou preocupação pelo bem público. Aliás, o povo é agora um estorvo.

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Os bons e os maus

Luís Naves, 29.08.24

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O noticiário sobre a guerra continua a deitar areia para os olhos de muitas pessoas que confiam na possibilidade de uma vitória ucraniana. Existe profunda incompreensão sobre as raízes deste conflito, que é na realidade uma mistura de guerra civil e confronto indireto entre Rússia e Estados Unidos (aliás, a todo o momento pode tornar-se um conflito direto, basta um erro de cálculo). A derrota de Kiev está agora à vista, mais próxima após ter sido cometido o erro de invadir território russo. Esta manobra desesperada, celebrada nos nossos meios de comunicação, consumiu as derradeiras reservas do exército ucraniano, cujas baixas são insustentáveis. As linhas defensivas no Donbass, construídas ao longo de oito anos, ficaram desguarnecidas e estão a entrar em colapso.

Estes factos não podem ser compreendidos por uma opinião pública que foi sistematicamente convencida a ver esta guerra como a luta entre o bem e o mal, onde os bons venciam sempre e os maus nem sequer tinham botas ou eram forçados a tirar chips de máquinas de lavar roupa. Fomos muito enganados. O Ocidente subestimou de novo a Rússia e está sem opções para sair de forma airosa da situação.

Esta guerra foi um falhanço diplomático ou a ideia deliberada de gerir o colapso do império russo, esmagado pelas sanções da NATO? A questão será discutida muito depois de haver uma paz negociada e há indícios credíveis de que Washington queria derrubar o regime de Putin, para abrir os imensos recursos da Rússia à exploração ocidental. Quando falhou esta estratégia, surgiu a nova meta de enfraquecer e sangrar Moscovo, de conseguir uma espécie de guerra eterna que iria transformar o gigante nuclear num país fracassado. Agora, o objetivo é apenas sair disto, nem que seja preciso sacrificar os ucranianos. Depois das eleições americanas, será negociada uma partilha territorial que permita pelo menos defender os negócios.

Habituada a fantasias, a opinião pública continua a acreditar na vitória ucraniana, mas devia estar a pedir contas aos líderes ocidentais e a Boris Johnson em particular, que em Abril de 2022 convenceu os ucranianos a não assinarem um acordo de cessar-fogo com a Rússia que teria sido mais vantajoso do que a paz cartaginesa que se adivinha. A Ucrânia é um país de viúvas e órfãos, com um quinto da população a viver no exterior; perdeu centenas de milhares de soldados e está a recuar no campo de batalha; encontra-se falida e hipotecada por décadas a empresas ocidentais que vão generosamente reconstruir as suas ruínas.

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O cidadão protegido

Luís Naves, 28.08.24

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Os meios de comunicação tratam tudo com incrível leveza e, atrás de uma cortina de embelezamento, escondem que o mundo está a correr para um conflito geral em larga escala. Na Ucrânia, continua o massacre e Kiev entrou na fase de desespero suicida. Há outro conflito volátil entre Irão e Israel, com planos delirantes de ataques preventivos e de vingança, a inevitabilidade de que mais tarde ou mais cedo haverá um choque violento entre as duas potências. Já estivemos mais longe do Apocalipse. Na melhor das hipóteses, teremos violência e instabilidade económica, mercados nervosos e líderes impotentes para travar o que começaram, talvez outra crise energética. O Ocidente está em apuros: as populações indignam-se com a desorientação das elites, que se recusam a compreender os motivos da contestação. O voto deixou de contar e a comunicação social prefere o pensamento mágico, enquanto o poder, que não consegue travar a inundação da realidade, procura proteger os cidadãos daquilo que classifica de "desinformação". A Comissão Europeia vai controlar as plataformas de internet através de multas e proibições, enquanto a justiça dos países europeus não hesitará em perseguir quem espalhar informações incómodas, mesmo que isso implique a detenção de magnatas das redes sociais.

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Os intelectuais e as elites

Luís Naves, 14.08.24

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As ideologias estreitaram e a luta de classes tornou-se um conflito em torno de identidades. Uma velha teoria marxista considerava que as classes dominantes seriam derrotadas quando os intelectuais liderassem a aliança com os trabalhadores e conquistassem as instituições de educação, cultura e comunicação. Foi isto que aconteceu nos últimos 40 anos, os intelectuais da esquerda controlam hoje as instituições destes sectores, mas nunca impuseram a guerra total à classe dominante, nem se aliaram aos trabalhadores, pelo contrário. A influência das vanguardas intelectuais impôs de facto normas culturais e novos valores, mas esta liderança moral foi feita em aliança com as elites, não com as classes trabalhadoras, cujos verdadeiros problemas são desprezados na política. As massas de proletários, agora transformadas em massas de precários, perderam outra vez. Há assuntos onde este fracasso da teoria se tornou evidente, mas salta à vista a forma como os direitos das mulheres estão hoje a ser atropelados pelas questões de género e as ambiguidades sobre o que é ser feminino. As mulheres também perdem outra vez, até nos países ocidentais, onde pareciam ter garantido alguma liberdade.

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Da Tragédia ao Apocalipse

Luís Naves, 31.07.24

O Irão acusa Israel de ter assassinado em Teerão o líder político do Hamas, Ismail Haniyeh, convidado para a tomada de posse do novo presidente iraniano Masoud Pezeshkian (Israel ainda não assumiu o ataque). Três filhos e quatro netos de Haniyeh (alguns deles crianças) tinham sido mortos há quatro meses. Ontem, o exército israelita matou um dirigente do Hezbollah, no Líbano, em retaliação por um bombardeamento atribuído à milícia xiita libanesa, nos Montes Golã ocupados por Israel, incidente onde morreram doze jovens drusos.

A morte de Haniyeh pode ter dois efeitos imediatos: o agravamento da crise e a radicalização do Hamas. O Hezbollah, apoiado pelo Irão, promete retaliar e os iranianos estão furiosos pelo que consideram ser uma acção de guerra. Enfim, o barril de pólvora está pronto a explodir. Tendo em conta que acabou de ser assassinado o interlocutor mais moderado do lado do Hamas, o qual será substituído por alguém ainda pior, estamos a assistir a erros sistemáticos de Israel? Ou a intenção é provocar uma guerra alargada, para resolver os problemas de uma vez por todas com apoio americano? Não sabemos, mas é fácil imaginar cenários de Apocalipse.

O que sabemos é que ali ao lado, na Faixa de Gaza, ocorre uma tragédia, perante o silêncio complacente do Ocidente. Um dos exércitos mais poderosos do mundo ataca com impunidade uma população indefesa. Sensivelmente do tamanho da Ilha Terceira, o território de Gaza tem pelo menos dois terços da sua infraestrutura destruída, bairros inteiros arrasados, sistemas de saúde e saneamento em colapso. Os doentes crónicos estão a morrer, três em quatro mães recentes não conseguem amamentar os filhos, o lixo acumula-se e os esgotos escorrem pelas ruas sem tratamento. A água é insalubre e a população de 2,3 milhões de pessoas (já serão menos) não recebe abastecimento alimentar suficiente.

O governo israelita salvou poucos reféns e está a cometer um crime que vai perseguir a nação durante duas gerações. Cria a inspiração para futuras guerrilhas que farão do Hamas um grupo de escoteiros. Os bombardeamentos mataram quase 40 mil pessoas e calcula-se que nas ruínas dos milhares de edifícios demolidos estejam outras 10 mil vítimas enterradas. Um estudo da revista científica The Lancet fazia uma estimativa de mortes directas e indirectas na ordem de 180 mil pessoas, que os autores consideravam conservadora. Entre 7% a 9% da população, está lá escrito, para nossa vergonha.

O mundo faz como Pilatos, lava as suas mãos, e aceita com cobardia o argumento israelita de que estão a ser cumpridas as regras humanitárias. A vida em Gaza será impossível, amanhã e durante muitos anos. O território está a ser enviado para a idade da pedra e isto não é uma metáfora, mas um plano declarado. Tudo isto tende a piorar. É uma das batalhas da III Guerra Mundial. A América vai fornecer as armas, a Europa fornece o silêncio, Israel fornece os alvos e os palestinianos fornecem os cadáveres.

Os estranhos

Luís Naves, 30.07.24

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O Ocidente mergulhou num tempo de desordem, as elites estão a perder o pé e o modelo capitalista em vigor não parece sustentável. Guerras, migrações, mudanças tecnológicas demasiado rápidas, a destruição dos recursos, o empobrecimento acelerado de muita gente e o enriquecimento pornográfico dos magnatas, tudo isso contribuiu para criar incerteza, mas há um fenómeno que ameaça acelerar a decomposição social: a marginalização crescente de uma parte do eleitorado. Geralmente, estas pessoas não têm representação nas notícias nem poder financeiro, não estão na cultura e no activismo mediático, nas academias, nos debates da TV. A verdadeira desordem é esta separação mental de grupos que se hostilizam usando linguagens opostas, sem base de entendimento entre gente que não acredita pertencer ao mesmo país. Há uma rivalidade tribal: um lado não escuta, o outro tem dificuldade em falar. A democracia recua quando uma das partes se coloca num plano moral superior e, usando o seu domínio mediático, lança anátemas sobre os milhões que não sabem votar. São rurais, fascistas, pouco qualificados. Pode parecer paradoxal, mas as classes trabalhadoras continuam a ser desprezadas pela burguesia triunfante, embora a clivagem, agora, divida a sociedade ao meio. Na América surgiu um novo termo para estes membros das massas ignorantes que se inclinam para Trump, os 'weird', os estranhos, esquisitos, incompreensíveis; no fundo, pessoas diferentes, cujas opiniões não devem ser consideradas.

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O mundo interior

Luís Naves, 28.07.24

Talvez os jogos de guerra sejam brincadeiras de políticos viciados em jogo, talvez distorções criadas por meios de comunicação que perderam o espírito crítico ou, porventura, a psicose que serve para desenvolver o espírito da docilidade. As pessoas já deixaram de querer saber, a humanidade recua para os seus problemas íntimos e está-se nas tintas. Foi sempre assim nos grandes problemas do mundo: ignoram-se avisos de desgraça iminente, de declínio ocidental, de caos económico ou de ameaça existencial para a liberdade. Em que medida a nossa preocupação vai impedir a procura da felicidade, essa sim importante? As manobras dos poderosos estão além da nossa influência. Quem irá escutar um protesto prematuro, se a contestação só tem efeito quando ganhar massa crítica na opinião pública? Mais vale pensar na beleza do mundo e na resistência da bondade humana. Não sou intelectual e considero-me incompetente para tentar desvendar os enigmas desta nossa actualidade deprimente. Já muitos passaram por aqui. Não se pode travar os loucos, mas com um bocadinho de sorte eles não entram no nosso mundo interior.

Contra a corrente

Luís Naves, 26.07.24

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Que interesse pode ter um diário dominado pelo egocentrismo, repleto de banalidades e mexericos? A inutilidade da chamada auto-ficção também parece evidente, sobretudo se o autor tiver existência espectacularmente aborrecida. Apesar disso, estas parecem ser tendências dominantes. Queremos testemunhos literários que nos revelem o espírito da época, mas jamais poderíamos tolerar um verdadeiro exemplo disso, se ele existisse (não imagino que Vergílio Ferreira, se fosse vivo, pudesse hoje publicar obra semelhante a Conta-Corrente, escrita naquele tom e sobre a nossa realidade). A ficção desistiu da fantasia e a crónica tornou-se conformista. Aceitamos sem pestanejar as frases piedosas e os lugares-comuns que protegem os leitores dos factos cruéis no exterior da bolha. O discurso contemporâneo está repleto de ideias confortáveis e sensatas, com auto-censura do resto. Os intolerantes, por outro lado, são implacáveis com as dissidências e preferem a passividade. O previsível está na moda, o que diz muito sobre o mundo contemporâneo. Nas redes sociais, funcionam lindamente as condolências de desconhecidos e a comiseração geral pelas nossas dores, mas as mesmas pessoas que nos desejam as melhoras vão zangar-se imenso se escrevermos uma frase contra a corrente.

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Os interesses bons precisam de boas guerras

Luís Naves, 25.07.24

É extraordinário que o Ocidente se cale perante o extermínio da população de Gaza e gaste tanta retórica de indignação com quem tenta promover um acordo de paz na Ucrânia. O governo israelita está a enviar dois milhões de pessoas para a idade da pedra, enquanto o seu primeiro-ministro explica no congresso americano, aplaudido pelos líderes do império, que praticamente não há vítimas civis no conflito. A estratégia é simples, trata-se de resolver um problema de uma vez por todas, cortar o mal pela raiz: a vida em Gaza será impossível para dois milhões de pessoas e os sobreviventes terão de emigrar. Para onde? Para a Europa. Assistimos comodamente sentados no camarote. Os dirigentes europeus apoiam esta boa guerra humanitária num silêncio beato, enquanto espumam de raiva com um dos seus que ousou lançar um processo de paz na outra guerra que nos diz respeito. A coisa até tem pernas para andar, parece, mas existe ali, no mínimo, traição. Quem pensa em paz é traidor. A Ucrânia será um estado falhado, que nós, europeus, vamos sustentar durante vinte anos, mas o massacre deve prosseguir. A população de Gaza (enfim, a que sobrar) estará também a nosso cargo. Cabem aqui muitos refugiados. A hipocrisia e a cumplicidade com o crime darão origem a uma imensa vergonha: vocês deixaram fazer isto tudo? nunca protestaram?

O grande turismo

Luís Naves, 19.07.24

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Uma das conversas na moda é o lamento muito sofrido sobre o excesso de turistas nas ruas do centro da capital. Não há portugueses, dizem os nostálgicos de uma cidade que desaparece, mortalmente atingida por hordas de estrangeiros ricos, servidos à mesa, nas esplanadas do enfado, por hordas de estrangeiros pobres. A Lisboa antiga, essa, extinguiu-se e figura apenas nas lembranças difusas dos verdadeiros lisboetas, que evitam o Chiado, incapazes de pagar os preços exorbitantes cobrados nas tascas e tabernas ou, com ligeira náusea, temendo os riscos de atropelamento por algum tuk-tuk desgovernado.

O turismo é uma verdadeira praga de gafanhotos, dizem estas almas sensíveis, incomodadas com o linguajar forasteiro, as rendas incomportáveis dos alojamentos, a dose minúscula da refeição e o desaparecimento do comércio tradicional do jurássico onde, aliás, já ninguém ia.

As alminhas nunca viajaram e não se questionam onde estarão os lisboetas. Algumas centenas de milhares, talvez, a gozar merecido repouso em destino turístico distante, onde contribuem para entupir as ruas e para tornar mais lento o serviço de restaurante, ignorados à mesa por outros forasteiros pobres e olhados de lado pelos nativos que sonham com o merecido repouso turístico, nativos esses que amaldiçoam os seus próprios turistas pela carestia das rendas e o preço absurdo das casas de pasto onde não podem pôr os pés, pois estão a poupar para as respectivas viagens à nossa capital, onde porventura encontrarão refeições para o carote, algumas desilusões no airbisanbis e um ou outro cronista sem nada para dizer, a arrastar o tédio pelos cafés, anotando no seu caderninho frases melancólicas com fortes cacetadas no grande turismo.

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A nova direita

Luís Naves, 19.07.24

Um autor lúcido com coluna no New York Times, David Brooks, notava que o movimento MAGA (Make America Great Again) já não é apenas um slogan, mas uma visão do mundo. O movimento de protesto que se baseava na personalidade abrasiva de Donald Trump é agora uma ideologia que começa a mostrar coerência, tendo abandonado algumas bandeiras extremas. O artigo era crítico da tendência, mas tocava num ponto essencial. Podemos chamar-lhe a Nova Direita, que ameaça abrir um novo ciclo político nas democracias ocidentais. "Os partidos da direita já não são das elites de negócios, mas das classes trabalhadoras", notava Brooks. Estas formações desconfiam da globalização e do capitalismo financeiro que devastou as comunidades industriais na última década, aceitam a luta de classes, não querem intervenções externas de natureza neocolonial, desconfiam das elites culturais e recusam a imigração em larga escala. São nacionalistas, contestam as guerras eternas, estão a crescer na maioria dos países. A esquerda tradicional americana responde com uma discussão antidemocrática para substituir o candidato eleito em primárias, o presidente Joe Biden, cujo declínio cognitivo foi escondido de todo o país por um círculo restrito de conselheiros e pelas omissões da comunicação social. Na Europa, a "velha" direita estabeleceu linhas vermelhas por todo o lado para travar os nacionalistas. Para ser reeleita presidente da comissão, Ursula von der Leyen, chefe dos partidos conservadores europeus, não hesitou em aliar-se aos verdes (amplamente batidos nas eleições europeias) e preferiu fechar a porta a qualquer negociação com os partidos à sua direita. A rebelião popular não federalista terá novos episódios, sobretudo se em Novembro Trump for reeleito para a Casa Branca, como parece inevitável.

O zumbido dos protestos

Luís Naves, 18.07.24

A política leva tempo a adaptar-se às mudanças da sociedade. Nas cidades onde vivem os privilegiados, ninguém se sustenta com salários baixos (viver em Lisboa com 800 euros é quase impossível). Por isso, cresce o fosso entre centro e periferia, as classes trabalhadoras foram expulsas dos bairros caros e forçadas a viver nos subúrbios e na província. Com esta separação em bolhas homogéneas, cada indivíduo tem a sensação de identidade com quem está à sua volta. As elites não compreendem a separação e fazem turismo ocasional na parte abandonada do país. Os partidos convencionais dependem das classes instaladas e os populistas baseiam-se nos descontentes. Cresce o moralismo e a divisão entre nós e eles. Com o declínio das indústrias, a esquerda largou os operários e baseia-se nos funcionários e reformados, segmentos que o centro-direita também procura atrair. Os intelectuais radicalizaram-se nas suas torres de marfim, a discutir assuntos que não interessam aos trabalhadores, os quais estão mais preocupados em chegar ao fim do mês. Na colmeia rígida, há favos com muito mel e outros com pouco. O zumbido dos protestos cresce no mundo do pouco.

O diabo do outro lado

Luís Naves, 17.07.24

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As democracias baseavam-se no princípio de alternância, mas isso já não é assim. Através do controlo dos meios de comunicação, os regimes ditos liberais limitam os poderes tolerados. Os votos não pesam todos o mesmo, o que impede a renovação e aumenta o cinismo dos eleitores. Sem alternância, as democracias têm um ar de farsa. A impossibilidade de mudar cria a estagnação pantanosa que, por seu lado, encolhe ainda mais as opções políticas. Isto está a suceder em várias democracias ocidentais, onde se estabelecem climas de paranoia ou impasse, levando à diabolização daqueles que pretendem alterar o sistema, radicalizados pelo ostracismo e pela frustração de tudo ficar sempre na mesma.

Enquanto o povo quer mudança, as elites convenceram-se de que não existe povo. A frustração dos eleitores não tem a ver com os problemas das classes populares (na visão superior, estas não existem), mas com a incompreensão dos altos valores burgueses. Segundo esta ideia, a exclusão justifica-se e a política passa a ser um caso de bem contra o mal. A comunicação social participa alegremente e deixou de fazer perguntas.

A globalização, a grande recessão, a pandemia e a guerra da Ucrânia tiveram terríveis consequências na vida de milhões de cidadãos dos países ocidentais, mas o sistema político e mediático recusa-se a reconhecer o aumento das desigualdades e o abandono das classes trabalhadoras. Tornou-se uma impossibilidade contestar a ortodoxia ocidental, apesar desta mostrar crescentes fissuras. Quem o fizer, recebe os piores rótulos, perde amigos, não publica, será insultado e socialmente ostracizado. As liberdades estão a encolher.

Perante a revolta eleitoral popular, as elites exibem crescentes sinais de pânico. Falar de paz na Ucrânia, por exemplo, merece o anátema, é como invocar demónios. O massacre deve continuar até ao último ucraniano. Nunca até hoje compreendi a frase de Jesus Cristo em Mateus 5,9: “Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”. A sabedoria parecia-me demasiado óbvia, mas agora entendo que a paz é das coisas mais difíceis de conseguir e mesmo pessoas razoáveis podem ser contra ela. Há sempre argumentos, não é oportuna, beneficia o infractor, perturba os equilíbrios mundiais. Claro que ninguém fala nos interesses que justificam a continuação da guerra, são sempre a moral e os altos valores que a justificam. Nunca é o dinheiro ou a hipocrisia, há sempre o diabo no outro lado.

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Não se entende

Luís Naves, 16.07.24

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É espantoso como as nossas vidas mudaram em 50 anos: conforto, energia abundante, diversidade da alimentação, a facilidade com que se comunica, aprende e viaja. Não é preciso ser rico para viver como um rico de há meio século. O turismo low cost, a dieta sofisticada, a informação que, no passado, era só para alguns. Podemos descarregar bibliotecas de clássicos para aparelhos de baixo custo. Usando um dispositivo banal, podemos ouvir gravações de música sem gastarmos mais do que cêntimos; os nossos telemóveis fazem quase tudo; enfim, não será barato, mas podemos adquirir alimentos exóticos produzidos em locais longínquos. As tecnologias digitais são fantásticas e a globalização é um colosso. Existe o lado sombrio da modernidade, mas não é possível viver tudo isto sem admiração e um pequeno arrepio de assombro. A revolução digital está concluída, a globalização pode recuar, o mundo está perigosamente endividado, vem aí uma nova vaga de inovações cujo impacto ainda não imaginamos. Alguém referia os minúsculos chips que vamos ter nos nossos corpos para vivermos mais tempo ou aprendermos mais depressa. Imagine-se a capacidade de cada um de aprender em minutos uma nova linguagem, por exemplo, solfejo. Há quem fale na iminência da singularidade, existem planos credíveis para colonizar Marte. É fantástico, sem dúvida, o que torna ainda mais estranho o pessimismo contemporâneo. O que leva tantos líderes a falarem obsessivamente de armas e de guerra, quando este admirável futuro está ao nosso alcance?

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A grande divisão

Luís Naves, 13.07.24

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A recessão, a globalização e a pandemia provocaram um sismo social que a política ainda não assimilou, o emagrecimento da classe média, que foi estilhaçada em grupos separados, incluindo uma parte relativamente satisfeita de pensionistas, funcionários do Estado e outra gente urbana, talvez um quarto da população nos países mais ricos. Do outro lado, estão os insatisfeitos com o seu declínio económico, em redor de 40%. Nesta sociedade partida, há ainda os muito ricos e a nova classe social dos migrantes. Neste caso, os antigos impérios coloniais trouxeram para os seus países um pedaço das ex-colónias: trabalhadores baratos e sem direitos, os quais vivem em condições de miséria, apoiados verbalmente pela hipocrisia dos que só conhecem o conforto. Ninguém quer saber da exploração a que são submetidos, desde que continuem a chegar em grande número. Os países de origem são explorados por elites que o próprio ocidente tratou de corromper e têm escassa hipótese de sair da pobreza a que estão condenados. Perdido por cem, perdido por mil, os migrantes tentam a sua sorte a trabalhar para o neoliberalismo que os despreza. Vêm em busca de uma terra prometida que não é muito mais do que a ilusão da abundância.

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O museu dos intelectuais

Luís Naves, 12.07.24

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Deixou de existir espaço para especulações intelectuais, pois tende a ser equivalente a visibilidade das ideias pequenas e das grandes. Somos engolidos por uma vaga imensa de coisas novas ou de aparência nova, basta olhar para uma montra de livraria e lá estão, alinhados em fileiras intermináveis, regimentos de livros de aspecto idêntico, com capas parecidas, novidades e reedições, clássicos e cultura popular, numa miscelânea que torna a futilidade tão visível como o pensamento profundo. Como escolher nesta abundância? Os meios de comunicação vivem da quantidade, tal como os cardumes de peixe procuram a proteção do número. Os intelectuais eram os sábios que pensavam pela sua própria cabeça, mas esse exercício complica-se quando há até dificuldade em perceber quais são os factos em nosso redor. Aliás, ideias exóticas deixaram de ser bem acolhidas, sobretudo quando são lúcidas. A incerteza da realidade e a especialização amplificada não impedem ninguém de pensar o mundo, mas limitam o impacto das ideias novas. Melhor ficar em silêncio, para mais quando andam à solta tantas patrulhas do pensamento.

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Maldição humana

Luís Naves, 03.07.24

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Na literatura pós-apocalíptica surge frequentemente a ideia de que os sobreviventes de uma guerra nuclear acabariam por se virar contra toda a tecnologia. No fundo, para preservar a humanidade, seria preciso destruir a hipótese de recuperar a civilização, eliminando todo o saber, destruindo cada registo e cada livro existentes. Há o exemplo real e clássico do Camboja, onde a eliminação do "mundo antigo" foi feita a partir de cima, ou seja, pelo homicídio das pessoas que exibissem algum sinal de literacia, incluindo professores, diplomados ou intelectuais. Possuir um livro era crime e implicava fuzilamento. A cultura pode não ser mais do que um verniz que cobre uma civilização mais frágil do que parece, pronta para se auto-destruir. O suicídio de uma grande cultura implica o apagamento da memória e a reconstrução começa com uma folha em branco. Hoje, quando parece que estamos a caminho do desastre, basta um erro de cálculo ou uma avaria informática para transformar em pó séculos de esforço humano. Talvez a literatura pessimista tenha certa razão: o saber e o engenho podem ser uma maldição.

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