O Mundo de Agora
Gosto imenso de um livro extraordinário de Stefan Zweig, O Mundo de Ontem. É uma obra estranhamente atual. As passagens sobre a Primeira Guerra Mundial, por exemplo, fazem lembrar o clima de intolerância provocado pela Guerra da Ucrânia ou o conflito de Gaza, sobre os quais é bem difícil, nos dias de hoje, manter uma discussão serena ou ter uma posição favorável à diplomacia.
Podemos ler nestas memórias que no Verão de 1914, numa transição de poucas semanas, os amigos de Zweig estavam transformados em fanáticos, "anexionistas insaciáveis", que diziam as frases mais disparatadas e acusavam o escritor pacifista de já não ser austríaco. "Só restava uma solução: retirar-me para dentro de mim e guardar silêncio, enquanto os outros bramavam exaltados. Não era fácil, porque nem sequer viver no exílio, que conheci até bem de mais, é tão mau como estar sozinho na pátria". (o livro foi escrito muito mais tarde, em 1942, pouco antes do suicídio do escritor).
Dizer que aquela guerra era um crime tornara-se uma opinião perigosa, que muitos dos antigos amigos achavam merecer ser denunciada. Um pouco mais à frente no livro, Zweig conta os episódios de 1915: era sargento trintão e velho para combater, recebeu um posto burocrático de retaguarda, mas viu pessoalmente a desgraça dos soldados numa viagem em comboio hospital que vinha da frente para Budapeste (a frente ficava naquilo que é atualmente território ucraniano). Esta experiência provocou-lhe o impulso de denunciar a guerra: "Tinha reconhecido o adversário contra o qual se impunha combater - o falso heroísmo que prefere enviar os outros para o sofrimento e para a morte, o otimismo barato dos profetas sem consciência, tanto políticos como militares, que, prometendo sem escrúpulos a vitória, prolongam a carnificina. (...) Quem lutasse contra a guerra, na qual eles próprios não sofriam, era rotulado de traidor. Era o eterno bando, o mesmo através dos tempos, que chamava cobarde aos prudentes, fracos aos humanos, para depois ficar sem saber o que fazer na hora da catástrofe que levianamente provocara".
Sabemos como é que a história acabou, a Áustria foi derrotada, Zweig foi um vencido dentro do desastre. Infelizmente, o autor austríaco não escreveu apenas sobre o Mundo de Ontem, mas de maneira trágica também sobre o de agora, como se a humanidade não conseguisse aprender nunca. Somos pois testemunhas de duas calamidades simultâneas e tudo aquilo que ouvimos, dos políticos e dos militares, é essencialmente a mesma profecia de outrora sobre a necessidade de continuar o massacre.
Este livro O Mundo de Ontem, Recordações de um Europeu, é fácil de encontrar nas livrarias, em edição da Relógio D'Água, tradução de Ana Falcão Bastos.