Pena suspensa
Olhava-o e ficava siderada. Por tudo o que via. Mas sobretudo por tudo o que não via. Arrancava-a do sério. De um lado era a aparência, a charla, o encanto; e os olhos atlânticos. Do outro, o impossível crivo de virtudes mentais, o intangível nervo da racionalidade, a eficiência instantânea, mas discreta. O longo treino no ser, a mestria no estar.
Passar ao estádio seguinte parecia obrigatório. Sentia-se avocada.
Mas seria tão curto.
Não, era melhor assim:
Ir descobrindo, lenta, as imperfeições dele. Enredar-se nalgumas, de tão harmoniosas que acabavam por ser, numa contradição melódica. E fixar-se noutras que a levassem a ver. Ver como numa TAC, reveladora e crua.
Detestava a cegueira. Era este o caminho.
Por isso mesmo, quando ainda cedia à tentação tremenda dos sentidos, voltava à tona da água daquele mar revolto e respirava fundo, aliviada, por tudo não passar de um risco imaginário. Fugia da entrega, o que é dizer, do logro. E depois, já sabia que a clareza é dúbia: pode bem ser magnífica, mas também pode ser pródiga em vulgaridade. Depende de quem lê e ninguém merece tanto, porque a vida inteligente, em fim de contas, não assiste os humanos em todas as matérias.
Largar, abrir os olhos e ficar vigilante. Doravante, era assim.
Apagou o programa. Fechou as ligações.
“Sim, quero sair!” – respondeu, irritada.
Cancelar tudo. Voltar atrás. Matar.
Era esse o caminho, até tudo passar.
(Sabia que o melhor só viria depois).