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Delito de Opinião

Pena suspensa

Laura Ramos, 21.03.11

 

Olhava-o e ficava siderada. Por tudo o que via. Mas sobretudo por tudo o que não via. Arrancava-a do sério. De um lado era a aparência, a charla, o encanto; e os olhos atlânticos. Do outro, o impossível crivo de virtudes mentais, o intangível nervo da racionalidade, a eficiência instantânea, mas discreta. O longo treino no ser, a mestria no estar.

Passar ao estádio seguinte parecia obrigatório. Sentia-se avocada.
Mas seria tão curto.

Não, era melhor assim:

Ir descobrindo, lenta, as imperfeições dele. Enredar-se nalgumas, de tão harmoniosas que acabavam por ser, numa contradição melódica. E fixar-se noutras que a levassem a ver. Ver como numa TAC, reveladora e crua.
Detestava a cegueira. Era este o caminho.

Por isso mesmo, quando ainda cedia à tentação tremenda dos sentidos, voltava à tona da água daquele mar revolto e respirava fundo, aliviada, por tudo não passar de um risco imaginário. Fugia da entrega, o que é dizer, do logro. E depois, já sabia que a clareza é dúbia: pode bem ser magnífica, mas também pode ser pródiga em vulgaridade. Depende de quem e ninguém merece tanto, porque a vida inteligente, em fim de contas, não assiste os humanos em todas as matérias.

Largar, abrir os olhos e ficar vigilante. Doravante, era assim.

Apagou o programa. Fechou as ligações.

“Sim, quero sair!” – respondeu, irritada.

Cancelar tudo. Voltar atrás. Matar.

Era esse o caminho, até tudo passar.

(Sabia que o melhor só viria depois).

O 6.º sentido é delas. E o 7.º, também?

Laura Ramos, 07.02.11

 

Emergiu de um bar engraçado quando já eram quase 3 da manhã, afinal era sexta-feira e no dia seguinte, por mero acaso, não teria de madrugar. Chegou a casa e perdeu tempo a revolver o carro, em busca do iphone que não encontrava (andava sempre a perder-lhe o rasto, de tão pesado que era, maldita a hora em que trocara o seu fiel blackberry).
Mas ultimamente era assim, não sabia onde deixava nada, tamanho o cansaço. Ou a distracção. Ou a preocupação.

Chegar a casa, que conforto... Insubstituível sensação. O quadro grande da entrada, uma loucura permitida na última feira de Madrid (e a próxima quase a chegar, o tempo voa). O candeeiro vintage, da Ladra, com aquela luz pastosa e envolvente, coalhada. A chaise longue, onde tanto gostava de ler (e às vezes de fechar os olhos e fingir que dormia, escapando ao apelo massacrante das rotinas diárias).
Por fim o quarto, o canto, o recanto da cama. E o outro recanto, o do pescoço dela. Seu. Habitual. Infalível.

Sabe-lhe bem...

Mas isso são coisas suas. Muito suas, em que não quer pensar, nem revelar.
Pega no livro. Sabe que vai sucumbir a um sono invencível e que duas páginas depois será derrotado em beleza, com as frases, a trama e o feitiço todos entranhados em si, já noutra dimensão. Amanhã acordará mentalmente a milhares de quilómetros de distância. E terá como único objecto transitivo da véspera o livro aberto, virado ao contrário, no ponto Y.
Começará de novo, como sempre, os gestos quotidianos a fingir a continuidade que só alberga na sua cabeça.
A vida tem de ser assim, tranquila. Porque traz consigo a paz, e, paradoxalmente, o espaço para poder viver a sua inquietação. Boa inquietação. Saudável, sobrevivente inquietação.
Amanhã...


Afunda-se, no desejo avassalador e telúrico de um sono profundo, de quem viveu cada minuto, cada hora de trabalho duro, cada cerveja casual de fim de noite, quem sabe se forçada.

- Em busca de quê, atrás de quê, porquê...?

- E isso interessa?
Afinal é um homem igual a tantos outros. Não busca nada, não tem de procurar sentido em tudo.
Elas, sim, gostam disso. Exigem! Demandam pela vida fora uma razão para o que quer que seja, obsessivamente.
Como se tudo neste mundo (e logo no mundo delas) fizesse sentido!- pensa, sardonicamente...
Mas essa não é uma guerra que o puxe, prefere abdicar do teste. Passa.
Está um pouco farto de todas essas tipas complicadas... Está muito farto, mesmo.


Com a luz apagada, o pé a tocar confortavelmente o dela, ainda se inquieta:
- E se aquela de hoje me perguntasse porquê? Eu saberia?
- E se eu tivesse ficado lá um pouco mais, ela perguntaria?
- E se não perguntasse, e me chamasse, iria?

 

Que bom, que bom é dormir e desligar de tudo.
Ficando aqui, ele sabe que não.

-Não fiquei a perder.


(Talvez só o sentido. Mas isso, por enquanto, não lhe interessa nada. Rigorosamente nada).