«I have a cunning plan».
Para quem conhece a referência, poucas outras palavras conseguirão provocar riso tão facilmente sem qualquer outra referência ou contexto. Referências a criados semi-escravos e só tangencialmente humanos, líderes tão incompetentes que não conseguem vestir calças, pares cujo ódio está tão repleto de bonomia que o veneno que pinga de todas as sílabas pode ser dispensado e recebido com sorrisos sinceros. Tudo isto preenche o universo Blackadder, a série de comédia que conseguiu um segundo lugar na votação da BBC sobre as melhores britcoms (o vencedor foi uma série pouco conhecida em Portugal - Only Fools and Horses - brilhante mas com referências muito específicas temporal e geograficamente).
Em Portugal passava na RTP2 à hora do telejornal, para meu azar. Com apenas uma televisão em casa - e já tinha sorte - eu tinha de esperar que o meu pai não estivesse em casa para poder mudar de canal e poder rir-me um bocado (a minha mãe aceitava mais facilmente perder as notícias da noite). Havia no entanto um pequeno obstáculo: o humor dependia de tal forma do conhecimento de inglês (muitas piadas eram intraduzíveis) e de história, preconceitos ingleses, tradições, etc, que só consegui começar a apreciar convenientemente a série alguns anos mais tarde, quando a redescobri. Ainda hoje, quando tenho todas as séries, os episódios especiais e até as raridades, vou descobrindo pequenas pérolas que me escaparam no passado, mesmo enquanto me rio perdidamente das piadas que sei virem a seguir.
Dentro das 4 temporadas, a mais fraca é, excepcionalmente, a primeira. Blackadder é apresentado como uma versão de Mr. Bean (a personagem que mais é identificável com Rowan Atkinson). Um idiota fraco, sem ideias ou convicções, apenas ganância sem fim e escrúpulos inexistentes. Nesta série os seus acompanhantes (Baldrick à cabeça) são inteligentes e oferecem os melhores planos. O rei é já a personagem de autoridade brutal mas não idiota, apenas completamente desinteressado nos seus filhos - Edmund Blackadder é constantemente chamado de "Edna"). O texto era já excelente, mas o efeito cómico ainda algo diluído pelas diversas personagens e sem a secura que caracterizou as restantes temporadas.
A partir da segunda temporada, é quase impossível referenciar uma sem as outras. Os temas atravessam todas as temporadas e não existe uma linha temporal que obrigue a seguir os episódios por ordem. A principal excepção será sempre o episódio final (4ª temporada), que exclui toda e qualquer continuação (pelo menos com aquelas personagens). Esta é talvez a temporada que mais escapa ao tom genérico de sátira bem humorada das séries, referenciando a vida nas trincheiras (café de lama e rato estufado são o prato du jour) e acaba com um dos finais mais amargos que seria de esperar para uma série de comédia, com os principais protagonistas a correrem para as suas mortes. Todo o episódio aliás nos prepara para esse final, incluindo o momento em que, julgando ter escapado esse destino, três personagens interpretam o silêncio nas trincheiras como o armistício que assinalaria o fim da Grande Guerra de 1914-17 (um momento de grande comédia, hilariante e cruel ao mesmo tempo).
Pessoalmente não consigo apontar temporadas preferidas, tendo antes momentos preferidos. Como episódio é difícil fugir ao episódio, na 4ª temporada, em que o Capitão Flashheart irrompe pelos ecrãs (já tinha surgido noutra forma na segunda temporada). São no entanto os pequenos diálogos entre Blackadder e Baldrick que ficam mais presentes. Aliás, muitos dos diálogos de Blackadder acabam por ser essencialmente solilóquios em que este lamenta a sua sorte e condição («The path of my life is strewn with cowpats from the Devil's own satanic herd!»). Pérolas das séries, escolhidas sem critério:
- Baldrick, get the door.
- Who's using the family brain cell at the moment?
Blackadder: Ah, Melchett! Greetings! I trust Christmas brings you its traditional mix of good food and violent stomach cramp. / Melchett: And compliments of the season to you, Blackadder. May the Yuletide log slip from your fire and burn your house down.
- I should've known not to trust a man with the mental agility of a rabbit dropping!
- My head feels like there's a Frenchman living in it.
- They are so poor that they are forced to have children as a cheap alternative to turkey at Christmas.
- She is famous for having the worst personality in Germany and, as you can imagine, that's up against some pretty stiff competition.
- He's madder than Mad Jack McMad, the winner of last year's "Mr. Madman" competition.
- A man may fight for many things: his country, his principles, his friends, the glistening tear on the cheek of a golden child. But personally I'd mud wrestle my own mother for a ton of cash, an amusing clock, and a sack of French porn. You're on.
- The greatest work of fiction since vows of fidelity were included in the French marriage service.
- Skirt? Ha! If only. When I joined up we were still fighting colonial wars. If you saw someone in a skirt you shot him and nicked his country.
- In one short evening I've become the most successful impresario since the manager of the Roman Coliseum thought of putting the Christians and the Lions on the same bill.
- Never, in all my years, have I encountered such cruel and foul-minded perversity! Have you ever considered a career in the church?
- what we are talking about in privy terms is the latest in front wall fresh air orifices combined with a wide capacity gutter installation below.
- Just because I can give multiple orgasms to the furniture just by sitting on it, doesn't mean that I'm not sick of this damn war: the blood, the noise, the endless poetry.
- Captain Darling? Funny name for a guy isn't it? Last person I called darling was pregnant twenty seconds later.
- The Teutonic reputation for brutality is well-founded. Their operas last three or four days. And they have no word for "fluffy".
O segredo da série passava então pela sua escrita mas também pela qualidade dos actores. Não é fácil fazer vezes sem conta o mesmo comentário, com pequenas variações de texto e de timing e conseguir sempre o efeito cómico pretendido. Rowan Atkinson conseguia o seu propósito porque estava tão longe da sua persona televisiva habitual. Tony Robinson consegui o milagre de aparecer como a pessoa mais estúpida da História. Stephen Fry dava corpo a personagens fortemente beligerentes e cúmulos do machismo. Hugh Laurie (hoje o mais conhecido do grupo graças a House) repetia o milagre de aparecer idiota com o cúmulo de o fazer com personagens distintas. Tim McInnerny, Miranda Richardson e Patsy Byrne empregavam o seu brilhantismo de palco às personagens e uma galeria de outros excelentes actores britânicos ia aparecendo de tempos a tempos (Robbie Coltrane, Jim Broadbent ou Miriam Margolyes são exemplos).
O episódio mais recente de exibição pública foi Blackadder: Back and Forth (link para o filme no YouTube), exibido na passagem de ano de 2000. De tempos a tempos repetem-se os rumores que uma nova série, um filme ou um novo episódio estarão em preparação. Os actores confirmam e depois negam os rumores. McInnerny terá dito que preferia que os espectadores mantivessem na memória as personagens como eram, não como os actores são hoje. Não me importo. Qualquer nova temporada que arriscasse estragar o brilhante trabalho do passado seria má ideia. O final da 4ª temporada foi o ponto final perfeito: um avançar resignado, mas sempre espirituoso, para o fim.
Quanto aos planos de retomar, que fiquem como todos os planos em Blackadder: cunning, mas no fim inconcretizáveis e falhados.