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Delito de Opinião

Chegar a comandante sem fazer recruta

Pedro Correia, 22.01.25

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Nem Trump nem Biden foram à tropa. Um alegando ter um calcanhar inflamado, o outro por sofrer de asma

 

Há 32 anos, cumpridos anteontem, saía da Casa Branca o último inquilino que fez tropa à moda antiga, participando em combates no campo de batalha. George Walker Bush, que combateu na II Guerra Mundial como piloto da força aérea norte-americana, participando em 55 missões nas Filipinas e no Japão em 1944 e 1945.

Depois dele, tudo mudou. O Presidente dos Estados Unidos é considerado "comandante supremo das forças armadas", mas quatro dos últimos cinco chefes do Executivo não prestaram serviço militar. E todos quantos tinham idade para combater no Vietname, na época em que a tropa ainda era obrigatória, evitaram ser mobilizados sob pretextos vários.

É o caso do novo-velho inquilino. Nascido em 1946, Donald Trump festejou o 20.° aniversário no auge da intervenção norte-americana na Indochina. Mas esquivou-se a vestir farda, com cinco adiamentos sucessivos - os quatro primeiros invocando a sua condição de estudante de Economia, o quinto alegando ter um calcanhar inflamado. Anos depois Trump gozou com o sucedido, garantindo já não saber em que pé teria o suposto problema. E gozou ainda mais, observando que «o seu Vietname particular» fora a trepidante vida nocturna de Nova Iorque, onde o risco de contrair doenças vénereas era elevado para alguém como ele.

 

Joe Biden foi outro "comandante-em-chefe" que nem a recruta cumpriu. Nascido em 1942, agiu exactamente como Trump: foi metendo papéis para o adiamento da incorporação por frequentar um curso de Direito. No fim, já formado, solicitou dispensa por sofrer de asma, livrando-se do Vietname. Ficou sine die na reserva territorial. 

Bill Clinton, nascido em 1946, estudava também Direito quando atingiu a idade de ir à tropa. Antes, como bolseiro em Oxford, participara em manifestações públicas contra a guerra do Vietname. Alegadamente, uma cunha familiar terá contribuído para o safar da incorporação. Nunca envergou farda.

George W. Bush, um dos três presidentes nascidos em 1946, resolveu o problema de outra forma: evitou ser enviado para a Indochina incorporando-se na secção da força aérea da Guarda Nacional do Texas. A guerra, para ele, ficou muito longe. A mais de 13 mil quilómetros de distância.

O caso de Barack Obama é diferente. Nascido em 1961, tinha 12 anos incompletos quando terminou o serviço militar obrigatório nos EUA. Uma decisão da administração Nixon concretizada em Janeiro de 1973, antecedendo a retirada dos EUA do Vietname. 

 

Este divórcio entre os inquilinos da Casa Branca e as forças armadas de que são nominalmente chefes é recente. Vinte e um dos primeiros 26 presidentes tiveram participação muito activa na vida militar.

No conjunto, três foram generais: George Washington (1789-1797), Ulysses Grant (1869-1877) e Dwight Eisenhower (1953-1961).

Andrew Jackson, William Henry Harrison, Zachary Taylor, Rutherford Hayes, James Garfield e Chester Arthur foram majores-generais. Franklin Pierce, Andrew Johnson e Benjamin Harrison foram brigadeiros. Thomas Jefferson, James Madison, James Monroe, James Polk, Theodore Roosevelt e Harry Truman chegaram a coronéis. Lyndon Johnson e Richard Nixon foram comandantes da Armada. Gerald Ford, comandante adjunto. Também John Kennedy (herói na II Guerra Mundial) e James Carter se destacaram na Marinha. Millard Fillmore serviu nas fileiras como major. Abraham Lincoln chegou a capitão do Exército - tal como John Tyler, William McKinley e Ronald Reagan. 

Apenas 14 dos 45 presidentes não fizeram tropa - metade dos quais nos últimos cem anos. Nem sequer seguiram o exemplo de James Buchanan (1857-1861), que cumpriu serviço militar sem passar de soldado raso.

 

Noutros tempos, o incumprimento dos deveres militares num país com fortíssima tradição castrense como são os EUA, maior potência bélica do planeta, mancharia a reputação de um político. Não é assim nestas décadas mais recentes, como os exemplos de Clinton, Obama, Trump e Biden comprovam.

O que talvez ajude a explicar este facto: o Vietname foi o único conflito bélico com forte presença norte-americana que não beneficiou o currículo de nenhum político com verdadeiro sucesso. Pelo contrário, três que lá estiveram - o republicano John McCain em 1967-1973 (várias vezes condecorado devido ao seu comportamento heróico, incluindo o longo cativeiro em que foi submetido a torturas diversas) e os democratas John Kerry em 1968-1969 (três vezes condecorado como herói de guerra) e Al Gore em 1971.

McCain foi derrotado por Obama na corrida presidencial de 2008. Kerry perdeu contra Bush nas presidenciais de 2004. Gore, vice-presidente com Clinton entre 1993 e 2001, sofreu uma derrota tangencial em 2000, também frente a Bush. Confirma-se: o Vietname pode ser matéria boa para filmes e séries, mas não é trunfo político. Daí Trump gozar com o tema. 

Resta ver se ele, que nunca fez tropa, alguma vez hesitará em enviar os jovens de hoje para palcos de guerra. 

As Forças Armadas na campanha eleitoral

Paulo Sousa, 26.02.24

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O nosso companheiro José Pimentel Teixeira já aqui trouxe o assunto da ausência da Defesa nestas eleições. Segundo o Expresso desta semana, a SEDES apresentou os resultados de uma sondagem sobre diversos aspectos da nossa sociedade, dos quais saliento um valor que merece ser destacado. Quase metade dos inquiridos (47%) concorda com o aumento dos investimentos em defesa, mesmo que isso implique cortar noutras áreas da governação e só 27% discordam desse aumento. A mesma maioria de 47% concorda com o regresso do serviço militar obrigatório (SMO).

Ao fundo ouvem-se os tambores da guerra e o peso da defesa no nosso orçamento aparenta uma despreocupação que afinal não existe.

Eu, que não fui inquirido, concordo que é necessário canalizar mais recursos para as nossas forças armadas. Ouvi num debate, alguém que defendia o contrário, argumentando que o peso dos salários era esmagador no total do Ministério da Defesa. A resposta, de uma alta patente, foi clarificadora. Quanto menos se investir em equipamento, maior será o peso dos salários.

Além do investimento urgente em equipamento em todos os ramos da Forças Armadas, o regresso do SMO seria também uma forma de aproximar os portugueses aos assuntos da defesa e segurança. Esta nova versão do SMO, deveria ainda incluir uma vertente não militar e refiro-me a Protecção Civil e Serviços Sociais.

O “reembolso” dos jovens ao país que os formou e ajudou a educar, no final da vida escolar, não é descabido e reforçaria o sentido de cidadania. Não estamos a falar em querer amarrar os médicos para tentar resolver a má organização do SNS, mas apenas a envolver os jovens na vida do país.

Lamentavelmente a Defesa tem estado arredada da campanha eleitoral. Será que os partidos acham que nestas alturas se devem evitar assuntos impopulares? Podem achar, mas este inquérito da SEDES mostrou-nos que investir nas Forças Armadas pode não ser assim tão impopular.

Militares a ameaçar sair à rua.

Luís Menezes Leitão, 23.02.24

Quando leio num jornal sobre militares a saírem à rua por razões salariais, lembro-me logo deste episódio semelhante, ocorrido no então Zaire em 1991, em que o terror foi tanto que obrigou à fuga dos portugueses que ali residiam, com pessoas a desmaiarem à chegada a Lisboa pela emoção de terminar o pânico que tinham sofrido.

Militares fora dos quartéis é algo a que não assistíamos desde o 25 de Novembro de 1975. Parece, no entanto, que a absoluta incompetência deste Governo na gestão dos assuntos de Estado, com a discriminação que criou no subsídio às forças de segurança, está a levar o país a comemorar os 50 anos da Revolução com uma repetição ao vivo e a cores do pior que se passou nos tempos do PREC. Espero bem que no próximo dia 10 de Março Portugal inteiro dê a resposta adequada àqueles que o colocaram nesta situação.

O Almirante

jpt, 19.03.23

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(Gouveia e Melo, fotografado por Miguel Valle de Figueiredo)

O país estava exausto pelos efeitos do Covid-19, atrapalhado pelos normais constrangimentos e hesitações governamentais face àquele enorme desafio, tudo incrementado por alguns ziguezagues desnecessários. Após um ano de pressão pandémica o alívio da esperada vacinação começou embrulhado em confusão executiva e manchado por alguns casos de nepotismo, na apropriação de vacinas por membros da elite socialista, algo exasperante e incrementando dúvidas sobre a capacidade de uma competente vacinação universal. Neste caso não é necessário fazer o rescaldo das práticas então seguidas pelo Ministério da Saúde, e restante governo, pois nisso logo se dividem as opiniões devido a critérios advindos do viés partidário. Mas é pacífico constatar que após Gouveia e Melo ter sido colocado no topo da sua estrutura organizacional  - e de ter lhe reforçado a participação militar  - o processo nacional de vacinação foi um sucesso, até inesperado. Para tal contribuiu a credibilização dos serviços: explicitando a confiança nacional nos ditâmes dos agentes da Saúde (remetendo os "negacionistas" das vacinas a um minoria histriónica). Mas também na racionalidade e na rectidão dos processos, pois logo minguaram as atrapalhações executivas e, mais, desapareceram as notícias sobre autarcas e deputados a reservarem alguns lotes de vacinas para si, familiares, amigos e vizinhos. E contribuiu também, não o esquecer, a constante e ponderada disponibilidade comunicacional do coordenador-geral Gouveia e Melo, sossegando e mobilizando as hostes nacionais.

 

 

Os nossos generais comentando a guerra

jpt, 07.03.22

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A semana passada ouvi, um pouco "en passant", dois generais portugueses, Costa e Cunha, comentando na televisão a guerra ucraniana. Fiquei um bocado incomodado - em parte, mas não só, pelo vincado tom "compreensivo" da atitude russa e até credibilizador dos seus argumentos. É certo que sobre o que eles avançavam relativamente às movimentações militares nada posso dizer, pois desconheço-as e sou totalmente ignorante nesse ofício, que é o deles. Mas o que mais se me realçou foi o seu fundo cultural, a mundividência que neles transparecia, até mesmo sendo explicitada.  Enfim, monologuei um resmungo, e mudei para um dos canais que venho seguindo. E deixei-me pensar que se calhar a minha reacção se devia apenas ao meu (envelhecido) mau feitio.

Passados dias encontro na imprensa eco que o meu mal-estar não foi único, mais gente resmungando com estes contributos do nosso generalato. Há mesmo quem lhes atire tendências putinescas. Ora nem é isso que me convocou a atenção, foi muito mais a tal mundividência que patentearam, traduzível numa "cultura profissional".

Explico-me, começando por uma ressalva (o tal "disclaimer" que os do "broken portuguese" agora usam), que julgo necessária para me fazer compreender: o militar português contemporâneo cuja memória mais respeito - e sem menosprezo por nenhum outro - é a do general Vassalo e Silva. Ao qual a democracia justamente reabilitou mas ao qual talvez não tenha honrado o suficiente, por razões se calhar incontornáveis. Ressalvo isto para não aparecer aqui como um patético e furioso castrense de sofá. Avante...

Sendo eu um civilista, e pouco lido em história militar e nas ciências desse ramo, tenho uma vaga ideia de que diante de uma invasão de um país por forças estrangeiras bastante mais poderosas haverá, grosso modo, quatro tipos de respostas: 1) rendição imediata, salvaguardando vidas humanas e, secundariamente, bens materiais; 2) uma breve resistência, durante a qual se procura organizar uma hipotética futura guerrilha; 3) resistência extremada, até sacrificial, assente na fanatização nacionalista e na demonização do invasor (como na II Guerra Mundial o foi a japonesa e a alemã na frente oriental); 4) mobilização geral dos recursos humanos com exaltação do patriotismo, possibilitando uma resistência algo prolongada, solicitando apoios externos, políticos-diplomáticos e mesmo militares. Tudo para procurar uma negociação final em termos o menos assimétricos possíveis, salvaguardando o que for possível para os desígnios nacionais.

Parece-me óbvio que é este último o objectivo ucraniano. Ora o que eu ouvi dos dois generais comentadores é uma acusação ao nacionalismo ucraniano (Costa inclusivamente igualizou o nacionalismo ucraniano e o russo, a ambos negativizando), e uma denúncia da atitude do seu governo em mobilizar a população para esta defesa - julgo, mas não afianço, que um deles até chamou a essa opção "criminosa" - dada a disparidade de forças.

Ora aquilo que me choca - para além das perspectivas e dos conhecimentos que estes generais possam patentear sobre as práticas militares em curso e as questões geoestratégicas envolvidas - é ter dois generais portugueses a criticarem desta forma radical uma opção patriótica de defesa de um país. Pois se é para isto que formamos generais, se é para ter generais que julgam errado defender um país para conseguir melhores termos de rendição, acautelando o futuro o melhor possível, se é para termos esta mentalidade de funcionário público do economato no topo das nossas Forças Armadas, então será melhor encerrá-las. E com as poupanças aumentar o contributo à NATO (ou similar) que nos trate da Defesa. Ou contratar umas empresas mercenárias. 

Pois com estes generais não iríamos lá.

 

A guerra na primeira pessoa

Alexandre Guerra, 24.10.18

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Quando estive há cerca de dois meses na Bósnia, conheci um jovem guia, que está a tirar o doutoramento numa universidade de Ancara e que tem estado envolvido no museu de Srebenica. Este projecto ocupa as antigas instalações do que foi o então quartel-general do tristemente célebre contingente holandês ao serviço da UNPROFOR, localizado em Potacari, a poucos quilómetros da vila de Srebrenica, que viu serem assassinados de forma sistemática mais de oito mil bósnios muçulmanos (bosniaks), entre 11 e 16 de Julho de 1995, sob os ordens militares do general sérvio Ratko Mladic. A meio de uma das conversas que tive com Jasko, fiquei impressionado com o conhecimento que detinha sobre a presença portuguesa nas missões da ONU e NATO. Apesar de ele não ter mais de 30 anos, tinha bem presente a boa prestação que o contingente português teve ao serviço da força de manutenção de paz da NATO (IFOR), em 1996, cujo objectivo era a “implementação” das linhas dos Acordos de Dayton (1995). Tratava-se da primeira projecção de forças militares nacionais em larga escala desde o fim da Guerra Colonial.

 

Já antes, em pleno conflito nos Balcãs, Portugal teve uma participação muito limitada, mas importante, na missão UNPROFOR (United Nations Protection Force), destacando para a Bósnia e Croácia, entre 1992 e 1995, um pequeno grupo de “observadores militares” não armados de capitães e majores do Exército e Força Aérea. Esta operação acabou por ser uma extensão da missão europeia de verificação do cessar-fogo entre a recém-proclamada independente Eslovénia e a (ainda) Federação da Jugoslávia. Quando a Missão de Monitorização da CEE/UE deu lugar à força da ONU, os primeiros capacetes azuis portugueses chegaram no primeiro trimestre de 1992. Nesse primeiro momento, foram apenas cinco “observadores” integrados na United Nations Military Observation (UNMO), um ramo da UNPROFOR.

 

Entre 1992 e 1995, tempo do mandato da UNPROFOR, Portugal foi mantendo “observadores” no terreno, que iam desempenhando missões diárias que, embora não sendo de perfil militar puro e duro, se revelaram de enorme importância na criação de um clima de confiança no seio das populações tocadas pelos soldados nacionais. Como se pode ler na introdução do recente livro “A Guerra na Antiga Jugoslávia Vivida na Primeira Pessoa” (Colibri, Maio de 2018), coordenado pelos militares Carlos Branco, Henrique Santos e Luís Eduardo Saraiva, os observadores “viveram com a população em locais recônditos com quem partilharam o infortúnio. Sentiram o pulsar das comunidades onde estavam inseridos, conheceram os seus dramas em primeira mão. Pisaram minas, foram atingidos com estilhaços de granadas, tiveram acidentes de viatura, estiveram nas miras dos snipers, em zonas de morte, foram vítimas de ataques e assaltos, supervisionaram a troca de cadáveres e de prisioneiros de guerra. Foram testemunhas em primeira mão de violação de acordos. Sofreram a prisão e interrogatórios agressivos. Viveram em condições precárias, por vezes, sem electricidade, sem água corrente, aquecimento ou vidros nas janelas, oq eu se tornou numa minudência para que estava diariamente debaixo de fogo de morteiros de artilharia.

 

Foram ainda apanhados entre fogos cruzados, controlaram o tráfego aéreo, lidaram diariamente com as facções, pediram evacuações médicas, e tiveram de tomar decisões eticamente difíceis, algumas delas com consequências dramáticas. Testemunharam em directo o sofrimento. Viveram as agruras da guerra na sua plenitude.

 

São estes testemunhos que agora podem ser lidos num livro que reúne textos (em português e inglês) de militares que fizeram parte da UNMO. Com prefácio do embaixador José Cutileiro, este livro é um contributo inestimável para o conhecimento de quem se interessa pelo conflito da antiga Jugoslávia, que tantas marcas geopolíticas deixou naquela região da Europa. Mas é também uma janela para se perceber de que forma a “experiência jugoslava” marcou um novo período na projecção internacional das Forças Armadas Portuguesas no âmbito de nova ordem sistémica... Mais cosmopolita, interdependente e difusa.

 

Texto publicado originalmente n'O Diplomata