O cancro
Em Agosto de 2019 contava a história de uma empresa que foi assaltada pelo Fisco com acusações delirantes e que foi obrigada a insolver.
Em Novembro de 2020 fazia uma actualização, aproveitando para bordar considerações sobre as razões pelas quais os sucessivos secretários de Estado dos assuntos fiscais se comportam como patifes e os inspectores do Fisco como familiares do Santo Ofício. Referia que o edifício e as máquinas haviam sido leiloados e adjudicados em Dezembro de 2019 pelo preço da uva mijona, mas que mesmo assim cobria a totalidade das indemnizações ao pessoal e todos os restantes créditos reclamados a título de garantidos.
Em Fevereiro de 2022 nova actualização, desta vez sobre sequelas para os antigos gerentes: penhora requerida por um banco (que ainda decorre, incidindo mensalmente sobre pensões de reforma) e contas de um agente de execução que se fez pagar em mais de 7.000 €, a que acresceu o IVA respectivo. Um outro banco foi integralmente pago entretanto pelos avalistas, ainda que continue (suponho, o administrador da insolvência acha decerto que não tem de prestar informações, a menos que lhe sejam especificamente pedidas) a figurar como credor.
Em Abril de 2022 volto à carga, para anunciar urbi et orbi que me foi dada razão: a firma não tinha de insolver, o que o Fisco fez foi ilegal, e a reversão para mim de impostos imaginariamente devidos fica sem efeito. Uf. Resta que o excelente advogado que tratou do caso, infelizmente, não trabalhou pro bono, como aliás outros envolvidos noutras sequelas que me dispenso de enumerar. E é claro que, naquela altura, nem o edifício nem as máquinas haviam ainda sido pagos.
Em 22 de Julho de 2022 o adjudicatário pagou o edifício. Sobre as máquinas não tenho informação – também deve ter pago, que Deus o abençoe que eu nem por isso.
Chegou ao fim? Que nada. Em Janeiro do corrente ano o Fisco entregou à massa insolvente, por decisão judicial, parte (pouco mais de 25.000 Euros) do que ilegalmente pilhou, sem juros, não se sabendo qual o montante que falta restituir.
Feitas as contas, salvo no que toca aos honorários do administrador de insolvência, que tremo de imaginar quanto sejam (numa execução paralela, que não referi para não tornar o texto demasiado pesado, o agente da execução fez-se cobrar por mais de 24% do valor da dívida) todos os credores privilegiados e garantidos serão integralmente pagos, sobrando ainda mais de 15% do total do valor da insolvência para credores comuns, dos quais aliás a parte de leão pertence a empresas das quais sou sócio e que em todo este processo foram reflexa e gravemente prejudicadas.
Espero ter tempo de vida suficiente para, no termo desta saga, pôr uma acção ao Estado, e, improvavelmente, vê-la chegar ao fim, mesmo que me contentasse, se fosse possível, com a prática de sevícias em toda a récua de funcionários sacanas envolvidos e quem neles superintende, todos cobertos pelo manto da inimputabilidade.
Resta que algumas lições se podem entretanto retirar:
- Já abundei largamente, em inúmeros textos, na natureza anti-Estado de Direito da legislação fiscal, no deficiente entendimento da função de Secretário de Estado do sector, na inimputabilidade dos familiares do Santo Ofício, na ignorância da generalidade das pessoas sobre estes assuntos, e no carácter predatório e criminoso do edifício fiscal;
- O recurso aos tribunais, que de resto não decidem em tempo útil, está na prática limitado, ainda que constitucionalmente garantido, e o Direito Fiscal é uma selva impenetrável;
- O instituto falimentar é, em Portugal, uma anedota. Há muitos anos acompanhei a falência do então meu principal cliente inglês. Exemplar na diligência, na informação permanente apesar de não solicitada, na rapidez, nos custos, na transparência e nos resultados. O legislador português é burro? Talvez não seja, apenas o valor defendido não é, na prática, o do interesse público;
- Quando o Estado delega em privados a sua função (reconhecendo, e bem, que a vida e a morte das empresas não são assuntos compagináveis com os vagares da Administração), aliás com grotesca minúcia, deveria assegurar-se de que a urgência nestes casos requer conhecimento, teste das soluções e fiscalização de processos. Um que não tem, outro que não faz e a terceira ainda menos;
- Toda a gente fala há muitos anos da lentidão dos tribunais que superintendem nestas matérias. E como uma parte dessa lentidão é manifestamente deliberada por não se querer uma catadupa de condenações, mas outra não é por se cometer reiteradamente o mesmo erro de consultar fiscalistas e funcionários (isto é, quem ganha com conflitos e abusos), conviria reformar à luz do senso e da experiência de quem a tem. Vai acontecer? Claro que não.
Há coisas piores. Em vez de ver entrar pela porta duas simpáticas funcionárias que destruíram placidamente uma empresa exportadora com mais de 20 anos, pondo em perigo mais duas, podia ter sido o médico (que ela tinha porque é obrigatório) a dizer: É pá, acho que tens um cancro.