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Delito de Opinião

O cancro

José Meireles Graça, 13.06.23

Em Agosto de 2019 contava a história de uma empresa que foi assaltada pelo Fisco com acusações delirantes e que foi obrigada a insolver.

Em Novembro de 2020 fazia uma actualização, aproveitando para bordar considerações sobre as razões pelas quais os sucessivos secretários de Estado dos assuntos fiscais se comportam como patifes e os inspectores do Fisco como familiares do Santo Ofício. Referia que o edifício e as máquinas haviam sido leiloados e adjudicados em Dezembro de 2019 pelo preço da uva mijona, mas que mesmo assim cobria a totalidade das indemnizações ao pessoal e todos os restantes créditos reclamados a título de garantidos.

Em Fevereiro de 2022 nova actualização, desta vez sobre sequelas para os antigos gerentes: penhora requerida por um banco (que ainda decorre, incidindo mensalmente sobre pensões de reforma) e contas de um agente de execução que se fez pagar em mais de 7.000 €, a que acresceu o IVA respectivo. Um outro banco foi integralmente pago entretanto pelos avalistas, ainda que continue (suponho, o administrador da insolvência acha decerto que não tem de prestar informações, a menos que lhe sejam especificamente pedidas) a figurar como credor.

Em Abril de 2022 volto à carga, para anunciar urbi et orbi que me foi dada razão: a firma não tinha de insolver, o que o Fisco fez foi ilegal, e a reversão para mim de impostos imaginariamente devidos fica sem efeito. Uf. Resta que o excelente advogado que tratou do caso, infelizmente, não trabalhou pro bono, como aliás outros envolvidos noutras sequelas que me dispenso de enumerar. E é claro que, naquela altura, nem o edifício nem as máquinas haviam ainda sido pagos.

Em 22 de Julho de 2022 o adjudicatário pagou o edifício. Sobre as máquinas não tenho informação – também deve ter pago, que Deus o abençoe que eu nem por isso.

Chegou ao fim? Que nada. Em Janeiro do corrente ano o Fisco entregou à massa insolvente, por decisão judicial, parte (pouco mais de 25.000 Euros) do que ilegalmente pilhou, sem juros, não se sabendo qual o montante que falta restituir.

Feitas as contas, salvo no que toca aos honorários do administrador de insolvência, que tremo de imaginar quanto sejam (numa execução paralela, que não referi para não tornar o texto demasiado pesado, o agente da execução fez-se cobrar por mais de 24% do valor da dívida) todos os credores privilegiados e garantidos serão integralmente pagos, sobrando ainda mais de 15% do total do valor da insolvência para credores comuns, dos quais aliás a parte de leão pertence a empresas das quais sou sócio e que em todo este processo foram reflexa e gravemente prejudicadas.

Espero ter tempo de vida suficiente para, no termo desta saga, pôr uma acção ao Estado, e, improvavelmente, vê-la chegar ao fim, mesmo que me contentasse, se fosse possível, com a prática de sevícias em toda a récua de funcionários sacanas envolvidos e quem neles superintende, todos cobertos pelo manto da inimputabilidade.

Resta que algumas lições se podem entretanto retirar:

  1. Já abundei largamente, em inúmeros textos, na natureza anti-Estado de Direito da legislação fiscal, no deficiente entendimento da função de Secretário de Estado do sector, na inimputabilidade dos familiares do Santo Ofício, na ignorância da generalidade das pessoas sobre estes assuntos, e no carácter predatório e criminoso do edifício fiscal;
  2. O recurso aos tribunais, que de resto não decidem em tempo útil, está na prática limitado, ainda que constitucionalmente garantido, e o Direito Fiscal é uma selva impenetrável;
  3. O instituto falimentar é, em Portugal, uma anedota. Há muitos anos acompanhei a falência do então meu principal cliente inglês. Exemplar na diligência, na informação permanente apesar de não solicitada, na rapidez, nos custos, na transparência e nos resultados. O legislador português é burro? Talvez não seja, apenas o valor defendido não é, na prática, o do interesse público;
  4. Quando o Estado delega em privados a sua função (reconhecendo, e bem, que a vida e a morte das empresas não são assuntos compagináveis com os vagares da Administração), aliás com grotesca minúcia, deveria assegurar-se de que a urgência nestes casos requer conhecimento, teste das soluções e fiscalização de processos. Um que não tem, outro que não faz e a terceira ainda menos;
  5. Toda a gente fala há muitos anos da lentidão dos tribunais que superintendem nestas matérias. E como uma parte dessa lentidão é manifestamente deliberada por não se querer uma catadupa de condenações, mas outra não é por se cometer reiteradamente o mesmo erro de consultar fiscalistas e funcionários (isto é, quem ganha com conflitos e abusos), conviria reformar à luz do senso e da experiência de quem a tem. Vai acontecer? Claro que não.

Há coisas piores. Em vez de ver entrar pela porta duas simpáticas funcionárias que destruíram placidamente uma empresa exportadora com mais de 20 anos, pondo em perigo mais duas, podia ter sido o médico (que ela tinha porque é obrigatório) a dizer: É pá, acho que tens um cancro.

Comunismo fiscal

José Meireles Graça, 15.04.23

Os meus para cima de seis leitores sabem que há uma categoria de académicos, magistrados da opinião, políticos e opinantes pela qual nutro uma embirração, e que é a dos economistas.

Nada de pessoal. Alguns dos meus melhores amigos pertencem à agremiação, e por isso um ou outro rosnará, se ler estas regras, com um misto de enfado e compreensão: Lá está ele!

Sucede que há uma diferença entre esta e todas as outras formações, e essa diferença assenta num equívoco. Sucintamente: o principal assunto político (não o único, graças a Deus) dos artigos de opinião é a criação de riqueza e a sua distribuição, mesmo quando pareça que se está a falar de outras coisas; as várias correntes políticas têm sobre estes assuntos não apenas opiniões diferentes mas com frequência opostas; e os economistas dividem-se segundo precisamente as mesmas linhas de fractura.

Se se dividem desse modo isso significa que todas as demonstrações com abundância de números e aparente rigor de raciocínios se baseiam nos mesmos pressupostos ideológicos que fazem com que o comum dos mortais esteja mais à direita ou à esquerda, e não têm portanto mais valor acrescentado, muito menos científico.

Quem os lê ou ouve, porém, acredita com demasiada frequência (e os próprios também, Deus lhes perdoe) que aquele tipo de formação ajuda a ver o caminho das pedras do desenvolvimento, e daí que se ouçam os respectivos discursos com a deferência com que não se ouvem os dos treteiros comuns.

É esse o equívoco. E como Portugal é hoje um país formatado à esquerda (foi sempre, em maior ou menor grau, desde o 25 de Abril – uma afirmação à qual não me vou dar ao trabalho de dar conteúdo) um académico prestigiado, com discurso escorreito, tem grande audiência se for de esquerda.

É esse o caso de Susana Peralta. E para responder à solicitação da Visão, feita a ela e outros, para se pronunciarem sobre o tema “30 ideias para fazer agora e melhorar Portugal”, a preclara diz esta coisa prodigiosa:

A minha ideia é implementar um imposto sobre heranças e doações em Portugal. A ideia é importante porque a distribuição da riqueza é muito mais desigual do que a distribuição de rendimento e, por outro lado, a riqueza é algo que quando é herdado é uma lotaria no momento do nascimento que acaba por contribuir para uma grande diferença nas oportunidades que são dadas a diferentes indivíduos na sociedade sem que tenham qualquer mérito por isso.

Que se ache que o país fique melhor pelo efeito de se criarem novos impostos, num contexto em que a carga fiscal é, para a nossa desesperada necessidade de crescer, absurdamente alta (mais uma vez: não vou elaborar neste ponto, há dúzias de artigos de colegas da doutora Peralta a verberar o sufoco fiscal), desafia ao mesmo tempo a lógica e o senso (o bom, não o comum porque este último está condicionado pela máquina de criação de dependentes do Estado que o regime é).

Está tudo errado: a diferença na detenção da riqueza é um facto inevitável em sociedades onde haja liberdade económica e nada tem de indesejável porque só é possível contrariá-la pelo esbulho. O qual, por ofender o direito de propriedade e a poupança (poupar para investir, quer se tenha quer não se tenha herdado, é socialmente muito mais útil do que consumir, ainda que a escolha deva pertencer aos cidadãos e não à dra. Susana) castiga a cidadania. A diferença de oportunidades existe, bem entendido, mas também ela é natural e é uma decorrência da liberdade económica e até da liberdade tout court: à sombra de qual direito que não seja abusivo acha a professora que o Estado me pode impedir de desejar para os meus filhos melhores condições materiais de partida do que as que eu tive?

Cabe perguntar: Por que razão pessoas inteligentes dizem estas tolices que não são inócuas porque alimentam a inveja e o ressentimento? Dou a resposta que dei no mural, no Facebook, de um amigo:

O imposto sobre heranças ainda existe, se bem que com o nome de imposto de selo, e é de 10%, ainda que não se aplique a filhos, cônjuges e pais. E, como é costume em Portugal, tem na sua aplicação prática aspectos caricatos. Por exemplo, uma minha tia querida deixou aos seus sobrinhos a casa em que vivia, com reserva de usufruto para um terceiro. E eu e cada um dos meus 14 primos pagamos, cada um, à volta de 200 Euros de imposto por uma casa que, na prática, não pode ser vendida por estar gratuitamente ocupada. Susana acha provavelmente que 10% é uma ridicularia. Eu acho que é um abuso, e acharia o mesmo se fosse 1% ou 100%. Porque este imposto nega a quem tem alguma coisa de seu o direito de dispor dos seus bens da forma que entender, mesmo que, como é quase sempre o caso, tenha optado por investir em vez de consumir. Susana não deseja isto em nome da economia (ela é académica do ramo, por conseguinte pouco entende do assunto), mas sim em nome do seu acendrado amor pela igualdade. De outro modo: é uma comunista fiscal. Não muito menos abominável que os autênticos comunistas.

Comunista fiscal sim, com perdão de algum exagero retórico. Porque o raciocínio nada tem de económico, e tudo de circular. Começa-se por definir a desigualdade como um mal; se é um mal, há que combatê-lo; se há que combater a diferença está nos processos – ou se confisca já ou no espaço de duas ou três gerações. Que no percurso se atenue, mate ou distorça a livre iniciativa, que se dane. Então não é a igualdade o valor mais importante, como se disse a princípio?

É, para ela. Não, para mim. Ademais com a diferença de eu desejar à doutora Susana as maiores felicidades no gozo do que lhe pertence, que espero seja muito, e a ilustre académica não me retribuir no que me pertence a mim, que é infelizmente pouco.

Confere

José Meireles Graça, 15.12.22

Como de costume, recebi esta indignidade na minha caixa de e-mail:

Caro(a) Contribuinte

Fulano

NIF: Xis 

Habilite-se aos sorteios Fatura da Sorte 

Peça para colocar o seu número de contribuinte (NIF) em todas as faturas. 

Consulte os seus cupões no Portal das Finanças em e-Fatura/Fatura da Sorte. 

Sorteio extraordinário 

Dia 29 de dezembro, vai realizar-se o segundo sorteio extraordinário "Fatura da Sorte" de 2022. 

Prémios 

Serão sorteados três prémios no valor de 50.000 € cada, o habitual prémio do sorteio regular semanal, no valor de 35.000 € e um prémio não reclamado, no valor de 35.000 €.

Os prémios são constituídos por "Certificados do Tesouro da emissão em curso".

Simplifique, utilize o Portal das Finanças. 

Com os melhores cumprimentos,

Autoridade Tributária e Aduaneira 

Quem redige o esterco não o assina, o que já é um abuso: Qualquer funcionário, quando se dirige a um cidadão, deve estar identificado. Era o que mais faltava se um agente da PSP informasse que o seu nome era “PSP”, o que tanto dava para Paulo Soares Pereira como Pedro Silva Pereira ou qualquer outra combinação. E não ocorre a ninguém que os decretos passem a ser assinados pelo “Governo” ou as sentenças por “juiz de tal comarca”. 

Depois, a ideia de que o cumprimento das obrigações legais deve ser premiado por sorteio cria uma intolerável desigualdade: Dos pagamentos feitos pelos cumpridores é retirada uma parte, infinitésima embora, para outros que só se distinguem pelo bambúrrio do azar. O Estado não é um casino, entendes, Autoridade? 

Ao abrigo deste repugnante expediente que, recorde-se, foi inventado pelo lamentável SEAF Núncio, na época sorteando Audis, nada obsta a que a DGS faça o mesmo, de entre os cidadãos que têm os maiores cuidados com a sua saúde, e portanto não recorreram ao SNS, distribuindo certificados de aforro. E outro tanto se o Ministério da Administração Interna decidir premiar os cidadãos que nem uma multa de trânsito tiveram com um apito de ouro. E assim por diante. 

Caso curioso: o Governo que, desde sempre, mais reforçou o peso do Estado na economia, e portanto na sociedade (nunca, nas esquinas da vida, houve tanta regulamentação a respeitar) é o mesmo que rebaixa o mesmo Estado, pondo-o ao nível de um cauteleiro. 

Temos, na cultura, os concursos e a casa dos segredos; na política, o caso de corrupção da semana; nas universidades, a endogamia; na Saúde, o caos; no desenvolvimento, o aumento do atraso relativo; e no voto o PS. 

Confere.

Corações compassivos

José Meireles Graça, 25.10.22

Um relatório da Pordata (que existe porque falam dele mas é inencontrável), um estudo da consagrada Susana Peralta e alguns colegas, e outro do comunista Eugénio, fundamentam o clamor de pessoas extremosas que vêm, em nome dos pobres, defender a tributação agravada de lucros inesperados.

Compreende-se: são de esquerda e têm um coração compassivo. Já eu sou de direita e tenho aquela víscera bastante gélida, o que todavia não tem apenas inconvenientes, dado que não a utilizo para pensar.

O motivo (ia a dizer pretexto) é a inflação, que se soma aos rombos que as famílias mais pobres já sofreram com a Covid, cujas medidas de combate as prejudicaram mais do que às mais abonadas, sem que tivesse havido apoio suficiente do Estado porque este, estando endividado, não quis (e bem, a meu ver) correr o risco de agravar seriamente a visibilidade da situação financeira deplorável das contas públicas.

Dois pontos prévios:

Um é o de que os problemas de falências, desemprego e perdas de rendimento coetâneos da Covid não foram originados por ela, mas pela sobre-reacção das autoridades. Como essa reacção foi quase universal, Portugal, que é uma pequena economia aberta ao exterior, nunca ficaria imune, mas o silêncio a que a comunicação social e as magistraturas da opinião (quase todas) votaram as vozes que incessantemente denunciaram o exagero e abuso das medidas, a magnificação histérica da ameaça e a glorificação acéfala de uma coorte de oportunistas que cavalgaram a onda do pânico, deveria ser objecto de um exame de auto-consciência. Enquanto a comunicação social não reconhecer, numa versão suave, que esteve enganada o tempo todo, ou, numa versão mais rigorosa, que acolhe no seu seio uma prodigiosa quantidade de idiotas, e os actores políticos do melodrama covídico não assumirem que prestaram um desserviço à democracia ao atropelarem-na em nome de uma ameaça em boa parte fantasmática, corremos o risco de, na próxima, repetirmos os mesmos erros, com as mesmas consequências.

O outro é que não estamos a falar de verdadeira pobreza mas de pobreza estatística, isto é, uma classificação arbitrária que considera como família pobre a que tenha um rendimento inferior a 60% da mediana de rendimentos das famílias. Isto significa que ser pobre em Portugal não é a mesma coisa que no Lesotho ou na Alemanha, que com o mesmo rendimento e a mesma capacidade aquisitiva se pode ser pobre num lugar e rico noutro, e que o indicador não mede na realidade a pobreza mas o grau de igualdade, sendo portanto um indicador ideológico. Que em Portugal o agravamento do índice coincida com o agravamento da pobreza real é uma medida da falência das políticas que têm sido seguidas, e não uma pista para o reforço da igualdade, que por si não implica desenvolvimento.

Como em todas as crises, até mesmo na maior de todas que é a guerra, houve quem ganhasse. E parece lógico que quem ganhou ressarça quem perdeu, visto que a causa das perdas é a mesma dos ganhos – é o que dizem todos os samaritanos que não poucas vezes se embrulham em autoridade académica para lhes reforçar o asneirol.

Lógico é. E errado. Porque é a tradicional toleima de reagir a quente a um problema criando outro maior. Desde logo por causa da definição do que sejam lucros “excessivos” ou “inesperados”. Para a esquerda comunista ou aparentada são todos – as boas empresas não distribuem dividendos porque o dividendo é em si imoral e se lhes sobram os recursos para operar tais engenharias então melhor fariam em dividi-los pelos trabalhadores, que são quem cria riqueza, além da aplicação em investimento, que os empresários em geral não têm o discernimento de saber fazer mas o Estado sim.

Os outros, isto é, os técnicos da redistribuição, que têm ideias nítidas e generosas sobre o que fazer com o que não lhes pertence, refugiam-se inevitavelmente em fórmulas que entram em conta com a média de lucros num período anterior comparada com o covidesco, para aí intervirem com a punção fiscal extra: ai encheste a burra, foi? Deixa cá ver esse excesso que nós vamos ali entregá-lo a quem mandamos para casa.

Ou seja, todos aqueles que aproveitaram a oportunidade para satisfazer a necessidade do mercado em, por exemplo, máscaras (e não interessa para o caso se a fé no farrapo a recobrir as ventas tivesse muito de psicológico e pouco de científico) receberão a mensagem de que, da próxima, o melhor é importar discretamente, de preferência constituindo pequenas empresas para o efeito – se não têm história o Fisco não pode fazer comparações.

O quê, é só para grandes empresas, tipo GALP, EDP, Pingo Doce e as outras cadeias de secos e molhados? Ah, essas não podem fugir. Claro que nos combustíveis há muito que a excessiva relevância da GALP deveria estar a ser combatida com o fomento da concorrência, dizem alguns entendidos no sector obscuro dos combustíveis. E como em Portugal grandes empresas já praticamente não há dar um bote às que resistem significa na prática embaratecê-las na bolsa, a fim de as tornar mais atractivas para capitais estrangeiros que se preocupem pouco com rendibilidades e muito com geoestratégias. Chineses, vá. A bolsa, aliás, que até mudou de nome porque já nem 20 empresas tem (era o PSI-20, agora é só PSI, aguarda-se que com a governação de esquerda se liquide definitivamente a economia de casino pelo expediente de as que restarem pertencerem integralmente a estrangeiros que não abram o capital), é bem a medida do regime: capitalista pouco, que dos pobres é o reino dos céus.

Quanto aos supermercados que, consta, estão a encher a burra à pala da inflação e da guerra, se tiverem juízo devem estar a constituir reservas porque quem não for cego notará que o mercado não cresce na proporção do aparecimento de novos operadores, como a Mercadona, e da abertura de novos estabelecimentos. O Estado que os quer pilhar será o mesmo que quererá salvar os operadores que a prazo vão entrar no vermelho?

Grandes empresas são tão poucas (e já objecto, as de energia, de tributação agravada) que, só com elas, o acréscimo de receita será menosprezável. De modo que é bom de ver que, aberta esta porta, seguem-se as médias e depois, em nome da igualdade e para contrariar efeitos perversos, as outras. Um clássico em impostos: quando nascem como extraordinários para ocorrer a circunstâncias extraordinárias tornam-se em permanentes porque se criaram novas clientelas e dependências igualmente permanentes.

E então os fabricantes de vacinas? Esses e outros estão a fazer lucros inimagináveis à boleia da urgência das “vacinas” (vai aspado porque se não impedem o contágio a palavra é mal escolhida), mas vão ser, e bem, deixados em paz – quem vai levar pela medida grande são as empresas de energia, diz a Fuehrerin von der Leyen – as que se dedicam às energias fósseis porque tais actividades são maléficas para o ambiente e as boazinhas das renováveis porque, à boleia das outras, também estão a encher o baú. Os contornos dos novos impostos decididos pela UE não são ainda claros, mas confiemos em que a sábia diplomacia portuguesa faça o que faz sempre: no fim, aterra aqui dinheiro grátis europeu.

Mais impostos, em suma, para os outros – isto não toca o cidadão comum, que por isso aprovará. A velha história do sapo e da panela de água que se aquece lentamente, sempre.

O monstro fiscal

José Meireles Graça, 23.09.22

É um clássico: De longe em longe alguém se lembra que o país não cresce e ao dobrar da esquina está um pântano, ou uma recessão, ou uma crise, e que talvez fosse bom baixar o IRC. E baixa-se qualquer coisinha (como a mudança de 23 para 21% em 2015), ou mais provavelmente nomeia-se uma comissão para a reforma do imposto ou não se nomeia nem baixa nada.

A comissão, integrada por especialistas nos arcanos da fiscalidade e dirigida por personalidade de prestígio, tem como missão reformar sem grandes riscos de baixar a receita, e portanto tira daqui e põe acolá, em nome da justiça, equidade e um par de botas. Se mesmo assim a coisa parecer perigosa, adia-se para melhor oportunidade.

É óbvio que o problema da fiscalidade não é para especialistas, do mesmo modo que o do empreendedorismo não é necessariamente para gestores, nem a política da saúde para médicos, nem o progresso material das sociedades para economistas. E isto porque as soluções têm invariavelmente uma base ideológica, sendo que é esta que determina as escolhas e não o melhor ou pior entorno técnico delas. Se não fosse assim poderíamos arquivar a democracia e confiar o poder aos melhores técnicos – Portugal poderia perfeitamente nomear para ministros das finanças e da economia um comité de três ou quatro prémios Nobel, que aceitariam com gosto e ficariam baratos se tomassem decisões acertadas. O que evidentemente não sucederia porque começariam por não se entender e, se se entendessem, dariam provavelmente com os clássicos burros na clássica água.

Para o ano talvez venha uma recessão. E mesmo que não se veja o diabo completo com cornadura e rabo, que todavia para quem não esteja distraído já por cá anda há muito, topar-se-á a sua cabeça hedionda sob a forma de salários e pensões que – não há dúvidas – vão baixar em termos reais. Daí que o bom do ministro Costa, que tem umas noções vagas sobre empresas, queira uma redução transversal do IRC, isto é, uma reduçãozinha significando nada para a generalidade das empresas e alguma coisa para as que conhece e imagina serem a nata do país. Enquanto o colega das Finanças, que de empresas e crescimento entende coisa nenhuma mas não quer que lhe perturbem os equilíbrios que tem de apresentar em Bruxelas, já vai dizendo que reduções só para quem fizer isto e aquilo de grande virtude, ponto de vista, parece, que o Costa Primeiro subscreve.

Deixemo-los lá com os brinquedos deles, que não alteram nada de essencial, e olhemos com olhos de ver para o IRC.

É um imposto que, excepto na medida em que gestores ou sócios ou accionistas utilizem a empresa para pagar encargos alheios à actividade, não tem razão de ser. Os lucros (qualquer que seja a forma como se calculam, assunto que, ao contrário do que imagina o cidadão, não é de modo nenhum simples) só podem ser ou distribuídos, sob a forma de prémios ou dividendos, ou investidos ou integrar reservas. No primeiro caso há toda uma panóplia de impostos maiores do que o próprio IRC (23 ou 28%, simplificando e consoante os casos); no segundo o investimento é sempre dedutível ao lucro tributável, ainda que a prazo, sob a forma de amortizações, o que faz com que o imposto apenas sirva para induzir o recurso ao crédito, diminuindo lucros futuros; e no terceiro o forte endividamento das empresas poderia ser reduzido, assim como encurtados os prazos de pagamento a fornecedores, ao mesmo tempo que aumentaria a capacidade de resistir a crises. Poderia acrescentar o reforço da capacidade para pagar melhores salários, no que acredito pouco: o empresário comum paga o que a situação da empresa, as práticas na concorrência e a oferta de trabalho disponível aconselham. A ideia de que pagando generalizadamente melhor se obtém melhor desempenho é às vezes verdadeira, e com frequência falsa.

Se isto é assim, por que razão o IRC não é um exclusivo nosso? Uma das razões é a existência da personalidade jurídica da empresa, como se fora uma pessoa. As empresas nasceram para que as pessoas se pudessem associar numa actividade económica vantajosa para elas sem que porém, para lá do capital que titulam, pudessem responder (mecanismo que os bancos sistemática e abusivamente curto-circuitam através do expediente dos avales, e o Estado, no IVA e alguns outros impostos, em sede de legislação terrorista – não curo disso aqui). Ora, que é lá isso de as pessoas pagarem IRS e as empresas, que também são pessoas, não pagarem nada?

A natureza do Estado é tal que nenhum, ou quase, tem recursos que cheguem para as necessidades, nem nenhum aumento de recursos é suficiente para ocorrer ao aumento das necessidades. Os mecanismos da criação da riqueza são obscuros, e os da democracia, ou do prestígio do ditador, claros: é preciso dar coisas às pessoas. A esquerda comunista ou cripto quer dar porque a felicidade se obtém por decreto e, enquanto houver grandes assimetrias de riqueza e rendimento, é imperativo transferir de uns para outros até que, no final, reste a pobreza generalizada, com excepção da casta dirigente; a democrática porque comprou a retórica da igualdade, cuja negação é suicidária, mas tenta servi-la sem excessos que matem a galinha dos ovos de ouro; e a direita, coitada, tem entre nós dificuldade em competir porque promete coisas do camandro no futuro, e apertos no entretanto.

Com grandes diferenças de grau, e de mentalidade e cultura, é assim em todo o lado. O IRC está, e fica.

Sucede que, se Portugal quisesse ser fiscalmente competitivo (e não, como é, tingido do vermelho da esquerda e da inépcia), deveria reduzir a taxa para, por exemplo, os 12,5% da Irlanda, em vez do que temos: 21% no continente, ou 14,7% na Madeira, ou 16,8% nos Açores (taxas com quebrados, estas últimas, possivelmente para dar a impressão que se baseiam em algo mais sólido do que o arbítrio). Ao que acrescem derramas, a nacional para fingir que a taxa de imposto é uma quando afinal é outra e a local para ajudar os autarcas a torrar recursos na contratação de funcionários inúteis e construção de rotundas. Tudo isto numa descrição simplificada, que na realidade tudo nesta matéria é confuso e opaco.

12,5% cobririam provavelmente todos os abusos de que quem está em situação de os praticar poderia lançar mão para se eximir ao pagamento de, por exemplo, IVA sobre bens adquiridos para fins alheios aos da empresa. E cabe dizer que as tributações autónomas, que têm essa finalidade, são um claríssimo escolho por distorcerem com frequência a racionalidade da gestão por o legislador se arrogar a presciência de saber que certo tipo de despesas (como as de representação) estão necessariamente desligadas das necessidades. O cidadão ficaria certamente varado se soubesse que, por exemplo, a empresa, para pagar a conta de um administrador que se dê à maçada de ir almoçar com um cliente, suporta um imposto de 10%. Este incide, creio, sobre o total, incluindo IVA, que aliás suponho não ser dedutível – ratoeiras no âmbito fiscal são tais e tantas que são necessários os serviços de um especialista para navegar no mar de minas e armadilhas. Chega? Não, o comilão tem de pagar a gorjeta do seu bolso porque, como não está documentada, se a quiser debitar à empresa esta tem, teoricamente, de pagar imposto de 50% ─ o Fisco é um pulha razoavelmente burro.

A lista das despesas objecto de tributação autónoma, e os níveis desta, é aliás um catálogo de necedades, abusos, prepotências e incentivos à evasão. Tem como fio condutor a pilhagem seja do que for, seja como for, e está com frequência ao serviço da inveja mais desnuda: até pode ser que estejas a ganhar dinheiro mas não podes repoltrear-te numa vida farta sem que a longa garra adunca do Fisco te obrigue a pagar a côngrua devida à Santa Inquisição.

Quaisquer que sejam os benefícios induzidos por uma tal medida de redução brutal da taxa de IRC, seria loucura imaginar que se verificariam ao mesmo tempo que os rombos na receita do Estado – as políticas amigas do crescimento levam tempo para produzir efeitos, as reduções fiscais não.

Daí que qualquer trabalho sério devesse começar por incidir na simplificação, deixando em paz a taxa: um imposto que não partisse do princípio que todos os empresários são ladrões, salvo prova em contrário; que tivesse em conta que muito mais importante que o valor da taxa são os constrangimentos financeiros, e que portanto alguma aproximação deve existir entre o lucro contabilístico e a libertação real de meios; que diminuísse os alçapões das deduções e o mar de regulamentações que faz com que o especialista pago a peso de ouro resulte barato por conhecer o labirinto; e que eliminasse o incentivo material dado a funcionários para se comportarem como facínoras arrogantes, sem esquecer o dever de sancionar sem contemplações aqueles cujos autos de notícia fossem desconsiderados em tribunal – que deveria funcionar em tempo útil.

Feito isto, e à luz dos resultados, dever-se-ia programar uma redução séria da taxa para atingir um valor competitivo (necessariamente arbitrário porque todas as taxas o são), mas em pequenos passos. Nem que levasse dez anos, o tempo e a lentidão servindo para ir comprimindo a despesa, se for necessário. Um dos fundamentos para o investimento é a confiança: vale a pena investir, quem possa, se puder contar razoavelmente com certezas sobre o sócio compulsivo Estado, que imponderáveis há que chegue.

Vai acontecer? Claro que não. Se a realidade da situação, que já é desastrosa, chegar à consciência da opinião pública, nomeia-se uma comissão.

Petróleo mal-cheiroso

José Meireles Graça, 21.09.22

Inflação é a subida generalizada de preços e há empresas (as que não sofrem decréscimo de procura por causa dos aumentos e não são obrigadas a erodir margens) que veem os seus lucros aumentar. Destas, as energéticas (petróleo, gás, carvão e refinaria) dão nas vistas porque vendem bens que são de origem suspeita e conseguem fazer os seus lucros crescer para lá do simples efeito mecânico da inflação. Isto é, juntam culpa ao pecado que o lucro, salvo prova em contrário que (segundo Jerónimo e o economista Eugénio Rosa) nunca foi produzida, é.

A senhora Leyen e a União Europeia não têm dúvidas: é necessário um imposto excepcional, com critérios a definir, para permitir que os lucros extraordinários, que foram obtidos com a punção a todos os clientes pela via dos preços mais altos do que deviam ser, sejam redistribuídos não por quem os pagou mas pelos mais pobres do espectro dos consumidores.

Os critérios do imposto extraordinário serão, por exemplo, um terço do acréscimo de lucros sobre a média dos últimos três anos, quando aquele a exceda em mais de 20%; as receitas pertencem a cada Estado; e de que forma é que a evolução da taxa de inflação (não) será tida em conta nestes cálculos fica por conta de artigos dos próceres da Academia, que demonstrarão, se forem de esquerda, que a cobrança deveria ser muito maior, e, se forem de direita, menor.

Em Portugal semelhante imposto já existe, tendo entrado em vigor em 2014 e sido renovado sucessivamente desde então. Tentar saber, todavia, qual é a respectiva taxa, é exercício só acessível a especialistas, além de inútil, porque aparentemente não incide directamente sobre resultados, convindo ainda não esquecer o próprio IRC nem derramas, para não falar do regime do cálculo do lucro tributável, que é em si uma ciência cujos meandros são mais intrincados do que as leis que regem o comportamento das partículas no interior dos átomos.

De resto, discutir taxas de IRC em Portugal é exercício para ingénuos, interesseiros e ignorantes, que o campo de minas que é a legislação fiscal leva a que, muitas vezes, a taxa de imposto real seja superior à que se propagandeia. Parece, e é, estranho, mas isto decorre de o plano de contabilidade e as suas regras imperativas não terem, como deviam, o propósito de traduzir a situação real das empresas e o seu lucro efectivo, mas antes o de aumentar por todas as formas a porção que o Estado abocanha.

Para o público as empresas têm despesas e receitas e o lucro é a diferença entre esses dois agregados. Mas não é assim por causa do mecanismo das amortizações, das dívidas incobráveis ou tardiamente pagas, das contribuições autónomas, do IVA e de inúmeros outros – os fluxos financeiros não são a mesma coisa que a conta de exploração. Não vou dar aqui um curso de contabilidade para totós, mas acreditará o leitor que uma taxa efectiva de IRC de 86% é possível? É – já me aconteceu porque as despesas que originaram o agravamento eram do tipo que o legislador (que no âmbito fiscal é invariavelmente um patife esquerdista que trata os contribuintes como se também o fossem) considera não necessárias para a actividade.

A primeira dúvida que ocorre é esta: De onde vem a legitimidade da União Europeia, e da senhora Leyen, para criar impostos, num pano de fundo em que, como sucede no momento com a Hungria, já se permite dar ou não dar fundos consoante o Estado que os recebe encaixa ou não encaixa no modelo de aluno bem-comportado? E logo a senhora Leyen, que é alemã, portanto originária do país que criou, para si e outros, boa parte dos problemas, por ter exportado para a Rússia a poluição. À boleia de uma propaganda acéfala a favor das energias alternativas, que não o são no actual estádio de desenvolvimento científico e tecnológico, uma verdade inconveniente.

Mas há mais:

O suposto carácter excepcional do imposto tenderá, como acontece com todos os impostos excepcionais, a evoluir para permanente e mais exigente porque as empresas se adaptarão, com tempo, lançando mão de artifícios tendentes a desnatar proveitos, e a trituradora insaciável de recursos que o Estado é habituar-se-á ao suplemento;

As empresas deste tipo não tencionam fazer haraquíri e contam-se entre os grandes investidores nas energias em odor de santidade. Pense-se o que se pensar sobre os reais malefícios dos combustíveis fósseis, e as limitações dos corrupios no alto dos montes e das outras energias limpas, bem como os inconvenientes do transporte privado movido a electricidade, a pressão da opinião pública é demasiado grande e logo há mercado para tecnologias que não são ainda realmente competitivas. Esse mercado veem-no os jornalistas, que vendem tragédias anunciadas porque a tranquilidade não vende, os políticos oportunistas, com perdão da redundância, porque engenheirar o futuro dá votos, gurus da idioteira universal como Guterres, cientistas que avaliam os danos que o progresso causa nisto e naquilo da sua especialidade, mas não avaliam os que as mudanças que preconizam implicam porque não sabem nem querem saber, toda a esquerda porque é amante das bandeiras da bondade e parte da direita porque aprecia o consenso. As empresas, claro, não andam a dormir, e este novo imposto, desgraçadamente, ajuda a que tenham menos recursos para investir naquelas coisas que as pessoas que o defendem acham que elas deviam defender;

Os cidadãos são iguais perante a lei. Seria bizarro que, agora que os bancos já recomeçam a pagar juros pelos depósitos (mecanismo que a inflação veio restaurar e que aliás só foi suspenso por se ter inventado que os recursos não vêm do aforro mas de decisões de um comité de economistas e políticos pagos a peso de ouro para serem guardiães da abundância milagrosa), houvesse juros a taxas menores quanto mais se depositasse. Pois bem: este novo imposto quer dizer que quem, em vez de depositar, comprou acções destas empresas, se esqueceu do risco Estado: este é que decide quais são as empresas boas, e aberta a porta dos lucros excessivos é apenas uma questão de tempo até que a pesada mão do Fisco e da justiça vá atrás das outras, que não são energéticas mas calhem estar a ganhar rios, ou até mesmo regatos, de dinheiro – um escândalo;

A União Europeia alterou há tempos o seu modelo de relacionamento com a China, que é agora vista com alguma desconfiança, senão mal disfarçada inveja, porque cresce muito e parece ganhar em todos os tabuleiros e a Europa não. A mesma China que concorda sorridentemente com todas as medidas que o Ocidente toma para, em nome do ambiente, do futuro verde e da concórdia universal, pear a sua economia, enquanto a deles vai em roda livre.

Não é certo que a medida venha a ser aprovada, e não é impossível que, se for, venha com tantas condicionantes que sirva para alguns discursos moralistas empolgantes, alguma prosa ditirâmbica da comunicação social cegueta e alguma satisfação do cidadão europeu que vai tomar café no seu Tesla, mas para pouca receita. Entre nós, as empresas do sector, com a característica cobardia do empresariado português, já vão dizendo que “estão dispostas a falar”.

A ver se se dá um jeitinho. Eleitor aldrabado é eleitor contente, e empresário moderno aprecia o diálogo com o poder muito e a concorrência pouco.

Transparência

José Meireles Graça, 15.04.22

Pois é verdade, há dias em que em casa é que se está bem. Um compromisso levou a abandonar a esplanada, e o correio, a meio. O raio da cidade, que nunca teve os benefícios das grandes, está a perder os das pequenas porque há mais carros e a edilidade local gasta milhões a empatar o trânsito de maneiras moderninhas, de modo que lá ia resmungando na fila. Um carro da GNR materializou-se atrás de mim e ia-me seguindo, a bateria de luzes do tecto acesa. A páginas tantas ligou o pinóni e fiz-lhes sinal para passarem, mas os camones puseram-se ao lado e, vidro aberto, disseram-me para os seguir. Segui-los?! A propósito de quê?, perguntei, não tendo pela polícia o respeito acéfalo dos militantes do Chega!, mas o agente insistiu, de má catadura. Paramos adiante num recesso, o agente veio ter com o “sr. condutor”, pediu os documentos e informou o “sr. José” que – ó surpresa! – a inspecção periódica não estava em dia. Não estava mesmo, costumava confiar numa mensagem por telefone, mas desta vez não veio e, na hierarquia das minhas preocupações, a dita inspecção e outras inutilidades e obrigações fiscais ocupam um lugar por demais discreto.

Mal disposto, resolvi dar ao agente a aula de maneiras que os seus superiores não dão, possivelmente por serem da mesma extracção, com o insucesso habitual – a geração rasca a que pertence, e que já é a segunda no rasquedo,  aprendeu maneiras nos filmes americanos e acredita que os cidadãos estão ao serviço do Estado, portanto dos seus agentes, e não ao contrário – a pesada herança do fascismo não é o que normalmente se julga, e em muito do que não devia foi reforçada.

Adiante, que a coisa não tem conserto e é normal que, antes de ficar melhor, fique pior, para em seguida piorar novamente.

Fui prestes à Inspecção, que gente ingénua imagina ter alguma coisa a ver com segurança rodoviária, e a menina, simpática, foi apurar por que razão desta vez não tinha recebido mensagem. Ah, não tinha telemóvel associado porque o automóvel mudou de proprietário (era meu e passou a ser de uma empresa minha, de modo que é o caso de dizer que tirei da boca para meter noutro sítio), esquecimento meu e não deles – tinha razão. Mas, acrescentou pesarosa, a validade é só até Novembro porque era então que deveria ter sido feita a “inspecção”.

Ou seja: a multa pelo esquecimento são 250 Euros (as multas socialistas são terroristas porque o Estado Socialista tem querido, com sucesso, inculcar a ideia de que desrespeitar os seus comandos é ofender gravemente a comunidade, aproveitando para engordar os cabedais com que compra votos com a generosa panóplia dos benefícios que designa por “Estado Social”), mas à sorrelfa há outra multa.

Essa é a de a validade da inspecção, que deveria, no caso, ser de um ano, ter ficado diminuída pelo mesmo tempo do atraso na revalidação. Dito de outro modo: o problema não é de segurança, é de receita e de sustento de uma classe de dependentes (a dos proprietários e trabalhadores dos Centros).

Já sabia, e nunca tive dúvidas de que este mecanismo das inspecções periódicas obrigatórias não é senão uma exacção institucionalizada. O detalhe confirma.

Deve ser a isto que se chama transparência.

Gólgota fiscal

José Meireles Graça, 06.04.22

Tcharããã! Patati, patata, isto e aquilo, nos termos do art.º tal, à luz da sua alínea xis, e conjugando com o diploma assim e assado, não obstante o entendimento que se poderia alcançar do estatuído além, e no uso de competência própria réu-que-ta-péu:

“Tendo em conta a existência desta preterição de formalidade essencial que inquina as liquidações reclamadas na parte que tem por base a aplicação de métodos indiretos, será de deferir a pretensão do reclamante nesta parte, mantendo-se a correção aritmética efetuada e, que, não é posta em crise neste procedimento. Relativamente aos restantes argumentos alegados pelo reclamante… a sua análise fica prejudicada, pois não vai acrescentar mais ao deferimento já alcançado com o primeiro argumento”.

Ou seja: Com base em métodos indirectos (isto é, presunções porque sim, esta contabilidade é uma confusão e além disso não está sol e o gerente tem um ar suspeito) uma empresa viu cativadas restituições de IVA – o que, só por si, numa exportadora, é uma sentença de morte – e de IRC, a culminar um processo de cerca de 100 notificações diferentes, ao longo de meses, a penhorar veículos de trabalho, materiais, incluindo já consumidos no processo produtivo, saldos bancários, etc.

Mas, ups, não devia ter sido assim. E o gerente da empresa, para quem todas as dívidas fiscais reverteram, vê agora com indisfarçável gosto reconhecido que era talvez um pouco demais ser responsável pelo pagamento de impostos em falta que tinham o vício insanável de não existirem.

Então, acabou tudo bem? Nem por isso, porque ficou para trás o IMI de 2017 (aleluia, um imposto que realmente era devido), que a empresa não pagou porque já estava praticamente manietada. Coisa de uns 900 Euros mais juros, que o tribunal virá provavelmente dizer, em devido tempo, que devem ser pagos pela massa insolvente e não por quem viu a empresa que cofundou há mais de duas décadas ser arrasada por um blitzkrieg fiscal. Aliás, mesmo depois da decisão cuja parte final foi acima transcrita, foi ainda necessário requerer a um departamento do Fisco que anulasse o processo de reversão em curso, visto que quem decidiu tinha competência para o fazer mas não se deu ao excessivo trabalho de informar o serviço em questão nem de apurar se não haveria acertos que era preciso fazer nem, muito menos, de apresentar um mea culpa pela inépcia, o abuso e a prepotência. O qual departamento, graças a Deus, reconheceu que, efectivamente, reverter impostos que não são devidos exorbitava um tanto do seu múnus, que consiste em pilhagens com a devida cobertura legal.

Mas o IMI não conta porque é uma coisinha. As pontas soltas é que devem ocupar fartos anos: dos dois bancos credores de dívidas integralmente garantidas por avales, um já se fez pagar, mesmo que nunca tivesse provado que o montante da dívida era o que reclamava, mas o outro tem vindo penosamente a ser pago, através de penhoras de pensões de velhice, não sendo porém credível que o assunto cause especiais preocupações, já pelo montante da dívida, que empana, pela sua exiguidade, o prestígio do empresariado do Vale do Ave, já porque vence juros; e a restituição das verbas indevidamente cativadas, que não pode ser feita à empresa porque esta já não existe, nem aos gerentes porque são titulares de responsabilidades mas não de direitos, tem ainda de correr a via dolorosa de apuramento dos montantes, prova da cativação, requerimento bem fundamentado e orações a gosto porque os serviços pertinentes do Estado têm enraizada a convicção de que não o aviltam quando não agem como pessoas de bem.

De resto, o patrão político desta escumalha infecta, que é o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, tem sido de há uns anos a esta parte uma personagem sinistra que julga que a sua missão consiste em aumentar a receita do Estado seja como for, desde que tenha o cuidado de passar para a opinião pública a ideia de que toda a lei iníqua, interpretação capciosa e abuso do familiar do Santo Ofício que é o funcionário se justificam em nome do combate à evasão fiscal.

Os trabalhadores e restantes credores juros não recebem. Nem nada, dado que a situação do edifício e das máquinas é hoje a mesma que existia quando foram vendidos em leilão em 19 de Dezembro de 2019, isto é, a que se descrevia neste post. Os antigos fornecedores que ficaram a arder nem sequer puderam deduzir o IVA que suportaram e nunca receberam – o respectivo processo é um percurso abracadabrante porque a simples ideia de que ninguém deveria ser obrigado a pagar o que não cobrou não entra nas socialistas cabeças que engendram estas mecânicas.

É esta a quarta vez que regresso, com actualizações, a esta história. Será bom sinal se puder um dia contar-lhe o fim porque a blogosfera ainda existirá talvez, e eu também.

Destruição não-criativa

José Meireles Graça, 16.02.22

Em Agosto de 2019 contava a história verídica de uma empresa que foi assaltada pelo Fisco e obrigada a insolver.

Em 19 de Dezembro do mesmo ano o edifício e recheio foram à praça, o conjunto tendo sido arrematado pelo valor base da licitação. E mais de um ano volvido repegava na história para informar que ninguém tinha ainda visto um cêntimo dos 840.950,00€.

Já antes dois bancos credores haviam demandado os avalistas.

O país, impressionado pelos casos do BES, do BCP e dos outros, julga que os devedores à banca se ficam a rir e que quem encosta a barriga ao balcão é o contribuinte. Será, mas isso é para quem bebe do fino. O pequeno empresário tem como única defesa preventiva o não ter bens em seu nome, nem rendimentos declarados; e não faltaram no momento próprio advogados dos bancos (em sentido adjectivante: não propriamente advogados, antes com frequência economistas preopinando na comunicação social e no Parlamento) que, no que toca ao tratamento a dar às dívidas emergentes do crédito à habitação, defenderam com lata que quando o contratante, por ter perdido o emprego, deixasse de poder pagar as prestações, a entrega do bem não fosse ainda assim suficiente para extinguir o remanescente da dívida.

Desses dois bancos um já foi integralmente ressarcido (por valores que excediam o da dívida e com base em contas obscuras – o banco diz que se deve e pronto – mas nem por isso deixou de figurar como credor na lista respectiva, que se saiba), e o outro penhorou as pensões de dois ex-gerentes mas, nos mais de dois anos entretanto decorridos, recebeu aparentemente zero (se foi assim, graças a Deus não envia informação, senão ainda a debitava) porque os penhorados lá sem o dinheiro ficaram e continuam a ficar, mas a punção fica à guarda do processo, se é assim que se diz.

Ou ficava. Porque recentemente (e daí o ter regressado a este filme) fui notificado de que do bolo até agora recolhido o senhor Agente de Execução recebe, a título de honorários, 7.303,33€ mais 1.961,06€ de IVA, bem como um pouco mais de 800 Euros para despesas e alcavalas, e doravante o arame vai ter directamente ao credor, assim como o que já sobra depois destas deduções.

A dívida é que não para quieta porque entretanto conta juros (à taxa de 4%). E como com o produto da venda, conforme expliquei no segundo dos posts acima lincados

(… o edifício e as máquinas referidos na história para que remete o primeiro parágrafo foram leiloados em Dezembro e o conjunto foi arrematado por um valor que, mesmo sendo como foi de uva mijona, excedia largamente a totalidade do endividamento da firma, se excluirmos as indemnizações ao pessoal (decorrentes da insolvência que o Fisco induziu), a parte do endividamento que era, na realidade, capital, por não ser exigível nem implicar serviço de dívida, e a imaginária dívida fiscal, baseada em vendas sem factura que nunca existiram nem poderiam ter existido dada a natureza dos bens, os destinatários, que eram em mais de quatro quintos clientes de outros países, e o volume, por se tratar de bens de equipamento de grande atravancamento que implicariam gigantescas movimentações de TIRs clandestinos – uma fantasia que só poderia caber na cabeça retorcida de umas moças ou moços que ganham a vida estragando a de outros, sob a férula de uma hierarquia de agentes da Gestapo…)

uma parte, ou a totalidade, da dívida (obscuramente calculada, mais uma vez), já deveria ter sido liquidada há muito, isto vem a significar na prática que o executado paga juros pela inoperância de quem não escolheu e não tem qualquer incentivo para pôr termo a este escândalo em forma de exacção. Na prática, é isto: um banco fez um bom negócio e o outro está fazendo, a menos que se entenda que a taxa de juro de 4% não é suficiente; os agentes de execução (há vários) cumprem ronceiramente o seu papel; o administrador da insolvência não trabalhará de graça e, no fim, se se der ao trabalho de informar (porque direitos tem todos e obrigações menos) talvez se possa saber quanto ganhou; o arrematante não pagou até agora nada, não obstante as máquinas já lá não se encontrarem; o edifício degrada-se e o logradouro é hoje parque de estacionamento dos vizinhos; e o Fisco já fez reverter pressurosamente a imaginária dívida fiscal, que estadeia em tribunal.

Casos como este haverá muitos. E nada, absolutamente nada, nesta história, releva do domínio das inevitabilidades: a propósito do sistema fiscal português fala-se muito das taxas de imposto e pouco do regime de cobrança, mas é neste que se alojam absurdos inquisitoriais como a inversão do ónus da prova e a obrigação de pagar (ou apresentar garantias bancárias) para ter o direito de impugnar. E cabe lembrar, por exemplo, que o regime predatório do IVA (pagar impostos não recebidos como se fosse obrigação própria é apenas uma forma de racketeering, e quem o defende ou é ignorante, ou desonesto, ou comunista) só na propaganda tem de ser como é, sob a desculpa de o arranjo ser europeu.

Sobre fiscalidade tenho escrito muito e sobre o nosso instituto falimentar nada. E todavia, como este caso ilustra, os assuntos andam ligados: um Estado de onde está ausente o conceito de pessoa de bem não pode senão produzir, em casos limite, aberrações.

Estas aberrações não o são apenas porque o espírito das leis, numa sociedade civilizada, resulta ofendido quando um cidadão o é nos seus direitos; também porque a pitança que alguns ganham com o arrastar das coisas é o preço de unidades fabris decaírem sem proveito para ninguém. Liberais agudos, intelectuais profundos e economistas tontos, com perdão da redundância, são adeptos da destruição criativa. Eu acho que se ela resultar do jogo das forças do mercado está na ordem natural das coisas; e se resultar de intervenções do Estado na ordem antinatural do intervencionismo pateta.

Advogados neste processo há alguns, com diferentes especialidades e níveis de competência. Até o do Sindicato confessa: temos de esperar. Coitados: se lhes perguntasse responderiam decerto que vivemos num Estado de Direito.

Engana-me que eu gosto*

José Meireles Graça, 15.10.21

Assentemos em alguns pontos: o eleitor é distraído, a democracia equívoca, a economia contraintuitiva, os ricos sanguessugas e parasitas e as burocracias do Poder opacas.

Distraído porque a política interessa a poucos. As bolhas das redes sociais, os campus das universidades, e as redacções dos jornais e televisões, estão cheias de gente que julga que não é assim, mas é. A notícia do político que beneficiou abusivamente uns camaradas, do outro que deu uma golpada, ou daqueloutro que empregou a família, não comove ninguém, senão para confirmar o cidadão cínico, que se imagina sábio, na ideia de que eles estão lá para se encherem e que, no fundo, são todos uma cambada de ladrões. E a indignação fica guardada para o que se deixa apanhar na malha da Justiça. Ai dele, que além de vigarista era burro, deviam era fechá-lo numa masmorra qualquer, e atirar fora a chave.

A democracia como a entendem os meus concidadãos não aguenta explicações muito sofisticadas, que contemplem direitos do indivíduo que a maioria não tenha o direito de ofender. Pelo contrário: a ideia de que uns caramelos defendam coisas diferentes das que a maioria esmagadora subscreve só é aceite se os caramelos em questão pertencerem a uma tribo reconhecida e aceite pela comunidade, em nome do convívio das tribos. E as minorias gozam de tantas mais defesas – ia a dizer privilégios – quanto mais aguerridas e quanto mais subscrevam o progressismo, entendido como o aumento dos direitos materiais, como se os que beneficiam uns não implicassem quase sempre obrigações para outros. A menor minoria de todas, que é a pessoa, é o parente pobre desta engrenagem – ai dela se não pertence a nada, nem ao povo trabalhador, nem ao lobby gay, nem ao sindicato, nem ao clube, nem à associação patronal, nem ao partido, nem é cigano ou preto, nem, nem.

Os ricos começam por ser suspeitos porque, como é geralmente sabido, para o serem ou herdaram ou aldrabaram. Ora, em herdar não há mérito; e em vigarizar também não, muito ao contrário, como se prova pelo facto de a maioria das pessoas que não são ricas ser perfeitamente capaz, se o fosse, não apenas de dar provas de grande generosidade, mas também de evidenciar um gosto no consumo, uma discrição no comportamento e um discernimento na hora de investir muito superiores.

Aliás, a necessidade de ricos é um lero-lero. É mais ou menos consensual que a gestão privada não é superior à pública: não vão todos os dias à falência empresas privadas, lesando o Fisco, os fornecedores e os próprios trabalhadores? E não tem o capitalismo crises cíclicas, implicando sempre destruição de valor? Se a justificação para a existência de ricos for o investimento, então não se percebe por que razão não fica este limitado à esfera pública, onde semelhantes males sempre se podem evitar.

É certo que em todos os pontos em que esta experiência foi (e continua a ser, naqueles de onde só não foge quem não pode ou está no poder) ensaiada o resultado foi escassez e travagem do progresso. E esta infeliz constatação  levou a que lúcidas pessoas de esquerda (isto é, as que entendem que na igualdade está a felicidade) tenham congeminado o melhor de dois mundos: para investir criam-se empresas, que têm personalidade jurídica diferente da dos seus proprietários; estas personalidades colectivas não comem, não bebem, não têm amantes, mas taxam-se como se fossem pessoas, o que permite engordar o que as pessoas reais pagam mas sem que se apercebam – a empresa, se puder, vende mais caro porque existe para distribuir lucros ou dividendos e investir, não para pagar impostos, os clientes pagam, e no que pagam está ínsito outro imposto, esse visível, que é o IVA (além de outros impostos indirectos e alcavalas sortidas, dependendo do bem ou serviço). No que os proprietários recebem há um imposto à parte – entre nós, até ver, 28%.

A ideia de taxar a empresa assenta no pressuposto de que a punção sai dos bolsos dos proprietários, e seria portanto uma falsificação da taxa que realmente incide sobre os rendimentos daqueles. E em alguma medida isto poderá suceder, mas, sendo a natureza humana o que é, é mais provável que quem resulta ofendido seja o cliente, que paga mais, o trabalhador, que recebe menos, e a capacidade de investimento com recursos próprios, que fica diminuída.

Esta opacidade, tão espessa que o comum dos mortais acha que são as empresas, e não os seus clientes (ou os trabalhadores, que poderiam ser mais bem remunerados), que pagam o IRC, como se entende? A explicação é simples: nem sequer o IVA, cuja taxa figura nas facturas, desperta atenção. A margem do fornecedor, que é sempre, por comparação, ridícula, é que suscita comoções, como se viu por estes dias com o preço dos combustíveis. Isso e a sua real ou putativa riqueza que, se for visível, logo é objecto de cobiça: então esses patifes do Pingo Doce têm milhões, é? Ora, deviam fazer como os do Continente, que também têm mas ao menos sustentam um jornal progressista (e aliás a esses dois grupos Nosso Senhor ainda os vai castigar, que com Lidls, Intermarchés, Mercadonas e o mais que se verá, um destes dias, se não se põem a pau, alguns deles ainda vão mazé para aquela coisa dos PERs, ou lá o que é).

Temos portanto que na fiscalidade o que parece não é. E na economia também: se eu, no caso de ter acne e o mais remoto respeito por comunistas e frei Anacleto Louçã, acreditasse que no dia em que toda a riqueza fosse igualmente distribuída acabava a pobreza, não andaria longe do que, à escala nacional, acredita a maior parte do eleitorado. O que ajuda a explicar (isso e não a suposta incapacidade das elites, mesmo que exista) o atraso relativo do nosso país.

Pois bem: muitas multinacionais, com trocas e baldrocas (o que, na gíria, se chama engenharia financeira), baldam-se aos impostos. E alguns países, e não apenas aqueles onde se localizam offshores, ajudam-nas nesse meritório esforço. Ora isto não pode ser. E não pode por causa da concorrência desleal: Dos países, que atraem empresas, ou melhor, sedes de empresas, só para estas aproveitarem taxas baixas de imposto, mas sem benefícios reais para as populações locais (dizem economistas de nomeada, uma variedade de pessoas que tem excessiva inclinação para expectorar quantidades prodigiosas de asneiras); e das próprias empresas, a quem sobram os meios que faltam às menos engenhosas na trapaça legal, ou simplesmente mais pequenas.

Daí que haja uma universal satisfação com uma taxa mínima de 15% de IRC para empresas multinacionais com a qual esta tia apparatchik rejubila, falando em “momento histórico” e numa "questão básica de justiça”.

Nem o momento, nem a taxa, nem ela, são históricos, sequer de rodapé, e a justiça pouco tem a ver com isto. Mesmo que outros burocratas supranacionais, como este Mathias Cormann, também embandeirem em arco, e dificilmente apareça algum prócere que não se junte ao coro. E estou certo que Marcelo, se ainda o não fez, haverá de saudar este grande passo, para o qual deve ter contribuído pelo menos um português (há sempre pelo menos um, nem que seja a servir cafés), assim como Guterres (ainda que neste caso não se esteja bem a ver qual será o efeito positivo que a medida tenha no aquecimento global, que não o deixa dormir) ou Costa, este porque a União, em que ele tem, segundo a comunicação social portuguesa, uma voz preponderante, deu um precioso contributo para este feliz desenlace.

Sucede que combater a concorrência desleal é meritório. Mas se o objectivo fosse apenas esse (e admitindo, o que apenas concedo para efeito do que digo a seguir, que a competição fiscal entre países não é uma boa defesa dos contribuintes, e que esta história da eliminação das vantagens relativas de uns países sobre outros não é uma porta que se abre para todo o tipo de efeitos perversos) então o aumento de receitas previsto iria permitir o correspondente alívio de outros impostos. A boa da Ursula, ou o belga-australiano com mau aspecto que preside à OCDE, ou a turba dos dirigentes que já se pronunciaram ou virão a pronunciar-se, porém, disso não falarão.

Com boas razões. Um economista de quem sou amigo disse-me há tempos: Epá, as pessoas em todo o lado pedem mais e mais coisas ao Estado e o dinheiro de algum lado tem de vir.

A mim parece que o dinheiro que vier das multinacionais, se esta loucura mansa for avante, aquelas cobrarão, de uma forma ou de outra, aos seus clientes. E já me estou a ver a pagar muito mais pelo programa de tratamento de texto que estou neste momento a usar e por mais um sem-número de coisas que agora não descortino.

Aqueles, e são a maioria, que não pagam IRS, ficarão contentes. Isto de impostos sobre os ricos é mais do que justo. Aplaudirão portanto nas redes sociais, pertencentes a multinacionais, às quais acedem em telemóveis produzidos por outras multinacionais. Elas é que vão encostar a barriga ao balcão – elas, não eles, acham.

 

* Publicado no Observador

Estado de Não-direito

José Meireles Graça, 14.03.21

“Um dos pedidos que ouço mais frequentemente sobre o efeito das medidas não farmacêuticas na evolução da epidemia é o da apresentação dos estudos que demonstrem que as medidas não farmacêuticas não têm qualquer efeito. Devo dizer que é um pedido profundamente estúpido”, afirma Henrique Pereira dos Santos, que a seguir invoca apropriadamente o monstro do Loch Ness:

“Corresponde a alguém pedir-me a demonstração científica de que não existe o monstro de Loch Ness, o que não faz o menor sentido porque a ciência não pode demonstrar que uma coisa não existe, o que pode é demonstrar que existe e, na ausência dessa demonstração, levantar a hipótese de que não exista”.

Está, como de costume, coberto de razão e, também como de costume, a bradar no deserto. A razão que não cessa de ter ser-lhe-á dada retrospectivamente, quando suceder aos covidistas de hoje o mesmo que sucedeu aos eleitores de Sócrates: ou não se lembram de o terem apoiado ou só o fizeram porque foram enganados.

Mas não é da Covid que quero falar. O bicho não tem cor discernível, não tem peso nem superfície apreciáveis, mesmo que em cima dele surfem cobardes políticos, oportunistas sortidos, pobres diabos que se deixaram tolher de medo, e cientistas estreitos transmutados em estrelas da televisão; e nem sequer é um bicho, mas fede.

Este exemplo da prova que não se pode fazer serve-me para analogicamente ir buscar os métodos indirectos que o Fisco usa para “calcular” a matéria tributável, uma porta legislativa por onde se enfiou todo o abuso, toda a prepotência, todo o atropelo que uma burocracia inimputável, como a Autoridade Tributária, é capaz de perpetrar.

Contei em Agosto de 2019 a história de uma empresa que o Fisco fez falir (agora diz-se insolver porque o legislador vê, nas mudanças semânticas, progresso) e concluía com uma série de perguntas às quais dava as respostas que, à época, era possível dar. Eram as seguintes as perguntas:

  1. Que acontece às simpáticas duas inspectoras que estão na origem do processo, e a quem nelas superintende?
  2. Que acontece aos trabalhadores?
  3. Que acontece aos credores?
  4. Que acontece às máquinas, às existências e ao edifício?
  5. Que acontece aos sócios?

Quanto ao ponto 4. em Novembro de 2020 acrescentei:

“… o edifício e as máquinas referidos na história para que remete o primeiro parágrafo foram leiloados em Dezembro e o conjunto foi arrematado por um valor que, mesmo sendo como foi de uva mijona, excedia largamente a totalidade do endividamento da firma, se excluirmos as indemnizações ao pessoal (decorrentes da insolvência que o Fisco induziu), a parte do endividamento que era, na realidade, capital, por não ser exigível nem implicar serviço de dívida, e a imaginária dívida fiscal, baseada em vendas sem factura que nunca existiram nem poderiam ter existido dada a natureza dos bens, os destinatários, que eram em mais de quatro quintos clientes de outros países, e o volume, por se tratar de bens de equipamento de grande atravancamento que implicariam gigantescas movimentações de TIRs clandestinos – uma fantasia que só poderia caber na cabeça retorcida de umas moças ou moços que ganham a vida estragando a de outros, sob a férula de uma hierarquia de agentes da Gestapo”.

Foi, portanto, tudo vendido em leilão judicial. Mas o comprador não tinha pago até então, isto é, não tinha pago entre Dezembro de 2019 e Novembro de 2020, e não pagou até hoje.

Quer dizer que está toda a gente a ver navios e ousa-se esperar que o administrador de execução e o tribunal tenham um bom sono porque os credores, esses, não há maneira de pregarem olho.

Tanto que os bancos credores já executaram os avalistas (os do ponto 5., grandes patifes) e o Fisco já fez reverter os seus imaginários créditos sobre o antigo gerente da extinta sociedade, que calha ser este escriba. O que pode ser difícil de compreender para quem julga que estas coisas não são possíveis: A entidade responsável pela falência nem espera para se pagar pelo produto da venda dos bens que parcialmente inutilizou, por lhes anular a função, e vai (ou quer ir) sobre o património da principal vítima.

O rateio pelos credores haverá de ser feito um destes lustros, logo que administrador acorde e o arrematante pague; os trabalhadores que não se reformaram já encontraram trabalho, e uns e outros continuam à espera da indemnização; o tal gerente está em tribunal mais uma vez e ser-lhe-á dada, ou não, razão; e os milhares de câmaras frigoríficas que a firma produziu continuam a trabalhar em talhos, padarias, restaurantes, em mais de dez países, o mesmo não se podendo dizer das que nunca existiram senão na hedionda cabeça do Fisco.

Moralidade da história: e a legitimidade da comparação com a Covid? Há pessoas que julgam que o Estado de Direito se pode cortar às fatias, funciona para umas coisas e não para outras. Mas não: de cedência em cedência, hoje atropelam-se os direitos dos contribuintes que forem empresários porque são ladrões salvo prova em contrário; em nome do combate à Covid, faz-se tábua rasa da Constituição; e já se encara como natural que António Costa, à boleia da Covid, se enfeite com os fasces de ditador, como aqui se denuncia.

Como o país

José Meireles Graça, 25.11.20

Em Agosto do ano passado contava uma história, verídica mas inverosímil, sobre uma empresa destruída pelo Fisco com base em acusações suportadas em irregularidades contabilísticas que foram interpretadas, sem qualquer base probatória ou sequer senso comum, como indícios seguros de evasão fiscal.

O texto era extenso e mesmo assim cortei nos detalhes, para não o tornar intragável, mas arrolava o essencial. Com desconto das proporções, e desculpa pela hipérbole, a historieta era um exemplo da banalidade do mal.

Ao falar deste conceito, diz a Wikipédia:

“… agiu segundo o que acreditava ser o seu dever, cumprindo ordens superiores e movido pelo desejo de ascender em sua carreira profissional, na mais perfeita lógica burocrática”.

“… o mal não é uma categoria ontológica, não é natureza, nem metafísica. É político e histórico: é produzido por homens e se manifesta apenas onde encontra espaço institucional para isso - em razão de uma escolha política. A trivialização da violência corresponde… ao vazio de pensamento, onde a banalidade do mal se instala”.

Temos um alegado crime – a evasão fiscal; temos a derrogação de uma regra básica do direito criminal – quem acusa tem o ónus da prova; temos o abandalhamento total de qualquer consistência da acusação – nem precisa de ser razoavelmente indiciária; temos a recompensa dos agentes – merecem o louvor das chefias na proporção das exacções que praticam, em cujos proveitos participam; temos a aprovação pública – o cidadão que recebe do Estado mais do que para ele julga contribuir entende que quem é acusado de evasão o está a roubar e o que contribui mais do que recebe entende que, se todos pagarem mais, seja como for, é menos esbulhado; temos a ignorância da opinião pública e da publicada – a primeira é confortada na ideia de que, salvo prova em contrário, quem detém meios de produção é caracteristicamente, além de inepto, ladrão, e a segunda dá todos os dias provas da sua prodigiosa ignorância, embrulhada num parti-pris estatista e anti iniciativa privada; e temos um poder político que encontra sempre boas razões para aumentar a punção fiscal, com a qual compra votos por distribuição de benefícios, e não acha nunca oportuno, ou justo, ou desejável, aliviar a pressão fiscal porque, fazendo-o, corre o risco de ser apeado.

Altos níveis de fiscalidade, baseados em escolhas políticas, são aceitáveis desde o momento que o regime tenha, como tem, legitimidade democrática. Com isso compromete-se o desenvolvimento, mata-se a iniciativa e garante-se a dependência das esmolas dos países ricos (um ouro do Brasil que, tal como o original, se julga que não terá fim), a par de um lento e firme deslizar para o último lugar da riqueza no nosso continente, mas é a receita que o eleitorado tem comprado.

Mas não comprou um corpo de funcionários inimputáveis nem poderes demenciais sem escrutínio válido. O recurso aos tribunais implica ou pagamento do que não é devido, ou a apresentação de garantias de valor equivalente, que inexistem tanto mais quanto delas se necessite, e recursos para esperar porque as sentenças vêm com o vagar que se toma como uma respeitável tradição. Mesmo para quem a eles possa aceder, executar as sentenças é um calvário; nas despesas incorridas o Estado não participa; e a Administração pode tranquilamente pontapear o Direito, mesmo o que ela própria redigiu e o político acéfalo de serviço assinou, porque a sentença que exonera o contribuinte não castiga o funcionário que levantou o auto – é como se o cidadão, que se queixa de ter sido agredido numa esquadra de polícia, visse o tribunal dar-lhe razão e o polícia agressor, além do prémio de desempenho, pudesse tranquilamente continuar a escaqueirar as trombas não suficientemente humildes de quem teve o azar de com ele tropeçar no caminho.

O eleitorado esta realidade não comprou, mas ela mantem-se porque ignorada pela opinião pública, a qual  se inteirada decerto pensaria: ora bem, se os acusaram alguma coisa devem ter feito – que é o que dizem as pessoas que têm um reflexo condicionado de acatamento da autoridade e acreditam que para privar as pessoas da sua liberdade é necessário o respeito de um conjunto de regras que a civilização impôs, mas para as privar da sua fazenda não.

Ignorada pela opinião pública, uma velha rameira que de todo o modo o cidadão dono do seu nariz deveria tratar com sobranceria, mas também pelos jornalistas, uma turba decaída que se quer encostar ao Estado na exacta medida em que perdeu, por razões várias, o seu modo de vida pouco antes de ter perdido a gramática, e pelos decisores políticos, que com razão recuam com horror nas obscuras matérias fiscais, que são deixadas para os especialistas.

Destes, o principal é a invariavelmente sinistra figura do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, cuja missão é garantir a quem o nomeou que não haverá quebra de receitas, agradar aos esbirros que nominalmente estão sob a sua direcção, lisonjear a comunicação social confortando-a na ideia de que está a combater eficazmente a evasão fiscal e aldrabar os parlamentares fazendo-os crer que não vivemos num Estado de Polícia fiscal. O actual é igual a esse título aos anteriores (incluindo o dos tempos da troica, um ostensivo desastre que tenho vergonha de reconhecer ter sido escolhido pelo partido de que sou militante), e todos têm sido pessoas moralmente desprezíveis. É moralmente desprezível quem, em nome da perseguição a infractores, não se importa de coonestar procedimentos que não pode deixar de saber que triturarão inocentes.

Deixemos lá isso, o que lá vai lá vai.

Não vai. Porque o edifício e as máquinas referidos na história para que remete o primeiro parágrafo foram leiloados em Dezembro e o conjunto foi arrematado por um valor que, mesmo sendo como foi de uva mijona, excedia largamente a totalidade do endividamento da firma, se excluirmos as indemnizações ao pessoal (decorrentes da insolvência que o Fisco induziu), a parte do endividamento que era, na realidade, capital, por não ser exigível nem implicar serviço de dívida, e a imaginária dívida fiscal, baseada em vendas sem factura que nunca existiram nem poderiam ter existido dada a natureza dos bens, os destinatários, que eram em mais de quatro quintos clientes de outros países, e o volume, por se tratar de bens de equipamento de grande atravancamento que implicariam gigantescas movimentações de TIRs clandestinos – uma fantasia que só poderia caber na cabeça retorcida de umas moças ou moços que ganham a vida estragando a de outros, sob a férula de uma hierarquia de agentes da Gestapo.

Pois bem: volvido quase um ano sobre o leilão, nenhum credor recebeu um centavo, o arrematante não pagou um cêntimo, e nenhum antigo fornecedor pôde sequer fazer encontro de contas com o IVA que perdeu porque a celerada legislação existente não o permite sem o reconhecimento definitivo dos créditos, e mesmo isso com apertados prazos já excedidos. Tudo isto porque o edifício foi construído sobre três lotes num parque industrial pertencente a uma câmara municipal, que os vendeu, licenciou devidamente a obra há mais de vinte anos e passou a competente licença de utilização, como o fez uma miríade de serviços públicos envolvidos, incluindo o ministério da Indústria.

A Câmara em questão não deveria ter vendido três lotes contíguos e autorizado a construção em cima deles porque o Plano de Pormenor da zona não o permitia; ou então deveria ter previamente alterado o Plano, coisa que não podia fazer porque tinha de estar em vigor por dez anos, como explicou candidamente, muitos anos volvidos, um diligente funcionário da edilidade; e quando o maldito Plano foi alterado a autarquia exigiu um novo processo de licenciamento para corrigir a sua asneira, com as competentes despesas, taxas e sabe Deus que alterações, como se a fábrica não tivesse estado a funcionar no maior respeito da legalidade desde que o Parque nasceu.

É esse licenciamento que, oficialmente, está a encravar tudo; e o que sobre este derradeiro embaraço realmente penso peço licença para guardar para mim.

Até porque, a esta altura do texto creio que quem começou a ler já deve estar farto – mas que embrulhada.

Como o país.

 

O debate

José Meireles Graça, 22.09.20

O deputado da Iniciativa Liberal debateu na SicN sobre a taxa única de IRS com um ex-deputado do Bloco, um expatriado  que se juntou aos portugueses que, com trânsfugas de outras nacionalidades, fingem que deputam no Parlamento Europeu.

O assunto não tem nem de longe tanto interesse como as mamas de Cristina Ferreira, que ultimamente têm uma preocupante tendência para crescer, nem muito menos a mais recente tolice de um governo qualquer, ou do nosso, para fechar a porta à Covid, o fantasma que não vai matar quase ninguém, enquanto os residentes que não morrem de doenças sérias não tratadas, fome ou exaustão, criam dívidas que julgam que não vão pagar.

Mas um partido político tem de ter bandeiras. E esta, a da taxa única, não tem nenhuma hipótese de ser desfraldada no alto de uma colina de preconceitos, o que não quer dizer que não valha a pena agitá-la – todas as bandeiras vencedoras hoje já foram vencidas no passado.

O tal ex-deputado do Bloco, de nome Gusmão, recita a vulgata da seita, que no caso consiste em dizer que muitos poupam 50 euros (esqueceu-se com admirável manha de esclarecer que seria por mês) enquanto uns poucos, os ricos, guardam milhares que não lhes fazem falta; que isto criaria um buraco nas contas públicas que só poderia ser tapado com cortes no SNS e no ensino público; e que nos países mais desenvolvidos (começou por dizer com aquela lata mentirosa de que os adeptos de Frei Anacleto Louçã e Soror Mariana detêm o segredo que era em todos os da UE, depois centrou-se na Holanda como o farol que, nesta matéria, deveríamos seguir) havia várias taxas de IRS, a mais gravosa sempre altíssima.

Cotrim Figueiredo, com serenidade, rebateu as indignações daquele pai dos pobres. Não disse tudo o que poderia ter dito (por exemplo, ficou por referir que a comparação de taxas sem referir os montantes a partir dos quais se aplicam significa que em Portugal se considera rico, para o efeito de o acabrunhar com impostos, quem é apenas remediado) mas nem houve tempo nem é possível dizer tudo sobre uma matéria complexa, e um debate velho, onde a cada argumento de um lado cabe um argumento do outro, quase sempre ficando de fora os pressupostos de cada trincheira.

Que pressupostos são esses? Do lado do indignado, são a superioridade moral (ele defende os pobres, o opositor os ricos), que é recorrente na esquerda em geral e aparece no Bloco dobrada em raiva virtuosa; a concepção da economia como um jogo de soma nula, isto é, em que as perdas de uns são os ganhos de outros; a ideia de que o investimento, e a gestão, públicos, são equivalentes no desempenho ao investimento e gestão privados; e a opinião de que a igualdade material entre os cidadãos é um bem em si, que não carece de demonstração por ser uma verdade axiomática.

Claro que não há qualquer superioridade moral da esquerda em geral, muito menos de um moço de aspecto piolhoso com os olhos coruscantes de ódio aos ricos, debitando argumentos serventuários de uma trombeteada generosidade e uma oculta inveja; na economia que cresce pouco ou nada, como foi o caso durante a maior parte da história da humanidade, os ganhos de uns eram efectivamente as perdas de outros, mas deixou de ser necessariamente assim desde fins do séc. XVIII; se a gestão privada fosse igual à pública, a nacionalização dos meios de produção não teria produzido, como invariavelmente produziu, sociedades de generalizada carência; e é preciso uma grande dose de cegueira para não ver que os países que nos vêm ultrapassando na hierarquia dos rendimentos por cabeça têm muitas coisas que nos faltam, uma delas sendo a competitividade e a simplicidade fiscais – a igualdade, ou melhor, a obsessão igualitarista, não faz parte desse lote.

Gusmão, estás por fora, meu chapa, a única coisa que contigo pode progredir é o retrocesso. Que poderias ter dito ao teu opositor que enriquecesse o debate? Algumas reflexões, dentro dos pressupostos dele que, já se vê, tem paciência, são os bons: que a fiscalidade simples e modesta, em vez de complicada e rapace, é adjuvante do crescimento, mas que há um tempo de espera que não é seguro que as nossas calamitosas contas públicas possam suportar. Pelo que começar pela reforma do IRC talvez fosse mais judicioso; que o nosso Estado gordo é uma mochila demasiado pesada para um viajante que quer andar mais depressa do que os outros, pelo que a reforma de que toda a gente fala ou implica extinções de serviços espúrios ou não é reforma; e que o Estado de Direito é para valer em todos os domínios, e que portanto a inversão do ónus da prova em matéria fiscal, os poderes inquisitoriais de uma casta de funcionários inimputáveis pagos com prémios pelos seus abusos são perversões a eliminar como condição prévia a qualquer reforma fiscal.

Isto e muitas outras coisas. Que talvez vejam a luz do dia quando houver uma quarta falência, ou o eleitorado descobrir que já só tem atrás de si a Albânia, ou, ou.

Até lá, alguém tem de manter acesa a chama do senso, do realismo e da esperança. Foi só por um quarto de hora? Ora, na Venezuela que Gusmão estima nem isso têm.