Certificados de discórdia
É longa e sem excepções a lista dos meus amigos ideológicos (dos quais alguns também pessoais) que acham bem o fim da emissão de certificados de aforro à taxa actual, que passa a ser outra substancialmente mais baixa.
No essencial, entendem que o Estado se deve financiar às melhores taxas existentes no mercado porque, se não o fizer, está a pôr aqueles contribuintes que não compraram certificados, por não quererem ou não poderem, a transferir indirectamente recursos para os outros, que têm mais disponibilidades e, provavelmente, mais literacia económica.
Do lado esquerdo do espectro (excluindo parte do PS, que cacareja sempre as posições do Governo) a posição é simétrica. E assistimos até ao caso cómico de ver uma venezuelana como Mariana Mortágua (ou vários cubanos à esquerda dela) a defender o capitalismo popular. Grande Margaret Thatcher, que deixou herdeiros nos sítios mais inesperados.
Amigos de esquerda tenho alguns, que sou uma pessoa muito dada. E destes Luís Aguiar-Conraria explicou por que razão acha tudo isto muito mal. No essencial: i) A exiguidade das taxas de juro que os bancos portugueses pagam aos seus depositantes (menos de metade da média na zona Euro) é um escândalo só explicável pela existência de um cartel “tácito”; ii) A Autoridade de Concorrência já condenou vários bancos por trocarem entre si informações comerciais sobre clientes. Esta condenação é estranha (opinião minha, não de LA-C), porque o BdP tem uma base de dados onde constam todas as responsabilidades, em incumprimento ou não, dos clientes bancários, acessível a qualquer contribuinte, para a sua situação, com a mesma chave da utilizada no Portal das Finanças. Ou os bancos têm acesso a essa base ou, não tendo, podem pedir a chave ao cliente, coisa que, se eu tivesse um par de asas nas costas, acreditaria que não fariam, ao menos sob o pretexto de quererem ver a situação fiscal); iii) Os mesmos fundos que os clientes confiam aos bancos podem, se estes os depositarem no BCE, garantir um substancial rendimento – um exemplo gritante de rentismo, entendo eu, e a negação mesma do negócio bancário, que não deve nem tem de ser parasitário; iv) A função social dos Certificados, que era a de oferecer um produto de confiança a investidores pouco sofisticados, funcionava agora, na prática, como um elemento de combate ao cartel, por originar a fuga de fundos para aplicação em dívida do Estado; v) Deste desastre em forma de escândalo, ou ao contrário, salva-se a CGD, que já anunciou uma irrelevância qualquer, razão pela qual fica justificado ser pública. A meu ver não fica, claro – a ideia de que uma instituição pública serve de referencial para as congéneres privadas é uma coisinha muito querida para mundivisões de esquerda, que não vou rebater aqui porque não é esse o escopo deste post.
Bom, isto diz ele, e algures acrescentou, e bem, que não é a mesma coisa o Estado dever dinheiro a cidadãos nacionais ou a entidades estrangeiras.
Ontem Helena Garrido fez um bom resumo do argumentário a favor do bote que foi dado à atractibilidade dos Certificados, assim: i) Explica detalhadamente por que razão o Estado tem perdido desnecessariamente dinheiro e porque o continuaria a perder se não alterasse o curso das coisas. O Estado foi vítima do seu próprio sucesso, dado que a procura ia num crescendo; ii) Quanto aos bancos, estes estão “inundados de liquidez”, e portanto não os aquece nem arrefece que os depósitos levem um rombo; iii) A banca paga mal mas é só aos particulares, não às empresas. Que quanto a estas, garante Helena, a concorrência é feroz, por causa do “negócio complementar que lhes garante”; iv) O resto do artigo dedica-se a defender, e bem, os lucros bancários e o interesse público da sua solidez, concluindo: “Queremos bancos sólidos e que não precisem de ajuda do contribuinte, mas queremos que eles sejam irracionais na gestão, que até se prejudiquem financeiramente enfrentando o risco de terem problemas e de precisarem depois de ajuda”.
Pela mesma ordem: Que o Estado tem perdido dinheiro não duvido. Mas, para usar o jargão que Garrido e os seus colegas gastam, gostaria de que se me explicasse por que razão a diferença entre financiamento por nacionais e estrangeiros não justifica um prémio; explicar o excesso de liquidez ficou no tinteiro, como se desse simples facto não se devesse inferir que os bancos não são empresas, mas antes instituições que há muito deixaram de se pautar pelas regras de mercado, omissão necessária para justificar as suas decisões, tomando como natural o que em empresas realmente expostas à concorrência nunca o seria; por que razão os depósitos das empresas justificam uma concorrência de faca nos dentes, mas não os dos particulares, ficamos sem saber. Se perguntado, qualquer responsável bancário diria que o giro das empresas oferece possibilidades de financiamento, e portanto negócio, coisa que não sucede com os particulares. E seria de facto assim se não se desse o caso de o dinheirinho dos tais particulares servir para ir parar ao BCE, nos termos referidos acima. De modo que a tal concorrência significa na prática isto: precisamos das empresas para justificar a nossa existência e portanto não importa que ganhemos menos – o negócio legítimo encobre a moscambilha financeira; e com a parte final do artigo, credo, até fiquei comovido, como fico sempre quando vai um gestor bancário à televisão enunciar os problemas que o afligem e ao sector – lembro-me de uma entrevista de Ricardo Salgado a José Gomes Ferreira, há muitos anos, em que o primeiro explicou paternalmente que a banca era pouco menos que excelsa na gestão e nos resultados.
Bom, isto dizem eles. Eu digo que todo este assunto é uma floresta de equívocos, porquanto:
Os bancos não são empresas, a sua actividade é regulada com tal minúcia que a exiguidade da latitude decisória faz com que a concorrência entre eles seja uma fantasia apenas boa para confortar doutrinários, a sua gestão, comummente tida como excelente, seja a de funcionários cumpridores de directivas, e em todo o sistema o cliente tenha uma importância menos do que diminuta. O papel do BCE e do seu balcão local, que guarda a designação tradicional de BdP, é controlar a inflação e garantir, dentro do possível, que o risco sistémico não se materializa. Que os lucros da actividade, e portanto os prémios dos gestores, sejam obtidos por processos oportunistas, cai fora das preocupações de tão respeitáveis entidades.
Em todas – todas – as defesas que vejo fazer deste estado de coisas insidiou-se uma despropositada clivagem esquerda/direita, a primeira a defender os titulares de certificados porque isso prejudica os bancos, que deveriam, na opinião dela, ser públicos, e a segunda a defender os respectivos lucros porque o lucro é sagrado, a concorrência do Estado aos particulares uma heresia, os bancos são empresas privadas, e Adam Smith diz isto e von Mises aquilo.
Eu estaria, com menos doutrina e mais senso, ao lado dos segundos, se não houvesse um elefante, e outros animais volumosos, no meio da sala. E esses são o mais do que evidente cartel dos bancos, o óbvio carácter público da respectiva gestão porque parte dos mecanismos da concorrência não estão presentes, e a ligação de tudo com tudo na gestão da dívida pública.
Daí que não compre o arrazoado de Helena Garrido, ou Vítor Bento, ou João Duque, ou muitos outros, em defesa dos bancos – não defendo, com perdão do exagero retórico da expressão, quadrilhas de ladrões. Pode ser que toda esta floresta de enganos e distorções do mercado tenha de ser assim face ao endividamento dos Estados, mormente do nosso, à memória de crises do sistema bancário, antigas e recentes, e à pertença ao espaço Euro. E pode ser também que o que o Estado faz agora, mas não fez no passado, seja o melhor no interesse dos contribuintes.
O que não pode ser é que, para defender os contribuintes porque se contrai ou renova dívida nas melhores condições, se esqueça que se o preço disso é fechar os olhos ao esbulho dos depositantes dos bancos, por não serem devidamente remunerados – é demasiado alto. E não só porque os depositantes são muitos mais, também porque a sanidade do espaço público não pode assentar no princípio de que vale tudo, mesmo o que ofende a lógica, a justiça e o senso, porque os bancos, que têm um estatuto de excepção a vários títulos, deveriam ter também o da inimputabilidade.