O Fim do Pai Natal (conto revolucionário infantil não aconselhável a crianças)
Capítulo 4
Forças do Mercado
«E agora?»
«Agora vamos fazer brinquedos iguais para todas as crianças e distribui-los», respondeu o duende barbudo, com o gorro do Pai Natal enfiado na cabeça. Alguns dos outros duendes haviam de dizer que ele podia não acreditar em hierarquias, mas tratara logo de se apoderar dos símbolos do poder cessante.
«Sem o Pai Natal e sem as renas? Como os vamos transportar? E como é que vamos pagar os materiais?»
«Como é que ele fazia?»
«Nos últimos anos, o negócio cresceu por causa dos patrocínios. Da Coca-Cola e outras multinacionais.»
«Isso não pode ser. Esses contratos têm de ser rasgados.»
«E então onde é que vamos buscar o dinheiro?»
O duende barbudo coçou a barba. Apercebeu-se de que ela tinha um nó, mas resistiu a desfazê-lo naquele momento.
«Se calhar», disse lentamente, «até nem seria má ideia aproveitarmos o dinheiro da Coca-Cola para boicotarmos a lógica capitalista da distribuição de brinquedos. Temos é que manter a morte do velho em segredo.»
Toda a gente concordou quase imediatamente que era isso mesmo que se devia fazer.
A princípio, até pareceu que ia resultar. Manteve-se secreta a morte do Pai Natal em todas as comunicações, incluindo com a Coca-Cola, e fizeram-se as encomendas aos fornecedores como de costume. Mas depois o presidente da Coca-Cola exigiu falar pessoalmente com o Pai Natal. O duende barbudo pegou no telefone e disse: «Ho-ho-ho!», ao que o presidente da Coca-Cola respondeu: «Você não é o Pai Natal. O que se passa aí?» O duende barbudo inventou uma desculpa que envolvia uma doença tropical grave («provavelmente apanhou-a na viagem do ano passado»), mas o presidente da Coca-Cola não ficou convencido e enviou uma equipa de consultores ao Pólo Norte. Sem quaisquer hesitações ou remorsos, mas com mais dificuldade do que teriam antecipado (eram criaturas surpreendentemente resilientes), os duendes mataram-nos. Dias depois, contudo, chegou outra equipa. Como a primeira, era constituída por gente ainda nova, vestindo aquele tipo de roupas que as pessoas nas latitudes mais temperadas pareciam achar ser adequada para a neve. Houve de imediato muitas perguntas básicas e tomada de apontamentos, mas depressa os duendes lhes puseram fim através do mesmo método que haviam usado dias antes. Perante os corpos caídos na neve, ligeiramente triste por não ter conseguido evitar fazer um rasgão numa parka que, embora pouco adequada ao Pólo Norte, era bonita e de boa marca, o duende barbudo resmungou: «Não é possível que continuem a enviá-los. Afinal, quantos consultores pode ter a Coca-Cola?» Mesmo nesses tempos já antigos, verificou-se que tinha ainda bastante mais. Os duendes foram-nos abatendo e finalmente eles deixaram de aparecer. (Num dado que merecia algum estudo – existissem consultores interessados em fazê-lo –, a Coca-Cola viria a apresentar os melhores resultados da sua história nos anos imediatamente seguintes a estes acontecimentos.) Estava-se então já em Dezembro e os duendes pensaram que o pior fora ultrapassado. Mas então a Coca-Cola enviou um telegrama avisando ter despachado uma carta registada a denunciar o contrato de financiamento. Na carta, que chegou dias depois no comboio Expresso Polar, acrescentava-se que, em resultado de uma alínea existente no contrato («cuja cópia se anexa»), a Coca-Cola podia indefinidamente, se assim o entendesse, usar a imagem do Pai Natal na sua publicidade. O duende barbudo ficou tão furioso que chegou a arrancar pêlos da barba, mas nada havia a fazer. Realizou-se uma última reunião geral, que decorreu aos berros, com muitos lamentos e acusações. Não havia dinheiro para pagar aos fornecedores, que ainda só haviam enviado uma pequena parte dos produtos e se recusavam a enviar o resto. Pior: também não havia dinheiro para pagar salários. Alguém mencionou um velho mito segundo o qual o Pai Natal teria um tesouro escondido algures e procedeu-se a uma busca desesperada, com muita destruição de instalações e de equipamento, mas, se o conteúdo da gaveta de uma mesinha-de-cabeceira do quarto do Pai Natal ainda suscitou risos e piadas deselegantes («Alguém tem andado a portar-se mal...», «Agora percebe-se o ‘ho-ho-ho’ que se ouvia durante a noite…», «Com este frio, as pilhas hão-de durar pouco», «Também se arranja em tamanho XS?»), nada de valor significativo foi encontrado. Nessa altura a raiva dos duendes voltou-se contra o duende barbudo, que tentou fugir. Foi apanhado, morto à paulada como se fosse uma foca e espetado num pau. Dizem que era tão resiliente que as barbas lhe continuaram a crescer durante meses.
E foi assim que, nesse ano, pela primeira vez, o Pai Natal não visitou as casas dos meninos bem comportados durante a noite de Natal. Muitas crianças ficaram tristes e muitos pais irritados. Tendo retirado os anúncios em que usava a imagem do Pai Natal no início de Dezembro, as vendas da Coca-Cola não foram afectadas. No ano seguinte, os pais já não confiaram no Pai Natal e adquiriram brinquedos que, durante a noite, pé ante pé, foram colocar debaixo da árvore ou pendurar na chaminé, consoante a tradição de cada sítio ou país. Naturalmente, os pais mais ricos compraram presentes mais caros. Como, de forma geral, os pais preferiram manter a ilusão das crianças, continuando a falar-lhes no Pai Natal, a Coca-Cola voltou a usar a imagem dele na publicidade.
No Pólo Norte, os vestígios da aldeia do Natal desapareceram. Os duendes espalharam-se pelo planeta. Às vezes, vê-se um ou outro por aí (na Irlanda, são confundidos com leprechauns e, em Portugal, há conhecedores desta triste história que defendem que alguns comentadores televisivos de reduzida estatura ainda são «crianças do Pólo»). Quanto ao destino de Rodolfo, não existem certezas. Mas todos os anos as televisões mostram a saída do Pai Natal da Lapónia, no seu trenó puxado por renas. Se o Pai Natal é claramente um velhote com barbas e barriga postiças, as renas são verdadeiras. E a da frente parece estar sempre a caminhar com cuidado extremo. Algumas pessoas suspeitam que tal se deve ao esforço que tem de fazer para não levantar voo. Há também quem diga que, por vezes, o nariz dela brilha como se fosse uma lâmpada. Mas outras pessoas defendem que aquele estilo de passada é a forma normal das renas caminharem e que o brilho se deve apenas a gelo na ponta do nariz e a televisores mal regulados. É possível que nem a Coca-Cola conheça a verdade.
FIM