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Delito de Opinião

Os filmes da minha vida (50)

Pedro Correia, 10.08.19

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SHANE:

SEMENTES DE VIOLÊNCIA

 

Um forasteiro chega a um pequeno povoado, vindo ninguém sabe de onde. Ainda o genérico preenche o ecrã e já o vemos lá do alto a cavalgar rumo ao vale – de costas, o que acentua a face enigmática deste peregrino de passado obscuro: apenas saberemos de imediato que é exímio a manejar armas de fogo e um desenraizado, sem lar nem âncora. Perceberemos mais tarde que está farto de violência, mas não consegue escapar dela.

Shane – um dos melhores westerns de que há memória e o filme que projectou Alan Ladd para a eternidade – é um singular retrato da América pioneira, a que desbravava sucessivas fronteiras internas, sempre rumo a Oeste, à mercê do esforço individual, tantas vezes pago com a mutilação e a morte. Uma América de algum modo simbolizada naquele cavaleiro supostamente oriundo de paragens inóspitas e sujeito ao dilema permanente entre matar ou morrer.

 

Estamos no belo e bravo Wyoming da última década do século XIX, quando os índios haviam deixado de ser uma ameaça à progressão do homem branco na marcha para o Pacífico. Nação ainda jovem, os EUA iam rasgando vias de comunicação, erguendo embriões de cidades, transformando pastagens naturais em solos agrícolas. A administração pública permanecia longe, a milhares de quilómetros. Ali as leis ditavam-se em função das circunstâncias e o próprio preceito bíblico «Não matarás» era a todo o momento questionado.

Não há um só pele-vermelha neste clássico do Oeste selvagem: aqui todas as lutas se desenrolam entre descendentes directos de imigrantes europeus. De um lado, os mais antigos detentores das terras, apostados em mantê-las como pasto para gado; do outro, os lavradores, pertencentes à primeira geração que ali trocava a espingarda pelo arado. Uns defendiam a tradição atávica, confinada à lei do mais forte; outros implantavam cercas e vedações, delimitando o direito de propriedade como símbolo do progresso. Visões antagónicas, condenadas ao conflito. Ryker, o rude patriarca local, descreve o quadro em poucas frases: «Passámos por tempos duros, eu e outros homens agora quase todos mortos. Ainda tenho um ombro em má forma devido à flecha de um Cheyenne. Fundámos e construímos esta região com trabalho, sangue e estômagos vazios. O gado que para aqui trouxemos foi perseguido por índios e gatunos. Fizemos disto um território seguro. Alguns morreram, mas conseguimos.»

Shane, nómada por destino ou vocação, não pertence a nenhuma destas facções: cruza aquele território por um capricho do acaso, «sem lenço nem documento», como cantaria Caetano Veloso muitas décadas depois. E logo se torna um ídolo do pequeno Joey, filho único do casal formado por Joe e Marian Starrett, agricultores em confronto com o prepotente Ryker, símbolo remanescente de um vasto território ainda sem lei.

 

Neste western atípico, a criança faz toda a diferença: parte do que observamos advém do seu olhar virginal. Merece aplauso a interpretação do pequeno Brandon de Wilde, então com apenas dez anos: foi, à época, o mais jovem actor nomeado para um Óscar.

O miúdo, sonhando com cavalgadas aventureiras, elege como seu herói o recém-chegado que se hospeda lá em casa. Indiferente ao prudente conselho da mãe: «Não te afeiçoes muito ao Shane. Ele irá partir um dia e ficarás triste se te afeiçoares demasiado a ele.» Marian fala para o filho mas também para si própria: percebemos, desde o primeiro instante, que ela se sente atraída por aquele forasteiro chegado de lugar nenhum. Basta um intercâmbio de olhares para desfazer dúvidas. E vários se irão sucedendo nesta longa-metragem.

 

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Shane – realizado por George Stevens (1904-1975) - é um filme memorável não apenas pelo que expressa mas por tudo quanto deixa implícito sem desperdício de palavras, aqui substituídas com vantagem pelas imagens, essência do cinema. Desde logo pelo local escolhido, quase todo em cenário natural, na região de Jackson Hole, emoldurada de montanhas com neves perpétuas. Um cenário grandioso e fascinante, fazendo-nos recordar a cada momento como são exíguas as forças do ser humano no milenar confronto com a natureza.

Neste jogo de contrastes, onde o bem e o mal nunca se dissociam da dicotomia estética, uma das personagens memoráveis é Wilson, o pistoleiro profissional, aqui semelhante a um gangster, de chapéu e colete negros em óbvia alusão ao rasto de morte que o acompanha – papel confiado a Jack Palance, numa das melhores composições de um dos piores canalhas já surgidos na grande tela. A cena em que ele mata o pobre ex-soldado sulista Torrey (interpretado por Elisha Cook Jr, quase mítico actor secundário da velha Hollywood), deixando-o sepultado na lama, é digna de antologia, tendo inspirado vários cineastas – de Sam Peckinpah a Quentin Tarantino, passando por Clint Eastwood.

Outra cena inesquecível é a do baile comemorativo do feriado do 4 de Julho, com a bandeira norte-americana desfraldada nos celeiros – também o dia em que Marian e Joe (interpretados por Jean Arthur e Van Heflin) celebram o décimo aniversário de casamento. Mas ela só dá nas vistas, parecendo remoçar de minuto a minuto, quando dança com Shane.

Aqui, de novo, nenhuma palavra é necessária: um espectador atento percebe tudo.

 

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Rodado entre Julho e Outubro de 1951 num esplendoroso Technicolor que em várias cenas o torna digno de uma tela expressionista, este filme que a Paramount só estreou em Abril de 1953 inspirou-se na novela homónima de Jack Schaefer - publicada anos antes, em fascículos, numa revista popular. Ao que consta, a adaptação à tela ocorreu por recomendação do filho do cineasta.

Podia ter sido um western de produção industrial, idêntico a tantos outros. Mas pela mão de Stevens (que no ano anterior filmara o sublime Um Lugar ao Sol) torna-se obra-prima absoluta, com lugar cativo no panteão do cinema americano. Merecendo seis nomeações para os Óscares – caso raro numa película etiquetada entre as «fitas de cowboys» pela desdenhosa crítica bem-pensante – e uma estatueta, mais que justificada, a distinguir a deslumbrante fotografia de Loyal Griggs.

Ladd ficou à margem dos galardões e rezam as crónicas que terá entrado em depressão ao saber-se marginalizado pelo júri de Hollywood, aqui com vistas muito curtas: o Shane que ele encarna (num papel rejeitado por William Holden e Montgomery Clift) é uma das melhores interpretações jamais registadas em westerns.

 

Vi pela primeira vez Shane há quase 30 anos, num local muito distante daquele onde agora escrevo. Não em cinema, como gostaria, mas em laser vídeo disc – tecnologia então muito evoluída mas hoje obsoleta. Logo se tornou num dos meus filmes de culto: equiparo-o, em western, a Rio Bravo (de Howard Hawks), A Desaparecida (de John Ford), Sublime Tentação (de William Wyler) e Johnny Guitar (de Nicholas Ray). Todos rodados nos prodigiosos anos 50 – a melhor década do cinema.

Recordarei para sempre algumas cenas que ainda me emocionam. A do pungente “Pai Nosso” rezado em coro pelos lavradores que acabam de ver assassinado outro dos seus, recortados em silhueta na vastidão do horizonte como se estivessem projectados no infinito. A do estóico Joe Starrett garantindo com firmeza, em noite de trovoada, aos restantes companheiros de infortúnio: «Eu não sairei daqui, nem agora nem nunca.» A de Marion observando o hóspede da janela e repetindo-lhe o nome. Como se recitasse uma oração, como se contemplasse o sol naquela noite de chuva intensa.

E sobretudo a magnífica sequência final, quando Joey implora com insistência ao seu fugaz herói: «Shane! Shane! Volta!»

Os gritos ficam a ecoar por todo o vale. Mas Shane já cavalga à distância, regressando ao local incerto de onde veio, tão enigmático à partida como no dia em que chegou.

 

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Shane. (Shane, 1953). De George Stevens. Principais intérpretes: Alan Ladd, Jean Arthur, Van Heflin, Brandon de Wilde, Jack Palance.

 

Trinta filmes da minha vida

Pedro Correia, 24.11.16

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A Desaparecida (John Ford, 1956)

O melhor western de todos os tempos - obra-prima absoluta. Um filme sobre um amor impossível, um filme sobre o inapelável peso da solidão.

 

A Sombra do Caçador (Charles Laughton, 1955)

Longa toada nocturna, mais poesia que prosa, cruzamento do expressionismo alemão com cinema negro, de conto de fadas com romance gótico.

 

A Troca (Clint Eastwood, 2008)

O olhar, as dúvidas, a angústia, a contenção, a febre, as palavras e o silêncio de uma mulher confrontada com o pior dos cenários: o rapto de um filho.

 

Aniki-Bóbó (Manoel de Oliveira, 1942)

Não me lembro de outro filme produzido antes deste, em Portugal ou qualquer outra paragem, que soubesse tratar o mundo infantil de forma tão sensível e tão credível.

 

Antes que o Diabo Saiba que Morreste (Sidney Lumet, 2007)

A diluição da cronologia faz aqui todo o sentido - para vincar que todos somos prisioneiros do passado e que este por sua vez condiciona as nossas acções futuras.

 

As Vinhas da Ira (John Ford, 1940)

A saga de Tom Joad ganha asas, transcende o contexto histórico em que se situa, adquire um simbolismo universal que supera qualquer rótulo.

 

Birdman (Alejandro González Iñárritu, 2014)

Fabulosa descida aos bastidores do mundo do espectáculo -- cruzando teatro com cinema, talento artístico com sucesso de bilheteira, actores de carne e osso com a sua fantasiosa projecção no ecrã.

 

Boneca de Luxo (Blake Edwards, 1961)

Onde quer que vamos, a voz de Audrey Hepburn acompanha-nos. E se ela nos disser que existem rios na lua, nem por um instante somos capazes de duvidar.

 

Casablanca (Michael Curtiz, 1942)

Se algo sobrevive ao malogrado romance entre Rick e Ilsa Lund (deslumbrante Ingrid Bergman) é precisamente a batalha decisiva em que ambos apostam, também em nome do amor – neste caso, do amor à liberdade.

 

E Tudo o Vento Levou (Victor Fleming, 1939)

Se compararmos o cinema às grandes criações literárias, a Scarlett de celulóide equivale a uma das grandes personagens romanescas de que há memória.

 

Esplendor na Relva (Elia Kazan, 1961)

Há no olhar pungente de Deannie (Natalie Wood), nessa cena crepuscular, toda uma gama de emoções que daria para encher uma biblioteca inteira.

 

Indomável (Ethan Coen e Joel Coen, 2010)

Uma película que nos transporta a uma época de pioneiros e nos devolve as linhas divisórias entre o bem e o mal. Saímos do cinema com a convicção antecipada de que um dia regressaremos a ela, tocados de nostalgia.

 

Janela Indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954)

O prodígio de Hitchcock nesta sua obra-prima é transformar quase toda a acção física em mera acção visual.

 

Laura (Otto Preminger, 1944)

Um insólito clima de necrofilia percorre este filme – obra-prima do noir, o género cinematográfico que melhor desvenda a alma humana.

 

Lawrence da Arábia (David Lean, 1962)

Nenhum filme é confundível com este porque a personagem central aqui é o deserto e a magia que dele emana vai-nos guiando de cena em cena ao som da hipnótica partitura de Maurice Jarre.

 

Lilith (Robert Rossen, 1964)

"A felicidade torna-nos descuidados", adverte um doente, com mais sabedoria do que todos os médicos. Completa-se o ciclo: a voz da loucura pode tornar-se a voz da razão.

 

Lost in Translation (Sofia Coppola, 2003)

Alguns filmes reconciliam-nos com o cinema. Outros reconciliam-nos com a vida. Mais raros ainda são os que nos reconciliam simultaneamente com a vida e o cinema enquanto o tempo passa.

 

Mary Poppins (Robert Stevenson, 1964)

Comovo-me quando ouço Chim Chim Cheree, divirto-me com aquele delirante chá tomado com as personagens coladas ao tecto, ainda acho possível que uma nanny inglesa cruze os céus de Londres a flutuar num guarda-chuva.

 

Nebraska (Alexander Payne, 2013)

Este arrebatador road movie não seria tão deslumbrante sem a interpretação excepcional de Bruce Dern, sobrevivente -- na tela e fora dela -- de uma época que se tornou mítica.

 

Nove (Rob Marshall, 2009)

A homenagem à Sétima Arte, que Nove também é, culmina com a entrada em cena de Sophia Loren, a melhor ponte entre duas cinematografias de excepção – a italiana e a norte-americana – e várias gerações de intérpretes.

 

O Caçador (Michael Cimino, 1978)

Começa com um casamento e termina com um funeral - duas faces do mesmo espelho. Mas não nos fala de uma América crepuscular: fala-nos de uma América capaz de ressurgir com maior vigor de cada desaire da História.

 

O Desconhecido do Norte-Expresso (Alfred Hitchcock, 1951)

Pode o crime perfeito resultar de duas motivações cruzadas, como se os assassinos trocassem de identidade e mudassem de pele?

 

O Segredo dos Seus Olhos (Juan José Campanella, 2009)

Por vezes só um desencontro permite reencontrar-nos connosco próprios. E decifrar todos os enigmas, não da tela mas da vida. Vendo uma velha fotografia, desvendando o véu da esfinge que se abriga na memória de um olhar.

 

O Padrinho (Francis Ford Coppola, 1972)

Aquela que deveria ser uma rotineira e banal fita de gangsters eleva-se ao estatuto reservado às óperas de Verdi graças a um jovem cineasta.

 

Os Inadaptados (William Wyler, 1961)

Esta película onde não morre ninguém é afinal uma película sobre a morte - uma das mais pungentes de que há memória.

 

Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963)

Era um cinema feito na rua, que recusava o estúdio, também por inspiração italiana - e este filme, que constitui uma declaração de amor a Lisboa, acaba por ter portanto as rugas que a própria cidade ostenta.

 

Quando a Cidade Dorme (John Huston, 1950)

A originalidade desta película, mil vez imitada, é construir-se por inteiro sob a óptica dos ladrões - nunca dos polícias ou de algum detective cínico mas respeitador da lei.

 

Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976)

Nunca Nova Iorque pareceu tão irreal como neste filme só aparentemente realista: porque afinal a vemos sempre pelo olhar desfocado deste ex-fuzileiro de 26 anos que guia sem destino.

 

Viagem a Itália (Roberto Rossellini, 1953)

Nas ruínas de Pompeia ambos caminham sempre separados, sem o mínimo contacto físico, ao encontro dos ossos calcinados de um par surpreendido num abraço eterno, dois mil anos antes, pela lava do Vesúvio.

 

00.30, Hora Negra (Kathryn Bigelow, 2012)

Há filmes assim. Mal acabamos de os ver, sabemos logo que estamos perante uma obra a que um dia chamarão clássico.

 

Os filmes da minha vida (49)

Pedro Correia, 20.02.16

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O DESCONHECIDO DO NORTE EXPRESSO:

A VIDA É UM CARROCEL

 

Alfred Hitchcock terá dito certa vez que um filme seria tanto melhor quanto pior fosse o vilão que lá surgisse. A frase tornou-se lendária, como tantas vezes sucedeu com o cineasta do suspense. Mas quer tenha sido ou não proferida por ele, ilustra na perfeição um dos habituais ingredientes do cinema que traz a sua matriz. E a poucos filmes ela se adequa tanto como à sua primeira obra-prima dos anos 50, a primeira de muitas, numa época em que o mestre só se sentia realizado quando conseguia causar calafrios à audiência.

O Desconhecido do Norte Expresso adapta, sem o decalcar, o romance de estreia de Patricia Highsmith – escritora hitchcockiana por excelência, nascida na década em que o realizador britânico se iniciou no cinema. E conta com argumento de Raymond Chandler, génio da novela negra. Deste trio de talentosos escrutinadores dos labirintos da natureza humana só poderia irromper uma película inesquecível. E assim aconteceu.

 

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O filme diz logo ao que vem: apresenta-se sob o signo da dualidade. Há duas personagens a preencher a tela, mas não lhes vislumbramos os rostos: são-nos reveladas pelos respectivos sapatos – dois pares, portanto. É uma das mais originais cenas de abertura em toda a vasta filmografia de Hitchcock, em toda a história do cinema.

Uns sapatos são banais, como se quisessem passar despercebidos; os outros desesperam por dar nas vistas. Funcionam na perfeição como cartões de apresentação de Guy Haines, o tenista em ascensão que gostaria de trocar a esposa suburbana pela filha de um poderoso senador em Washington sem ser alvo das colunas de mexericos na imprensa, e Bruno Anthony, o diletante filho de um ricaço que sonha com o dia em que se libertará do fantasma edipiano ao herdar a fortuna do papá.

Perfeitos desconhecidos um para o outro que só o acaso de um encontro fortuito numa carruagem de comboio acabará por colocar frente a frente. E não tardaremos a distingui-los: o desportista é um aparente galanteador que usa as mulheres para trepar no elevador social; o candidato a herdeiro é um misógino dominado pela mãe, que o afasta das companhias femininas.

Um quer afugentar a sombra da mulher com quem ainda está casado, o outro ambiciona ver-se livre do pai tirano que pretende transformá-lo num homem que nunca será. Pode o crime perfeito resultar de duas motivações cruzadas, como se os assassinos trocassem de identidade e mudassem de pele?

 

Nunca o tema da ambivalência moral, a pretexto de um par de homicídios, foi exposto com tanta clareza por Hitchcock como neste seu filme que começa num ritmo deliberadamente pausado e vai acelerando de forma progressiva mas irreversível até culminar na vertiginosa sequência final, não por acaso passada num carrocel.

Quem afinal acelera toda a trama é o indolente e quem procura retardá-la é o suposto homem de acção – novamente a dualidade em cena, novamente surgindo da forma mais inesperada pela mão de um cineasta que adorava sobressaltar as plateias, abalando por imagens as sólidas certezas instaladas nos espectadores. Ao ponto de nos interrogarmos se o culpado será inocente e se o inocente será culpado.

 

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Para a perenidade desta película em que as mulheres comparecem quase só enquanto pano de fundo (e uma delas, em versão antagónica de femme fatale, é a própria filha do realizador, Patricia Hitchcock) muito contribuiu a perfeita escolha do par masculino. Farley Granger é Guy, Robert Walker é Bruno. Tão amorais ambos, cada qual à sua maneira. Mas tão diferentes como os sapatos que calçam. O primeiro tolhido pelas conveniências sociais, o outro fazendo questão em zombar delas.

Bruno parece o mais fraco, mas atenção às aparências: elas costumam iludir-nos. Reparem como ele começa por pedir um uísque duplo (a dualidade presente nos pormenores supostamente mais irrelevantes) enquanto Guy recusa qualquer bebida alcoólica. Mas o tenista não tardará a imitá-lo como insecto enredado numa teia. Bruno-aranha envolve-o e escrutina-o a um ponto que somos capazes de supor mas só ele próprio, no mais íntimo da sua consciência, poderá saber.

Neste jogo de ilusões quem parece fútil e diletante será afinal o mais forte? Hitchcock, avesso às mensagens envoltas em palavras, prefere dar-nos uma pista visual. Joga-se uma partida de ténis, as bancadas estão cheias de espectadores. Todos os pares de olhos seguem a trajectória da bola, excepto um: Bruno lança a Guy uma mirada fixa e obsessiva, como criador observando a criatura. Cena antológica de Hitchcock, o cineasta que recorria a espelhos côncavos para perscrutar a alma humana. Há várias outras nesta longa-metragem: as silhuetas projectando-se como ameaças veladas no "túnel do amor", o cigarro apagado no balão da criança, o crime que vemos cometido nos óculos partidos da vítima.

 

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Aqui a ficção entronca com a realidade. Farley Granger - tão bem escolhido para encarnar o hesitante Guy - mal se distinguia de qualquer intérprete de gama média nos estúdios de Hollywood enquanto o volátil Robert Walker era assombroso frente às câmaras, na proporção inversa das crises existenciais que o dilaceravam longe delas. O Desconhecido do Norte Expresso não teria um sopro de génio tão intenso sem a interpretação desmedida deste depressivo crónico que se entregava a cada desempenho como se fosse o último.

A biografia de certos actores é um carrocel, por vezes tão alucinado como o que gira no final deste filme capaz de esconder muito do que na aparência mostra. Walker morreu pouco mais de um mês após a estreia. Inesperada morte que talvez não surpreendesse ninguém.

Interrogo-me se naqueles instantes finais terá guardado o isqueiro de Guy como aconteceu com Bruno, tão bom a fazer de mau – a vida imitando a arte até ao derradeiro cair do pano.

 

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O Desconhecido do Norte Expresso (Strangers on a Train, 1951). De Alfred Hitchcock. Com Farley Granger, Ruth Roman, Robert Walker, Leo G. Carroll, Patricia Hitchcock.

 

Os filmes da minha vida (48)

Pedro Correia, 26.04.15

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Kay Adams (Diane Keaton) e Michael Corleone (Al Pacino) em O Padrinho (1972)

 

O MITO É O NADA QUE É TUDO:

NOS 75 ANOS DE AL PACINO

É uma das cenas mais inesquecíveis do cinema - do tempo em que o cinema ainda não havia sido destronado, como forma de expressão artística, pela excelente televisão dos nossos dias.

Ele e ela estão sentados a uma mesa. Ele acaba de vir da guerra, aparece de uniforme a conferir-lhe dimensão de herói: é Michael Corleone (Al Pacino). Ela, naquela hora irrepetível do esplendor na relva, é a noiva dele, Kay Adams (Diane Keaton).

Percebemos que o diálogo que travam terá consequências irreparáveis na vida de ambos.

 

Ela, com o sexto sentido a alertá-la para um final infeliz, despeja-lhe todo um cardápio de dúvidas - visando-o menos a ele do que ao poderoso clã familiar no qual está prestes a entrar como esposa e nora, consciente de que dará um passo do qual talvez venha a arrepender-se para sempre.

Ele, com um sopro de inocência insuflado no olhar, procura atenuar-lhe os receios com todos os recursos estilísticos de que a eloquência masculina é capaz perante uma mulher apaixonada. Assegura-lhe ser diferente dos restantes Corleones. Ilude-a ao proclamar que não foi em vão que combateu pela pátria, como o mais decente dos cidadãos faria. Faz-lhe promessas que não tardarão a ser quebradas, cumprindo um ritual atávico da velha Sicília que lhe sulca os genes.

O destino irá desmentir-lhe as palavras com precário prazo de validade, sinceras apenas no momento preciso em que são pronunciadas. Mas Kay acredita nelas. E todos nós, que assistimos àquele diálogo como testemunhas privilegiadas, acreditamos igualmente nelas. Porque a mentira em arte é verdade também.

Haja o que houver, aconteça o que acontecer, jamais esqueceremos aquele último lampejo de inocência no olhar de Michael Corleone no primeiro tomo da trilogia d' O Padrinho, realizada por Francis Ford Coppola. Um filme que vale por uma sinfonia de Beethoven, uma partitura de Brahms, um drama de Ibsen, uma tela de Goya. Do tempo em que o cinema não se envergonhava de ser arte.

 

Al Pacino é um dos raros actores que conferem genialidade interpretativa a um simples olhar. Já era assim em 1972, quando pela primeira vez deu vida e voz à figura de Michael Corleone. Sem esgares, sem truques histriónicos, sem gestos desmesurados. Aproveitando cada pausa, cada silêncio, cada momento aparentemente morto para melhor compor a personagem. Como é próprio de um grande intérprete.

E continua assim aos 75 anos, cumpridos ontem. A trabalhar. Porque um verdadeiro actor nunca se reforma. Porque um verdadeiro actor sabe melhor que ninguém como são autênticos, na pele e na carne, aqueles imortais versos de Pessoa: "O mito é o nada que é tudo".

Os filmes da minha vida (47)

Pedro Correia, 16.02.14

 

SHIRLEY TEMPLE: O TEMPO E O ESPAÇO

À minha mãe

 

"O tempo prevalece sobre o espaço", ensina o Papa Francisco. Costumo pensar que temos uma relação muito mais equívoca com o tempo do que com o espaço: à medida que os anos fluem, sentimos que os ponteiros do relógio e as folhas do calendário aceleram a sua marcha inexorável. 

Mas nem sempre foi assim. Recordo com frequência as longas tardes de meninice, que ainda chegam até mim com o cunho do infindável. Era tudo mais vagaroso então. E sempre soalheiro: não me lembro de um só dia dessa época que não me traga memórias inundadas de sol.

 

Um dos meus prazeres de infância era ver as Tardes de Cinema exibidas ao domingo, na RTP ainda a preto e branco. Nada que se pareça com a de hoje: a estação pública de televisão assumia as funções de cinemateca, proporcionando aos espectadores três ou quatro sessões semanais de clássicos da Sétima Arte.

Quando eu era miúdo, durante o período escolar, só estava autorizado a ver os filmes de domingo. Sempre tive o hábito de fazer listas -- e conservo ainda o inventário de muitas fitas que ia vendo, semana após semana. Mas das primeiras que vi em televisão, na mais remota infância, guardo apenas memórias fugidias. Não tanto das cenas dos filmes, mas da atmosfera que se respirava lá em casa.

A minha mãe, fervorosa cinéfila pertencente à geração que via matinés duplas ao fim de semana e cultivava o cineclubismo, ia-me falando das actrizes e dos actores de que mais gostava, heroínas e galãs do tempo em que ela era menina e moça. Situando-os na época em que se estrearam, narrava-me episódios relacionados com esse período. Episódios do cinema feito vida, episódios da vida feita cinema.

E, para mim, esse acabava por ser um filme dentro do filme.

"Este vi-o em Angola, num cinema ao ar livre... Ainda me lembro do que senti ao ver esta cena pela primeira vez... Os meus actores preferidos eram o Henry Fonda e o James Stewart: olhava-se para eles e percebia-se que eram pessoas em quem podíamos confiar."

 

 

 

O que seria da nossa vida sem tempo -- e sem tempo para contar histórias?

Eu ia absorvendo o que ela me contava enquanto absorvia também as imagens e as falas que me chegavam do ecrã. Vários desses filmes, nunca mais os vi: já então me pareciam muito antigos, pertencentes a uma era em que a Mãe tinha a minha idade e a Avó, mãe dela, estava grávida das minhas tias mais novas.

Shirley Temple era da geração da minha mãe: tinham apenas dois anos de diferença e criaram-se naquela década de 30 em que a menina dos caracóis alourados salvou a 20th Century Fox da ruína e deslumbrou o mundo. Quem era criança nessa década guardou para sempre a sua imagem risonha, incorporando-a naquele panteão íntimo a que remetemos todas as relíquias do passado cristalizadas num presente perpétuo.

O verdadeiro espectáculo, para mim, era ver a Mãe novamente criança revisitando aquelas fitas da Shirley Temple de que nem sequer o nome guardo. Lembro-me dela a sapatear com um mordomo negro, a descer uma enorme escadaria de mansão sulista, abraçada em lágrimas a um avô de ar bondoso. E pouco mais.

 

Com Henry Fonda e John Wayne em Forte Apache (1948)

 

Certas estrelas de Hollywood tornam-se mitos muito cedo e perduram durante décadas de vida verdadeira sempre ocultas na ilusão desse mito. Aconteceu isso com Shirley Temple, que encontrei pela última vez -- adolescente eu, adolescente ela também, com trinta e tantos anos de intervalo entre nós -- em filmes como Desde que Tu Partiste, de John Cromwell (1944) e Forte Apache, de John Ford (1948). Absurdamente jovem ainda, mas excessivamente velha para se manter fiel à imagem infantil que a indústria cinematográfica lhe reservou.

Não podia haver fugas ao guião: Shirley disse adeus ao cinema e ficou eternamente jovem no celulóide, espécie de retrato de Dorian Gray às avessas, num toque mágico de que só o cinema é capaz.

Oito décadas depois da sua fulgurante estreia em Hollywood, quando muitos de nós já a supúnhamos transformada num pedaço de eternidade, chega-nos a notícia de que a sua morte física só agora se consumou. Ela que foi contemporânea do presidente Roosevelt e conheceu o último grande sucesso de bilheteira no ano em que começou a II Guerra Mundial.

 

O tempo prevalece sobre o espaço. Quando soube da notícia regressei por momentos àquela sala, àquele pesado televisor Blaupunkt de válvulas, àquelas imagens a preto e branco, à companhia da minha mãe outra vez muito jovem ensinando-me a gostar de cinema enquanto me explicava sem explicar que um filme é sempre mais que um filme.

Ao ver a Shirley-menina, também ela voltava à meninice. E neste momento em que escrevo o miúdo sou eu só por disso me lembrar também.

Os filmes da minha vida (46)

Pedro Correia, 22.12.13
Algumas sumidades gostam de traçar fronteiras irredutíveis entre o chamado "cinema artístico" e o denominado "cinema comercial", associando em regra o primeiro às produções europeias e o segundo aos estúdios de Hollywood. Sempre nesta linha dicotómica, valorizam aquilo a que gostam de chamar "cinema de autor", ligando-o forçosamente ao realizador do filme e nunca ao produtor. E são inimigos figadais do star system, associando-o a um cortejo de futilidades.
Como em regra sucede com os rótulos, também estes são redutores. E até mistificadores. O apogeu do cinema europeu, nas três décadas que se seguiram à II Guerra Mundial, coincidiu com grandes receitas de bilheteira e teve como pilares diversos filmes que, à luz do critério adoptado pelas tais sumidades, inseriam-se nos parâmetros mais "comerciais" da Sétima Arte. Não esqueçamos que nesse mesmo período o cinema europeu -- designadamente o francês e o italiano, saído da quase mítica Cinecittà, mas também o sueco, sobretudo com Ingmar Bergman -- foi um dos maiores viveiros de vedetas de que há memória. Mesmo quando as equipas de filmagens desciam à rua, despindo-se do tradicional "artifício" associado ao cinema desde os tempos pioneiros de Georges Méliès. Mesmo quando a câmara se separava do tripé para encurtar distâncias entre ficção e realidade. Mesmo quando a voz off substituía os diálogos, em nítida aproximação da linguagem cinematográfica à literatura.
Os realizadores podiam cobrir-se de prémios em Cannes, Veneza ou Berlim. Mas o público acorria às salas ao encontro dos actores. Os italianos e os franceses, por exemplo, rivalizavam nesse tempo em popularidade com os mais credenciados ídolos norte-americanos. Acompanhados por legendas sobre a versão original ou dobrados nos mais diversos idiomas, davam a volta ao mundo propagando a linguagem do cinema. Eram (re)conhecidos pelo seu rosto e pelo seu nome em qualquer recanto do planeta. E ainda são, tantos anos e tantas modas depois: Sophia Loren, Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Alain Delon, Anita Ekberg, Raf Vallone, Brigitte Bardot, Romy Schneider, Jean-Paul Belmondo, Catherine Deneuve, Vittorio Gassman, Jacqueline Bisset.
Até a Nouvelle Vague -- paradigma do cinema "artístico" -- tinha também os seus intérpretes de culto. Actrizes que propagaram novos conceitos de beleza feminina, como Jeanne Moreau, Monica Vitti, Anna Karina, Anouk Aimée e Delphine Seyrig. Actores que passaram a ser imitados um pouco por toda a parte, como Jean-Paul Belmondo, Maurice Ronet, Jean-Louis Trintignant e Jean-Pierre Léaud. Astros de matinés, ídolos de multidões, detentores de passaporte universal.
Esses intérpretes protagonizaram cenas destinadas desde o início a figurar no nosso imaginário colectivo, geração após geração. Lembro-me sempre de uma, emblemática a vários níveis: um despreocupado Belmondo descendo os Campos Elíseos com Jean Seberg (O Acossado, de Jean-Luc Godard, 1959) nesses tempos em que todos os sonhos pareciam possíveis. Dentro e fora das telas, no cinema como na vida.

Os filmes da minha vida (45)

Pedro Correia, 22.10.13

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O SEGREDO DOS SEUS OLHOS:

VER PARA CRER

 

«Se de noite chorares pelo sol não verás as estrelas.»

Tagore

 

Um crime chocante permanece impune durante um quarto de século. Não será nenhum prodigioso detective nem nenhum superjuiz a solucioná-lo, muito depois de o processo ter prescrito, mas um banalíssimo funcionário judicial de Buenos Aires. Que, ao desvendar a autoria e o móbil daquela violação seguida de homicídio, decifra ao mesmo tempo um enigma que lhe toldou os melhores anos da existência.

Ele, que tão bem soube interpretar o significado de um olhar perturbado numa velha fotografia, funcionando como chave daquele crime, fora incapaz de perceber que noutro par de olhos, em nada relacionado com o primeiro, estava afinal o grande amor da sua vida. Um amor talvez correspondido, ao contrário do que ele sempre imaginara, tolhido pela sua eterna insegurança e por uma infindável teia de convenções sociais.

 

Há filmes que nos conquistam pelo inesperado. Aconteceu-me com este. O Segredo dos Seus Olhos, produção hispano-argentina de 2009 que viria a receber o Óscar de melhor filme estrangeiro (isto é, de língua não inglesa) no ano seguinte, cruza de forma brilhante as convenções da ficção cinematográfica, transcendendo-as.

Tem algo de filme negro, tem algo de Casablanca, tem algo do cinema político dos anos 60 e 70 cultivado por cineastas tão diferentes como Alan Pakula e Costa-Gavras. Mas não se confina às fronteiras de nenhum género.

Mais do que um policial com um enredo capaz de nos prender do princípio ao fim. Mais do que uma viagem a um tempo de trevas políticas na Argentina, capaz de se infiltrar nas ínfimas minudências de um quotidiano sem esperança. Mais do que um comovente romance, capaz de aproveitar todas as regras clássicas do melodrama para lhes dar novo fôlego e novas asas. Uma obra-prima, sem dúvida.

É um enredo que se desenrola noutro continente e noutro hemisfério, distantes dos nossos. Mas podia passar-se aqui, podia repetir-se aqui, este Benjamín Esposito de barba e gabardina (numa interpretação superlativa de Ricardo Darín) podia ser um de nós, esta Irene Menéndez Hastings, magistrada do Ministério Público, podia habitar no prédio onde vivemos. Porque não existe linguagem mais universal do que a do cinema.

 

Esta belíssima longa-metragem do argentino Juan José Campanella -- baseada no romance La Pregunta de Sus Ojos, de Eduardo Sacheri, co-autor de um "extraordinário guião sem nenhuma fissura", como bem sublinhou Carlos Boyero no El País -- tem, desde logo, o mérito de ser muito bem escrita. O que se detecta de imediato nas palavras de abertura: «O dia 21 de Junho de 1974 foi o último em que Ricardo Morales tomou o pequeno-almoço com Liliana Colotto. Lembrar-se-ia de cada pormenor dessa manhã até ao fim da vida.»

Com apenas 23 anos, recém-casada, esta atraente professora foi assassinada da forma mais bárbara. Benjamín, chamado ao local do crime, jamais esquecerá as imagens daquele corpo trucidado por uma torrente de ódio. A morte dela mudaria para sempre várias vidas. Como só muito tarde saberemos, como só demasiado tarde saberão alguns dos envolvidos. Oficialmente, tudo ficará por esclarecer. Porque há verdades que a justiça deliberadamente ignora.

Mas, mesmo quando todas as bocas se silenciam, «os olhos falam».

Ensina-nos Benjamín, comunicando com a máscara aparentemente imperturbável de Irene, sussurrando para o mais fundo de si próprio neste filme onde os diálogos se abeiram da perfeição.

Algum dia se reencontrarão antes que sobre eles se abata aquilo que há de irreversível no crepúsculo de cada destino humano?

 

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Ele, a partir de certa altura, gasta o melhor do seu tempo a mirar para trás, como se ainda redigisse autos de inquérito na decrépita Olivetti que havia perdido a letra A.

Ela atira-lhe sem rodeios, «fingindo completamente», como Fernando Pessoa tão bem fixou: «Toda a minha vida olhei em frente. Para trás não sei olhar: não é a minha jurisdição, declaro-me incompetente.»

Detemo-nos em quê quando as palavras desmentem o olhar?

Esta é a história de um amor impossível. A história de um desencontro. A história de uma fotografia. A história de um crime que permanece sem castigo -- ou pelo menos assim o imaginamos. A história de instantes irrepetíveis, capazes de mudar uma vida, qualquer vida, a minha, a tua, a daquela mulher que decide correr no último momento na plataforma da estação ferroviária, a daquele homem que a contempla a uma distância crescente do interior da carruagem.

Vi várias cenas destas no cinema -- O Segredo dos Seus Olhos é uma das mais recentes de uma nobre, vasta e fascinante linhagem de filmes com momentos decisivos passados em comboios (aqui fica a sugestão de um ciclo temático para a Cinemateca de Lisboa).

 

Por vezes só um desencontro permite reencontrar-nos connosco próprios. E decifrar todos os enigmas, não da tela mas da vida. Vendo uma velha fotografia, desvendando o véu da esfinge que se abriga na memória de um olhar.

E podemos então interrogar-nos, à semelhança do que ele disse enfim para ela: «Como se pode viver uma vida vazia? Como se pode viver uma vida cheia de nada?»

Com o comboio a acelerar, o contorno das figuras diminuindo na razão inversa do aumento da distância, uma existência em fragmentos prestes a dissolver-se no horizonte.

 

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O Segredo dos Seus Olhos (El Secreto de Sus Ojos, 2009). De Juan José Campanella. Com Ricardo Darín, Soledad Villamil, Guillermo Francella, Pablo Rago, Javier Godino, Mario Alarcón, Mariano Argento.

 

Os filmes da minha vida (44)

Pedro Correia, 17.08.13

 

YOU'RE JUST TOO GOOD TO BE TRUE

 

Cada geração tem os seus ícones. Na política, no desporto, na cultura, no espectáculo - a idolatria saudável é sinal de pertença a um tempo e um espaço partilhados por uma vasta tribo que nos irmana a milhões de seres humanos e deixa um rasto imperecível.

Também no cinema, como sucede com tanta gente, tenho os meus ídolos e heróis. Poucos, no entanto, nos deixam marcas tão profundas como aqueles que primeiro nos impressionaram no sortilégio da sala escura subitamente iluminada pelas imagens acesas na grande tela.

E, de todos esses, pela circunstância de ter interpretado em poucos anos um punhado de películas que o impulsionaram muito cedo para o Olimpo dos imprescindíveis da Sétima Arte, destaca-se Robert de Niro.

O actor por excelência.

Camaleónico, visceral, com cada gesto e cada esgar arrancados das profundezas da alma, ultrapassando os demais em excelência, capaz de transformar uma produção mediana numa obra de arte partilhada com assombro sempre renovado nas mais diversas latitudes e pelas mais diversas gerações.

 

Vi-o muito novo, quase desde o início. Já se detectavam lampejos do seu génio naquele agonizante jogador de beisebol (Toca o Tambor Devagar, John Hancock, 1973) ou encarnando o papel de Johnny Boy, um dos "cavaleiros do asfalto" de Little Italy, em Manhattan, homens que nunca foram meninos (Mean Streets, Martin Scorsese, 1973).

Brian de Palma, o primeiro cineasta que o dirigiu - em Greetings, nesse já tão distante ano de 1968 - disse dele as palavras certas: "Tem uma habilidade notável não só para se transformar na personagem que interpreta mas para alterar o seu próprio aspecto físico." Truman Capote chamava-lhe "homem fantasma" ao pressenti-lo irreconhecível de filme para filme. Um atributo só possível, neste actor formado na exigente escola de Lee Strasberg, pela entrega total e sem medida a cada papel.

Como se fosse sempre o primeiro. Ou o último.

Engordou 30 quilos para interpretar um pugilista. Aprendeu a tocar saxofone para se transfigurar em músico de uma big band da década de 40. Aprendeu o dialecto siciliano para entrar na pele de um membro da Mafia e latim para desempenhar o papel de um padre. Conduziu um táxi durante um mês nos dédalos de Nova Iorque antes de começar a rodar Taxi Driver. Passou seis semanas numa vila mineira para aperfeiçoar a personagem principal d' O Caçador.

Dele disseram ser maníaco, perfeccionista, exigente, obsessivo, excêntrico.

Estavam certos os que falavam assim, nem que fossem movidos pelo despeito e pela inveja. Sem essa sua entrega quase demencial a cada papel a história do cinema naquela década prodigiosa entre meados dos anos 70 e meados dos anos 80 não teria sido o que foi. Uma década em que ele ganhou (em 1975 e 1981) dois justíssimos Óscares destinados a premiar o seu talento interpretativo. Mas sobretudo uma década que o projectou para a galeria dos imortais com um conjunto de papéis destinados a figurar desde logo na história do cinema - e a cruzar-se com as banalíssimas histórias pessoais de anónimos espectadores como vocês e eu, que para sempre ficámos ligados às suas melhores criações no ecrã, património insubstituível da nossa memória colectiva.

 

O Vito Corleone d' O Padrinho II (Francis Ford Coppola, 1974). O Travis Bickle de Taxi Driver (Scorsese, 1976). O torturado produtor cinematográfico numa Hollywood faustosa e crepuscular (O Último Magnata, Elia Kazan, 1976). O saxofonista Jimmy Doyle - feliz na música, infeliz no amor (New York, New York, Scorsese, 1977). Michael Vronsky, O Caçador (Michael Cimino, 1978). Jake LaMotta, O Touro Enraivecido (Scorsese, 1980). Rupert Pupkin, d' O Rei da Comédia (Scorsese, 1983). O velho gangster revisitando um passado indizível (Era uma vez na América, Sergio Leone, 1984). Al Capone (Os Intocáveis, De Palma, 1987).

Fragmentos decisivos da carreira dele, fragmentos da vida de todos nós. Que se foram prolongando, com intervalos mais acentuados, em filmes como Heat (Michael Mann, 1995), Casino (Scorsese, 1995) e Ronin (John Frankenheimer, 1998).  E também num par de longas-metragens em que De Niro demonstrou não ser apenas bom a representar: é também bom a dirigir filmes. A prova está evidente nos dois títulos da sua cinematografia enquanto realizador: Um Bairro em Nova Iorque (1993) e O Bom Pastor (2006).

 

Já este ano, regressou em excelente forma ao nosso convívio num filme de que gostei muito: Guia para um Final Feliz (David O. Russell, 2012). Interpretando Pat Solitano, pai de um filho bipolar. Com a intensidade e a vibração de sempre.

Foi nomeado para um Óscar que não ganhou. Mas devolveu-nos o privilégio renovado de vermos em estreia um filme com este actor gigante no cartaz.

Robert de Niro, que hoje festeja 70 anos. You're just too good to be true.

 

 

Imagens, de cima para baixo: De Niro em O Último Magnata (1976); capa da Newsweek sobre New York, New York (1977); fotograma do filme O Toiro Enraivecido (1980)

Os filmes da minha vida (43)

Pedro Correia, 29.05.13

 

LAWRENCE DA ARÁBIA:

DO SOL ÀS SOMBRAS

 

«O deserto é um oceano onde remo algum se enterra.»

Alcorão

 

Há filmes que facilmente se associam a outros. E há filmes que não se parecem com nenhum outro. É este o caso do deslumbrante Lawrence da Arábia, que David Lean rodou durante mais de um ano em quatro países (Reino Unido, Espanha, Marrocos e Jordânia), por vezes sob um sol inclemente, quase insuportável, que chegou a originar queimaduras na pele de alguns actores.

Nenhum filme é confundível com este porque a personagem central aqui é o deserto e a magia que dele emana vai-nos guiando de cena em cena ao som da hipnótica partitura de Maurice Jarre. Desde o plano-sequência - um dos mais famosos da história do cinema - que começa na chama do fósforo nos dedos de Lawrence e se prolonga pelo sol que começa a elevar-se, como bola em chamas, iluminando a vastidão das areias arábicas em alegoria à primeira aurora do mundo.

T. E. Lawrence, já então conhecido por Lawrence da Arábia, explicará mais adiante a Bentley, o jornalista americano que ali fora em busca de um herói para as manchetes do seu jornal, por que motivo o deserto tanto o atraía. "Por ser limpo", foi a definição, sucinta e exacta. Esse deserto limpo é o que vemos na primeira parte do filme - aquela em que Lawrence, filho bastardo, ignorado pelo pai e decepcionado com a família de substituição que procurou encontrar nas burocráticas fileiras militares, abraça enfim como se fosse sangue do seu sangue. As jornadas de sol a sol no Sinai e na Península Arábica são um banho lustral para este europeu sem raízes que se sente filho do deserto e irmão das tribos beduínas.

É um filme de 216 minutos - para ser visto em cinema e não em televisão - sem mulheres onde imperam os códigos masculinos e longos momentos de silêncio apenas entrecortados de diálogos lacónicos e sulcados de entrelinhas num cenário em que um poço de água valia mais do que uma vida humana. Em plena I Guerra Mundial, quando britânicos e turcos se confrontavam pelo domínio do Médio Oriente e o nacionalismo árabe emergia enfim de um sono de 900 anos, pelo impensável braço de um inglês pálido e louro que trocara a farda de caqui pelas vestes de beduíno: "Aquele para quem nada está escrito pode escolher a sua tribo."

 

David Lean designou para protagonista o actor perfeito: Peter O'Toole tem aqui o seu primeiro papel de relevo no cinema - e também o seu melhor papel de sempre. Como se tivesse nascido para interpretar Lawrence em cada palavra, em cada silêncio, em cada gesto, em cada olhar. A Academia de Hollywood, que em 1963 viria a inundar este filme de estatuetas, foi incapaz de reconhecer o talento ímpar desta interpretação, preferindo conceder o Óscar ao desempenho esforçado mas mediano de Gregory Peck em Na Sombra e no Silêncio, politicamente mais correcto mas artisticamente incomparável a Lawrence da Arábia, o filme que Steven Spielberg viu ainda adolescente e o impressionou ao ponto de nesse mesmo dia ter jurado tornar-se cineasta.

"Nada está escrito", como se repete ao longo do filme. A escolha de O'Toole resultou de um golpe do acaso, após as recusas de Marlon Brando (que preferiu filmar A Revolta na Bounty nas ilhas do Pacífico) e Albert Finney: nenhum destes astros já então consagrados no cinema teria certamente a capacidade revelada pelo desconhecido O'Toole de se entregar de forma tão credível, convincente e quase demencial a este desempenho, como se fosse o último da sua vida.

Da excelente galeria de secundários há que destacar Omar Sharif (num papel que também o tornou célebre e o projectaria para protagonista de Doutor Jivago, o filme seguinte de Lean), Anthony Quinn, Alec Guinness e Claude Rains, o inesquecível capitão Renault de Casablanca que funciona aqui como um traço subliminar a unir duas obras-primas do cinema.

 

Este é um fascinante filme sobre poder, guerra e solidão. Mas é sobretudo um filme sobre a relação umbilical entre o homem e a natureza. Um filme onde, à medida que as imagem progridem - em movimentos de câmara que evoluem sempre da esquerda para a direita, ditados pelo perfeccionismo do realizador britânico -, as sombras vão ganhando terreno ao sol.

Sucedem-se as batalhas, cada vez mais violentas, cada vez mais sangrentas: a conquista de Ácaba aos turcos, o massacre de Tafas, a dilacerante queda de Damasco sem ser alcançada a unidade política entre os árabes que Lawrence sonhou. De permeio acontece a sua captura pelos turcos, que o sujeitam a sevícias que não vemos mas imaginamos.

"Só beduínos e deuses conseguem divertir-se no deserto", avisara-o a tempo Rains (no papel de Dryden, político entre militares no quartel-general do Cairo, filmado na bem reconhecível Praça de Espanha em Sevilha). Lawrence não lhe dá ouvidos: nada está escrito, ele quer cumprir aquilo por que anseia nas rotas da nação árabe. Superando-se a si próprio com a mesma tenacidade que o levara a tentar expurgar indizíveis dramas íntimos ao prestar-se a inúmeras provas que envolviam dor física. "Neste país, o homem que proporciona vitórias nas batalhas é mais valorizado do que qualquer outro", diz o Rei Faiçal ao jornalista americano.

Lawrence sagrar-se-á vencedor aos olhos dos outros: Bentley encontrara o herói de que precisa para vender jornais. Mas sente-se derrotado, pois sabe que é incapaz de vencer os seus próprios traumas.

Não voltará a ser o mesmo. Nem nunca mais voltará a ver o deserto com os mesmos olhos. Chegara em busca de purificação, sai de lá mais conspurcado - não com sede de água, mas de sangue, clamando por uma vingança ancestral que o torna incapaz de se aquietar em lugar algum. Home é, sintomaticamente, a última palavra deste filme. O lar que Lawrence procura e jamais encontrará.

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Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962). De David Lean. Com Peter O'Toole, Omar Sharif, Alec Guinness, Anthony Quinn, Jack Hawkins. José Ferrer, Anthony Quayle, Claude Rains, Arthur Kennedy.

 

'Taxi Driver': no coração das trevas

Pedro Correia, 05.04.13

 

Qual é a diferença entre um vilão e um herói num mundo onde todas as barreiras morais foram transpostas e as tradicionais fronteiras entre o bem e o mal estão diluídas? Esta é a pergunta-chave de Taxi Driver, um filme que não cessa de nos perseguir noite fora, anos fora. Vê-lo uma vez é vê-lo para sempre: jamais nos libertaremos daquela atmosfera viscosa de Nova Iorque, daquelas ruas onde se exibe a devassidão, daqueles vidros embaciados que nos transmitem a imagem de uma cidade que é a antítese perfeita de um bilhete postal.

Viajamos num táxi conduzido por Travis Bickle, ex-veterano de guerra que combate a insónia de mãos no volante enquanto anseia por um dilúvio que "lave toda a porcaria das ruas". Nunca Nova Iorque pareceu tão irreal como neste filme só aparentemente realista: porque afinal a vemos sempre pelo olhar desfocado deste ex-fuzileiro de 26 anos que guia sem destino ao som da banda sonora de Bernard Herrmann - o compositor de Alfred Hitchcock -, falecido horas depois de concluir esta magnífica partitura que lhe serviu de testamento.

"Não consigo dormir", diz o taxi driver que Robert de Niro interpreta com uma intensidade quase dolorosa, como se fosse o último papel da sua vida. Perguntam-lhe por habilitações literárias. "Algumas." Tem a folha limpa? "Tão limpa como a minha consciência." Horário? Qualquer serve: das seis da tarde às seis da manhã, "às vezes até às oito". Seis dias por semana, "às vezes sete". A noite funciona como cenário quase exclusivo desta espécie de western urbano a que só a fugaz aparição luminosa de Betsy (Cybill Shepherd) confere um toque de claridade. Travis vê-a vestida de branco, "pura como um anjo", na sede de campanha do senador Charles Palantine, candidato à Casa Branca com o demagógico slogan "Nós somos o povo". Ele acabará por ser um dos seus passageiros ocasionais. "Aprendi mais sobre este país a andar de táxi do que em todas as limusinas", garante Palantine, que há-de conseguir a nomeação. Passageiro bem diferente é o marido enganado, interpretado pelo próprio realizador, Martin Scorsese, noutro momento inesquecível deste filme: fá-lo estacionar à porta de um prédio onde está a mulher, que o trai "com um preto", e revela que há-de matá-la com uma Magnum 44. "Esgoto a céu aberto", a Nova Iorque de Taxi Driver.

 

Outro motorista, mais cínico e mais sábio, dá-lhe uma saraivada de bons conselhos: "Sai, embebeda-te, leva uma mulher para a cama. Não te rales tanto. Descontrai." Mas este é um idioma estranho a Travis, que deixou uma parte de si mesmo no Vietname e conserva apenas uma memória distante dos pais, a quem envia um lacónico postal sem remetente, esquecido já das datas de todos os aniversários.

Nós vamos com ele, vendo os néons faiscar à nossa volta na cidade que nunca dorme. É uma viagem ao coração das trevas, onde não se vislumbra o povo do demagogo Balantine: só "chulos, drogados, prostitutas, travestis", exploradores de carne humana. Travis Bickle, "misto de São Paulo e Charles Manson" (a definição é do próprio Scorsese), vê ali, quarteirão após quarteirão, o sucedâneo dos vietcong que não conseguiu vencer na selva da Indochina. Rapa o cabelo, arma-se até aos dentes, mergulha numa orgia de violência contra uma guerrilha imaginária, confundindo as ruas do Bronx com o trilho de Ho Chi Minh. Reserva a última bala para si próprio, mas por um capricho do acaso a arma não dispara.

É quanto basta para a imprensa o proclamar herói: ganha direito aos 15 minutos de fama que nunca ambicionou. "Os jornais têm a mania de exagerar", diz para Betsy na última vez que falam antes do desencontro definitivo. Taxi Driver jamais poderia ter um happy ending: este é o mais inclemente, perturbante e devastador filme que conheço sobre a solidão e a absoluta impossibilidade de se ser feliz.

 

Texto reeditado para assinalar a reposição deste filme em versão digital restaurada no Corte Inglés (Lisboa) e no Arrabida 20 (Gaia). Um dos acontecimentos cinematográficos do ano.

Os filmes da minha vida (42)

Pedro Correia, 13.01.13

 

QUANDO A CIDADE DORME:

CONDENADOS AO FRACASSO

As imagens iniciais dizem tudo: ruas vazias ao fim de uma desoladora madrugada numa cidade com ar inóspito e ainda não tingida por qualquer raio de sol - sensação de vazio irremediável. Vê-se um carro de patrulha da polícia e um homem solitário, em fuga. Tudo a preto e branco.

Quando a Cidade Dorme - The Asphalt Jungle, no original - inicia-se em estilo de reportagem, com o espectador a observar à distância. Sabemos sem demora que é uma história de gente do mundo do crime, baseada numa novela de W. R. Burnett, mestre de policiais de série B que forneceu muitos originais ao cinema - desde logo O Pequeno César, o papel que deu fama mundial a Edward G. Robinson.

Mas atenção: aqui nem só os marginais são criminosos - as teias da ilegalidade contaminam tudo, mergulhámos numa autêntica cidade viscosa (título português de outro filme de John Huston, bastante mais tardio). Há um advogado corrupto - Alonzo Emmerich, que trai a mulher, o código ético, as leis, as convenções sociais e os próprios marginais a quem se associa. Há o polícia corrupto - o tenente Ditrich, que saca dinheiro aos cabecilhas das redes de apostas clandestinas. Há o detective corrupto - Bob Brannom, antítese dos anti-heróis do género, que não se deixavam contaminar pelos circuitos do crime.

A podridão é tão vasta que, por comparação, não tardamos a simpatizar com o rudimentar grupo de assaltantes de uma joalharia, condenados ao fracasso desde o início: o italiano com o filho doente; Gus, o dono do café decrépito que nasceu fadado para o azar ("todos dizem que tenho mau olhado, nasci assim"); Dix Hanley, filho de uma família outrora próspera do Kentucky que perdeu as propriedades durante a Grande Depressão e sonha com o dia em que as recuperará. "A minha sorte há-de mudar", confessa ele a Doll, a mulher que nada mais tem do que amor para lhe dar: também ela se tornou uma falhada nas mil voltas que dá a vida.

 

Eis o motivo por que gosto tanto dos filmes de John Huston: são histórias de gente que fracassa, de pessoas desamparadas da sorte, que tudo tentam para afinal nada alcançarem - como os garimpeiros d'O Tesouro da Sierra Madre, os solitários cowboys urbanos d'Os Inadaptados ou o cônsul consumido pelo álcool e por uma paixão impossível na brilhante adaptação homónima para a Sétima Arte daquele que é talvez o mais belo de todos os romances - Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry.

E para que a vida imite o cinema, eis aqui também Marilyn Monroe, infeliz entre as infelizes em Hollywood, num dos seus primeiros papéis no celulóide ainda sem direito a nome na ficha técnica mas já com aquele brilho radioso que a marcou - tão intenso e tão fugaz. Ela é Angela, a amante de Emmerich, a quem trata por "tio" e sonha com viagens que nunca fará.

Nada resulta aqui, todos os planos falham. Por um lapso fortuito. Por uma bala de raspão. Pelos dois minutos que o cabecilha da improvisada quadrilha - Doc Riedenschneider, num excelente desempenho de Sam Jaffe que lhe valeu merecida nomeação para o Óscar de melhor actor secundário - perdeu a contemplar uma mulher, quando fugia com o produto do roubo.

A originalidade desta película, mil vez imitada, é construir-se por inteiro sob a óptica dos ladrões - nunca dos polícias ou de algum detective cínico mas respeitador da lei, como sucede em tantos outros títulos célebres do film noir, género de eleição dos cinéfilos mais fervorosos.

 

 

Dix não recuperará a quinta apesar da fuga desesperada, já ferido de morte, rumo ao seu Kentucky natal, como se procurasse recuperar enfim a inocência perdida. Cravelli, o italiano que também acaba mal, bem avisara: "Se quiser ar puro, não o procure nesta cidade."

Os pequenos delinquentes vivem e morrem enquanto a grande delinquência permanece irredimível, inalcançável, nessa penumbra que assinala a fronteira entre a noite que já foi e o dia que ainda não nasceu.

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Quando a Cidade Dorme (The Asphalt Jungle, 1950). De John Huston. Com Sterling Heyden, Louis Calhern, Jean Hague, James Whitmore, Sam Jaffe, John McIntire.

Os filmes da minha vida (41)

Pedro Correia, 03.01.13

 

OS VERDES ANOS:

A LISBOA QUE MUDA NA LISBOA QUE FICA

 

Não houve um filme como este, não haverá um filme como este. Revisito-o a pretexto da recente morte de Paulo Rocha e confirmo a opinião de sempre: há aqui um enlace admirável entre imagem e som, com os acordes sofridos de Carlos Paredes a sublinhar este drama de gente desenraizada nos dédalos de uma cidade que se reinventava naqueles dias de ilusória quietação pressagiando tempos de turbulência.

É um filme que bebe inspiração sobretudo no cinema italiano que lhe era contemporâneo. Há aqui muito Antonioni, há aqui muito do inesquecível início da Dolce Vita, com uma imagem de Cristo a sobrevoar de helicóptero os novos subúrbios de Roma, espécie de sorridente alegoria ao milagre económico italiano.

Era um cinema de intervenção, certamente. Mas muito mais no plano estético do que no plano político. Era um cinema que olhava com veneração para a arquitectura e acreditava com sinceridade que os arquitectos eram os novos profetas da modernidade, capazes de - com as suas linhas ousadas e arrojadas - abraçar o futuro e edificar os alicerces de uma sociedade diferente, habitada pelo homem novo.
Utopias urbanísticas tornadas pouco antes realidade, como sucedeu com a Brasília de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, conduziam a isso. Daí a veneração quase infantil que Paulo Rocha demonstra pela arquitectura, pondo as suas personagens a deambular constantemente pelos espaços mais modernos da Lisboa daquele início da década de 60 - Avenida dos EUA, Avenida de Roma, Cidade Universitária...

 

Como se viu depois, a arquitectura serve para muito mas não para moldar o homem novo, que aliás permanecerá eternamente por criar. E a vanguarda de anteontem torna-se rapidamente uma obsoleta mercadoria académica aos olhos dos que nascem depois de amanhã.
O Cinema Novo tornou-se rapidamente prisioneiro das suas contradições, abraçando um neo-realismo tardio (em obras como Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes, e A Promessa, de António de Macedo), quase sempre a preto e branco, como metáfora permanente de um regime que parecia imutável mas que se tornou também espelho de fronteiras artísticas demasiado estreitas.

Derrubado o regime, também de algum modo os seus opositores no campo artístico se tornaram anacrónicos. O fabuloso Berlamino (1964) escapa a esta sina porque recusou logo à partida encerrar-se naquela tendência de contrapor ao miserabilismo da ditadura uma linguagem artística também tocada pelo miserabilismo de circunstância.

 


Os Verdes Anos, com as suas evidentes fragilidades, interessa-me hoje sobretudo pela sua vertente documental. Era um cinema feito na rua, que recusava o estúdio, também por inspiração italiana - e este filme, que constitui uma declaração de amor a Lisboa, acaba por ter portanto as rugas que a própria cidade ostenta. Neste aspecto, como noutros, diremos que a arte imita a vida...
Ainda há dias passei pela oficina de sapateiro do Raul/Rui Furtado, naquela cave situada mesmo ao lado da Suprema: tudo tal e qual como vem no filme. Excepto que a fresta, hoje gradeada, já não está aberta à rua. Ou o Vá Vá, onde decorre a cena final: está praticamente na mesma. Inversamente, a Floresta do Ginjal, que bem conheci na outra banda e era local de romaria gastronómica ao fim de semana, está há muito encerrada - sintoma de incompreensível decadência numa localização privilegiada, onde se obtêm as melhores vistas sobre a capital.
O filme confirma que, por detrás de uma Lisboa que muda, há uma Lisboa que permanece. Outros, antes dele, fizeram o mesmo - mas talvez nenhum com a transparência e a admirável sinceridade deste. Ao som hipnótico da guitarra de Paredes e revendo para sempre o belo rosto de Ilda/Isabel Ruth, em eterno desafio às inclemências do tempo com um fulgor que só a magia do cinema dá.

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Os Verdes Anos (1963). De Paulo Rocha. Com Rui Gomes, Isabel Ruth, Rui Furtado, Paulo Renato, Carlos José Teixeira.

Os filmes da minha vida (40)

Pedro Correia, 19.06.12

 

A TROCA:

TODA A DOR DO MUNDO NUM OLHAR

Christine Collins existiu realmente. Mas não é isso que interessa. O importante é registar o seguinte: Christine Collins é já uma personagem fundamental na Sétima Arte. Clint Eastwood, no seu filme A Troca, elaborou um dos melhores retratos femininos das últimas décadas no cinema americano. Dando a Angelina Jolie, protagonista desta película inesquecível, o papel da sua vida.

Nas mãos de outro cineasta, A Troca não passaria de um docudrama banal, puxando à lágrima fácil, semeado de rodriguinhos. Eastwood, no seu classicismo depurado, segue o percurso oposto: expurga o filme de qualquer indício de ganga televisiva, centrando-o no retrato psicológico de uma mulher. O olhar, as dúvidas, a angústia, a contenção, a febre, as palavras e o silêncio de uma mulher confrontada com o pior dos cenários: o rapto de um filho.

Há uma banda sonora fabulosa – composta pelo próprio Clint Eastwood – a sublinhar o percurso desta mulher que viu a vida soçobrar por um inesperado capricho do destino. Desde os primeiros acordes, que acompanham as imagens de uma Los Angeles a preto e branco, num recuo temporal de oito décadas, pressentimos que esta toada musical, repassada de uma infinita melancolia, jamais nos abandonará até ao fim do filme. E mesmo depois de as luzes se acenderem permanecerá connosco. Porque o drama que abalou Christine Collins podia suceder a um de nós – é algo que acontece demasiadas vezes nos labirintos das nossas ruas.

Macabra ironia: tudo se passa na Cidade dos Anjos – Los Angeles, afinal habitada por mil demónios, incluindo as forças da ‘autoridade’, que utilizam métodos idênticos às corporações do crime. Questionar estes métodos, na América da Lei Seca e de Calvin Coolidge, poderia ser um passaporte para uma clínica de doentes mentais – cenário kafkiano caucionado por psiquiatras sem escrúpulos.

Christine passa por tudo isto – e muito mais. Vêmo-la sempre sob um intenso foco luminoso que contrasta com as superfícies negras que lhe emolduram o rosto quase imaterial. Eastwood dirige um verdadeiro bailado de luzes e sombras nas cenas capitais deste filme modelar, herdeiro directo do realismo crepuscular das velhas fitas da Warner Brothers. Tudo nos fala desse tempo irrepetível – automóveis, carros eléctricos, chapéus e penteados, numa irrepreensível reconstituição de época.

Mas o essencial do filme é Angelina Jolie, aliás Christine Collins, mulher que nunca voltará a ter um sono tranquilo na sua vida, assombrada pelo maior dos pesadelos. Despedimo-nos dela quando o filme acaba. Mas é uma despedida vã: o seu rosto dorido, trespassado de uma tristeza sem fim, há-de acompanhar-nos para sempre, como o de Ingrid Bergman em Casablanca. E continuamente nos interrogaremos como é possível concentrar toda a dor do mundo naquele olhar.

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A Troca (The Changeling, 2008). De Clint Eastwood. Com Angelina Jolie, John Malkovich, Riki Lindhome, Jeffrey Donovan.

Os filmes da minha vida (39)

Pedro Correia, 31.03.12

 

O PADRINHO:

O CRIME ELEVADO A OBRA DE ARTE

 

Pauline Kael chamou-lhe "uma visão épica da corrupção da América": O Padrinho estreou-se há 40 anos, com aplauso simultâneo do público e da crítica, mantendo hoje o estatuto de obra-prima que adquiriu logo de início. Vincent Canby, no New York Times, foi certeiro na crítica de estreia ao definir este filme como "uma das mais brutais e tocantes crónicas do crime na vida americana desde sempre concebidas na esfera da cultura popular".

A interpretação de Marlon Brando, com os seus tiques adequados à figura de Vito Corleone, integrou-se na iconografia contemporânea, tal como a frase "vou fazer-lhe uma proposta que ele não pode recusar" - uma das mais célebres de toda a história do cinema - ou cenas como a da cabeça de cavalo, que valeu indignadas críticas ao realizador da parte de activistas dos direitos dos animais aparentemente indiferentes, por outro lado, à morte de mais de 30 personagens durante esta longa-metragem, que dura 178 minutos.

Aquela que deveria ser uma rotineira e banal fita de gangsters eleva-se ao estatuto reservado às óperas de Verdi graças a um jovem cineasta contratado em 1971 pelo patrão da Paramount, Robert Evans, que pretendia alguém que "pusesse cheiro a esparguete" no filme. Esse cineasta, Francis Ford Coppola, acabou por ser escolhido fundamentalmente pela sua condição de italo-americano depois das recusas de realizadores consagrados, como Arthur Penn e Peter Yates.

Não podia ter havido escolha mais acertada: Coppola filmou O Padrinho com o requinte de um virtuoso do espectáculo visual, contando com as colaborações modelares de profissionais como Gordon Willis, responsável pela extraordinária fotografia em que predominam deliberadamente tons escuros e frios, e Nino Rota, autor da inesquecível banda sonora que logo passou a ser trauteada no mundo inteiro. A sua determinação ficou bem evidente no vitorioso braço de ferro que manteve com Evans para a escolha de Marlon Brando no papel de Corleone numa altura em que nenhum magnata do cinema queria ouvir falar no intérprete de Há Lodo no Cais, famoso por ganhar muito e trabalhar pouco.

Mas Brando, que precisava de dinheiro, esforçou-se ao ponto de aceitar submeter-se pela primeira vez a um teste cinematográfico. A história desse teste - que levou o relutante Evans a confiar-lhe o papel principal do filme - entrou também na lenda de Hollywood: o actor (que viria a ganhar o Óscar) apareceu quase irreconhecível, com o cabelo escurecido com graxa para sapatos e as bochechas insufladas com lenços de papel.

Vários outros nomes sonantes do cinema americano chegaram a ser considerados para o papel de Corleone - de Edward G. Robinson a Ernest Borgnine, de Laurence Olivier a Orson Welles. Mas a interpretação de Brando é sem dúvida indissociável do êxito d' O Padrinho, que contou com vários outros desempenhos de grande nível - desde logo James Caan, Robert Duvall e o quase desconhecido Al Pacino, todos nomeados para o Óscar de melhor actor secundário.

Coppola filmou propositadamente à moda antiga, recorrendo à técnica em vigor nos anos 40 e 50, em que a acção decorre - um tempo em que o cinema americano praticamente não utilizava o zoom nem recorria por sistema a planos de corte sincopados nas mesas de montagem. Este virtuosismo técnico faz parte da magia intemporal d' O Padrinho, um filme sobre mafiosos onde a palavra Mafia nunca é proferida. Um filme que pertence ao imaginário de todos nós.

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O Padrinho (The Godfather, 1972). Realizador: Francis Ford Coppola. Principais intérpretes: Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Richard Castellano, Robert Duvall, Sterling Hayden, Diane Keaton, John Cazale, Talia Shire.

Os filmes da minha vida (38)

Pedro Correia, 17.01.12

 

E TUDO O VENTO LEVOU:

AMAR OU ODIAR, OU TUDO OU NADA

 

"Uma pequena história narrada numa escala épica." A definição é de Barry Norman, um dos mais prestigiados críticos de cinema britânicos, e parece a que melhor capta a essência deste filme desmesurado, que transcende todos os padrões do cinema conhecido no final da década de 30, e de algum modo antecipou tendências: E Tudo o Vento Levou funciona como raiz ancestral de todas as ficções telenovelescas que se tornaram uma maçadora banalidade dos nossos dias. A receita não voltou a pegar. Reveja-se O Gigante (George Stevens, 1956), por exemplo: não há comparação possível.

A diferença reside no carácter pioneiro desta ficção que pretende celebrar os "valores" sulistas dos EUA totalmente ao arrepio da torrente da história na América progressista de Franklin Roosevelt: há um certo charme neste assumido anacronismo. E é também uma questão de escala: tudo foi concebido em grande pelo produtor do filme, David O. Selznick -- megalómano, ególatra, dotado de uma tenacidade quase lendária, produtor ímpar da era de ouro do cinema norte-americano.

Selznick só sabia mesmo pensar em grande. Para ele, mais era sempre sinónimo de melhor: nunca se contentou em ficar a meio caminho. Reuniu a maior equipa técnica, o maior naipe de figurantes, o maior número de estrelas. Conseguiu o maior número de nomeações (onze, obtendo um total de oito estatuetas) para os Óscares de Hollywood. E sobretudo alcançou a maior receita de bilheteira: se actualizarmos o valor da inflação, E Tudo o Vento Levou foi provavelmente o maior campeão de bilheteira de todos os tempos.

O génio empresarial de Selznick ficou logo patente nessa brilhante jogada publicitária que foi a escolha do elenco para o filme, estreado no cinema Fox, em Atlanta, a 15 de Dezembro de 1939. Todas as actrizes conceituadas da época e muitas aspirantes ao estrelato, de uma forma ou outra, manifestaram interesse em conseguir o papel principal, o de Scarlett O' Hara. A lista, para não variar neste empreendimento, era quilométrica: Bette Davis, Katharine Hepburn, Joan Crawford, Paulette Goddard, Joan Bennett, Greer Garson, Norma Shearer, Loretta Young, Lana Turner, Irene Dunne, Ida Lupino, Barbara Stanwyck, Jean Arthur, Miriam Hopkins, Talluah Bankhead, Carole Lombard, Anita Louise, Ann Sheridan, Claudette Colbert, Susan Hayward, Margaret Sullavan, Frances Dee, Catherine Campbell. Um megaconcurso de testes cinematográficos que acabou por servir de rampa de lançamento para a fama de uma britânica de 25 anos, em início de carreira. Chamava-se Vivien Leigh.

 

Sem ela, E Tudo o Vento Levou não seria o que foi. Não seria o que é. Se compararmos o cinema às grandes criações literárias, a Scarlett de celulóide equivale a uma das grandes personagens romanescas de que há memória. Com a sua força de carácter, a sua vivacidade, o seu apego tenaz aos valores familiares, à herança do sangue, aos vínculos afectivos à terra-mãe. Numa das cenas mais marcantes do filme, o pai de Scarlett, Gerald O' Hara (grande interpretação de Thomas Mitchell, um dos secundários mais talentosos de Hollywood), diz-lhe: "A terra é a única coisa do mundo por que vale a pena lutar ou morrer."

Ela faz desta frase um lema de vida. E remete tudo o resto a um plano inferior, fiel ao juramento que fará mais tarde: "Deus é testemunha que não deixarei ninguém derrotar-me." Indiferente aos ventos da história, que sopram implacáveis contra o orgulhoso Sul tão bem descrito pelo capitão Rhett Butler (Clark Gable) em vésperas da eclosão da guerra civil norte-americana: os sulistas, sublinha ele, "só têm palavras, escravos e arrogância".

Guerra e amor, os dois maiores condimentos do cinema clássico, estão presentes em Gone With the Wind. Mas o que mais prende a atenção do espectador, num filme que tem largas dezenas de personagens, é o destino de um quarteto: Scarlett, Rhett, Melanie (Olivia de Havilland) e Ashley. Personagens convictas, cada qual a seu modo, de que aquela guerra significaria "o fim do nosso mundo", como um angustiado Ashley (Leslie Howard) diz à sua apaixonada Scarlett em vésperas da mobilização geral no Sul. Ironias do destino: no momento em que o filme estreou, também na vida real se travava uma guerra que mudaria para sempre a face do mundo. E o britânico Leslie Howard estaria envolvido nela, como agente de Churchill, acabando por ser abatido em 1943, num voo entre Lisboa e Bristol, pela aviação nazi.

 

Selznick, um homem que gostava de mulheres, estava certo: sem o fabuloso desempenho de Vivien Leigh, E Tudo o Vento Levou seria quase uma ficção banal. A belíssima britânica faz toda a diferença em cada cena da longa-metragem, transmitindo-lhe uma autenticidade quase inigualável na história do cinema. Não foi por acaso que recebeu o Óscar, suplantando os colegas do sexo masculino: Howard parece sempre um pouco deslocado neste filme e Gable limita-se a fazer o papel de... Gable.

Vivien só encontra aqui duas competidoras à altura do seu talento. Ambas negras, ambas vítimas do racismo sulista que não as deixou brilhar na memorável estreia de Atlanta: Hattie McDaniel, no papel de Mammy, e Butterfly McQueen, no papel de Prissy (que gozaria enfim de um merecido destaque nas celebrações das bodas de ouro do filme, em Dezembro de 1989).

E Tudo o Vento Levou é uma película cheia de momentos memoráveis. Momentos visuais e também auditivos: as primeiras quatro notas do Tema de Tara, composto por Max Steiner, são ainda hoje reconhecíveis em todo o mundo. Como esquecer as cenas do baile (que serviu de inspiração a outros filmes que deixaram rasto, como O Padrinho e O Caçador), o incêndio de Atlanta, as imagens do fim da guerra e da subsequente devastação que atingiu o sul dos EUA, a morte da criança e a vasta escadaria na mansão da família O' Hara que serve de excelente metáfora das relações sentimentais -- os degraus parecem poucos quando o amor predomina e dir-se-iam intermináveis quando o ódio prevalece)?

Qual o segredo de Selznick para que este filme de 1939 parecesse muito à frente da sua época e ainda hoje permaneça no imaginário dos espectadores? O segredo de sempre: soube rodear-se dos melhores. Entre a equipa de argumentistas, por exemplo, figurou um tal Scott Fitzgerald. Capaz, como outros, de reduzir as 1037 páginas do romance de Margaret Mitchell, galardoada com o Pulitzer, para cerca de um terço. Por uma vez sem exemplo, less was more.

 

Comecei por falar em Selznick, acabo o texto também a invocá-lo. Porque nenhum outro grande protagonista do cinema como ele perturbou tanto a "política de autores" teorizada na década de 50 por alguns críticos franceses, que centravam as suas análises no realizador, apontando-o como o verdadeiro autor de um filme. Selznick era uma carta fora do baralho: é dele que se fala ainda hoje, quando se fala de Gone With the Wind. O filme chegou a ter quatro realizadores: Victor Fleming, único que figurou nos créditos finais, George Cukor (responsável por algumas cenas marcantes, como a da discussão inicial entre Scarlett e Mammy), Sam Wood e o fotógrafo William Cameron Menzies. Mas é um filme de Selznick, sem sombra de dúvida. Num tempo em que o produtor concebia a obra de arte e o realizador era apenas o seu artífice. Outros tempos, outros costumes. Numa cena capital, Rhett diz para Scarlett: "É um momento histórico. Pode dizer aos seus netos como viu o Sul desaparecer numa noite."

A última frase do filme, proferida por uma Vivien Leigh em estado de graça, é uma das mais célebres de sempre na Sétima Arte: "Amanhã será outro dia." Verdade histórica, verdade cinematográfica. O facto é que o cinema não voltaria a ser o mesmo.

Gone with the Wind. Ou na versão portuguesa, que sempre preferi, E Tudo o Vento Levou. Já que estamos mergulhados num melodrama, carreguemos nas tintas melodramáticas. Como escreveu o poeta Fausto Guedes Teixeira, num poema que certamente Scarlett apreciaria: "Amar ou odiar / Ou tudo ou nada: / O meio termo é que não pode ser / (...) Amemos muito como odiamos já! / A verdade está sempre nos extremos / Pois é no sentimento que ela está."

Às vezes convém trair a letra para permanecer fiel ao espírito. É o caso.

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E Tudo o Vento Levou (Gone With the Wind, 1939). Realizador principal: Victor Fleming. Produtor: David O. Selznick. Principais intérpretes: Vivien Leigh, Clark Gable, Leslie Howard, Olivia de Havilland, Thomas Mitchell, Barbara O'Neil, Evelyn Keyes, Ann Rutherford, George Reeves, Fred Crane, Hattie McDaniels. 

Os filmes da minha vida (37)

Pedro Correia, 28.08.11
 
 
A SOMBRA DO CAÇADOR:
A ÁRVORE E OS FRUTOS
 
Eis uma daquelas películas que nunca nos cansamos de ver. Único título de um cineasta singular que não voltou a sentar-se na cadeira de realizador - o actor britânico Charles Laughton, que em 1955 rodou esta obra-prima insólita e arrebatadora, longa toada nocturna, mais poesia que prosa, cruzamento do expressionismo alemão com cinema negro, de conto de fadas com romance gótico. É uma fita hipnótica, com um cortejo de actores em estado de graça. Incluindo Robert Mitchum na perfeita encarnação do Mal e Lillian Gish - que foi a primeira estrela do cinema - a servir-lhe de contraponto.
Há um sopro bíblico neste singular filme para adultos onde as crianças desempenham um papel central, numa espécie de celebração do triunfo da inocência. Com alusões ao Sermão da Montanha, talvez o mais belo texto de toda a Bíblia.
"Acautelai-vos dos falsos profetas, que se vos apresentam disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes. Conhecê-los-eis pelos seus frutos. A árvore boa não pode dar maus frutos, nem árvore má dar bons frutos." Este trecho do Evangelho de São Mateus serve de legenda implícita a um filme de óbvia matriz cristã que se indigna contra quem pratica crimes em nome de Deus. De uma perene actualidade num tempo cheio de implacáveis predadores travestidos de arautos da virtude.
A Sombra do Caçador perdura-nos na memória também por isto.

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A Sombra do Caçador (The Night of the Hunter, 1955). Realizador: Charles Laughton. Principais intérpretes: Robert Mitchum, Lillian Gish, Shelley Winters, Billy Chapin, Sally Ann Bruce, Peter Graves.

Os filmes da minha vida (36)

Pedro Correia, 23.07.11
Uma imensa parábola sobre a vida
 
Há quem desvalorize os westerns de John Ford, sobretudo os protagonizados por John Wayne. Só pode ser alguém que não ama o cinema ou jamais viu Cavalgada Heróica, Os Dominadores ou O Homem que Matou Liberty Valance - obras-primas de todos os tempos. E que certamente não conhece A Desaparecida, talvez o mais belo filme de sempre. Western? Sem dúvida. Mas muito mais que isso: uma imensa parábola sobre a vida. Wayne, no papel de Ethan Edwards, é o desencantado herói desta película que nos fala de amor e ódio, orgulho e preconceito, vingança e perdão, guerra e paz. Ethan já viu tudo, não esqueceu nada. Defendeu uma bandeira, conheceu a inapelável dor da derrota, aprendeu que a fama é ilusória, tornou-se um cavaleiro sem lema nem destino, convicto apenas da sua própria solidão. "Figure a man's only good for one oath at a time; I took mine to the Confederate States of America", afirma numa das mais inesquecíveis frases desta obra toda feita de cenas memoráveis.
Alguns filmes muito bons mudaram a história do cinema. Outros, ainda melhores, são capazes de nos mudar por dentro cada vez que os vemos. A Desaparecida, que Ford e Wayne rodaram em estado de graça, é um desses filmes.

Os filmes da minha vida (35)

Pedro Correia, 16.07.11

 

ALGUMAS FRASES INESQUECÍVEIS

 

Algumas das frases mais extraordinárias do cinema passaram à linguagem comum, o que é uma outra forma de confirmar a perenidade dos filmes. Lembramo-nos sem dificuldade de várias delas. Umas são simples interjeições, outras aludem a um nome próprio – e há também autênticas pérolas de sabedoria, algumas com carga irónica, outras bastante mais sérias.

“Rosebud”, a frase-chave pronunciada por Charles Foster Kane (Orson Welles) antes de morrer em O Mundo a Seus Pés (Welles, 1941), é uma delas. Tão marcante como esta: “Francamente, minha querida, estou-me nas tintas”, atirada por Rhett Butler (Clark Gable) a Scarlett O’Hara (Vivien Leigh) em E Tudo o Vento Levou  (Victor Fleming, 1939). Às vezes basta um nome para nos despertar reminiscências cinéfilas. “Stella!”, gritava Stanley Kowalski (Marlon Brando) em Um Eléctrico Chamado Desejo (Elia Kazan, 1951). “Está aqui o Johnnie!”, bradava Jack Torrance (Jack Nicholson) no repulsivo Shining (Stanley Kubrick, 1980).“A mãe é sempre a melhor amiga de um rapaz”, advertia Norman Bates (Anthony Perkins) em Psico (Alfred Hitchcock, 1960) – e ele lá saberia porquê. Ficou célebre outra advertência: a de Margo Channing (Bette Davis) em Eva (Joseph L. Mankiewicz, 1950): “Apertem os vossos cintos de segurança. Esta vai ser uma noite turbulenta.” Já para não falar do aviso feito por Michael Corleone (Al Pacino) ao irmão Fredo: “Mantém os amigos perto de ti e os inimigos ainda mais perto.” Todos nos lembramos desta frase, do filme O Padrinho II (Francis Ford Coppola, 1974). Ou de outra, n' O Padrinho original (Coppola, 1972), proferida por Vito Corleone (Marlon Brando), pai de Michael: “Vou fazer-lhe uma proposta que ele não pode recusar.”

Uma das frases mais célebres da Sétima Arte nunca existiu: “Toca outra vez, Sam.” Rick Blaine (Humphrey Bogart) limita-se a dizer “Play it, Sam” ao pianista (interpretado por Dooley Wilson) que na vida real não conhecia uma nota de música. Mas Casablanca (Michael Curtiz, 1942) está cheia de falas memoráveis que perduram de geração em geração. “Não arrisco o pescoço por ninguém”, afirma Rick antes de reencontrar Ilsa Lund (Ingrid Bergman). “Teremos sempre Paris”, garante-lhe depois do reencontro. “Foi um canhão a disparar ou é o meu coração a bater?”, diz-lhe ela por sua vez, durante o flashback parisiense. “Prenda os suspeitos do costume”, ordena o cínico capitão Renault (Claude Rains). “Acho que este é o princípio de uma bela amizade”, remata Rick. Teremos sempre Casablanca para nos lembrarmos do melhor cinema.

Às vezes a frase incorpora-se no imaginário popular simplesmente devido ao impacto de uma cena. Foi o caso da pergunta “Estás a falar comigo?", formulada por Travis Bickle (Robert de Niro) a si próprio em Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976). Ou do fabuloso remate de Quanto Mais Quente Melhor (Billy Wilder, 1959): “Ninguém é perfeito.” Mas talvez a frase mais célebre do cinema seja afinal um simples apelido, ao qual se juntou um nome próprio, em jeito de cordial apresentação: “Bond, James Bond.” Dita pelo próprio (Sean Connery) em O Agente Secreto 007 (Terence Young, 1962). E nunca mais ninguém esqueceu.

Os filmes da minha vida (34)

Pedro Correia, 17.04.11

 

LOST IN TRANSLATION:

TEREMOS SEMPRE TÓQUIO

 

Todas as gerações têm o seu Casablanca: um filme sobre uma insólita e desesperada história de amor. Em tempo de guerra, como o original, ou em tempo de paz – se é que podemos chamar paz a estes anos de intróito entre guerras como aqueles que vivemos. Vejo Lost in Translation – O Amor é um Lugar Estranho como uma espécie de Casablanca dos anos iniciais do século XXI – um homem e uma mulher encontram-se algures no mundo, muito longe das paisagens mais familiares, e procuram um no outro uma espécie de bússola que lhes permita navegar entre os escolhos da vida. Estão em ambientes estranhos, rodeados de idiomas incompreensíveis, parecendo náufragos em ilha deserta apesar das multidões em redor.
A mais profunda solidão, como é sabido, pode ocorrer no frenesim das grandes cidades. Lost in Translation – uma tocante e originalíssima história de amor – fala-nos disto através de duas personagens: um actor de meia-idade e uma jovem recém-licenciada, que por acaso se encontram num hotel de cinco estrelas em Tóquio. São ambos norte-americanos, ambos casados, ambos solitários. Estão ambos de passagem pela capital japonesa, que ambos visitam pela primeira vez. Ele com o enfado de quem já viu muito, ela com o deslumbramento de quem tem ainda quase tudo por ver.
Ele é Bob Harris (Bill Murray, no papel da sua vida), um actor que se encontra em Tóquio a gravar um anúncio publicitário a uma marca de uísque. “Na hora da descontracção, descontraia-se com Suntory”. Ela é Charlotte (Scarlett Johansson), formou-se em Yale, no Verão anterior, e mudou-se de Nova Iorque para Los Angeles depois de casar com um fotógrafo que acompanha bandas rock e parece pouco ou nada interessado nela.
Neste filme sobre o desenraizamento e a solidão, onde quase nada é dito e tudo se sugere, Sofia Coppola (o génio vem nos genes) intercala planos de Bob e Charlotte, nos respectivos quartos, em intermináveis noites de insónia. Ele faz zapping, revê-se num filme antigo, dobrado em japonês. Ela contempla os néons da cidade através das vidraças do Hotel Park Hyatt. Estão ambos no coração de uma das mais laboriosas metrópoles do planeta, mas ele sonha apenas com a peça de teatro que deixou de fazer para se deslocar ao Japão e ela lembra com fascínio um templo xintoísta que visitou sozinha em Tóquio. Conversam pela primeira vez no bar panorâmico do hotel, ao som de uma versão melosa de Scaraboroug Fair. É o início de uma bela amizade.

 

"Ganho dois milhões de dólares pela publicidade a um uísque quando podia estar a fazer uma peça de teatro. Mas a boa notícia é que o uísque é bom" - diz Bob.

"Tentei ser escritora, mas odeio o que escrevo. Tentei ser fotógrafa, mas as fotografias saem-me sempre medíocres" - diz Charlotte.

"Um dia saberá. Continue a escrever" - diz Bob.

Decidem mergulhar na noite da cidade. Vemo-los em Ginza, na Torre de Tóquio, na ponte de Yokohama. Confraternizam com japoneses num caraoque onde Bob canta More Than This, dos Roxy Music. "Tu sabes nada mais haver que isto."

Trocam confidências. Estabelece-se entre eles uma inconfundível cumplicidade. Charlotte vence enfim a guerra contra a insónia. Bob deposita a bela adormecida no seu quarto.

 

E há a despedida - a mais bela despedida de que me lembro no cinema, excepto (e lá volta o paralelo) a de Casablanca. Numa cena totalmente despojada de melodrama mas que nos seduz também por isso.

É uma despedida rápida, num lóbi de hotel.

Ela: "Vou ter saudades."

Ele: "Não quero ir."

Ela: "Não vá. Fique aqui comigo."

Bob levará Charlotte para sempre. Será isso que lhe sugere ao ouvido? Só podemos adivinhar pelo esboço de sorriso que se abre no rosto dela. Um cineasta mediano mostraria. Sofia Coppola oculta. Ou este não fosse também um filme tocado por uma surpreendente, fascinante, envolvente e singular atmosfera de pudor. De quantos produzidos nos nossos dias se poderá dizer o mesmo?

Alguns filmes reconciliam-nos com o cinema. Outros reconciliam-nos com a vida. Mais raros ainda são os que nos reconciliam simultaneamente com a vida e o cinema enquanto o tempo passa. Como este filme, que apetece rever uma vez e outra. Graças a Lost in Translation, seremos sempre felizes em Tóquio. Quem disse que jamais se deve voltar a um lugar onde já se foi feliz?

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O Amor é um Lugar Estranho (Lost in Translation, 2003). Realizadora: Sofia Coppola. Principais intérpretes: Bill Murray, Scarlett Johansson, Giovanni Ribisi, Anna Faris, Fumihiro Hayashi.

Os filmes da minha vida (33)

Pedro Correia, 12.04.11

 

Não há sucesso como o fracasso

 

Alguns actores são assim: atingem um estatuto de primeira grandeza, andam uns anos aclamados por um vasto público, são idolatrados e invejados em proporções quase iguais até que um dia sentem na pele que não existe nada mais ilusório do que o efémero mundo da fama. Nesse dia, trocam a vida de fingimento pela vida real e deixam de ser confundidos com as suas personagens mais célebres.

Aconteceu isso com Farley Granger. No auge do sucesso como actor em Hollywood, quando era uma celebridade, reconhecida em qualquer parcela do globo, abandonou os estúdios de cinema, trocando o brilho ofuscante dos holofotes pela singeleza dos palcos teatrais. Rumou à Europa, viveu uns anos em Itália, fez ocasionais trabalhos em televisão, o seu nome foi-se diluindo na memória cinéfila, outros astros do celulóide ocuparam o seu lugar: o espectáculo cinematográfico, tal como a política, tem horror ao vácuo.

Quando morreu há poucos dias, com 85 anos, poucos se lembravam dele. E no entanto algumas obras-primas do cinema ficarão eternamente ligadas a este actor contratado aos 18 anos pelo produtor Samuel Goldwyn para integrar o elenco de um filme de guerra, North Star, realizado em 1943 por Lewis Milestone com argumento de Lillian Hellman. Em qualquer destes filmes Farley Granger – sempre com um rasto de inquietude no rosto – compõe personagens atormentadas pela duplicidade moral. O estudante capaz de assassinar sem motivo (A Corda, de Alfred Hitchcock, 1948), o jovem delinquente em fuga pelas estradas do sul da América (Os Filhos da Noite, a obra de estreia de Nicholas Ray, 1949), o ás do ténis disposto a matar o pai de alguém que não conhece (O Desconhecido do Norte-Expresso, também de Hitchcock, com base no primeiro romance de Patricia Highsmith, 1951), o oficial austríaco que despreza a aristocrata italiana apaixonada por ele (Sentimento, de Luchino Visconti, 1954), o milionário incapaz de entender que uma corista prefira o amor de outro à sua fortuna (A Rapariga do Baloiço Vermelho, de Richard Fleischer, 1955).

Todas estas personagens são apanhadas nas caprichosas teias do destino. Pressentimos, em qualquer dos casos, que poderiam ter uma sorte bem diferente. Mas em todos estes títulos clássicos do cinema Farley Granger ajuda a tornar mais credível a tese de que não basta ser rico ou talentoso ou fotogénico para se ser feliz.

Foi assim no cinema, foi assim na vida. Retirado dos ecrãs, regressou em aparições esporádicas. Cada vez mais espaçadas, cada vez mais desconcertantes – como em Trinità, Cowboy Insolente (1970). Depois de Hitchcock e Visconti, o western-spaghetti.

“Não há sucesso como o fracasso”, ensinou-nos Bob Dylan. O percurso de certos actores bafejados muito cedo pela fama parece dar razão ao criador de Simply Twist of Fate. Depois de conseguirem ser célebres quase sem esforço aparente, buscam incansavelmente o outro lado do espelho. Assim fez Farley Granger.

 

Imagem: Farley Granger com Alida Valli em Sentimento, de Luchino Visconti (1954)