Os filmes da minha vida (50)
SHANE:
SEMENTES DE VIOLÊNCIA
Um forasteiro chega a um pequeno povoado, vindo ninguém sabe de onde. Ainda o genérico preenche o ecrã e já o vemos lá do alto a cavalgar rumo ao vale – de costas, o que acentua a face enigmática deste peregrino de passado obscuro: apenas saberemos de imediato que é exímio a manejar armas de fogo e um desenraizado, sem lar nem âncora. Perceberemos mais tarde que está farto de violência, mas não consegue escapar dela.
Shane – um dos melhores westerns de que há memória e o filme que projectou Alan Ladd para a eternidade – é um singular retrato da América pioneira, a que desbravava sucessivas fronteiras internas, sempre rumo a Oeste, à mercê do esforço individual, tantas vezes pago com a mutilação e a morte. Uma América de algum modo simbolizada naquele cavaleiro supostamente oriundo de paragens inóspitas e sujeito ao dilema permanente entre matar ou morrer.
Estamos no belo e bravo Wyoming da última década do século XIX, quando os índios haviam deixado de ser uma ameaça à progressão do homem branco na marcha para o Pacífico. Nação ainda jovem, os EUA iam rasgando vias de comunicação, erguendo embriões de cidades, transformando pastagens naturais em solos agrícolas. A administração pública permanecia longe, a milhares de quilómetros. Ali as leis ditavam-se em função das circunstâncias e o próprio preceito bíblico «Não matarás» era a todo o momento questionado.
Não há um só pele-vermelha neste clássico do Oeste selvagem: aqui todas as lutas se desenrolam entre descendentes directos de imigrantes europeus. De um lado, os mais antigos detentores das terras, apostados em mantê-las como pasto para gado; do outro, os lavradores, pertencentes à primeira geração que ali trocava a espingarda pelo arado. Uns defendiam a tradição atávica, confinada à lei do mais forte; outros implantavam cercas e vedações, delimitando o direito de propriedade como símbolo do progresso. Visões antagónicas, condenadas ao conflito. Ryker, o rude patriarca local, descreve o quadro em poucas frases: «Passámos por tempos duros, eu e outros homens agora quase todos mortos. Ainda tenho um ombro em má forma devido à flecha de um Cheyenne. Fundámos e construímos esta região com trabalho, sangue e estômagos vazios. O gado que para aqui trouxemos foi perseguido por índios e gatunos. Fizemos disto um território seguro. Alguns morreram, mas conseguimos.»
Shane, nómada por destino ou vocação, não pertence a nenhuma destas facções: cruza aquele território por um capricho do acaso, «sem lenço nem documento», como cantaria Caetano Veloso muitas décadas depois. E logo se torna um ídolo do pequeno Joey, filho único do casal formado por Joe e Marian Starrett, agricultores em confronto com o prepotente Ryker, símbolo remanescente de um vasto território ainda sem lei.
Neste western atípico, a criança faz toda a diferença: parte do que observamos advém do seu olhar virginal. Merece aplauso a interpretação do pequeno Brandon de Wilde, então com apenas dez anos: foi, à época, o mais jovem actor nomeado para um Óscar.
O miúdo, sonhando com cavalgadas aventureiras, elege como seu herói o recém-chegado que se hospeda lá em casa. Indiferente ao prudente conselho da mãe: «Não te afeiçoes muito ao Shane. Ele irá partir um dia e ficarás triste se te afeiçoares demasiado a ele.» Marian fala para o filho mas também para si própria: percebemos, desde o primeiro instante, que ela se sente atraída por aquele forasteiro chegado de lugar nenhum. Basta um intercâmbio de olhares para desfazer dúvidas. E vários se irão sucedendo nesta longa-metragem.
Shane – realizado por George Stevens (1904-1975) - é um filme memorável não apenas pelo que expressa mas por tudo quanto deixa implícito sem desperdício de palavras, aqui substituídas com vantagem pelas imagens, essência do cinema. Desde logo pelo local escolhido, quase todo em cenário natural, na região de Jackson Hole, emoldurada de montanhas com neves perpétuas. Um cenário grandioso e fascinante, fazendo-nos recordar a cada momento como são exíguas as forças do ser humano no milenar confronto com a natureza.
Neste jogo de contrastes, onde o bem e o mal nunca se dissociam da dicotomia estética, uma das personagens memoráveis é Wilson, o pistoleiro profissional, aqui semelhante a um gangster, de chapéu e colete negros em óbvia alusão ao rasto de morte que o acompanha – papel confiado a Jack Palance, numa das melhores composições de um dos piores canalhas já surgidos na grande tela. A cena em que ele mata o pobre ex-soldado sulista Torrey (interpretado por Elisha Cook Jr, quase mítico actor secundário da velha Hollywood), deixando-o sepultado na lama, é digna de antologia, tendo inspirado vários cineastas – de Sam Peckinpah a Quentin Tarantino, passando por Clint Eastwood.
Outra cena inesquecível é a do baile comemorativo do feriado do 4 de Julho, com a bandeira norte-americana desfraldada nos celeiros – também o dia em que Marian e Joe (interpretados por Jean Arthur e Van Heflin) celebram o décimo aniversário de casamento. Mas ela só dá nas vistas, parecendo remoçar de minuto a minuto, quando dança com Shane.
Aqui, de novo, nenhuma palavra é necessária: um espectador atento percebe tudo.
Rodado entre Julho e Outubro de 1951 num esplendoroso Technicolor que em várias cenas o torna digno de uma tela expressionista, este filme que a Paramount só estreou em Abril de 1953 inspirou-se na novela homónima de Jack Schaefer - publicada anos antes, em fascículos, numa revista popular. Ao que consta, a adaptação à tela ocorreu por recomendação do filho do cineasta.
Podia ter sido um western de produção industrial, idêntico a tantos outros. Mas pela mão de Stevens (que no ano anterior filmara o sublime Um Lugar ao Sol) torna-se obra-prima absoluta, com lugar cativo no panteão do cinema americano. Merecendo seis nomeações para os Óscares – caso raro numa película etiquetada entre as «fitas de cowboys» pela desdenhosa crítica bem-pensante – e uma estatueta, mais que justificada, a distinguir a deslumbrante fotografia de Loyal Griggs.
Ladd ficou à margem dos galardões e rezam as crónicas que terá entrado em depressão ao saber-se marginalizado pelo júri de Hollywood, aqui com vistas muito curtas: o Shane que ele encarna (num papel rejeitado por William Holden e Montgomery Clift) é uma das melhores interpretações jamais registadas em westerns.
Vi pela primeira vez Shane há quase 30 anos, num local muito distante daquele onde agora escrevo. Não em cinema, como gostaria, mas em laser vídeo disc – tecnologia então muito evoluída mas hoje obsoleta. Logo se tornou num dos meus filmes de culto: equiparo-o, em western, a Rio Bravo (de Howard Hawks), A Desaparecida (de John Ford), Sublime Tentação (de William Wyler) e Johnny Guitar (de Nicholas Ray). Todos rodados nos prodigiosos anos 50 – a melhor década do cinema.
Recordarei para sempre algumas cenas que ainda me emocionam. A do pungente “Pai Nosso” rezado em coro pelos lavradores que acabam de ver assassinado outro dos seus, recortados em silhueta na vastidão do horizonte como se estivessem projectados no infinito. A do estóico Joe Starrett garantindo com firmeza, em noite de trovoada, aos restantes companheiros de infortúnio: «Eu não sairei daqui, nem agora nem nunca.» A de Marion observando o hóspede da janela e repetindo-lhe o nome. Como se recitasse uma oração, como se contemplasse o sol naquela noite de chuva intensa.
E sobretudo a magnífica sequência final, quando Joey implora com insistência ao seu fugaz herói: «Shane! Shane! Volta!»
Os gritos ficam a ecoar por todo o vale. Mas Shane já cavalga à distância, regressando ao local incerto de onde veio, tão enigmático à partida como no dia em que chegou.
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Shane. (Shane, 1953). De George Stevens. Principais intérpretes: Alan Ladd, Jean Arthur, Van Heflin, Brandon de Wilde, Jack Palance.